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o sistema solar | os cometas | portentos e fenómenos extraordinários
"Levantem
pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se
os virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam."
(Padre António Vieira, História do Futuro, cap. VIII) A designação komếtês [astếr] ("estrela com cabeleira") já surge em Aristóteles (Meteorologica, lib. I, 6.) e nos Phainómena de Aratus. Chegou-nos do Latim. Num exemplo do séc. XV: "pareceo aquella cidade humma muy grande cometa feita a maneira de Dragão..." (Zurara, Crónica de D. Pedro de Menezes, cap. 146). Note-se o género feminino. Como Vasco Jorge Rosa da Silva refere (Breve estudo sobre os cometas em Portugal. Revista de Guimarães (Sociedade Martins Sarmento), 113-114, Jan.-Dez. 2003-2004, pp.231-252), os cometas eram, na Idade Média, interpretados como augúrios da convencional trilogia de catástrofes medievais: a fome, a guerra e a peste. "Da exalaçam", André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos..., 1602 L.III, cap. 6 No início do período moderno " a tese mais divulgada e consensual concebia estes fenómenos como exalações terrestres que ascendiam à suprema região do ar e eram provocadas, na linha de Abu Mas'shar, pela conjunção dos três planetas superiores. Assim, a maioria dos cometas apresentava qualidades semelhantes a estes corpos celestes." (Luís Miguel Carolino, Ciência, Astrologia e Sociedade: a Teoria da Influência Celeste em Portugal (1593-1755), Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, Novembro de 2003, p.337) (Para o período medieval, ler a introdução de Nerea Maestu Fonseca: Atravesando el cosmos: astronomía, historia y el estudio de cometas en época medieval, in María Jesús Fuente & Inés Monteira Arias (eds.), "Enanos sobre gigantes en el siglo XXI: La Herencia Medieval en España", Universidad Carlos III de Madrid, 2023, pp.71-85). As mais interessantes listagens "clássicas" de cometas históricos são as de Johann Hevelius (Prodromus cometicus, 1665 e Descriptio cometae..., 1666), Stanisław Lubieniecki [ou Lubienetzky, Lubienietz] (Theatrum Cometicum, 1666-68), Nicholaas Struyck (VInleiding tot de Algemeene Geographie, Benevens Eenige Sterrekundige en andere Verhandelingen ("Introdução à Geografia geral, para além de alguns tratados de astrónomos..., 1740; ainda uma "Continuação" em 1753) e Alexandre Guy Pingré (Cométographie ouTraité Historique et Théorique des Comètes, 1783-4). Os cometas, criações novas e sobrenaturais, estrelas criadas e dissolvidas por Deus, operavam, de facto, em oposição às naturais leis dos céus. Tal como as grandes conjunções e os eclipses, foram por vezes interpretados como "balizas" numa perspectiva apocalíptica e teleológica da História, numa "cronologia do divino" que abria espaço para a profecia e para a prognosticação. Exemplificada no Livro do Apocalipse, a intervenção divina é eventualmente anunciada por estes portentos celestes: "E o terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu na terça parte dos rios, e nas fontes das águas." (8, 10) ou "E o quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo." (9, 1). Cometas "portugueses" Segundo a Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques, antes da tomada de Santarém (1147), foi visto um "cometa" de mau presságio para os Sarracenos, precedido do que, pela descrição, parece ter sido um impressionante meteoro ou bólide, "bola de fogo": "Passado
assi esto com outras muitas palavras, e praticas sobre o caso,
aparelharam todo o que fazia mister, para tal obra, e leixando alli as
tendas, e todo o al que traziam, cavalgaram em seus cavallos, e
chegaram aos olivaes de Santarém, de noite. Esto era em vespora de S.
Miguel de Maio sete dias andado do mez, na era de mil cento e quorenta
e sete annos (1147), e
chegados alli viram um sinal, que lhes esforçou
muito mais os corações; viram uma estrella grande ardente com graude
raio correndo pelo Ceo, da parte da Serra, que alumiava a terra, e foi
ferir no mar. Vendo esto disseram logo todos. Senhor Deos todo poderoso
a Villa è em vossas mãos. Esso mesmo no dia que El-Rei mandou notificar
aos Mouros o britamento [invalidação, anulação] das tréguas, que acima dissemos
aos da Villa, appareceo outro sinal mui espantoso pronostico de sua
mortindade, que foi na terceira noite seguinte, viram no Ceo a horas do
meio dia semelhança de um Touro ir por meio do Ceo, levando chamas de
fogo acezas, desde o cabo até á cabeça. O que esses mais sabedores
antre os Mouros, intrepetáram que Santarém haveria cedo Rei novo, e
seria o filho dei Rei de Sevilha Mouro, cujo Santarém, e Lisboa, e
parte da Estremadura era." (Chronica
de El-Rei D. Affonso
Henriques por Duarte Galvão, Bibliotheca de Classicos
Portugueses, LI,
Lisboa, Escriptorio, 1906; cap. XXXI, pp.103-4)
O segundo fenómeno noutra
fonte: "meyo-dia asy como hum touro
que ya per meyo do Ceeo, que levava como as asas de foguo des o cabo
ate à cabeça" (Crónica de Portugal de 1419, estudo crítico de
Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, p.42)
Descriçóes dificilmente compagináveis com a observação de cometas. Algo luminoso "correndo pelo Ceo" e um ígneo touro alado? Não se estabelecia então uma diferenciação tipológica clara entre estes fenómenos. Cometas, meteoros, bólides, halos..., todos eram descodificados num quadro conceptual que observava "sinais" em todas as manifestaçõe atípicas da natureza. Vale a pena ler pela vivacidade da reportagem mas o único potencial cometa no catálogo de Gary W. Kronk (Cometography: A Catalog of Comets, vol. I, Cambridge University Press, 1999, p.203) é o objecto C/1147 A1 que foi somente observado entre Dezembro de 1146 A.D. e o Fevereiro sequente. Outro
fenómeno, segundo o
cronista Ruy de Pina, foi avistado a caminho de mais um malogrado cerco
a
Tânger (o cerco que ficou mais tristemente célebre, nomeadamente pelo destino do "Infante Santo" D. Fernando, foi o de 1437,
liderado pelo infante D. Henrique, era então a praça controlada por
ibne Sale, chamado Çallabençalla nas nossas crónicas). Agora, acerca do cerco de 1464, Ruy de Pina escreve: "Na
tristeza e pezo que todos levavam pello caminho, logo pera bem do feito
pareceo desaventurado pronostico, especialmente que sendo sobre o
cabeço, que dizem d'Almenar, pareceo no Ceo à vista de todos huum
espantoso cometa, que lençava de sy muitos rayos de fogo em figura de
dragam" (Crónica de D. Afonso V, titulação e remissão de M.
Lopes de Almeida,
Porto, Lello & Irmão-Editores, 1977, p. 305).
Na edição da
Bibliotheca de Classicos Portugueses; Lisboa, Escriptorio, 1902, vol.
III, cap. CLIII, pp.37-38) lemos: "E
na tristeza e pezo que todos levavam pelo caminho, logo para bem do
feito pareceu desaventurado prognostico, especialmente que sendo sobre
o cabeço, que dizem d'Almenar, pareceu no ceu á vista de todos um
espantoso cometa, que lançava de si muitos raios de fogo em figura de
dragão. Ali disse então Gomez Freire, nobre fidalgo e de grande
coração: "Oh! noite má, para quem t'aparelhas", que ficou em proverbio
muito tempo acostumado."
O citado catálogo de Kronk não inclui qualquer fenómeno conspícuo nesse ano. Tânger cairá em mãos portuguesas apenas em 1471 (cidade foi abandonada e deixada à mercê das forças lusas após a conquista de Arzila), ano no qual um cometa (C/1471 Y1, designação actual) foi, de facto, observado (em 1471-1472), inicialmente "ad oriente nel primo grado della costellazione della Bilancia", segundo um relato italiano; "...idibus Januarii visus est nobis Cometa sub Libra cum stellis Virginis..." escreveu o exímio matemático Regiomontanus (Johannes Müller, de Königsberg, 1436–1476), que o observou detalhada e sistematicamente fornecendo preciosa informação posicional. Ou seja, estava, a 13 de Janeiro (idus), no signo Libra e sideralmente, em corpo, em Virgo (consequência da precessão). Numa simulação retrospectiva (GUIDE 9.1), verificamos que estaria então observável aproximadamente entre Spica e Arcturus e a sua longitude seria de ~192º, i.e. 12º do signo Libra (que ocupa o intervalo 180º-210º). Foi último cometa observado pelo sábio italiano Paolo dal Pozzo Toscanelli em Janeiro de 1472, que deixou um breve manuscrito. No Theatrum Cometicum (Tomo II, p.302) Lubieniecki cita Rockenbachius (Abrahami Rockembackii Exempla Cometarum) que mencionou a expedição africana do rei Afonso (V) e como as "duas importantes cidades de Tânger e Arzila foram devastadas e ocupadas": "Alphonsus Rex Portugalliae cum exercitu in Africam proficiscitur, duasque munissimas civitates, Tingin & Argillam devastat & occupat." O cometa de 1471-2: "O Grande Cometa que apareceu em Mcccclxxij (1472)", Liber cronicarum cum figuris et ymaginibus ab inicio mu[n]di vsq[ue] nu[n]c temporis, 1497 (incunábulo em Latim da chamada "Crónica de Nuremberga" (Weltchronik), de Hartmann Schedel). A crónica é uma "história mundial" ilustrada, na qual os conteúdos são divididos em sete "idades". Lemos agora a notícia de um cometa de 1500, considerado augúrio sombrio do naufrágio em que pereceu o navegador Bartolomeu Dias quando fazia, na armada de Cabral, a travessia entre o Brasil e o Cabo da Boa Esperança. Associado a esse infortúnio por João de Barros (Décadas, 1552), a procela foi descrita por Manuel de Faria y Sousa (1590-1649) na Asia Portuguesa (crónica escrita em Castelhano), Tomo I, 1666 (ed. póstuma), que menciona o "triste anuncio": Excerto da descrição de Faria y Sousa, in Asia Portuguesa, Tomo I, p.45
Alexandre Guy Pingré, no séc. XVIII, elenca este cometa mas omite os detalhes dramáticos: "Des Voyageurs qui faisoient voile du Brésil au cap de Bonne-espérance, la virent le 12 Mai (& non pas en Janvier comme le dit Hevelius): elle paroissoit du côté de l'Arabie; ses rayons étoient trés-longs; elle fut ainsi continuellement observée, jour & nuit, durant huit ou dix jours [afirma aqui citar Cadamosto, cap. LXVII]". Adiante refere como o cometa foi em França chamado "Seigneur Astone" (a partir da convencional categorização morfológica do cometas, que veremos adiante) mas não menciona qualquer naufrágio. (Cométographie ou Traité Historique et Théorique des Comètes, Tomo I, 1783, p.479) A notícia "completa" é mais tarde anotada por Alexander von Humboldt (que se respaldou em João de Barros) no seu Examen Critique de l'Histoire de la Geographie du Nouveau Continent (Tomo I, Librairie de Gide, 1836, p.296) e, a partir desta referência, por François Arago (Astronomie Populaire, vol.II, 1855, p.332). Referência ao cometa de 1500 na Astronomie Populaire de Arago, da deuxième édition das Oeuvres Complètes, ed. J.-A. Barral. ("Dominus Astone" era um dos nomes pelo qual se conhecia uma das tipologias em que se dividiram os cometas, ver e.g., Fr. Antonio Teixeira, Epitome das Notícias Astrologicas para a Medicina, Lisboa, 1670, p.113) Depois, na Miscelânea de Garcia de Resende (originalmente publicada em 1554), no nº 289, podemos ler uma alusão ao cometa "Halley" (1P/Halley) na sua aparição de 1531 (1P/1531 P1; obviamente antes de lhe ser atribuída essa designação):
No estudo deste cometa detacaram-se Petrus Apianus e Girolamo Fracastoro. O primeiro (cujo nome de baptismo era Peter Bennewitz ou Bienewit) observou-o minuciosamente em Agosto desse ano e constatou que a sua cauda apontava sempre na direcção oposta à do Sol, o que como se verificará característica comum a todos estes corpos.
O cometa de 1456 (1P/1456 K1 (Halley))
será o mesmo "Halley", num retorno que na época era
insuspeitado. A
sua periodicidade será mais tarde sugerida justamente por Edmond
Halley (1656-1742) que percebeu a similitude das órbitas dos brilhantes
cometas de 1531, 1607 e 1682. O seu retorno em 1758–59 foi o primeiro a
ser previsto. Um marco científico histórico. Daí o nome em sua
homenagem. * Theatrum Cometicum, nomeadamente a pars posterior: Historia cometarum, a diluvio usque ad præsentem annum vulgaris epochæ à Christo nato 1665. decurrentem, unà cum indiculo lætorum & tristium eventuum, cometarum apparationem secutorum, in qua simul synopsis quaedam universalis historiæ proponitur P. 2, Amstelodami [Amsterdão], apud Danielem Baccamude, typographum. Pro Francisco Cupero (1666) Heinrich
Bünting, na sua "Cronologia Universal", não refere o "pressagiador" fenómeno de 1538 mas indica o aparecimento de um
cometa em Maio de 1539, na mesma linha em que cita o óbito
de Isabel de Portugal, cônjuge do Imperador (Chronologia
catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora
editarum, ultima & absolutissima demonstrata. Omnium gentium et
temporum, tam sacris quam alias probatis scriptis. Calculo quoque
astronomico prutenico vt laboriosissimo ita certissimo. Ecclipsium,
stellarum, & calendariorum: Ebræorum, Græcorum, Ægytiorum &
latinorum: vsque ad ipsum mundi initium. Historia item..., Salomon Richtzenhan, Magdebvrgi, 1608, fol.488). A sua fonte é o lib. XII do De Statu Religionis et Reipublicae Carolo V. Caesare commentarii..., de Johannes Sleidanus (Philippson ou Philippi, nascido em Schleiden, 1506-1556), v. excerto seguinte. Pingré (Cométographie, p.500) afirma
que este cometa foi observado entre os dias 6 e 17 desse mês, em Leo, acreditando-se, na época em que foi observado, que se havia "formado" em Taurus. Menciona as observações de Petrus Apianus e Gemma Frisius.
A referência de Sleidanus: o cometa (1539) e a morte da esposa (uxor) de Carlos V. De Statu Religionis et Reipublicae Carolo V. Caesare commentarii..., per Petrvm Fabricium, impensis Hieronymi Feyrabend, Francofurti. Anno M.D.LXVIII, lib. XII, p.253). A primeira edição da obra viu a luz em Estrasburgo em 1555 Seguidamente, o famigerado cometa de 1577 (C/1577 V1) que está, na nossa memória, inevitavelmente vinculado à derrota de D. Sebastião (1554-1578) na Batalha de Alcácer Quibir (variantes: Alcácer-Quivir, Alcazarquivir, Alcassar, etc; Ksar el-Kebir, em Marrocos), a 4 de Agosto de 1578, provocando forte comoção no reino e "uma autêntica admiração internacional" (Vasco J. R. da Silva, Op. cit., p.235). Um poeta nascido no século, Vasco Mouzinho de Quevedo, traduziu em versos inspirados o trauma da perda do Rei, como que preconizando a profícua persistência, sob diversas guisas, do tema sebástico: "Sebastião cuja morte inda hoje é viva, Renovando-se sempre de ano em ano." Brehm reconstrói de modo eloquente o fenómeno pressagiador (Sebastião e o cometa espantoso..., pp.112-3): "...no início de Novembro de 1577, surgiu no céu um cometa tão extraordinário como nunca se vira, nem sequer havia memória de coisa parecida. Não era sequer comparável àquele de 20 de fevereiro do ano distante de 1492, que vaticinou a morte do Príncipe D. Afonso, filho de D. João II. Nem se comparava com aquele outro que tinha passado a 26 de agosto de 1531 [aparição do que virá a ser conhecido como o "Cometa de Halley"] e que trouxera tão horríveis terramotos ao Reino, ou com o de janeiro de 1538, que levou a Imperatriz D. Isabel, filha do augustíssimo D. Manuel. Não, este era mais magnificente e haveria de se demorar nos céus da Europa quase dois meses." Segundo Ronald Stoyan, a primeira observação (1 de Novembro) foi no Peru, algumas décadas antes conquintado por Pizarro. Também foi observado no Japão no dia 8. Na Europa, foi observado por Bartholomaus Scultetus em Gorlitz no dia 10 (Stoyan, R. Op. cit., 2015, p.59) François Arago (Astronomie Populaire, vol.II, p.334) é sucinto: "Comète observée par Tycho (nº 32 du catalogue)". O fenómeno revelou-se importantíssimo para a evolução da Astronomia e da nova consciência científica em geral. Nesta "época-charneira" publicaram-se imensos tratados, manifestando orientações e sensibilidades diversas. O estudo mais completo acerca dos registos deste fenómeno ainda é provavelmente o de C. Doris Hellman (A Bibliography of Tracts and Treatises on the Comet of 1577, Isis, v.2 (1), 1934, pp.41-68; expandida em 1944: Appendix extraído da reimpressão de 1971 (AMS Press, Columbia University Studies in the Social Sciences, 510), pp.318-430; .PDF, ~17MB). Todavia, com ênfase astronómica e sem referências lusas. O alemão Bartholomaeus Scultetus descreveu o cometa bem cedo, a 10 de Novembro. Tycho referiu que "...era esbranquiçado, possuía um brilho semelhante ao das estrelas fixas mas mais escuro como o da estrela de Saturno em aparência, que realmente nessa altura não estava muito longe dele. A sua cauda era ampla e longa, curvada sobre si mesma quase no meio, de uma cor avermelhada escura como uma chama que penetrava através de fumo.". A 12 de Dezembro Michael Maestlin (em Tubinga) avaliou a extensão da cauda em 30º, estendendo-se na direcção do Capricórnio. (v. Gary W. Kronk, Cometography: A Catalog of Comets, vol. I, Op. cit., 1999, p.318). Calvisius (Opus Chronologicum..., Editio Quarta, Francofurti...,Anthonius Hummius, MDCL, p.943) escreveu: "Cometa ingens cum longissima & latissima cauda visus mense Novembris...." (enorme cometa com longuíssima e amplíssima cauda visto no mês de Novembro...). Foi através da sua investigação, epitomizada pelas cuidadosas e sistemáticas observações de Tycho, que alguns astrónomos de vanguarda (o próprio, Maestlin, Roeslin, Guilherme [Wilhelm] IV [o Landgrave de Hessen-Kassel] e Cornelius Gemma (filho de Gemma Frisius) abandonaram definitivamente as teorias de base aristotélica nas quais os cometas eram sublunares, provando que estavam muito mais distantes (contudo, Hagecius, Scultetus, Nolthius ou Busch insistiram em colocar erradamente este cometa no "estrato" sublunar). Segundo Pingré (Op. cit. Tomo I, p.512) "Quelques Physiciens pensoîent comme Tycho; le plus grand nombre demeuroit attache aux anciens préjugés. A peine la Comète de 1577 commença-t-elle à paroître, que tous furent attentifs à l'arrêt que ce phénomène porteroit pour ou contre Arîstote, & qu'ils s'empressèrent même de le dicter. Cornélius Gemma, Michel Moestlin, Thaddée Hagecius, le Landgrave de Hesse, Simon Grynée, en un mot tous ceux qui se piquoient alors d'avoir quelque connoissance du ciel, obsèrvèrent, mouvemens de cette Comète, & firent part au public de leurs découvertes réelles ou prétendues." No De Mundi Aetheri Recentioribus Phaenomenis Liber Secundus, Praga, 1603, livro extremamente técnico e detalhado, Tycho Brahe, verificando a diminuta paralaxe* (cuja teoria havia sido avançada por Johannes Muller de Königsberg, dito Regiomontanus), demonstrou, no Capvt Sextum, a vasta distância a que o cometa se encontrava, ou seja, muito para além da Lua, entre os planetas: "inter Coelestes Planetarum circuitus..." (Conclusio, p.458). Salientou ainda que o cometa parecia permanecer na mesma posição quando observado de Uraniborg (Uranienborg, o seu observatório na ilha de Hven) e da cidade de Praga, pontos de observação muito distantes entre si. Não poderia ser fenómeno sublunar. Era o contrário do que os peripatéticos defendiam. De resto, como J. R. Christianson judiciosamente refere, o dinamarquês sempre foi céptico quanto à distinção das duas naturezas aristotélicas (a etérea, incorruptível, e a sublunar, da geração e da corrupção), estando mais próximo da visão de Paracelsus, de um Universo vivo e dinâmico (Tycho Brahe's German Treatise on the Comet of 1577: A Study in Science and Politics, Isis, vol. 70, No. 1 (Mar., 1979), pp.110-140), p.121). Mas as conclusões quanto à distância e, consequentemente, natureza supralunar e astronómica dos cometas não foram imediatamente acolhidas. Como J. L. E. Dreyer explicou: "It was not until Hevelius had again shown from accurate observations that comets are much farther off than the moon that the opponents to their character of heavenly bodies were finally silenced some sixty years after Tycho's death, and not till 1681 that the parabolic form of their orbits with the sun at the focus was discovered by DorfeI." (History of the Planetary Systems from Thales to Kepler, 1906, pp.415-6). Riccioli reportou observações deste cometa no Almagestum Novum, Tomo I, Pars Posterior, lib.VIII, pp.12-13. * Diferença na posição aparente de um objecto quando observado através de duas diferentes linhas de visada, em relação a um objecto mais distante ou plano de fundo. O
percurso do Grande Cometa de 1577, com indicação do percurso,
morfologia da cauda das datas de observações feitas por astrónomos
eminentes, como Michael Maestlin, Guilherme, Landgrave (i.e. Conde, Al. "Graf") de Hesse ou Tycho Brahe (Stanislaw Lubieniecki, Historia
Cometarum..., Figura Cometam
CCCXCII) [clicar na imagem para ficheiro com maior definição]
Simulação do percurso do objecto C/1577 V, com datas, a partir de 10 de Novembro de 1577 (a Oeste, em Sagittarius) e finais do ano, já em Pegasus.
Como documentado, Saturno esteve relativamente próximo do cometa nos
primeiros dias do percurso. Clicar para ver mapa completo (GUIDE9.1). Como George F. Chambers explicou, o movimento dos cometas constituía um embaraço para os melhores
astrónomos da época: Tycho acreditou que se movimentavam segundo
órbitas circulares; Johannes Kepler sugeriu que seria em linhas rectas.
(Chambers, The Story Of The Comets: Simply Told for General Readers, Oxford, Clarendon Press, 1910, p.48).
Em paralelo com a rigorosa abordagem astrométrica, decorrente de meticulosas observações e cálculos, plasmada no mencionado tratado. Tycho Brahe vai apresentar um prognóstico (prática comum e exigida pelo mecenato da época). A Astrologia estava então perfeitamente integrada no "mapa do conhecimento" e o astrónomo era um homem do seu tempo. Todavia, essa interpretação não surge no De Mundi Aetheri Recentioribus Phaenomenis,,,, que é exclusivamente técnico e "científico" (como hoje diríamos). Como Christianson refere (Tycho Brahe's German Treatise on the Comet of 1577, Op. cit., p.127), aparece numa breve exposição manuscrita de 1578 (publ. in: J. L. E. Dreyer, J. Raeder & E. Nystrom, Tychonis Brahe Dani Opera Omnia, vol. IV (1922), pp. 381-396) em vernacular, neste caso em Alemão, idioma amiudadamente utilizado por Tycho noutros textos destinados à Corte: "This manuscript is the only known contemporary account of that comet from Tycho's hand. The language is German, which Tycho also used in other manuscripts written expressly for the crown.". Na segunda parte deste ms., que não era dirigido ao vulgo nem à comunidade astronómica, inclui-se a análise judiciária. "Like Dybvad and others, he predicted warfare, pestilence, and extremes of heat and cold; he also laid a particular emphasis upon changes in religion. His words were moderate, but their implications were startling. To a king raised on tales of the bloodshed and rebellion of the Reformation era, Tycho spoke of a forthcoming "great alteration and turmoil in the spiritual matters of religion, which will be something more than has hitherto been experienced." At the same time, he emphatically denied that the comet of 1577 or any other celestial sign presaged the apocalypse. Tycho thus threw down a direct challenge to the Dybvads and Bertelsens among Danish astronomers. In another brief, furious passage, he chastized "pseudoprophets ... who have mounted too high in their arrogance, and have not wandered in divine wisdom," and he concluded that they "will be punished." (Christianson, p.130). De facto, um dos rivais de Tycho, Jørgen Dybvad, num panfleto editado por Laurentz Benedicht em 1578 em Copenhaga, havia descrito todo um rol de antecipações apocalípticas, espelhando, por exemplo, o terror da ameaça de Turcos, Tártaros e afins em diversas regiões da Cristandade. Para Tycho Brahe, o cometa não era "apocalíptico" (afirma que o Fim do Mundo não pode ser predito por acontecimentos naturais, só é conhecido por Deus e não por qualquer criatura) mas prometia guerras, pestes e variações extremas de temperatura, bem como convulsões religiosas (saliente-se que se vivia época de lutas religiosas entre papistas e reformistas). Como Ronald Stoyan refere (Atlas of Great Comets, Cambridge University Press, 2015 (Oculum-Verlag, 2013), p.62), Tycho previu tribulações em particular na Espanha (i.e. na península, as nossas "Hespanhas"), cf. Christianson, p.138: o cometa aparecia nessa direcção, era rubicundo e estava na oitava casa ("a da morte"). [As Casas astrológicas são divisões ou sectores estáticos e específicos de um determinado "horizonte" (i.e. local), tendo em conta, nos sistemas ditos angulares, a posição dos chamados cardines: o ascendente e descendente; o meio-céu e o fundo-céu; detalhes na pág. dedicada ao Astrolábio]. De resto, associou as dinâmicas religiosas, não necessariamente funestas, a uma ampla colecção de portentos, da "nova estrela" de 1572 à grande conjunção planetária no início de Aries, incluíndo também o cometa, contudo sem exclusividade. Outros vaticínios puramente astrológicos foram publicados, por exemplo, pelo célebre astrólogo Francesco Giuntini (Junctinus), por Francesco Liberati e outros autores menos conhecidos ou anónimos. Lubieniecki (Op. cit., p.373) transcreveu uma breve notícia das peripécias da expedição africana de D. Sebastião (cita Eckstormius*, compilador de uma listagem de cometas em 1621, que aqui se respaldou na "Buntingi Chronologia", ou seja, na cronologia de Heinrico Buntingo, i.e. Heinrich Bünting): "...quo anno Christi 1578 die 4 Augusti, Sebastianus Rex Lusitaniae & Mahometes Mauritaniae Rex vitam cum victoria amisferunt: Abdelmelecus aut em victor in fervore pugnae apoplexia mortuuos, victoriam & regnum Hameto frati peperit & reliquit." ("No ano de Cristo, 1578, a 4 de Agosto, Sebastião, rei da Lusitânia, e o rei maometano da Mauritânia [lit. "terra dos Mouros"], perderam a vida na contenda: Abdelmelecus [o "Mulei Maluco" ou "Maluco" dos nossos cronistas], o vencedor, morrendo de apoplexia no calor da batalha, deixou a vitória e o reino ao seu irmão Hameto [Mulei Hamet]). Em Marrocos, a batalha ficou conhecida como "a dos três Reis", pois todos os chefes nela pereceram. D. Sebastião apoiava Mulei Mohammed, ou Abu Abdallah Mohammed II, o "Xarife" da crónica de Fr. Bernardo da Cruz, sobrinho que pretendia recuperar o trono ao já então doente "Mulei Maluco", líder marroquino apoiado pelos Turcos (cuja ameaça terá sido o nexo estratégico da intervenção, como explicado pelo próprio D. Sebastião em carta enviada a D. João de Mendonça em 1576). * Heinrich Eckstorm (1557-1622), que estudou em Wittenberg, Jena e Leipzig e foi reitor da Escola Luterana de Walkenried, publicou uma Historiae Eclipsium, Cometarum et Pareliorum, com secções distintas dedicadas aos eclipses, cometas e halos solares ("Parelia"): Historiae Eclipsium, Cometarum et Pareliorum, mediocri copia ex optimae notae tam antiquis quam recentibus Scriptoribus collectae, Helmstedt, heredum Iacobi Lucy, 1621, pp. 202-285. O seu catálogo de cometas começa com um fenómeno supostamente observado em Pisces no tempo de Noé e termina em 1618. (vide Adam Mosley, Past Portents Predict: Cometary Historiae and Catalogues, in: Tessicini, D. and Boner, P. (eds.), "Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-1630", ("Biblioteca di Galilaeana III", Museo Galileo/Istituto e Museo di Storia della Scienza), Leo S. Olschki Editore, 2013) A notícia do cometa entre as demais na Chronologia de Heinrico Buntingo. Inclui datas AD ("Anni Christi") e, à esquerda, coluna com os anos da Criação do Mundo ("Anni Mundi"). Aqui, o "horribilis cometa" é descrito como tendo surgido sob Aquila (constelação da Águia) no asterismo Antinous [hoje constelação obsoleta]
a 10 de Novembro. Longuíssima cauda estendia-se do poente para a
direcção do orto (nascente). Cometa progrediu segundo a ordem dos
signos até ao pescoço de Pegasus,
onde se virá a extinguir. Afirma-se que foi "sem dúvida" (sine dubio) um prenúncio
da guerra Mauritana (praenuncius belli Mauritani). Um pouco adiante, já no ano seguinte, lemos uma breve notícia da batalha do dia 4 de Agosto,
referindo os protagonistas (e.g., Sebastianus Lusitaniae rex) e o desfecho, nomeadamente que os líderes foram mortos em batalha (...in praelio sunt occisi) e que, na vitória, o reino dos Mouros ficou para Hametus, irmão do falecido Abdelmelech. (Chronologia
catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora..,, Op. cit., fól. 495)
No seu tratado, Lubieniecki também cita Riccioli, que refere: "Keplerus. p 129. de Cometis ait, ab hoc Cometa stimulatum Regem Sebastianum, ut in Africam trajiceret." (p.374): "Kepler na p.129 do seu De Cometis afirma que o Rei Sebastião foi estimulado por este Cometa a atravessar para África". De facto, Kepler refere (na pág. indicada) o cometa e a obstinação do rei em fazer guerra aos Mouros: "Adseribatur Cometa anni 1577 & obstinatio Regis Portugalliae in proposito belli Mauris inferendi." (De cometis libelli tres, 1619). Encontramos, contudo, uma perspectiva não-supersticiosa, antecipadora e afastada do "lugar-comum" em Francisco Sanches: O Cometa do Ano de 1577, reprodução em fac-símile da edição de 1578, introdução e notas de Artur Moreira de Sá, Lisboa, Instituto para a Alta Cultura, 1950), v. infra. Georg Mack "o velho": o Cometa de 1577 sobre
Nuremberga; grav. colorida; (Zentralbibliothek, Zürich)
Num relato italiano: "La commeta barbata apparita alli 7 di novembre circa il tramontar del sole sotto il segno di Sagittario, che segno che influisce il caldo e il secco, gli effetti di cui si vedranno in questo medesimo anno, i quali si come ordinariamente sogliono essere cattivi, cosi hora forse non saranno buoni. Perche' non denotano altro i fuochi accesi nel aere che chiamiamo commete, se non che l'aria sia carica di vapori terrestri caldi e secchi, crassi e di velenosa natura." (Barocci Alfonso, General discorso sopra l'anno 1578 e sopra le significazioni dell'Eclisse e della Commeta, Perugia, 1578) Foi
ainda prolixamente documentado noutros tratados de Paulus Fabricius,
Georg Busch, Nicolaus Bazelius, Thaddaeus Hagecius, Theodor Graminaeus
ou Cornelius Gemma. Este último publicou De
Prodigiosa Specie. Naturaq. Cometae, qui nobis effulsit altior Lunae
sedibus, insolita prorsus figura, ac magnitudine, anno 1577. plus
septimanis 10. Apodeixis tum Physica tum Mathematica. Antverpiae 1578 (i.e.
"...sobre a prodigiosa natureza do cometa que brilhou sobre nós acima
dos lugares/paradeiros lunares, de forma e tamanho totalmente
invulgares, no ano de 1577..."). Maestlin publicou um tratado sobre o
cometa na mesma linha científica e astrométrica, utilizando de modo
inovador sanguínea (sanguine pastae)
para realçar o percurso do cometa por si mapeado. Nunca, como em
relação a esta aparição, se tinham impresso tantas publicações e
panfletos, sendo também o primeiro cometa a ser estudado numa
perspectiva científica: The Great
Comet of 1577 caused the earliest peak of comet hysteria in Europe with
about 200 broadsheets and texts, most of which were devoted to the
theme of the negative consequences of its apparition. The comet was,
however, the first in history to be carefully followed scientifically. (Stoyan, Op. cit., p.60)
O
importante e meticuloso tratado de Michael Maestlin (1550-1631),
nascido em Göppingen, defensor da teoria de Copérnico e mentor de
Johannes Kepler; à direita, o de Helisaeus Roeslin, publicado em Estrasburgo (Ant. Argentoratum).
Este médico, astrónomo e astrólogo também verificou que o cometa era
fenómeno supralunar. Adoptou uma perspectiva Geo-heliocêntrica do
Universo
Num registo diferente temos, por exemplo, as publicações de Marzari ou Fiornovelli. O opúsculo Discorso Intorno Alla Cometa Apparsa il Mese di Novembro l'Anno 1577... (Veneza, 1577), de Giacomo Marzari (Marzari Vicentino) é uma pequena notícia com enfoque numa profilaxia de inspiração "galénica". C. D. Hellman (The Comet of 1577: It's Place in the History of Astronomy, 1941, ch. VII) enquadra-o na categoria dos autores com cultura geral demonstrando um interesse geral na natureza, juntamente com Giovanni Maria Fiornovelli, Thomas Twyne e Himbert de Billy. Marzari desconfiava dos astrólogos pois as qualidades naturais não podem ser matematicamente medidas. E não reconhecia a tipologia simplista (baseada em características acidentais) atribuída a Aristóteles. O autor valoriza sobremaneira as exalações, que são de dois tipos: as da matéria seca e as da matéria húmida, bem como a densidade. Assevera que os "maleficientes vapores" podem provocar, dependendo de algumas variáveis (aparência e localização do cometa, região específica e época do ano) doenças diversas, como antes (referindo-se decerto à breve passagem dos franceses de Carlos VIII pelo reino de Nápoles em 1495) se havia disseminado "il male francese" (o "mal francês", morbo-gálico, i.e. a sífilis), como ficou conhecida pelos napolitanos, por altura da passagem de um cometa anterior. Aconselha doravante, entre outras boas práticas: "Si usi discretamente il coito...". Os efeitos do cometa de 1577, dependendo da secura e de uma determinada densidade, prometiam "...causare gran quantità de scabbia, ò diciamo rogna, & e forse alcun travaglio d'emeroidi." (sarna ou ronha e talvez problemas de hemorróidas). Sugere leituras acercas de fenómenos similares do passado em autoridades como Estácio, Cassiodoro, Xenofonte ou Heródoto. Entretanto, Giovanni Maria Fiornovelli é um pouco mais "convencional" e, num "discours" publicado em Lyon, classifica o cometa como "Pertica", descrito como tendo um grande raio ("vn gros rayon") e uma cabeça como uma estrela, relacionando-o com o vento "Africo" ou "Garbin". Situava-se no signo do Capricórnio, conjunto com Saturno. Vaticinium: doenças e desgraças no ocidente, revoltas na Pérsia, perigos para reis e príncipes, seca e carências. Factores com significação astrológica (v. Stoyan, Op. cit., p.16): magnitudo (quanto maior, maiores os efeitos); color: (prometia os efeitos associados ao planeta correspondente a essa cor); splendor (brilho era proporcional ao poder dos seus efeitos); forma (morfologia, segundo a tipologia de Plínio); diuturnitas (a duração da visibilidade prenunciava a duração dos seus efeitos); locus (o signo e grau no qual surgia permitia uma análise astrológica "clássica" dos seus efeitos, segundo as habituais características, relação com os elementos, aspectos, etc.); motus (direcção e velocidade); habitus ad solem ("atitude", i.e. posição em relação ao Sol, oriental ou ocidental, indicava se os efeitos se fariam sentir rapida ou demoradamente); situs orbi (a projecção do seu percurso na Terra indicava direcções e regiões geográficas afectadas). Dois tratados com premissas tradicionais, por Giacomo Marzaro e de Giovanni Maria Fiornovelli O cometa também foi observado em terras Otomanas, e.g., por Takiyuddin Efendi, que fundou um magnífico, bem equipado mas efémero observatório justamente em 1577 em Istambul, com o beneplácito do sultão Murad III. A versão mais corrente explica o desmantelamento do observatório como um arremesso da ortodoxia religiosa contra a tentativa de descodificar os "sinais dos céus" (considerada prática divinatória), após uma epidemia ter devastado terras turcas. O cometa de 1577 sobre Istambul em 12 de Novembro de 1577, aqui sobre Aya Sofya.
O seu deslocamento para Leste foi considerado popularmente um presságio
de vitória Otomana sobre os persas Safávidas (Mustafa Ali, Nusretname. MS Hazine 1365, 5b.; vide Cornell H. Fleischer, Bureaucrat and Intellectual in the Ottoman Empire: The Historian Mustafa Ali (1541-1600), Princeton University Press, 1986, fonte das ilustrações na pág. ix)
Segundo António Brehm (p.122), cujo interessante artigo retomamos, os cronistas (portugueses) coetâneos referem o cometa exclusivamente na sua vertente judiciária (astrológica, i.e. do âmbito da judicatura), associando-o com o terrível desfecho nos areais de Marrocos. Mais tarde, em Setecentos, escrevem-se prolixas análises do tema (Manoel dos Santos, Pereira Baião ou Barbosa Machado). Antes porém, na proximidade dos acontecimentos, encontramos a Chronica d'el-Rei D. Sebastião de Frei Bernardo da Cruz (foi somente impressa em 1837), a de Jerónimo Conestagio (publicada em 1585) que refere o fenómeno com brevidade, uma crónica de Frei Bernardo de Brito, cisterciense, 1568-1617 (hoje perdida mas, segundo Brehm, utilizada no séc. XVIII pelo Padre Pereira Baião) [Em rigor: parece haver preocupação em coligir materiais para elaboração de uma crónica por Frei Bernardo de Brito (cronista-mor entre 1614 e 1617) ou por João Baptista Lavanha (cronista-mor entre 1618 e 1624), o que parece sugerido por diversos masnuscritos existentes, v. artigo infra] e o capítulo XXXVIII do Memorial do biograficamente desconhecido Pedro Roiz Soares. Trata-se de um texto político, anti-Castelhano, o que explica o anonimato. Uma última referência para a crónica de D. João de Castro (neto do célebre Vice-Rei da Índia) publicada em Paris em 1602, que somente de passagem refere o cometa. O "Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey Dom Sebastião" de João de Castro foi, em boa medida, responsável pela persistência da especulação da sobrevivência do rei após a batalha. O monarca teria deambulado até chegar a Veneza onde foi preso com a conivência dos Castelhanos (o relato que em outras crónicas refere o "prisioneiro de Veneza", v. Faria y Sousa, Europa Portuguesa, T.III, 2ª ed., P. Craesbeek, 1680). Uma das "teorias da conspiração" que envolve esta figura ímpar e uma evidente impostura (este "Sebastião" era afinal um tal Marco Túlio Catizone, calabrês). Outros auto-proclamados "Sebastiões" foram o de Penamacor, o da Ericeira e um pasteleiro de Madríd (o Padre Pereira Baião refere-os no seu Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, de 1737; o mesmo faz o autor do mencionado Memorial, que abrange o período 1565-1628). N.B.: Para um ponto de situação do problemático corpus sebástico e das fragilidades em presença (na historiografia, atribuições de autoria, qualidade das edições disponíveis e escassez de edições críticas baseadas nos manuscritos, (in)existência de fontes coevas, etc.), vide Elena Lombardo e Filipe Alves Moreira: Edição de crónicas e relatos sobre D. Sebastião: balanço e perspetivas, in: "Acta Iassyensia Comparationis", 2019 (Special Issue, pp.47-60), Ed. Universităţii »Alexandru Ioan Cuza« din Iaşi. Das descrições disponíveis, transcrevemos na íntegra o cap. LXXV da crónica atribuída a Fr. Bernardo da Cruz, que refere o cometa e outros "sinais": "Que engenho taõ errado em suas opinioens, e taõ endurecido em seus erros, póde haver, que accuse a divina justiça na severidade de seus castigos; pois, convidando de continuo os homens com ocasioens de virtudes, mostrando-lhes os caminhos acertados, quando por ingratidaõ ou pertinacia se elles fazem vasos de ira, entaõ tocado de sua divina clemencia, procura apartar-nos do mal que seguimos, com sinais que nos avísem de seu castigo: mas posto que Deus tinha determinado castigar o povo portuguez por seus pecados, muitas antes os quiz denunciar com prodigios e sinais, bastantes pera nossa emenda; porque no anno de 1577, aos nove de Dezembro, apareceo do Ponente hum cometa, taõ grande e espantoso, que bem mostrava em sua significaçaõ os males que prognosticava, e estendendo hum grande rabo ao meio-dia [Sul], estava demonstrando a região de Africa, aonde promettia fazer seus effeitos; e quando foi de mais dura (que apareceo espaço de dous mezes) tanto mais continuos e maiores ameaçava que seriaõ seus effeitos. Tambem no mesmo anno, junto a Penamacor, foraõ vistos de muita gente, no ar, grandes exercitos de figuras, que naõ eraõ bem formadas, com similhanças humanas, e na ordem pareciaõ esquadroens que hião marchando. O dia que elrei dom Sebastiam foi benzer a bandeira á Sé de Lisboa, antes de partir para Africa, se vio publicamente, ao tempo que o arcebispo foi meter a bandeira na hastea, depois de a ter benzido, apôz de maneira, que ficou a imagem de Cristo com a cabeça pera baixo, a qual metida na maõ do alferes mõr, embicou duas vezes com ella, e o tiverõ naõ cahisse no chaõ. No dia da batalha, arvorando-a o alferes mór, nunca a pôde estender, nem desenrolar, ainda que muitos homens com força o pertendessem, nem dom Fernando Mascarenhas, que nisso pôs as forças, o pôde fazer: donde parece estar Deos offendido de maneira, que se naõ quiz mostrar ao povo, já bem merecedor de seu justo castigo. Quando elrei partio de Lisboa e foi ancorar a Lagos, quando ao surgir mandou alevantar a ancora, lhes apareceo hum homem morto no esporão da galé, que era indicio de temor. Outro cuja significaçaõ não se engeitou, foi, que hindo pelo mar Domingos Madeira, musico del-rei, cantando-lhes e tangendo em huma viola, começou de cantar hum romance: Ayer fuiste rey d'Espanâ: hoy no tienes un castillo: tanto foi isto tomado em máo agouro, que logo Manoel Coresma lhe disse que deixasse aquella cantiga triste, e cantasse outra mais alegre. Tambem se vio o dia que elrei partio com seu campo de Arzila pera Larache, ao tempo que os reposteiros estavaõ desarmando a tenda real pera a carregarem, viéraõ tres corvos a pousarem-se em cima della. No mesmo dia se affirmáraõ muitos fidalgos, que viraõ no ar pelejar tres aguias, com mostras de grande odio e vingança. Muitos mouros, moradores em Alcacere, affirmáraõ muitas vezes, hum mez antes da batalha, haverem visto no campo, onde se ella deo, huma grande briga entre corvos e grous, e ferirem-se coom cruel inimizade. No dia da batalha se vio o sol claramente taõ vermelho, que parecia sangue, com aspecto temeroso, mostrando presagio da crueldade, ou compaixaõ (se deste vocabulo se póde usar) do estrago de mortes e efusaõ de sangue, que aquelle dia se fazia em taõ dura e cruel batalha; no qual dia, affirmaõ muitos homens de Tangere chover algumas gotas de sangue na cidade. Assim mesmo se affirma, no mesmo dia, se ouvira em Tangere grande estrepito de armas, com tiros e golpes taõ fortes, que se sentiaõ claramente de maneira que muitos cuidaraõ, no mar perto de Tangere haver algum recontro de galés, e affirmavaõ e temiaõ Pero da Silva, que de Arzila vinha por mar servir de capitaõ de Tangere, e acompanhar sua irmã dona Leonor da Silva, mulher de D. Duarte, capitaô da mesma cidade, haver sido salteado de algumas galés naquella costa, e na defensaõ, que fazia aquelle estrepito de armas, que taõ claramente se ouvia" (Chronica de ElRei D. Sebastião por Fr. Bernardo da Cruz, publicada por A. Herculano e o Dr. A. C. Payva, Lisboa, Galhardo e Irmãos, 1837, pp.306-9; transcrito ipsis verbis [apostila refere Brito] no cap. XXVII do Portugal Cuidadoso e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastiaõ... pelo Padre Pereira Baião, 1737) A "estampa dos campos desfeitos" (no desfecho da batalha de Alcácer Quibir), da Miscellanea (Dialogo. VII) de Miguel Leitão de Andrada. A obra inclui previamente outra ilustração (a estampa do campo) com as formações iniciais preparadas para o confronto (Miscellanea
do sitio de N. Sª. da Luz do Pedrogão Grande: apparecimto. de sua sta.
imagem, fundação do seu Convto. e da See de Lxa... com mtas.
curiozidades e poezias diversas, por Mighel Leitão dªAndra... - Em Lxa.
: por Matheus Pinheiro, 1629) [BNP: RES. 92 V]
Para Roiz
Soares, o cometa foi "Roim sinal
pera ida delRey a africa (...).". Início da notícia (bastante completa mas sem referir "presságios") nos Annales mundi... (edição de 1696) do jesuíta Philippe Briet: "Este ano é memorável pela queda e morte do Rei Sebastião da Lusitânia..." (Annales
mundi, sive Chronicon universale secundum optimas chronologorum epochas
ab orbe condito ad annum Christi, millesimum sexcentesimum sexagesimum
perductum, Augustæ Vindel.& Dilingæ: sumptibus Joannis Caspari
Bencard, bibliopolæ, Anno M.DC.XCVI)
No seu capítulo acerca do domínio astrológico dos signos sobre as diversas regiões do mundo, Manoel de Figueiredo (Chronographia: Reportorio dos tempos , no qual se contem VI partes, scilicet dos tempos..., "Empresso em Lisboa por Jorge Rodriguez a custa de Pero Ramires. Anno de 1603", fól. 68) demonstrava com exemplos deste cometa e de outro, de 1582: "Que isto seja assim asas [assaz] o temos expirimentado por nossos peccados, como vimos claramente no cometa que se engendrou no anno de 1577 em novembro o qual apareceo no digno de Sagitario, o qual cometa fez o damno que sabemos à custa de tantas vidas no reino de Portugal no anno de 1578. & resultãdo dahi o que temos visto em toda espanha. E no ãno de 1581. outro cometa que apareceo em Pices [sic] que causou a peste neste Reyno de Portugal, & no ano de 1582 em toda á Andalusia..." O tema permaneceu, como sabemos, no nosso imaginário colectivo, No século XVIII vai ser retomado na Chronica do muito alto e muito esclarecido principe D. Sebastião (1730), revista no Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião... (1737) pelo penacovense Padre Pereira Baião (1690-1743). Transcrevemos, do último título, o essencial das considerações envolvendo o cometa (pp.478-80): "Neste tempo apparecía no Ceo hum sinal muito espantoso sobre a Cidade de Lisboa; que era hum Cometa muito comprido de cor de sangue a fogueado com manchas de azul escuro, e a cauda estendida para a parte de Africa, em fórma de açoute, ou molho de varas; e foi visto a primeira vez em Quinta Feira 7. do mesmo mez de Novembro, porém naõ se fez tanto reparo nelle como no Sabbado 9. em que appareceo de todo formado, e muito temeroso; e continuou atè 21. de Dezembro, e dahi se foy desfazendo até 12. de Janeiro, em que desappareceo de todo, mostrando-se todos os dias logo à noite, sempre no mesmo ser, e lugar, e perseverando até às onze horas della, e entaõ desapparecia , e causava tanto terror, e espanto, que toda a gente andava atemorizada; e naõ menos as pessoas doutas, que as simpleces, porque todos assentàraõ, que aquelle espantofo sinal naõ era favorável á jornada, que ElRey intentava fazer a Africa, afirmando que naõ fe achava nas Historias do Mundo que apparecesse outro tal Commeta se naõ quando Deos quiz destruir a Cidade de Jerusalem; e fizeraõ-se logo muitos juizos sobre elle, e todos concordavaõ, em que aquelle sinal denotava a perdição delRey em Africa. O qual o vio no mesmo Sabbado em Villa-Franca, indo de Lisboa para Salva-Terra; estando á janella da caza, onde dormio , emquanto se preparava a cea, com D. Affonso de Castel-Branco, Deaõ, que depois foy da sua Capella; e olhando acaso para a parte da ditta Cidade, o vio, e se admirou. Depois praticando-se à mesa sobre esta novidade, disséraõ alguns lisongeiros por dar gosto a ElRey. Cometa em tal occasiaô , que poderá signlficar se naõ, que fua Alteza accommeta aos Mouros. De cuja errada interpretação ElRey se agradou tanto, por se ajudar aos seus pensamentos, que dali por diante repetia muitas vezes: Diz o Cometa, que accommeta. Porém naõ era esta a inteligência de muitos dos presentes, e absentes ; antes todos entendiaõ que o Cometa anunciava successo tragico. A'lem disto de Roma mandou o Papa Gregório XIII. a ElRey hum Pronostico, feito pelo doutissimo Mestre Hercules de Revore, Boloniense, o mais insigne homem daquelle tempo na Arte, e Sciencia da Astrologia, no qual claramente lhe pronosticava a sua perdiçaõ, e a sua morte, e captiveiro de toda a Fidalguia, e mais gente, que levava comsigo; e que os effeitos daquelle Cometa haviaõ de durar mais de dezasseis annos; e todos haviaõ de ser malignos, e prejudiciaes, naõ só para Portugal, mas também para toda a Christandade. Também pronosticava a morte de huma Rainha , e tudo assim succedeo, que prouvera a Deos naõ sahira taõ certo, nem aquelle Astrologo fallàra tanta verdade. A morte da Rainha logo se verà [no cap. XX relata a morte, no início de 1578, da Rainha Dona Catarina, viúva de D. João III e avó de D. Sebastião], e a perdiçaõ delRey adiante. Naõ o entendiaõ assim alguns Palacianos, ou se o entendiaõ naõ o manifestavaõ, por naõ desgostar a sua Alteza, nem perder a sua graça; porque lhe diziaõ, que o nome de Cometa naõ fomente lhe facilitava o commetimento; mas que aponta, e inclinação de seu rayo mostrava ser Africa o lugar, em que o Ceo lhe prometia a gloria de hum vitorioso triunfo, dando com ella matéria á fama para divulgar seu nome, e o credito da naçaõ Portugueza pelas mais remotas partes do mundo, que a isto attribuhiaõ a forma de trombeta, aquelles, a quem tal parecia o rayo; e os que o tinhaõ por mais accommodado á feiçaõ de açoute, diziaò, que ElRey o seria para os inimigos da Fè Catholica, que individamente occupavaõ os Reynos Africanos, que jà foraõ de Christãos, onde ella floreceo muito antes delles; affirmando que quando significasse morte de Rey, e mudança de Impérios seria a do Maluco, injufto possuidor do Senhorio alheo, com melhoramento de sua Alteza, que subiria por meyo do seu valor ao Império, e absoluto Senhorio de Berberia, tantas vezes commetido, e tantas mais desejado dos Reys, seus antecessores. Com estas, e semelhantes interpretaçoens compostas mais ao gosto, e contentamento delRey, que segundo a verdade do que se entendia, procuravaõ, ou demuir os receyos, ou invadir a infelicidade do prognostico; e de tal maneira atrahiaõ o animo delRey (de seu natural intrépido, e desprezador de perigos) a desestimar o aviso, que vindo algum tempo depois relação de varias partes do Reyno como foraõ vistos no ar Esquadroens de gente armada brigando, e peixes, e outras cousas monstruosas, e extraordinárias, culpando de mal conciderados, e demasiadamente crédulos os que referiaõ, e davaõ credito a semelhantes illusoens da vista, e do entendimento, dizia ElRey ferem dignos de castigo os que dellas, e das interpretaçoens do Cometa tiravaõ matéria para desanimar , e acobardar os coraçoes da gente do Reyno." (Jozé Pereira Bayão, Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, Lisboa Occidental, na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, M.DCC.XXXVII) A superstição e o fascínio pelos mirabiliafez com que surgissem relatos de supostos prodígios e sinais reveladores da desgraça africana, em alguns casos antes da empresa e noutros depois do seu desfecho, ainda ao Reino não tinham chegado notícias. Profecias como a "arribação" de peixes-espada (um dos quais grafava nas escamas o ano fatídico: 1578) ou a chuva de sangue vista pelas freiras num mosteiro na Guarda, visões (como a espada de fogo sobre o mosteiro de Belém vista por Simão Gomes, homem "tido por santo"; também a de um Pedro de Basto que viu um homem vestido de armas brancas, viseira levantada e que mostrava "no semblante agonias de morte"), vozes lamentosas, ouvidas em Celorico, Aguiar da Beira e noutros sítios, a "sombra chorosa" seguida (ainda antes da partida) pelo Coronel Vasco da Sylveira (que interpelada por este lhe confessou: "Choro-me amim, e choro-te ati, choro a desiruiçaõ dos que sempre amey."), fantasmas como o de D. Manoel de Menezes, Bispo de Coimbra, que, ensanguentado, apareceu ao Cardeal Infante D. Henrique enquanto este rezava, a visão do converso Frei Cosme Damiaõ, que "viu" os mártires S. Vicente e S. Sebastião enxaguarem as feridas dos malogrados cristãos que iam "chegando" ao seu mosteiro. A visão de Dona Benta de Aguiar, em Alcobaça, enquanto orava, quando uma voz que lhe disse "Beati mortui, qui in Domino moriuntur" (Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor) e "Judicia Domini abyssus multa" (São muitos os juízos do Senhor...). Ainda o êxtase de Dona Elena da Sylva, "serva de Deos" no Mosteiro de Lorvão. O desfecho foi também declarado por "duas mulheres endemoninhadas", aquando da prática de ritual de exorcismo em Riba de Coa, perto de Castelo Rodrigo. Ademais, a imagem da Nossa Senhora da Lapa suou pelo seu rosto grossas gotas "quazi sanguinhas". Também aconteceu o mesmo na imagem esculpida sobre a sepultura da Rainha Santa Isabel no Mosteiro de Santa Clara em Coimbra. Tudo isto e mais se resume no "Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida...". Como Lubieniecki confirma: "Anno 1578. die 13. Januarii, horribilis iste Cometa in collo Pegasi extinctus est." (a 13 de Janeiro de 1578, este horrível cometa extinguiu-se no pescoço do Pêgaso [constelação Pegasus]); no peito, Pectori Pegasi, após o dia 26 de Janeiro, segundo Tycho. Nas décadas seguintes, destacam-se as convencionais considerações sobre os cometas (mencionando fenómenos entretanto observados), de Manoel de Figueiredo, discípulo de Pedro Nunes e cosmógrafo-mor, e André do Avelar, publicadas no início do séc. XVII. Figueiredo (na sua Chronographia: Reportorio dos tempos..., Cap. XI) refere os sinais do aparecimento destes portentos, com exemplos: "Primeiramente as chamas que aparecem no ceo, quando parece encenderce todo, como aconteceo no anno de 1580. hum sabado a 10. de Septebro, & tambe no anno de 1582. hua terça feira a 6 dias de Março [datas e dias da semana correctos no calendário Juliano] as 7. horas da noite, os quais incendios foram messageiros de dous cometas que se veraõ pouco depois, i hum que aconteceo no principio de Outubro de 1580. que durou mais de douz mezes. Outro aconteceo aos dezanove de mayo que durou pouco mais de quinze dias na era de 1582 annos. Os mais dos cometas se engendram para aquella parte do norte onde caye a via latea, porquanto he mais efectiua para alleuantar vapores, & o grande numero de estrellas que nella estão ajudão aos planetas, & seus aspeitos ["aspectos" astrológicos, e.g., oposição, trino, quadratura] alleuantarem as exalaçoes de que se geraõ." Num testemunho do já mencionado Pêro Roiz Soares: "22 de Abril do anno de 1628 que foi bespora de Pascoa da resureição de Nosso Senhor Jesu Christo [confirma-se que Páscoa foi, de facto, a 23 de Abril], se armou por baxo da Estrella do Norte [Polar, na Ursa Menor, constelação então chamada "Buzina"] hum raio ao modo dos fugareos da maneira pouco mais ou menos como fica atras, do qual raio sahia hum montante [tipo de arma de lâmina]" e "se tornava a recolher, no mesmo raio, fazendo isto por muitas vezes tendo sempre o dito montante a ponta para a cidade de Lixboa e para ella faziam aquelas saidas e arremeteduras como ameasando." (Memorial, Leitura e revisão de M. Lopes de Almeida (col. "Acta Universitatis Conimbrigensis"), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953, p.505). Descrição análoga à das cimitarras que, na Cristandade ameaçada pelos Otomanos, se integravam na imagética dos cometas e se burilavam em expressivas gravuras. Segundo Gary W. Kronk, para além de um relato nipónico (no texto Shiryo Sohran), somente se encontra uma referência de Giuseppe Ripamonti que no "De peste quae fuit anno MDCXXX" (1641, p.273) afirmou que se havia avistado um cometa em 1628, sem acrescentar detalhes (Op. cit., vol. I, p.344). Parte do frontispício e um excerto do Tratado dos cometas que appareceram em Novembro passado de 1618 Composto pello Licenceado Manoel Bocarro Frances, Medico, & Astrologo...; BA 50-X-47; 20 fl.: il.; 4º] de Manuel Bocarro ("Bocarro Francês", i.e. Jacob Rosales quando reabraçou o Judaísmo no exílio), editado em Lisboa por Pedro Craesbeeck, em 1619. Com o enfoque renascentista nas filosofias neoplatonica e estóica, a cosmovisão de base aristotélica é colocada em causa por alguns pensadores. Bocarro é um destes, defendendo a natureza celeste (e não sublunar) dos cometas. À direita, parte da descrição do cometa de 26 de Novembro de 1618. Repare-se como, na referência ao percurso, distingue entre signos (Tropicais, medidos a partir do Ponto Vernal) e "imagens" (as figuras siderais, e,g,, Bootes, Hercules, coroa de Ariadna, i.e. de Ariadne, Corona Borealis). Também classifica o cometa na tipologia utilizada na época, O Grande
Cometa de 1664: Cometa
q[ue] apareçeo no Horiz[on]te de L[i]x[bo]a em 11 de Dezembro de [1]664
e que durou todo o mez de Janeirode [1]665. mundando a Postura da barba
p[ar]a o Horiente. (desenho aguarelado a cinzento, a página
inteira, posterior a 1665; BNP F.97). Nesta ilustração, estava na região da "Taça de Apolo" (Crater), Corvus e Hydra
O cometa de 1664 (C/1664 W1) foi conspícuo. Atingiu o seu maior brilho no final do ano na constelação da Virgem e permaneceu visível até Março do ano seguinte, em Capricórnio. Foi estudado por astrónomos como G. D. Cassini, G. Borelli, R. Hooke, J. Hevelius ou C. Huygens. Em Portugal, o registo interpretativo foi quase sempre popular e astrológico, e.g., no Discurso astrologico. Sobre effeitos do cometa que appareceo no anno 1664..., manuscrito por Ascanio Luis Teixeira de Azevedo (BNP COD 3582) ou no Prognostico & Lunario do anno de 1666; calculado, ao Meridiano da Cidade de Lisboa, composto pelo medico Manoel Gomes Lourosa (BNP RES 5923 P.), ( Estrelas de Papel: Livros de Astronomia dos Séculos XIV a XVIII, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2009, pp.178-9) Segundo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a.160, n.403, 1999), o Padre António Vieira aceitava a ideia teológica do "sinal divino" mas também procurava uma explicação de natureza física: "Encontramos uma série de referências epistolares sobre o cometa Hevelius de 1664 [os cometas decobertos por Hevelius foram, em rigor, os de 1652, 1661, 1672 e 1677, mas fez imprimir uma importante Cometographia*], que Vieira observou em Coimbra em dezembro desse ano, procurando compará-lo ao cometa de 1616 que tanto o impressionou na juventude. A mais valiosa informação sobre a aparição desse cometa encontra-se em carta de 23 de fevereiro de 1665 na qual relata que o astro teria sido observado, pela primeira vez, em 12 de novembro no Maranhão. Tal afirmativa altera completamente a história até hoje conhecida, que dá sua descoberta como tendo ocorrido na Espanha em 17 de novembro. Em outra carta Vieira escreveu sobre “um religioso nosso, alemão, bom matemático”, que vivia no Brasil. Trata-se, refere, sem dúvida, do padre jesuíta Valentin Estancel [Stanzel], 1621-1705, que descreveu esse cometa no Legatus uranicus [ex orbe novo in veterum, h. e. Observationes Americanæ cometarum factæ, concriptæ et in Europam missæ] (Praga, 1683)." * Cometographia totam naturam cometarum (...) cometae anno 1652, 1661, 1664 & 1665 ab ipso auctore..., Gedani (Danzig, hoje Gdansk), 1668 Na verdade, o Padre António Vieira estava exclusivamente interessado na sua visão profética da História, que incluía elucubrações cronológicas a partir das datas (e demais detalhes) dos avistamentos de cometas e a óbvia exegese de textos bíblicos e teológicos, doravante iluminados pela alegoria das trovas de Gonçalo Annes Bandarra (o Sapateiro de Trancoso) que há um século tinham sido lavradas na vila Beirã. Para Vieira, o profeta é aquele que interpreta o Desígnio Divino, algo que uma pessoa comum entenderia apenas como fenómeno natural (como explica no Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Assim desenvolve a sua argumentação sebástica do "Quinto Império", a crença messiânica-milenarista por si reformulada no seguimento do mito das Três Idades do joaquimismo (de Joaquim de Flora, ou Fiore, séc. XII). Em Flora, as "Idades" eram as do Pai, do Filho e, por fim, o advento do Império do Divino Espírito Santo). Contudo, a abordagem de Vieira não é estritamente "sebastianista". pois o Encoberto é destarte reconhecido em D. João IV, recentemente falecido, com a candura de quem acredita em ressuscitações miraculosas (assunto que o autor afirmou ter ele mesmo estudado*). A perspectiva teleológica (pois o Tempo e a História são, para Vieira, dotados de telos, fim, direcção), retoma e interpreta a profecia bíblica dos sucessivos impérios descritos por Daniel (2: 37-44), enquadrando a "decisiva " missão universalista de Portugal. Todavia, a situação agudizou-se com a censura das proposições da sua carta Quinto Império do Mundo, cuja destinatária era a rainha D.ª Luísa de Gusmão (viúva de D. João IV). A inquisição reconheceu traços judaizantes e perturbou-se com a literalidade da interpretação do destino do reino. Recluso nos cárceres do Santo Ofício em Coimbra, foi acusado de proposições heréticas, temerárias, mal soantes e escandalosas. O processo (versão final), actualmente na Torre do Tombo (Inquisição de Lisboa, Processo 01664, Rolo 1417 a 1427c), decorreu entre 1663 e 1667. * Como Alfredo Bosi referiu (v. referência infra), Vieira, na sua defesa, declara ter feito uma diligência (i.e. pesquisa), a qual: "sem ser tão esquisita como eu quisera, nem estar acabada, já tinha descoberto, nesses 120 últimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitam 95, que muito seria que fossem 96?" CXLIV Vejo quarenta e um ano Pelo correr do cometa, Pelo ferir do planeta Que demonstra ser grão dano. _ (Quadra do "Terceiro Sonho" das trovas do Bandarra, transcrita por Vieira numa das suas defesas por escrito; "Profecias" do Bandarra, (apres. António Carlos Carvalho), 4ª edição, Vega, 1989) A relevância pressagiadora dos cometas surge explicitamente na sua defesa: "No ano de [1]618 apareceu em todo o mundo o último e famosíssimo cometa que viu a nossa idade, e a figura era de uma perfeitíssima palma, e a cor acesa, a grandeza como a sexta parte de todo o Hemisfério; o sítio no Oriente, o curso sempre diante do Sol, a duração por coisa de duas horas. Eu o vi na Bahia, e vossa senhoria o devia ver. De então para cá não houve outro cometa, ao menos notável. Fala dele Causino no seu livro De regno et domo em três partes, atribuindo-lhe os efeitos, principalmente em Espanha [i.e., na península]." (Antônio Vieira, De Profecia e Inquisição (Coleção Brasil 500 Anos), 2ª edição; Brasília, Senado Federal, 2001; uma edição de referência é ainda a de Hernâni Cidade: A Defesa do Pe. António Vieira perante a Inquisição (introd. e notas; 2 vols.; 1957), que todavia somente se baseou num dos manuscritos existentes (o da TT), existindo outro na Biblioteca Nacional (v. Ana Paula Banza, A Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício do Padre António Vieira: Uma Obra à Espera de uma Edição Crítica, in "Actas do 15º Encontro da Associação Portuguesa de Linguística", 1999, vol.2). No magnífico "Vieira e o Reino deste Mundo", prefácio de Alfredo Bosi ao De Profecia e Inquisição, Op. cit., p.xii, o Padre respondia aos seus inquisidores "...esgrimindo a sua retórica temerária que se engenha em tornar crível o impossível, provável o apenas possível e absolutamente certo o apenas provável. Mas no fundo dessa arte ingenuamente sutil pulsava um desejo que é belo e nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não tão-somente no outro." Quando noutra instância, discutindo "se o mundo era mais digno de riso, ou de lágrimas", Vieira defendeu eloquentemente a perspectiva de Heráclito e mencionou o sórdido rosário de tribulações deste mundo sem deixar de fora os cometas: "Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada Sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios;" (Lágrimas de Heraclito, discurso proferido em Roma em 1674 em Italiano; trad. pela primeira vez em Português em 1710). Alterações diárias do Grande Cometa de 1664, segundo Johannes Hevelius O outro grande cometa desse século foi o de 1680 (C/1680 V1 Kirch), observado num caminho entre a obsoleta constelação Antinous (na área da actual Scutum) e Pegasus. É o "cometa de Kirch", o primeiro a ser descoberto telescopicamente, quando era apenas diminuta mancha difusa, ainda
sem "cauda" e invisível a olho nu. Foi da ponderação do seu percurso
que uma órbita parabólica foi proposta e calculada.
Alguns astrónomos consideraram, como era habitual nestes casos, tratar-se de dois cometas: um antes e outro depois do periélio. Isaac Newton, no começo das suas investigações, insistia na linearidade das órbitas (embora reconhecesse que os cometas eram objectos iluminados pelo Sol, o que se comprovava pela magnitude do seu brilho em função da distância ao astro luminoso) mas John Flamsteed e Georg Samuel Dörffel discordavam com razão. Entretanto, Dörffel (Astronomische Beobachtung des Großen Cometen) e Daniel Bernoulli (matemático suiço) gizaram independentemente os parâmetros da órbita parabólica do cometa. E o próprio Newton (nos célebres Principia, em 1687) incluirá o o esquema e a demonstração da deste cometa, usando essa secção cónica (Stoyan, Op. cit., p.80) O cometa em 22 de Dezembro, detalhe de aguarela de Rochus van Veen Alexandre Guy Pingré descreve a descoberta deste objecto no segundo tomo (1784) da sua Cométographie (p.25): "Godefroi [Gottfried] Kirch voulant observer la Lune & Mars, le 14 Novembre 1680, découvrit le premier la grande & célèbre Comète de cette année". Refere, seguidamente, as observações de Hevelius (nas manhãs de 2, 3 e 4 de Dezembro, Flamsteed (que terá observado a sua cauda ao entardecer do dia 20 desse mês), duas observações de Newton e diversas de Cassini, entre outras. Menciona as órbitas calculadas entretanto, desde então, por Halley, Euler, Newton e pelo próprio Pingré. [Mais tarde, já no séc. XIX, também J. F. Encke e J.P. Wolfers a calcularam]. Robert Hooke também observou cuidadosamente este cometa e anotou uma erupção luminosa no final de Dezembro ("...in the manner of a sudden spouting of water out of an engine."), provável descrição precoce de uma emanação de material do núcleo de um cometa (Kronk, Op. cit., p.371). Casimiro Diaz observou-o das Filipinas. No início do novo ano (1681), tornou-se um objecto pífio, no dia 5 de Janeiro era menor do que uma estrela de 3ª magnitude, segundo Flamsteed. Mas continuou a ser acompanhado telescopicamente até Março, tendo sido Newton o último a assinalar uma posição no dia 19 desse mês. Nunca, como neste cometa, se havia verificado tão evidente clivagem entre os "especialistas" e as pessoas comuns, entre o academismo estacionário e o pioneirismo, entre a abordagem objectiva, matemática e tecnológica e a mais desbragada superstição (era época de enorme progresso, em alguns contextos privilegiados, também tempos de epidemia e guerra, com os Turcos a chegarem às portas de Viena; a cometomância continuava em terreno propício). O Ovo (ou ovos) romanos do cometa de 1680 (em Italiano, publ. na gazeta Mercure Galant, Paris: Guillaume de Luyne; [fonte: Harvard University, Houghton Library, hyde_pfr_275_1_9_1681_fevr_plate_btwn_pp126_127]). O ridículo (ou o oportunismo editorial) alcançou o seu ápice quando se propalou a novidade do "Ovo do Cometa", "posto" em Roma por uma galinha que antes nunca desovou, mas que o fez agora com um ruído estridente. A sua casca imprimia o "retrato" do cometa. Acreditou-se que este prodígio aparecera no assento do próprio Sumo Pontífice, tornando-se assim tema de especulação religiosa. Fenómeno terá envolvido pareceres da própria Academia de Ciências de Paris. As poedeiras passaram a ocupar o seu lugar no comércio dos ponderosos assuntos cometários, Houve notícia de outros ovos (um destes com uma serpente e outro com o que supomos ser "informação posicional", clicar na ilustração para ampliar). Em 1681, Bernard Le Bouyer de Fontenelle escreveu uma peça sobre o tema (La Comète), onde se humoriza com estes achados e personagens principais garantem que vão deixar de comer omeletes! A partir destes, foram aparecendo ovos a esmo, em sucessivas aparições de cometas, como o que surgiu dois anos depois (acompanhando o "Halley" de 1682), em Marburgo (vide Stoyan, p.13) "Gallinam Romae hoc Ovum...", o ovo original, detalhe de gravura de F. Medeweis (...observ. a Friderico Madeweis, Berolini [Berlim] Elevatio poli 52 gr. 50'); à direita: aquando do retorno do cometa Halley em 1986, uma bem humorada campanha publicitária elegeu em concurso o "ovo do cometa" que está agora pomposamente exposto no Museu de História Natural de Londres. Jurados do UK's Ministry of Agriculture, Fisheries and Food. Este magnífico exemplar parece ter uma cauda e foi submetido a concurso por Linda Franklin (de Studley) Em Portugal, a tradição manteve-se. A mundividência de base aristotélica compilada no prestigioso Cursus Aristotelicus Conimbricensis(entre 1592 e 1606) ainda impregnava as elites. Como L. M. Carolino refere, em termos de prognósticos, assistimos, como anteriormente nesse século, a "paradoxais" e curiosas leituras benevolentes, com antecedentes nas interpretações "messiânicas" (de restauração da soberania [antes de 1640] e de "triunfos universais" da monarquia portuguesa), particularmente envolvendo as figuras de D. João IV e D. Afonso VI (Op. cit., 2003, 196 et seq.). Nessa linha, o beneditino Jeronymo de Santiago (Tratado do cometa que appareceo em Dezembro passado de 1680, Coimbra, Manoel Diaz Impressor da Universidade, 1681) escreveu, depois do habitual desfile de potenciais vicissitudes, uma nota optimista: "Somente Marte nestas tres figuras [astrológicas, anteriormente descritas] se mostrou mais fortalecido no seu estado, pello que parece, que serão mais notaveis as suas influencias, e que estas serão faustissimas pera Portugal porque àlem das rezoes, que tenho mostrado, as pessoas que principalmente hão de sentir os effeito deste Phenomenon, são (conforme ao que dizem os Astrologos) aquellas, sobre que tem dominio os Planetas seus progenitores, e não tem duvida, que Saturno primeiro senhor delle [do cometa] domina nos Turcos, e Mouros". (p.18) Todavia, no "choque" com a realidade política, também este cometa abandonará o inusitado perfil "ditoso" e será depois commumente interpretado como estando associado à morte de D. Afonso VI (que já em 1680 estava encarcerado em Sintra, falecendo aos quarenta anos em 1683). Na cometografia seiscentista portuguesa, Carolino realça judiciosamente ainda as seguintes fontes manuscritas: Padre Francisco da Costa, Tratado Astrologico dos Cometas (Codex 2063 Egerton, fls. 2-17v., British Library); Luís de Gonzaga, Compendio dos Juizos Cometários (Ms. 46-VIII-22, fls. 109-131v., Biblioteca da Ajuda), entre outras notícias, observações e uma tradução do mesmo autor; António do Espírito Santo, [Tratado de] Cometas, (Ms. 2830, fls. 340-348v, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra); João de Araújo Sardinha, Curiozidades Mathematicas Coppilladas por... No anno de 1615, (Ms. 1029, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). As explicações destes fenómenos Como referido, os kométés, "estrelas com cabeleira") eram tradicionalmente associados a calamidades. No âmbito da Filosofia Natural, o enquadramento era aristotélico (Meteorologica, 342b5–345a10): eram fenómenos sublunares, exalações resplandescentes da atmosfera superior, objetos ígneos formados na região do fogo. É certo que Séneca (Naturales quaestiones) negava ou pelo menos duvidava na natureza atmosférica dos cometas. Mas a explicação de base aristotélica prevaleceu. Também as zonas esbranquiçadas da Via Láctea eram "exalações combustas" atraídas pela zona de maior concentração estelar do orbe celeste. Era habitual associar cometas ao decesso de reis e príncipes, como dogmatizado por S. João Damasceno (Ékdosis akribès tēs Orthodóxou Písteōs; Lat. De Fide orthodoxa): "It often happens, also, that comets arise. These are signs of the death of kings , and they are not any of the stars that were made in the beginning, but are formed at the same time by divine command and again dissolved." [Exposition of the Orthodox Faith, book 2, ch.7, p.24 (Nicene and Post-Nicene Fathers Second Series, vol.9)]. Os cometas seriam, portanto, estrelas "novas", sinais que o Divino congrega e ulteriormente dissolve. Uma das obras pioneiras a apresentar um ataque filosófico à interpretação dos cometas como símbolos de adivinhação foi o Carmen de Cometa Anni MDLXXVII (1578) [Poema do cometa do ano 1577], do (já mencionado) médico e humanista português Francisco Sanches (cristão-novo nascido em Tuy em 1550, baptizado em Braga e que fez o seu percurso principalmente em França e Itália). O autor vai mostrar que é nula a importância dos prognósticos. Traduzido para vulgar, afirma: "Mesmo que aos negros astros providos de longas cabeleiras se siguam guerras, a desordenada violência de águas profundas, a peste iníqua, a fome iníquia, a morte dum grande rei, não é forçoso que essas coisas tenham sido preanunciadas por astros comatos: quis a Natureza que eles acontecessem fatalmente, e todas aconteceriam mesmo sem que apareça o luminoso cometa." (Francisco Sanches, O Cometa do Ano de 1577, reprodução em fac-símile da edição de 1578, introdução e notas de Artur Moreira de Sá, Lisboa, Instituto para a Alta Cultura, 1950, p.133) Manifesta-se contra o fatalismo da prognosticação afirmando que "ninguém pode prognosticar o que depende do nosso arbítrio". O prognóstico pode, no máximo, ser uma premonição. Tycho Brahe verificou que estes corpos não apresentavam paralaxe, logo não podiam ser sublunares, como explicava Aristóteles através das "exalações"(no sistema cosmológico aristotélico os céus não estavam sujeitos a mudança, nem à geração nem à corrupção; os cometas, como osmeteoros, nunca poderiam ser fenómenos celestes). Por isso, esta conclusão esteve no epicentro da discussão dos principais modelos planetários em presença na Renascença (o Geocêntrico e o Heliocêntrico). Todavia, Manoel de Figueiredo, na senda de inúmeros autores, reverbera a explicação do magister primus (ou de base aristotélica): "exalações nessa região aerea, engendrando, e formando delles diversas formas como sam nuvens, chuvas, neves, pedras, relâmpagos, trovões, rayos, pedras de corisco, e arcos, dragões, lãças, cavalos, esquadrões de soldados e outras muytas formas que na região do ar aparecem no numero das quais entrão os cometas." (Chronographia: Reportorio dos tempos..., Op. cit., 1603, fol. 164). Esclarece ainda que ao cometa "chamou-ce assim porque quando aparece sempre tras hua coma, ou cabelleira consigo" (ibid., fol. 164v.). Quanto ao movimento, não é regular. Sendo levados pelo "primeiro mobil do Oriente em Occidente [movimento diurno], nem também guardão este movimento porque se move para a parte que o planeta que os ascedeo [i.e. "segue" o planeta que está na origem da "exalação", uma das teorias seguidas] os leva ora para o meio-dia, ora para Oriente" (f.165v.) Descreveu (cap. XI) os nove tipos convencionais, com a forte conotação astrológica e pressagiadora tradicional: "O primeiro he o que se fas na exaltaçam da lua chamarãolhe argentatum, he hum cometa de cor de prata puro, & resplandecente da natureza da lua, & tambem se cauza em seu aspeito. O segundo chamarão ascona he um cometa pequeno bem caudato, ou em portuhues bem rabado tirante azulado da natureza de Mercurio significa este cometa muitas enfermidades agudas, trouões, relampagos, & ventos tempestuosos, & desordenados. O terceiro chamarão milles he grande, & fermoso quasi como a lua he da natureza de Venus, muytas vezes corre todo o zodiaco denota esterilidade por causa das sequas que significa. O quarto chamarão Rosa, o qual he hum cometa grande de cor douro ao modo de rosto humano, sem rabo, o qual he da natureza do sol sempre significa quando aparece morte de poderozos. O quinto chamarãm Matutino, ou Aurora he hum cometa vermelho da natureza de Marte, significa grandes secas, calmas, fomes, & incendios. O sexto chamarão columna, ou tenaculum, he hum cometa muy grande comprido, & largo da natureza de Iupiter significa aflição. O septimo chamarão Nigra, he cometa verdenegro da natureza de Saturno, significa mortes, & pestes. O oictauo chamarão pertica, he hum cometa alguntanto comprido não largo, seu principio he como hua estrella, & apos ella hua cabelleira grossa, & redonda, significa falta dagoas, & esterilidade, he da natureza da cabeça do dragão [nodo lunar ascendente]. O nono chamarão veru he hum cometa comprido & delgado ao modo de hum espeto grande, cujo principio reprezenta a argola, anda junto ao sol he orribel & espantozo, he da natureza da cauda, ou rabo do dragão [nodo lunar descendente], corrõpe os frutos da terra, & dana as samenteiras." A tipologia recua a Plínio, "o Velho" (Naturalis Historia, lib. II) e ao Centilóquio (que se atribuía a Ptolomeu) e tanto o seu número como os nomes apresentam variantes. Procurava-se interpretar o seu significado oculto no quadro dessa tipologia (forma, tamanho, cor) e do lugar onde eram avistados na abóbada celeste. Explica que "a materia de todos estes cometas he hum vapor terreo mesturado com agoa para que possa resplanceder..." e isto acontece porque "tem mestura de terra consigo que he o sal". Quanto à duração do fenómeno, refere que "depois de ser formado o cometa nesta região suprema do ar, dura em quanto o aspeito ["aspecto" (astrológico)] dos planetas que o causarão dura, & dizem os philosophos que em quanto dura estam vapores da terra sustentandoo. E hace daduertir q não somente sobem vapores dagoa, & da terra, a esta região aerea, mas tambem de todas as criaturas estão estos ceos, & estrellas aleuantando vapores, & e estilandoas..." Fr. António do Espírito Santo (Cometas, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 2830, fls. 340r-348v) elencava os seguintes "tipos": "Véru", "Tenáculo" ou "Caudato", "Pértico", "Roza", "Ascóni", "Miles", "Aurora", "Argento", "Niger" e "Cerácias" (vide Luís Miguel Carolino e Carlos Ziller Camenietzki, Tokens of the future: comets, astrology and politics, in Cronos, vol.9: 33-58, Universitat de València, Diciembre 2006). Mais tarde, no autor anónimo da "Chronologia dos Cometas, que appareceram desde o Anno 480 do Nascimento de N. S. J. Christo até ao tempo presente... (Lisboa, Officina de António Vicente da Silva, 1759) a tipologia é reduzida a somente três tipos: - cometas com cauda mais ou menos comprida, os caudatos; - cometas com cauda curta e larga, os crinitos; - cometas com uma espécie de "circilio" em roda, os comados. Acrescenta que a cauda de um cometa "...he hum vapor subtil, que com o calor do Sol sahe do cometa para a parte contraria do mesmo Sol." Significação Quanto à significação dos cometas Manoel de Figueiredo (Op. cit., cap. XII) concluía: "...se lermos todos os livros q os Astrologos escreueram nelles acharemos cometas, & eclipses nunca significaré prosperidades, bonãças, pas, farturas, saude, mas antes o contrario. He isto tanto assi, q bem o exprimentamos em nossas cabeças ha tantos annos, & este he o amor que noffo senhor nos tem, que quando nos quer castigar pos o seu aviso em cousas taõ naturais como sam eclipses, & cometas, pera que nos emmendemos, & fujamos de sua justiça para sua misericordia.". No capítulo seguinte explica, segundo "Albvmasar Astrologo", os efeitos dos cometas em um dos doze signos, dependendo em qual se situa, direcção em que se avista, etc. Segue-se um "sórdido rosário" de calamidades, como se esperaria. Carolino resume: "Os cometas encontravam-se, portanto, na génese de efeitos nefastos na Terra na justa medida da sua obnóxia composição. Pairando no ar um número significativo de exalações quentes, secas e betuminosas, ocorreria certamente um cometa e, provavelmente, também outros fenómenos naturais correlativos, como os terramotos. Neste sentido, em rigor, os cometas eram pensados, no plano teórico, mais como sinais de futuros eventos terrestres do que propriamente como causa destes, pois como lembrara o padre Francisco da Costa (1567-1604) [in Tratado Astrologico dos Cometas], no contexto da lógica aristotélica, os cometas não eram nem causa eficiente, nem formal, nem, também, material e final de tais acontecimentos." (Ciência, Astrologia e Sociedade..., Op. cit., p.182). Todavia, como o autor complementa, desde cedo foram associados a efeitos mais específicos de cariz astrológico. Ptolomeu fez concorrer para a sua origem a participação dos eclipses do Sol e da Lua. Abu Ma'shar [o Albumasar latino] as conjunções, principalmente as dos três planetas superiores (ibid.). Outros atribuiram aos planetas um do papel, estimulando o elevamento e condensação das "exalações". Entretanto, uma nova mundividência vai gradualmente alterando a percepção destes fenómenos, todavia muito lentamente em Portugal. O autor da Chronologia dos Cometas... (1759), foi peremptório: "cometas não são annuncio, nem causa, de desgraças, ou felicidades. Prova-se isto pela Experiência, e pela Razão" (p.28). Para o povo não alfabetizado, pouco terá mudado. Mas também se verifica uma atitude conservadora por parte das elites, que se estende à interpretação da natureza dos cometas. O resumo de um pertinente artigo de Palmira F. da Costa e Hélio Pinto é esclarecedor: "A interpretação dos cometas como sinais de adivinhação sofreu um declínio significativo durante o século XVII. No século posterior, e especialmente nos denominados centros europeus do conhecimento, esse tipo de interpretação foi banida da literatura científica e raramente aparecia em panfletos destinados a uma audiência de cariz popular. Em oposição, a literatura sobre cometas que recorria a uma origem sobrenatural e interpretação divina era ainda relevante em Portugal no século XVIII. Durante esse período, foram publicadas obras a favor dessa interpretação e outras com o propósito de as refutar. as disputas atingiram o auge em meados do século XVIII." (Disputas sobre a origem e o significado dos cometas: o que revelam do Iluminismo português, in ArtCultura, Uberlândia, v.19, n.35, p.131-139, jul.-dez. 2017) António Pimenta (1620-1700), matemático e doutorado em Teologia e Direito Canónico é manifestamente contra a cometologia judiciária (cometomância). Escreveu a obra Sciographia da nova prostimasia celeste, & portentoso cometa do anno de 1664, Lisboa, Domingues Carneiro (Publ.), 1665. Em relação ao cometa de 1577, que refere com brevidade, não deixa de mencionar ironicamente que se este anunciou tanto mal a D. Sebastião e ao Reino, muito de bom significou para Filipe II. Ou seja, estes juízos eram sempre relativos. No âmbito do novo espírito científico (de Halley, Huygens, Cassini, Descartes ou Newton) e da Física exposta nos Principia Mathematica (Newton, 1687), Francisco Ahlers, que conhece e menciona o trabalho de Cassini ou Dorfel [i.e. Georg Samuel Dörffel] e afirma que "Newton, e outros, demonstrarão esta lei da sua revolução [i.e. das órbitas]", conclui que estes corpos não se "dissolvem quando desaparecem, mas se desvião para tão remota distancia, que não pode haver telescópio capaz de os descubrir" (Instrucção sobre os corpos celestes, principalmente sobre os cometas, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1758, p.56). Quanto às superstições associadas, afirma que a experiência "naõ repugna menos esta vulgar credulidade, pois muitos cometas forão vistos na Europa, sem que comsigo trouxessem consequências calamitosas, e estas muitas vezes sobrevierão sem serem precedidas de cometas." (ibid. p.67) Bento Morganti, por exemplo, no seu Breve Discurso sobre os Cometas (1757) expendia a opinião de Descartes (afirmando que era seguida pela maior parte dos seus contemporâneos), "que entende, e ao parecer fundado em boa razão, que os Cometas saó Estrellas verdadeiras como as outras, as quaes se movem por hum grandissimo circulo, em que entaõ se fazem visiveis quando chegaõ á parte inferior delle." (Breve Discurso sobre os Cometas..., Officina de Francisco Borges de Sousa, 1757. p.13). Todavia, o opúsculo começa com uma introdução que deixa implícita uma relação entre estes fenómenos e os terramotos: "Por occasiaõ de ler huma nova Relação de hum Cometa, que se diz apparecera em Africa entre Mazagaõ, e Tangere, depois do Terremoto do primeiro de Novembro do anno passado de 1755., (ainda que na realidade naõ foy outra cousa mais, que hum dos Phenómenos ordinarios, que quasi fempre se seguem aos Terremotos...". Sugere uma quase causalidade, ou pelo menos probabilidade destes fenómenos acontecerem após os terramotos, referindo-se especificamente à enorme catástrofe de 1755.
Terramoto de Lisboa. Die Verwüstung
von Lissabon der haupstadt in Portugal geschehenden 1. Nov. 1755 ("A devastação de
Lisboa, capital de Portugal..."). Autor desconhecido. Museu de Lisboa /
Palácio Pimenta.
Segundo Rómulo de Carvalho, "embora os autores portugueses setecentistas que escreveram sobre o terramoto de 1755 tivessem procurado interpretá-o como um fenómeno natural, nenhum deles deixou de o encarar também como um castigo de Deus. Souberam esses autores distinguir as duas posições, a científica e a religiosa, de modo que uma não invalidasse a outra. As exalações sulfúreas e nitros, o fogo subterrÂneo, as cavernas de matérias combustíveis, etc., tudo isso eram causas naturais, mas simplesmente «causas segundas», conforme lhe chamavam. Para além delas havia uma «causa primeira», que era Deus, de cuja vontade dependeria desencadear as causas segundas." ("As interpretações dadas, na época, às causas do terramoto de 1 de Novembro de 1755" in: Rómulo de Carvalho, Actividades Científicas em Portugal no Século XVIII; Évora, Universidade de Évora, 1996 (1978), p.97). (No fundo, trata-se de um racional semelhante ao adoptado para a influência astrológica desde Tomás de Aquino.). Em termos astrológicos, persistia a velha explicação da influência lunar nas águas subterrâneas e, no caso dos cometas, mormente os gerados sob a influência ou domínio de Saturno, cometa "algum tanto escuro, chumbado ou verdenegro." (André do Avelar, Reportorio dos Tempos..., Lisboa, por Manoel de Lyra, 1590, fol.133). Os terramotos eram interpretados como consequências mas também eram prenúncios. Morganti também explica algumas ideias sobre a matéria de que os cometas são formados (ibid. pp.11-12): "...variarão muito os Authores: porque tem sido muito diversos os sentimentos. Apollonio Mida [Apolónio de Mindos (Μύνδος), séc. IV a.C., cit. por Séneca] foy o primeiro, que disse que os Cometas eraõ Astros irregulares. Monsieur Cassini, e os Astronomos Inglezes julgáraõ o contrario. Monsieur de la Hire he de muito diveria opiniaõ; porque suppõem, com Keplero, que saõ fogos, que subitamente se accendem , e que pouco a pouco fe dissipaõ. Alguns, com Thico-Brae, julgaraõ por muito provavel que os Cometas fe formassem da matéria da Via Lactea, e que por isso eraõ de materia celelte, por ler aquella parte do Ceo como hum Seminario de Estrellas , fundando-se em que os Cometas ordinariamente appareccem junto a esta : mas passando dos modernos para os antigos, ainda que he difficultoso fazer memoria de todos; Pithagoras entendeo que os Cometas eraõ Estrellas, que voltavaõ depois de certo curso estabelecido pelas occultas Leys da natureza. Demócrito, e Anaxágoras disséraõ que era a união de duas, ou mais Estrellas. Estrabaõ quiz que fosse a luz de huma Estrella comprimida por alguma nuvem densa. Heraclido Pontico disse que era huma nuvem densa posta no alto illuminada por numa luz, que lhe fica superior. Xenophonte foy de parecer que era hum composto, e hum movimento de nuvens de fogo. Aristoteles, que he huma exhalaçaõ terrestre inflammada, ou acceza na parte superior do ar." Adiante, menciona a circularidade do movimento fundada na "derrota [rota, trajecto] dos Cometas", conclusão a que, refere, se chegou a partir de uma "pequena lista" do "Doutor Halley". Explica como "com a mediaçaõ de certo numero de annos , se mostra claramente o seu movimento circular, e periodico" (p.15). O opúsculo termina com alguma ambiguidade acerca da realidade da influência dos cometas: concorda com a opinião "que se comprova muito a sua indifferença" mas acrescenta que "sem embargo do que dizem todos estes Authores insignes", podem todavia estes astros "...influir com a luz viva dos vapores, e exhalaçóes de suás atmosferas", que trazendo "...huã nova influencia, possa alterar o estado presente das cousas, e prognosticar algum sucesso, o qual pode ser bom ou máo, segundo a natureza do Cometa, e seus vapores;" (p.21) Mais assertivo, Theodoro de Almeida (Recreasão Filosofica ou Dialogo sobre Filosofia Natural para instrucção de pessoas curiozas, que não frequentárão as aulas), pondera que os cometas sejam "astros creados no principio do mundo juntamente com os planetas", ou seja, perpétuos (Tomo VI, p.176 na 5ª impressão, 1795; editio princeps em 1762). Portanto não são vapores da Terra (Aristóteles), nem produções da região etérea (Kepler), nem vapores dos outros planetas (Hevelius, o astrólogo Argolo) ou mesmo nuvens altas iluminadas pelo Sol. Este autor observou a passagem de 1759 do cometa (cuja periodicidade foi prevista e será doravante nomeado "Halley") no Colégio das Necessidades. Os livros Conjecturas de vários filósofos ácerca dos cometas expostas e impugnadas (1757), de Miguel Tibério Pedegache, e Instrucção sobre os corpos celestes, principalmente sobre os cometas (1758), de Francisco Henrique Ahlers enquadram-se nesta perspectiva pedagógica, actualizada e iluminada de popularização da Filosofia Natural. No séc. XIX, os fenómenos foram também aproveitados em termos de marketing. Por exemplo, o "vin de la comète", que começou aquando de auspiciosas vindimas "acompanhadas" pelo cometa Flaugergues, tornou-se uma moda em rótulos, rolhas, etc. O Château Lafite desse ano foi considerado um dos melhores vinhos de sempre (Stoyan, p.112). Para o vulgo, as antigas superstições estavam vivas, mais ou menos levadas a sério. Na conclusão do artigo já citado, Vasco Jorge Rosa da Silva escreve: "Em muitos casos, nos séculos XIX e XX, os populares ainda relacionavam os cometas com mistérios e superstições. No ano de 1910, houve um medo mundial do cometa Halley, porque se temia que ele pudesse vir a chocar com a Terra*. No Fundão (d. Guarda), por exemplo, organizou-se uma procissão à Serra do Cavalinho, onde se pediu protecção face ao cometa. No primeiro ano da República, houve um pânico generalizado. Muitas crianças não chegaram a ir à escola." (p.249) * Temeu-se, na realidade, o envenenamento da atmosfera com o gás tóxico cianogênio, entretanto descoberto na cauda cometária através de análise espectral. [voltar] |