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O Astrolábio Planisférico

história | geometria | componentes | utilização | excursus: as casas astrológicas | precisão | modelo para impressão

-Adenda: os nomes da estrelas nos astrolábios do ocidente latino



Detalhe frontal de astrolábio atribuído a Erasmus Habermel, circa 1585 (History of Science Museum - University of Oxford; Inv. no. 37297)

 
"Forget Copernicus," George said. "That's the first lesson in celestial navigation.
Forget Copernicus. The earth doesn't go round the sun; the sun goes round the
earth, and the stars go round us too."

(Jonathan Raban, Foreign Land
)

"Mas porque Ptolomeo que fué el sabio mas connosciclo que todos los otros en la arte de la Astrología, et enderecó la espera [i.e. "esfera"] en que se demuestra la forma del cielo, et de las estrellas que en él son. et fizo primeramientre el Astrolabio redondo á la forma de esta espera sobredicha. Et después tornó lo que era redondo en llano. Este estrumente falló para saber tomar ell alteza del sol. et de las estrellas. Et saber ciertamientre el logar do cada una estaba, también de noche cuemo de dia. pora dar los juizios ciertos et fazer las obras segund mandan las artes de la Astrología. et Astronomía."
(Libros del Saber de Astronomía del Rey D. Alfonso X de Castilla, ed. M. Rico y Sinobas, Madrid, Tipografía de Don Eusebio Aguado, 1863; Tomo I, p.12)


Chamado "ícone do Universo" em inscrições bizantinas ou "espelho das estrelas" pelos árabes, o Astrolábio (Ár. al-Asṭurlāb; Farsi: Setāreyāb) representa fielmente o movimento do Primum Mobile ('movimento diurno', que hoje sabemos estar relacionado com a rotação do nosso planeta) para uma determinada latitude, numa data (assinalada pelo lugar do Sol no Zodíaco) e hora específicas. Engenhosa planificação da Esfera, articula uma representação móvel da Esfera Celeste (que inclui as estrelas e a Eclíptica) com uma representação estacionária da Esfera Local (Horizonte, azimutes e círculos de alturas, incluíndo o Equador e os Trópicos). É um modelo topocêntrico e portátil do Universo.

Esfera Celeste
A Esfera Celeste. As estrelas são consideradas como estando na superfície de uma esfera, em comparação com a qual o tamanho da Terra é insignificante. Esta esfera gira numa rotação diária em torno dos seus pólos, situados directamente acima dos pólos da Terra (cujo eixo está inclinado cerca de 23,5º relativamente ao Equador Celeste). As estrelas, os luminares (Sol e Lua) e os planetas surgem no devido tempo acima da metade oriental do Horizonte e têm os respectivos ocasos na metade ocidental. Num determinado lugar geográfico, as estrelas cuja separação angular em relação aos pólos seja suficientemente pequena podem estar permanentemente acima ou abaixo do horizonte. O plano do grande círculo que representa o Horizonte é o plano tangencial à Terra no local do observador. O Equador Celeste (ou “equinocial") está a meio caminho entre os Pólos Celestes e corta o círculo do Horizonte nos seus dois pontos rigorosamente situados nas direcções cardeais Leste e Oeste. N.B.: o percurso diário (também chamado Movimento Diurno, v. fig.) de TODOS os astros é rigorosamente paralelo a este círculo equinocial. A Eclíptica é o caminho que o Sol parece seguir no seu percurso anual entre as estrelas (c. 1 grau por dia). Os pontos onde a Eclíptica e o Equador Celeste se intersectam são os Equinócios; no esquema vê-se o de Outono, quando o Sol passa da metade norte da esfera para a sua metade sul. (J. D. North, Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, Fig.1 (p.24); labels traduzidos)


A família dos antigos instrumentos de astronomia e medição do tempo é ampla: do remoto gnómon às inúmeras variantes do relógio solar, o simples quadrante a as suas elaboradas derivações (e.g., 'duplo', 'senoidal'), a esfera armilar, o torquetum, a balestilha ou "báculo", o relógio astronómico, o astrarium, o nocturlábio, o equatorium, o elaborado compendium, o octante, etc. Partindo de uma 'geometric theory' avançada em 2003 por Jim Bennett, que procurava encontrar denominadores comuns na ampla instrumentação matemática do séc. XVI, distinguindo os componentes essenciais na diversidade das complexas soluções, Richard Kremer propõe analogamente o termo 'geometrical tool' (uma configuração de elementos gráficos que permite resolver um problema geométrico concreto e distinto ("discrete")). Estas "mónadas" permitem (na sua singularidade e flexibilidade), uma utilização per se, combinações formando novos instrumentos ou podem ser acrescentadas a instrumentos existentes (Playing with Geometrical Tools: Johannes Stabius’s Astrolabium imperatorium (1515) and Its Successors, Centaurus 2016, Vol. 58, p.105). Este 'processo' já havia acontecido no venerável astrolábio: síntese de instrumentos pré-existentes, cujas valências integra com admirável 'economia de meios'. "Não é um simples objecto, são muitos objectos num só.", escreveu o historiador Thony Christie no seu blog (aced. 05/05/21 [trad. nossa]).

Torquetum
No torquetum, uma tábua paralela ao plano do equador (dependendo da latitude do local da instalação) era fixa. A face superior do cilindro rotativo instalado nessa tábua era inclinada segundo um ângulo de 23,5º, coincidindo assim com o plano da Eclíptica. (Petrus Apianus, Astronomicum Caesareum, Ingolstadt, 1540; O III Verso)


É quase obrigatório contar (pela enésima vez) o célebre episódio (apócrifo e tardio, proveniente de um relato Sírio do séc. XIII), que envolve um percalço e a queda da esfera armilar de Ptolomeu. Pisada acidentalmente pela montada que transportava o célebre astrónomo, do inevitavelmente achatado resultado nasceu o Astrolábio! Mas ao contrário do que habitualmente se lê, o relator (o historiador e literato Ibn Khallikan) não reconhece qualquer momento "epifânico" ao sábio alexandrino ou aos restantes "Antigos", antes referindo que foi al-Tusi (c. AD 1200) quem reconheceu a vantagem da solução plana, mais tarde melhorada pelo seu aluno Kamal al-Din ibn Yunus (King, D. A., Synchrony with the Heaven - Studies in Astronomical Timekeeping and Instrumentation in Medieval Islamic Civilization, vol.II, Brill, 2005, p.595). Mas Adelardo de Bath (Adelardus Bathensis), séc. XII, enaltece Ptolomeu pela criação deste exemplum (imagem ou modelo reduzido, comum na prática didáctica medieval), que vai ao ponto de designar como um 'livro de bronze', liber eneus (Poulle, E., Le Traité de l'Astrolabe d'Adélard de Bath, in Burnett, C. (ed.), Adelard of Bath: an English Scientist and Arabist of the Early Twelfth Century (Warburg Institute Surveys and Texts), 1987, p.121). Segundo Emmanuel Poulle (ibid.), o instrumento fornece "...une équivalence plate et mobile de la sphère matérielle". Uma vez que se baseia em procedimentos matematicamente rigorosos, a precisão das suas diversas funções é limitada somente pelo tamanho do instrumento.

maqamat al Hariri
Detalhe de ilustração do Maqāmāt al-Ḥarīrī, uma colecção de cinquenta contos (maqāmāt) datados de finais do séc. XI e início do XII, por al-Ḥarīrī de Bassorá, poeta e governante no Império Seljúcida.


D'Hollander refere como o design permite resolver analogicamente problemas de astronomia de posição, de um modo muito 'visual':
"Outre sa fonction d’observation qui consiste à mesurer la hauteur des astres, Soleil ou étoiles, cet astrolabe a surtout une fonction de calcul analogique permettant de résoudre tous les problèmes de l’astronomie de position, en particulier la détermination de l’heure de jour en mesurant la hauteur du Soleil, celle de l’heure de nuit en mesurant la hauteur d’une étoile figurant sur l’araignée. l'astrolabe planisphérique permet en outre de s’orienter de jour comme de nuit, de déterminer le début du crépuscule du matin et la fin du crépuscule du soir, etc." (Raymond d’Hollander, L’Astrolabe: Histoire, théorie et pratique, Institut océanographique, Paris, 1999)

A planificação (através de uma projecção estereográfica, ver infra) desenha os círculos fundamentais, representando uma calota que abrange o céu boreal e se estende até à declinação do círculo mais austral do percurso (aparente) anual do Sol (Trópico de Capricórnio). Os três grandes planos da Esfera Celeste são definidos pelo Horizonte, Equador Celeste e Eclíptica. Cada um possui o seu sistema de coordenadas.

Princípio da projecção estereográfica
O princípio da Projecção Estereográfica. Na ilustração,
visadas a partir do pólo sul da Esfera Celeste, marcaram-se as posições de várias estrelas no plano do Equador (Mills, H. Robert, Practical Astronomy: A User-friendly Handbook for Skywatchers, Albion Publishing, 1994, p.125)


"The astrolabe is, by its nature, a repository of astronomical information. It has built into it, in principle, a value for the so-called ‘obliquity of the ecliptic’, the angle between the ecliptic and the celestial equator..."
(North, J. D., Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, p.67). O Astrolábio, prático e portátil, afirma-se perante instrumentos tridimensionais como as Esferas Armilares ou os Torqueta (projectado para tomar e converter medidas tomadas nos três sistemas de coordenadas: horizontais, equatoriais e elípticas). No instrumento convencional, o tímpano (spera, lâmina ou "tábula") serve apenas determinado clima (lit. "inclinação", uma faixa de latitude). Klimata eram divisões, faixas latitudinais no Globo Terrestre, tradicionalmente em número de sete. Aristóteles descreve-os na sua Meteorologica (2.5, 362a32), Ptolomeu escalona-os em função do tamanho (duração da luz) do mais longo dia do ano (Solstício de Verão). Utilizava-se também o rácio entre o dia mais longo e o mais curto (Neugebauer e Van Hoesen, Greek Horoscopes, The American Philosophical Society, 1987 (1959), p.3). Cada clima é definido como uma latitude que difere, das regiões adjacentes, 1/2 hora no tamanho do maior dia do ano (o paralelo intermédio dos 7 climas originais corresponde, aproximadamente, às latitudes (Norte): 16°, 24°,  30°,  36°,  41°, 45° e 48°).

J. Tester resume:  Each 'clima', clime, was defined by the ratio of the longest to the shortest day. For example, at Alexandria the longest day was fourteen equinoctial hours, the shortest ten, and the ratio was 7:5, while at Babylon the ratio was 3:2. (...) Later, with more accurate trigonometrical methods, a system of climes beginning with the equator where the days are always the same length, and increasing the length of the longest day in half-hour steps, was developed; Ptolemy, in his astronomical work, the Almagest, lists eleven such climes, of which the presumed habitable seven became standard for most later writers. (A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999 (1987), p.43)



Diagrama da escala do Astrolábio Linear (Ar. asturlāb khattī) de al−Tûsi, incluído na descrição clássica de Henri Michel (L’astrolabe linéaire d’al−Tûsi, in: Ciel et Terre (Bruxelles) 59, 1943, pp.101-107, repr.: Islamic Mathematics and Astronomy, vol. 94, pp.331-337). Fácil de construir, difícil na utilização. O mais "abstracto", o horizonte era projectado numa linha.

NB: o Astrolábio Esférico (Ar. asturlāb kūrsī; não confundir com a Esfera Armilar) foi descrito em manuscritos em diversas línguas mas o único exemplar completo que se conhece, assinado por "Mūsā’" e datado de 885 A.H. (1489 A.D,) está em Oxford (Museum of the History of Science, nº inv. 49687). Existe um exemplar incompleto (faltando-lhe a rete hemisférica) pertencente à família Cannobio (Ernesto Cannobio, An important fragment of a West Islamic spherical astrolabe, Annali dell Istituto e Museo di Storia della Scienza di Firenze, 1976, pp.37-41). O Astrolábio Linear (adaptação atribuída a al−Tûsi) foi, tal como o anterior, tudo o indica, criação Islâmica. Por outro lado, o chamado "Astrolábio Náutico" não é um astrolábio! O especialista David A. King é peremptório: "The mariner’s astrolabe is to a ‘real’ astrolabe as a DONUT is to a MULTI-LAYERED WEDDING CAKE. The former should never have been called an astrolabe – its name is well explained by a favourite Spanish expression of mine, “obstinación historiografica”, meaning something like “a misnomen which stuck for centuries and still won’t go away”. It would not be worth a dissertation to establish who introduced this unhappy nomenclature" (King, D. A., The Astrolabe: What it is & what it is not (A supplement to the standard literature), Frankfurt, 2018, p.62). O estarlabeo (como escrevia D. João de Castro no Roteiro de Lisboa a Goa), aperfeiçoado pelos cartógrafos e navegadores lusos, era um inclinómetro servindo basicamente para medir alturas, e.g., a célebre "pesagem do Sol", para determinar a latitude ou "ladeza" do lugar. Ademais, "não obstante os louvores que, em textos da época, com tanta frequência se prodigalizaram ao quadrante e, sobretudo, ao astrolábio nautico, antes de meio século decorrido sobre o início da navegação astronómica já alguns técnicos haviam reconhecido vários incovenientes do uso de um e outro, muito embora os resultados pouco satisfatórios a que conduziam resultassem muito mais das condições em que se operava do que dos defeitos dos instrumentos." (Albuquerque, Luís de, Instrumentos de Navegação, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1988, p.8). Adiante, o autor refere a balestilha, o kamal (i.e. as chamadas "tavoletas da Índia"), a armila náutica, o semicírculo graduado, etc.). O astrobábio planisférico [Ar. asturlāb sathī] nunca foi utilizado em navegação. (King, D. A., 2005, p.347)

 

Origens

Quase tudo o que sabemos repousa em fontes indirectas. O αστρολάβος era provavelmente utilizado na época Helenística, sendo garantido que a execução mecânica do instrumento era conhecida no início da nossa era (Neugebauer, O., The Early History of the Astrolabe, in: Astronomy and History Selected Essays. Springer, 1983, p.285). O incontornável Ptolomeu (século II), no seu Planisphaerium (conhecido através de uma tradução de Hermannus de Carinthia ('Dalmata' ou 'Sclavus') datada de 1143, a partir do texto Arábico de Maslama ibn Ahmad al-Majriti, o "Almirethi" dos latinos), referiu-se à "aranha" (v. infra) do "instrumento horoscópico" (terminologia coeva sugere que não houve interpolação no texto), indiciando que já existia algo análogo na sua época (North, J. D., The Astrolabe, Scientific American, Vol. 230, No.1 (Jan. 1974), p.104). No Planisphaerium, Ptolomeu expôs o fundamento teórico da projecção estereográfica (que justamente agiliza a projecção geométrica da esfera num plano).

Todavia, Seb Falk anota de modo pertinente que o design implícito no Planisphaerium era, efectivamente, o inverso do que virá a ser o do instrumento medieval convencional: as estrelas podiam ser gravadas directamente na lâmina ou tímpano, enquanto a "aranha" provavelmente incluia as coordenadas. Ou seja, o horizonte podia mover-se sobre as estrelas fixas, ao contrário do que acontece no astrolábio medieval, onde as estrelas se movem sobre um horizonte estático (Improving Instruments: Equatoria, Astrolabes, and the Practices os Monastic Astronomy in Late Medieval England, (unpublished PhD thesis), University of Cambridge (2016), p.47, n. 24).

O texto clássico de Vitruvius (de arch. IX, 8) descreve um relógio astrolábico baseado na projecção estereográfica. Também inclui uma referência sucinta ao astrónomo Eudoxus ou a Apollonius Pergaeus (i.e., de Perga) como possíveis "inventores" da aranha. Contudo, Neugebauer (ibid, 285) considera que a expressão 'aranha', utilizada para definir uma rede (fixa ou móvel) não é, por si só, indicativa da utilização concomitante da projecção estereográfica, descartando a evidência como insuficiente. O referido relógio incluia uma projecção planisférica das estrelas (até ao limite do Trópico de Capricórnio), sobre a qual se utilizava uma rede com o arco representativo do horizonte, o meridiano, etc. O círculo zodiacal teria 365 pequenos orifícios onde se colocaria uma representação do Sol que, quando o relógio fosse colocado em funcionamento no seu orto, marcaria as sucessivas horas. Faria um revolução diária com recurso a uma clepsidra. Segundo A. G. Drachmann: If we compare these two instruments, the anaphoric clock and the astrolabe, their similarity is unmistakable; all writers agree that they are two expressions of the same idea. (The Plane Astrolabe and the Anaphoric Clock, Centaurus, Vol.III, 1954, p.187)

O primeiro tratado (do qual somente conhecemos a tábua das matérias) é atribuido a Teão (Θέων, 'Téon') de Alexandria, erudito do século IV. Talvez seja o inventor do instrumento cuja teoria subjacente já seria, previamente, conhecida por Hipparkhos (Hiparco, circa 150 A.C.). Os mais antigos relatos disponíveis acerca da construção e utilização do instrumento são os do teólogo e gramático bizantino Joannes Philoponus (século VI) e de Severus Sabokt de Nisibus (séc. VII), este em Siríaco. Escrevendo em Sânscrito na década de 1240, Ramacandra Vajapeyin elogiou o astrolábio acima de todos os instrumentos científicos: "Quando o conheceres bem, conhecerás o Universo como um fruto na palma da tua mão" (Falk, S., The Light Ages: The Surprising Story of Medieval Science, W. W. Norton & Company, 2020, p.217 [trad. nossa]). Os Muçulmanos terão provavelmente o primeiro contacto com o astrolábio nas fronteiras do Império Bizantino, no séc. VIII. Foi, pelo que se julga saber, transmitido ao Ocidente Latino a partir da Catalunha e depois, com maior veemência, na vaga de traduções do Árabe para o Latim no século XII. Trata-se de uma história que ainda apresenta muitas lacunas e aspectos pouco compreendidos (vide a introdução de Silke Ackermann: Hic Sunt Dracones - Astrolabe Research Revisited, in: Rodríguez-Arribas, J., Burnett, C., Ackermann, S., Szpiech, R., Astrolabes in Medieval Cultures, Brill, 2019, [Medieval Encounters 23.1‒5, 2017], 3 et seq.).

O astrolábio Europeu mais antigo (séc. X) é proveniente da Catalunha. Antes dessa época recuada somente encontramos astrolábios árabes. Algumas da suas lâminas (mas não todas) constituem exemplo do "velho estilo", representando o horizonte, os círculos de altura e o diagrama das horas mas não as linhas verticais ou curvas azimutais. Conhecido como "Astrolábio Carolíngio" ou "de Barcelona" (Musée de l'Institut du Monde Arabe (Paris), inv. no. AI 86-31; foto ©Musée de l’Institut du Monde Arabe, Paris / Philippe Maillard), é considerado uma "tradução" de um instrumento árabe. É a teoria defendida por Marcel Destombes, que descobriu e adquiriu o instrumento, desde 1962 (exarada, por exemplo, em Un astrolabe carolingien et l’origine de nos chiffres arabes (Archives internationales d’histoire des sciences XV, 1962, 58–59) e nos "proceedings" do simpósio acerca deste instrumento realizado em Saragoça em 1993 (publ. in: Physis, nº 22, 1995) e com a qual muitos medievalistas concordam. Todavia, um autoridade do calibre de David A. King não concorda e atribui-lhe origem independente, argumentando que não se trata de uma cópia de qualquer instrumento Islâmico mas de um exemplar representativo de uma (de outro modo desconhecida) tradição greco-romana. Existem cerca de 10 astrolábios conhecidos (mais tardios) com inscrições em hebraico e somente um único exemplar Bizantino de 1062. Segundo Kunitzsch, o astrolábio oriental mais antigo que se conhece foi construído por Muḥammad ibn ʿAbd Allāh Nasṭūlus, datado de 315 AH = 927-28 AD. No Islão ocidental (Maghrib e al-Andalus), conhecemos dois exemplares de Muhammad ibn al-Saffãr: um incompleto datado de 1026/27 e outro completo de 1029, feitos em Córdova e Toledo, respectivamente, (Traces of a Tenth-Century Spanish-Arabic Astrolabe, in: Zeitschrift fur Geschichte der Arabisch-Islamischen Wissenschaften 12. Frankfurt am Main, 1998, p.113). Mas este académico estava convicto (ibid., p.115) de que o mais antigo "exemplar" hispano-arábico é o instrumento que surge desenhado (identificando o nome do seu construtor: Khalaf ibn al-Mu'ãdh) num manuscrito Francês de meados do séc. XI (MS Paris, BN lat. 7412. Fol. 1r-23v), cujo conteúdo foi descrito por, entre outros, M. Destombes (Archives lnternationales d'Histoire des Sciences, 15, 1962, 41-3).


O estudo que hoje chamamos 'trigonometria esférica' não era recente e atribui-se ao matemático Menelau de Alexandria, autor de uma Sphaerica, a primeira definição de triângulo esférico (Berggren, J.L., Episodes in the Mathematics of Medieval Islam, Springer-Verlag, 1986, 158-159). A civilização Islâmica criará uma sinergia entre a ênfase geométrica do legado helénico e a predominância numérica das práticas Indostânicas (e.g., o sistema decimal, a utilização do zero). O desenvolvimento ulterior da trigonometria deve-se ao génio de tratadistas Islâmicos como al-Biruni, al-Battani ou al-Tūsī.

O Astrolábio resume, nas suas inúmeras valências, a interacção entre teorias, técnicas e procedimentos. A partir do século XI, o instrumento completa-se com um sistema de mira para medições (alidade com pínulas, círculo de altura, armilas). Foi Millàs Vallicrosa que provou que foi a partir da Catalunha que os primeiros textos (Sententie astrolabii e materiais relacionados, de inspiração árabe) ficaram ao alcance do Ocidente Latino, no final do séc. X (Assaig d'historia de les idées fisiques i matematiques a la Catalunya medieval, Barcelona, 1931). Emmanuel Poulle resumiu: "Il semble bien établi que les premiers traités d'astrolabe en occident sont d'inspiration arabe et sont dus à Llobet de Barcelone et à son entourage. De Barcelone, ils auraient été diffusés en Europe par l'enseignement de Gerbert." (L'astrolabe médiéval d'après les manuscrits de la Bibliothèque nationale. in Bibliothèque de l'école des chartes. 1954, tome 112, p.83). [Este Gerbert é Gerbert d'Aurillac (c.950-1003), mais tarde Papa Silvestre II. Personalidade interessantíssima e quase lendária, contacta (na Catalunha) com a sofisticação matemática árabe e com o sistema numérico indo-arábico. Terá sido autor de uma descrição e difusor do astrolábio] Numa segunda fase, em meados do séc. XII, assiste-se à tradução de diversos tratados importantes, também na Península Ibérica (Lorch, R., The Treatise on the Astrolabe by Rudolf of Bruges, in: Nauta, L., Vanderjagt, A. (eds), Between Demonstration and Imagination: Essays in the History of Science and Philosophy Presented to John D. North, Brill, 1999, p.55).


Aristóteles ensina recorrendo a um astrolábio (MS Ahmed III 3206, ‘Kitab Mukhtar al-Hikam wa-Mahasin al-Kilam’ de Al-Mubashir), séc. XIII, Topkapi Palace Museum, Istambul


Ilustração do Psalterium latino dito "de Saint Louis et de Blanche de Castille" (séc. XIII), Bibliothèque Nationale de France

O mais antigo texto Europeu medieval que se conhece, e um dos mais influentes, é o já mencionado tratado conhecido como Sententie astrolabii, compilação oriunda do nordeste de Espanha, finais do século X. Alguns excertos foram identificadas como pertencendo a um tratado sobre o uso do astrolábio de al-Khwãrizmi (Baghdad, séc. IX), bem como da versão arábica do Planisphaerium. É encontrado em manuscritos datando do século XI e um deles (MS. Ripoll 225) por vezes datado ainda do décimo. O texto foi editado, a partir de seis manuscritos, pelo especialista Catalão J. Millas Vallicrosa em 1931. Tabelas de 27 estrelas "astrolábicas", hoje conhecidas como "Type III" (na classificação de Kunitzsch, Typen Von Sternverzeichnissen in Astronomischen Handschriften Des Zehnten Bis Vierzehnten Jahrhunderts (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1966), conheceram grande disseminação e foram relacionadas com os textos em torno do mencionado tratado (Sententie astrolabii). ulteriormente adoptadas por autores como Ascelinus de Augsburgo e Hermano de Reichenau (Hermannus Contractus ou Hermannus Augiensis) e replicadas até aos séculos XIII e XIV. (v. Kunitzsch, P. & Dekker, E., The Stars on the Rete of the so-called "Carolingian Astrolabe", 655-672, "From Baghdad to Barcelona. Studies in the Islamic Exact Sciences in Honour of Prof. Juan Vernet", Barcelona, 1996 (Anuari de Filologia, Universitat de Barcelona, XIX, 1996, B-2), vol. II). Estes textos mais antigos constituem um conjunto a que Paul Kunitzsch chamou "Old corpus". Charles Burnett chama-lhes "Old collection". Este académico estabeleceu a sequência de três estágios sucessivos na compilação destes textos, argumentando ainda quanto ao seu desenvolvimento em determinados locais fora da pivotal região Catalã (King Ptolemy and Alchandreus the Philosopher: the earliest texts on the astrolabe and Arabic astrology at Fleury, Micy and Chartres, Annals of Science 55, 329–368, pp.338–40). Julio Samsó comenta: "...the problem of the arrival of the corpus in Europe has been seriously revised in recent decades by Borst and Burnett on the basis of the oldest manuscripts in the collection. Both underline the importance of the area near Orléans, where we find two monasteries (St. Benoît de Fleury and St. Mesmin de Micy) in which copies of the old corpus were made..." (On Both Sides of the Strait of Gibraltar..., Brill, 2020, p.398). Ler restante exposição de Samsó (2020, pp-378 et seq.) acerca das disputas quanto às fontes (ainda escassamente conhecidas, com algumas excepções) e, principalmente, datação e origens geográficas dos textos do corpus

Mais tarde, outro tratado extremamente influente estará disponível em Latim no século XIV: o Compositio et operatio astrolabii ("composição e utilização do astrolábio") do pseudo-Masha'allah, influência prioritária nos tratados vernaculares, por exemplo o de Pèlerin de Prusse (em Francês, 1362; Oxford, St. John's College, MS. 164) e no mais célebre A Treatise on the Astrolabe de Geoffrey Chaucer. Outra referência óbvia do prolífico autor Inglês terá sido o ubíquo de Sphaera de Sacrobosco.

Acerca dos textos previamente atribuídos a Masha'allah (Māshāʾallāh ibn Atharī, séculos VIII-IX), Kunitzsch concluiu que são inequivocamente compilações Latinas mais tardias:

"Part I, De compositione, is a western Latin compilation, perhaps from the middle or second half of the thirteenth century AD, consisting of four or five different sections of different origin, none of which bears a recognisable relation to Messahalla. Not even Maslama, who is quoted as source for the main part ofDe compositione, seems to be involved in the history of the treatise, as far as his works are known. Part II, De operatione , has proved to be a purely western compilation and fabrication made on the basis of Johannes Hispalensis’ Latin translation of the Arabic treatise on the use of the astrolabe by the Spanish-Muslim astronomer Ibn al-Ṣaffār, one of Maslama’s disciples." (On the authenticity of the treatise on the composition and use of the astrolabe ascribed to Messahalla, AIHS 31, pp. 42–62, 1981, p.56).

Referindo-se à literatura do Chaucer d'Os Contos de Cantuária, Marijane Osborn argumenta: "...Chaucer conceived of astronomical time in The Canterbury Tales as a graphic image, perhaps imagined as a great arc something like a modern clockface marking the daylight hours above his pilgrimage route." (Time and the Astrolabe in the Canterbury Tales, University of Oklahoma Press: Norman, 2002, p.13). Como Catherine Eagleton argumenta, a fama de Chaucer vai promover a divulgação do desenho do astrolábio descrito no seu Treatise: "...Chaucer’s posthumous fame encouraged the production of astrolabes to his design. It was not so much 'Chaucer’s own astrolabe' as 'an astrolabe just like Chaucer's" (Chaucer’s own astrolabe: text, image and object, Studies in History and Philosophy of Science Part A, vol. 38, Issue 2, June 2007, pp.303-326). Quase todos os astrolábios do tipo "Chauceriano" (séc. XIV) se caracterizam pela rete (v. infra) em forma de "Y".

Nos Libros del Saber de Astronomia del rey D. Alfonso X de Castilla [Libro[s] del saber de astrología, no original], séc. XIII, a celebrada compilação e exposição metódica, em dezasseis tratados, de textos coevos e traduções (particularmente de textos árabes do al-Andalus (mais antigos), com destaque para os do aí chamado Abuiçac Azarquiel, i.e. al-Zarqālluh) tendo como principal astrónomo incumbente o chamado Rabiçag de Toledo (o rabino Isḥāq b. Sīd, i.e. Rabiçag Aben Cayut), o astrolábio planisférico é descrito nos dois Libros dell astrolábio llano (antecedidos dos dois que dizem respeito ao "redondo"). O libro II contém cinquenta e oito capítulos. Os cinco primeiros ocupam-se da nomenclatura das diversas partes do astrolábio, os restantes resolvem problemas astronómicos. Como o nome indica, a vasta compilação foi uma iniciativa de Alfonso X (1226-1284), soberano de Leão e Castela, bem como de outras regiões como o nosso Algarve (até ao tratado de Badajoz, 1267).

NB: Como Julio Samsó (seguindo uma constatação de Laura Fernández) esclarece (On Both Sides of the Strait of Gibraltar: Studies in the History of Medieval Astronomy in the Iberian Peninsula and the Maghrib, (Series: Handbook of oriental studies. Section one, The near and Middle East, 0169-9423; Volume 144), Brill, 2020, p.34, n.135): "The whole collection was edited uncritically by Rico, 1863–67, who introduced a title (Libros del saber de astronomía) that does not appear in any of the manuscripts." (v. Laura Fernández Fernández, Arte y ciencia en el scriptorium de Alfonso X el Sabio, 2013, p.214). Ou seja, foi Rico y Sinobas quem popularizou uma designação que não aparece nos manuscritos. A designação correcta é Libro del Saber de Astrología.


Libro del Saber de Astrología. Excerto da página que inclui o prólogo ao primeiro libro dedicado ao astrolábio plano (astrolabio llano)


O Libro del Saber foi uma influente obra colaborativa, demais compilação redigida no vernacular Castelhano e não em Latim. A obra está dividida em dezasseis partes, "et fabla en él de todas aquellas maneras por que se puede catar, et connoscer et entender el mouimiento de todos los cielos que se mueuen. et de las estrellas que son en ellos, también las del .VIII. cielo á que llaman fixas. porque non an mouimiento ansi cuemo las otras, bien cuerno de las otras .VII. á que llaman planetas, porque son mouedizas en sí mesmas. Et otrossí por los cielos en que ellas estan, que se mueuen siempre." Começa com a descrição das quarenta e oito constelações (ptolomaicas) da oitava esfera: "La primera es de las .XLVIII. figuras de la .VIII. espera.". (Rico y Sinobas (ed.), Tomo I, Madrid, 1863; atenção: esta edição não é propriamente renomada pelo rigor com que transcreve as palavras originalmente grafadas nos códices)

Entretanto, sucintas tabelas de estrelas dedicadas ao uso no astrolábio eram comuns no contexto Islâmico e tornaram-se as mais divulgadas na Europa. As coordenadas eclípticas eram regra nesta época. Todavia, as listas para uso no astrolábio preferiam incluir coordenadas diferentes, e.g., mediatio coeli (o grau da Eclíptica que culminava simultaneamente com a estrela; por vezes surge "latitudo") e a declinação.

"Another frequent type of Islamic star tables are lists of astrolabes stars. Their stars are often accorded, apart from the usual eliptical coordinates, equatorial coordinates which were preferred for practical use on the instrument. The equatorial coordinates mostly show values up to the smallest units of minutes which never could be obtained by observation in those times. The explanation is that these equatorial coordinates were derived through calculation from tho well established ecliptical coordinates. The same holds good for similar star tables in mediaeval Europe." (Kunitzsh, Paul, Star Catalogues and Star Tables in Mediaeval Oriental and European Astronomy, Indian Journal of History of Science 21, New Delhi, 1986, p.119; repr. in: The Arabs and the Stars : Texts and Traditions on the Fixed Stars, and their Influence in Medieval Europe (Variorum Collected Studies), Routledge, 2016 (First published 1989 by Ashgate Publishing)). A mais antiga tabela do Ocidente Latino foi uma destas listas, com 27 estrelas, datável de finais do séc. X. As suas coordenadas eram a mencionada mediatio coeli e (neste caso particular), uma segunda "não convencional" que somente podia ser lida no instrumento (ibid.).

Parte da terminologia astronómica que ainda hoje utilizamos foi gradualmente importada com os textos do astrolábio, na Idade Média. Como exemplos, Paul Kunitzsch refere os termos "zénite", "nadir" e "azimute":

"(...) All these three were originally brought into the West in treatises on the astrolabe and its use, zenith referring to the highest point above the horizon, the center of the so-called almucantarat, that is the parallels to the horizon. In Arabic it was samt al-ra's, "the direction of the head", signifying the point in the sky directly over one's head, Latin translators borrowed it as cemt/zemt capitis, and finally cemt/zemt was misread and miswritten, in Latin, as cenit/zenit. Further, nadir in Arabic was nazlr, "the corresponding one", and mostly employed in phrases like "the degree corresponding to the degree of the sun", that is "opposite to the degree of the sun" at a distance of 180°; today it is used only for the point in the sky opposite to the zenith. Finally, azimuth in modern astronomy (taken as a word in the singular) refers to an arc of the horizon between the South point and the point at which a vertical circle passing through the zenith and through a given star cuts the horizon. In Arabic, azimuth was the plural, al-sumut, of the same word samt which we saw shortly before in the term samt al-ra's, "zenith". It designated, in the singular samt - apart from the special term zenith which, in Arabic, was always complemented by a subsequent genitive: samt of the head, or of the heads, or of a place or town - any of the vertical great circles, in the horizontal system, passing through the zenith and cutting the horizon at right angles, and also the arc on the horizon between the East or West point and the place where the respective samt, or vertical circle, cuts the horizon. Thus, altogether there were three uses of the word samt in Arabic: composed with "of the head", etc., it designated the zenith; as a normal noun, with the plural sumut, it designated the vertical circles in the horizontal system; third, mostly in the singular and complemented by a genitive like "of a given star", "of the sun, or moon", etc., and also "of a place or town", it referred to that coordinate in the horizontal system which nowadays is counted from the South point while the mediaeval astrolabists counted it from the East or West points. Mediaeval authors misused the Arabic plural azimuth as equivalent to the singular samt, in the sense of that coordinate, and thus it came that in modern astronomy the transliteration of the Arabic plural, azimuth, is used in the sense of a singular for that coordinate in the horizontal system." (Remarks Regarding the Terminology of the Astrolabe, Zeitschrift fur Geschichte der Arabisch-Islamischen Wissenschaften 1. Frankfurt am Main, 1984, pp.55-6). 

Como curiosidade, segundo os Libro del saber, alguns astrónomos referiam "el punto de .XC" ou çientarraz, 'el punto de la cima de la cabeça' [i.e. o zénite, 90º acima do horizonte]", vide Rico y Sinobas, Op. cit., Tomo II, p.262


Instrumentos universais (breve referência)

Um primeiro modo para conseguir a almejada "universalidade" (um instrumento que funcionasse em qualquer lugar) era incluir tímpanos para diversos climas (latitudes) num astrolábio plano convencional. Contudo, segundo Moreno et al., "O verdadeiro astrolábio universal tem subjacente uma abordagem diferente. Baseia-se no facto de que uma projecção estereográfica da esfera Celeste no plano do coluro (grande círculo que atravessa os pontos solsticiais, passando pelos pólos), tendo como ponto de origem da projecção o ponto vernal, se torna independente da latitude terrestre. De facto, é comparável à projecção estereográfica da esfera como se efectuada na latitude do Equador (0º). Se se articular dinamicamente um destes conjuntos de marcações em cima de outro do mesmo tipo, conseguem-se resolver os problemas de astronomia esférica, que no fundo mais não são do que conversões entre os três sistemas de coordenadas (equatoriais, eclípticas e horizontais, estas últimas baseadas em determinada latitude geográfica) Outra maneira de conseguir uma utilização universal na parte da 'rete' que aloja representações estereográficas das estrelas, com ou sem representação da Eclíptica, envolvia o recurso a um tímpano com projecções de uma série de "horizontes", para cada "clima", espaçados por uns poucos graus de latitude. Com semelhante tímpano, as ascensões oblíquas podem ser lidas para qualquer latitude, permitindo a resolução de problemas relacionados com os fenómenos do Horizonte (e.g., determinação do tamanho do dia natural para qualquer longitude solar). Este tipo de tímpano foi inventado em Baghdad por Habash al-Hasib no séc. IX. tornando-se conhecido na Europa no séc. XVI através de Gemma Frisius e do seu 'astrolabium catholicum'" (Roberto Moreno, Koenraad Van Cleempoel & David King (2002), A Recently Discovered Sixteenth-Century Spanish Astrolabe, Annals of Science, 59:4, p.333 [trad. nossa]). Resumidamente, pode dizer-se que com recurso a uma régua ou alidade adequada e uma lâmina com inscrições para a latitude de 0º torna-se, num certo sentido, universal. O Astrolábio Universal foi inventado em Toledo no séc. XI (King, David A., “On the Early History of the Universal Astrolabe in Islamic Astronomy and the Origin of the Term shakkāzīya in Medieval Scientific Arabic” Journal for the History of Arabic Science 3 (1979), 244–257).


Esquema da facies de um astrolábio universal: 1. trono; 2. limbo com escala em graus; 3. tímpano com meridianos e paralelos; 4. Eclíptica, escala (longitudes eclípticas) e signos zodiacais, 6. ponteiro (brachiolus), articulado, revolve com a régua e pode mover-se para pontos de intersecção dos meridianos e paralelos (crédito: shadows.pro)


Reconstrução da 'rete' de um astrolábio universal segundo a descrição do astrónomo andaluz Ali ibn Khalaf (Roberto Moreno, 2002)


O sofisticado astrolábio de ibn al-Sarraj, feito em Alepo, 1328-29. É, actualmente, o único exemplar 'universal' que prevalece (Museu Benaki, Atenas)

Rete Universal de acordo com Rabiçaq
'Rete' de um astrolábio universal, segundo Rabiçag. De um tratado da sua autoria incluído no Libro del Saber. O semicírculo inferior representa posições das estrelas

No século XI, Arzaquel ou Azarquiel, i.e. al-Zarqali (al-Zarqālluh), renomado pelo seu saber e criatividade, apresentou outro astrolábio universal (na realidade foram duas versões, como refere Laura F. Fernández em Astrolabes on Parchment: The Astrolabes Depicted in Alfonso X’s Libro Del Saber De Astrología... in: Rodríguez-Arribas et. al., Op. cit., p.307), recorrendo à que ficou conhecida como lamina universalis (Ar. safiha, Lat. saphea) de Ali ibn Khalaf (King, D. A., World-maps for finding the direction and distance to Mecca, Brill, 1999, p.330). No Libro del saber... estes instrumentos são chamados azafehas, açafehas ou simplesmente láminas. Na "al-shakkaziyya" ou "Saphea arzachelis" o sistema estereográfico bascula 90º. O plano de projecção é o dos coluros solsticiais e o pólo um dos pontos de intersecção do Equador Celeste com a Eclíptica (Michel, H., Traité de l'astrolabe, Paris, 1947, p. 95). Uma descrição desta "açafeha" foi incluída no já referido Libro del Saber de Astrología, com outra descrição vertida para o Latim em 1263 por Ibn Tibbon (Profatius Judaeus) e João de Brescia. O conceito será retomado por Gemma Frisius no século XVI, através do modelo a que chamou Astrolabum (sic) Catholicum (i.e., "universal") e no Astrolábio de Rojas (cuja teorização é atribuída a um enigmático Juan de Rojas y Sarmiento, provavelmente gizado por Hugo Helt, que o matemático e historiador Luciano Pereira da Silva já havia identificado como possível autor do sexto livro do tratado onde é descrito), vide Maddison, F., Hugo Helt and the Rojas Astrolabe Projection (Junta de Investigações do Ultramar, XII, Coimbra, 1966). Este modelo incomum recorria a uma projecção ortográfica e também visava a utilização em qualquer latitude.

 

Geometria

O Astrolábio Planisférico ou plano (também conhecido como "Astrolabio de rede, ou Astronomico", provavelmente para o distinguir claramente de outros instrumentos a que o uso chamava erradamente "astrolábios", v. Simão Falónio (Fallon), Compêndio Astrologico e iudiciario, "Em o collegio de St.º Antão, Lxª Anno. 1639"), convencional, utiliza a Projecção Estereográfica (gr. "stereos", i.e. sólidos) cuja teorização parece remontar a Hiparco, circa 150 A.C., segundo relato de Synesius (Συνέσιος) de Cirene, circa 400 A.D. (Migne: Patrologia graeca 66: pp.1577-1588). Esta projecção de objectos tridimensionais numa superfície bidimensional é particularmente vantajosa porque preserva os círculos e preserva os ângulos. A projecção acontece no plano do Equador e tem origem geométrica (ponto de vista) no Pólo Sul da Esfera. Perpendicularmente, o centro representa o Pólo Norte Celeste. A rotação corresponde à rotação da Esfera Celeste, que é representada no plano (Demonstratio de plana spera é justamente o nome de um conhecido tratado de Jordanus de Nemore, matemático do século XIII, acerca da projecção estereográfica, traduzido e comentado por Ron B. Thomson, Pontifical Institute of Medieval Studies, Toronto, 1978). Aqui a Esfera é vista "de fora", consequentemente representando as estrelas simetricamente em relação à nossa experiência observacional.

Günther Oestmann refere (num estudo dedicado aos relógios astronómicos monumentais), as duas alternativas da projecção estereográfica, a partir do Pólo Sul (astrolábio convencional, para utilização no Hemisfério Norte) e a partir do Pólo Norte (funcionaria no Hemisfério Sul, utilizada em mostradores de relógios monumentais e comprovada arqueológicamente em alguns instrumentos na Antiguidade). Numa breve explicação introdutória, seguindo Henri Michel e Siegfried Wetzel, explica uma curiosa influência do Astrolábio na Relojoaria: O eixo da Terra aponta (aproximadamente) para a Estrela Polar. As estrelas dão uma volta completa (ao Pólo Norte Celeste) em 24 horas, no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio. Todavia, os ponteiro dos relógios não seguem este modelo do "relógio celestial", antes rodando "para trás", porque o sentido da rotação adoptou o exemplo dos astrolábios, que precederam os relógios mecânicos enquanto mecanismos de medição do tempo. (Changing the Angle of Vision: Astrolabe Dials on Astronomical Clocks, in: Rodríguez-Arribas et. al., Op. cit., ch.12).

O desenho do Astrolábio pode ser construído geometricamente (traçados fundamentais, .PDF, 715KB) como exposto, por exemplo, no Elucidatio de Stoeffler (1512/13) ou através da utilização de fórmulas trigonométricas.

No excelente resumo de David A. King, "o instrumento convencional é composto de duas partes principais. A primeira é a chamada Rete (i.e. "rede", conhecida como 'aranha'), consistindo numa estrutura vazada com ponteiros para a posição de diversas estrelas e um anel circular excêntrico representando a Eclíptica. Traduz a configuração do céu. A contrapartida "terrestre" [agilizada pelo tímpano ou lâmina], integra indicações gráficas para determinada latitude, inclui o Horizonte e o Meridiano, desenha as alturas acima do horizonte e linhas de azimute ao longo do mesmo. A parte "celeste" pode rodar sobre a "terrestre", emulando o que aparentemente acontece na realidade." (In Synchrony..., vol.II, p.348 [trad. nossa]). Relaciona de modo engenhoso os sistemas de coordenadas equatoriais e azimutais para a posição do 'observador'. Emmanuel Poulle, a propósito do tratado do astrolábio de Adelardo de Bath, caracteriza sucintamente o "modelo ocidental" deste instrumento: "...que a astronomia universitária tornará banal e que comporta: um sistema de visada que aproveita a gravidade do instrumento e é composto pela suspensão, uma graduação de alturas e uma alidade de pínulas no dorso; um calendário zodiacal no dorso; as projecções estereográfics da esfera celente móvel (a aranha) e da esfera celeste fixa de referência (o tímpano); e, por fim, um traçado associado a utilizações geométricas, o quadrado de sombras, no dorso." (Op. cit., p.122 [trad. nossa]). Todavia, Poulle interpreta o astrolábio principalmente como recurso pedagógico e instrumento de cálculo,não observacional: Il n'est pas un instrument d'observacion, malgré les allusions répétés à l'emploi qui en est fait por prene la hauteur des astre sur l'horizon: il est pour cela inadéquat et imprécis." (ibid., p.130).


O Astrolábio funciona sobrepondo duas projecções. Em cima, a projecção da Esfera Celeste, do Pólo Norte ao Trópico de Capricórnio (materializada na "rete" ou "aranea"). Em baixo, a projecção da Abóbada Celeste local, do Zénite à Linha de Horizonte (materializada no tímpano ou lâmina). O Pólo Celeste Norte (ponto N) é pivotal, estando no centro em ambas as projecções (Mitchell, T., The Astrolabe in Theory and Practice)

- Breve recolecção de procedimentos geométricos para o desenho de um astrolábio planisférico (.PDF, 715KB)

 


Alguns dos círculos e direcções fundamentais. Vide os horizontes direito e oblíquo (NB: o horizonte adequado a uma latitude de 0º, sob o Equador, é um segmento de recta (E-O); nas restantes latitudes será sempre oblíquo); Dominique Jacquinot, L'usage de l'Astrolabe, avec un petit traité de la Sphere (Seconde Édition), 1558


Resumo...

Na antiga distinção entre a dinâmica do orbe celeste e a dinâmica dos movimentos planetários, o astrolábio está vocacionado para a primeira (que contempla o que está para além das deambulações dos errantes), ou seja, para a "Astronomia do Primum Mobile" (v. Hugonnard-Roche, H., The Influence of Arabic Astronomy in the Medieval West, in: Roshdi Rashed (ed.) Encyclopedia of the History of Arabic Science, Vol. 1, Routledge, 1996, pp.284–305). Para eventual localização das posições da Lua ou dos planetas seria necessária informação suplementar, fornecida por tábuas de efemérides ou o recurso alternativo a instrumentos diferentes como os equatoria). Com tabelas, utilizava-se habitualmente a longitude eclíptica e a declinação, tendo esta última naturalmente o equador celeste, "circulus Arietis", como referencial). N.B:  Quando a longitude de um planeta aumenta, dizemos que este está no movimento 'directo'. Move-se, deste modo, na mesma direcção em que o Sol se move relativamente ao fundo de estrelas ao longo do ano. Quando a longitude do planeta diminui, diz-se que o seu movimento é 'retrógrado'.

As posições da Lua e dos planetas exigiam tabelas ou uma categoria diferente de instrumentos ou expedientes mecânicos. Encontramos, por exemplo,  complexas lâminas descritas nos "Libros de las láminas de las .VII. planetas", segundo (como se afirma no prólogo), um sábio chamado Abulcacim Abnaçahm. Estes dois libros fazem parte da compilação patrocinada por Alfonso X. Referem-se lâminas individuais mas também, no segundo libro, uma para todos os planetas. Tomavam em consideração o epiciclo, o aux (do Ár. awj), plural "auges", i.e. "apogeu", e restantes variáveis específicas de cada planeta mas seria decerto quase impraticável utilizar proficientemente semelhantes lâminas devido à sua complexidade e porque exigiriam generosa dimensão para que os detalhes fossem legíveis. Mas fica a ideia de que quase tudo poderia ser "sobreposto" ao astrolábio plano que, deste modo, se transformava efectivamente num equatorium (v, infra).


O "apanhador de estrelas" (etimologia grega comummente referida), maravilha geométrica e epítome do conhecimento astronómico de tantos séculos, assume um design compacto e funciona como um computador analógico (certamente impreciso segundo os actuais padrões mas extremamente útil e versátil, instrumento de medição e plataforma de cálculo, simplificador mas ambicioso). Seb Falk propõem uma edificante cogitação: "Se a Natureza era um Livro que, como as Escrituras, continha indícios do Divino Plano, e se a Esfera (como Sacrobosco disse) era uma Máquina, então, nos intrincados movimentos de uma 'máquina celestial' criada pelo Homem, poder-se-iam encontrar pistas para a artesania na Criação - uma janela para a mente Divina" (Op. cit., p.218, [trad. nossa])

Conhecer a hora do dia ou da noite para qualquer data do ano era a sua função principal, mas há muitas outras documentadas: orientação (determinação das direcções, recorrendo à data e à altura do Sol; [no contexto Islâmico documenta-se, em alguns casos, a utilização na determinação da qibla, a direcção de Meca, recorrendo às necessárias marcações, principalmente encontradas em exemplares no Mahgrib (de outro modo seria necessário conhecer coordenadas geográficas da localidade e as de Meca, depois proceder ao cálculo aproximado ou utilizar a trigonometria)], determinação astronómica da hora de nascimento/trânsito/ocaso de um astro, localização das mansões lunares (com as inscrições adequadas), altimetria (através de um "quadrado de sombras" habitualmente gravado no dorso i.e., parte posterior), determinação dos pontos nevrálgicos das 12 casas de um horóscopo, etc. Alguns instrumentos tardo-medievais e renascentistas incluiam no dorso um chamado organum Ptolomei (um relógio de Sol "universal", i.e. para qualquer latitude, ver exemplo).


Parte superior (detalhe) de um exemplar alemão do século XV. Dorso inclui escala para a localização das Mansões Lunares (Ar. Manazil al-Qamar) vide círculo interior, depois a data ('1457') usando numerais comuns na Idade Média (ver), seguida dos círculos exteriores do calendário dos meses, do Zodíaco e um limbo graduado ((King & Turner, The astrolabe presented to Cardinal Bessarion by Regiomontanus in 1462, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1994)


Segundo James Evans: "Quando exigia resultados precisos, o astrónomo precisava recorrer a instrumentos especializados e a entediantes cálculos trigonométricos. A beleza do Astrolábio reside em conseguir soluções aproximadas (até ao grau mais próximo, ou desse género), alcançadas com uma simples leitura no instrumento." (The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, p.141 [trad. nossa]). Construídos em madeira, papel ou metal, a sua utilização só declinou definitivamente com o aparecimento de instrumentação mais precisa e com a exigência científica dessa precisão. Hoje favorecido como Lehrgerät, recurso pedagógico, a sua utilização permite uma aprendizagem eficiente da chamada Astronomia Esférica e transporta-nos, parafraseando Erica Machulak (ler), para a estrutura espacial, visual e cosmológica do passado.

O esquema acima representa a esfera celeste de perfil (para determinada data, nossa latitude). Demonstra a estrutura das Horas Sazonais. definidas em função do percurso do Sol em cada dia do ano, limitadas pelos extremos solsticiais que os dois Trópicos materializam (no esquema as horas estão assinaladas mas as suas curvas somente representadas de duas em duas, cor castanha). Cada um dos dois semi-arcos (o diurno e o nocturno) é dividido em 6 partes iguais. Repare-se como, por exemplo, no Solstício de Verão as horas diurnas são muito maiores do que as nocturnas (o inverso acontece no Inverno). Podemos inferir as dimensões destas horas variáveis para qualquer dia do ano em função dos diferentes paralelos intermédios "percorridos" pelo Sol ao longo do seu ciclo anual (cujas divisões horárias desenham pontos das supracitadas curvas). A linha do Equador (azul) inscreve e numera as horas equinociais ou iguais, as que hoje utilizamos em exclusivo. (crédito: Luís Ribeiro; editada).


As horas canónicas da Igreja - A liturgia da Igreja utilizava uma divisão do dia em doze períodos irregulares diurnos e doze nocturnos, denominados horas. Prestava particular atenção aos grupos de 3 horas. A primeira hora (prima) começa ao nascer do Sol. A tercia (sensivelmente das 9 ao meio-dia), a hora sexta (do meio-dia até meio da tarde, origem da expressão "siesta" espanhola) e a hora nona, até ao crepúsculo. Por seu lado, a noite era dividida em quatro vigílias. A primeira ou véspera era seguida pela segunda vigília (completas, sensivelmente a partir das nossas 21 horas). À terceira vigília (matinas) à meia-noite e a quarta, ou landes, até ao nascer do Sol. Como J. D. North adverte: "The seasonal hours are by some modern writers called ‘planetary’, and by others ‘canonical’, hours. The first is misleading, since the planets were sometimes regarded as guardians of the equal hours, although more often of the unequal. (...) The canonical hours were the times appointed for the services of the Church, and they too were sometimes related to equal hours in the late Middle Ages—after, that is, the introduction of the mechanical clock.The canonical hours were Matins, Prime, Terce, Sext, None, Vespers, and Compline." (Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, Op. cit., p.77).


Facies de um Astrolábio (clicar para ampliar)

O engenhoso desenho combina harmoniosamente os componentes fundamentais, materializando as linhas azimutais e as almocântaras (Ar. al-muqantarah), cérculos cercudares em Castelhano antigo, os círculos paralelos de altura ou elevação constante relativamente ao Horizonte ("almocântaras" foi a morfologia adoptada por Luciano Pereira da Silva, n'A Astronomia dos Lusíadas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1915; vide p.139, nota 1). O suporte que encabeça o equipamento era chamado Trono (Ar. kursi), o "Trono de Deus", muitas vezes ricamente decorado. Nessa direcção fica o Sul e o Meio-Dia (Meridies); o Norte e a Meia-Noite (Medium Noctis) estão em baixo, o Leste à esquerda e o Oeste à direita.

Componentes

- A placa-mãe (Lat. "Mater", Ar. "Oumm"), inclui a "facies" (anterior) e o "dorso" (posterior). Neste último, uma "dioptra" ou medeclina (a alidade, Ar. al-'idada), serve a medição de alturas. O limbo da mater inclui graduações angulares (transportando a graduação do Equador), as horas (equinoctiales, as que utilizamos quotidianamente, independentes dos momentos do nascer e do ocaso do Sol) e uma espécie de calendário perpétuo. O tímpano, para além da representação do horizonte local (com círculos de alturas e linhas azimutais), inclui as chamadas "horas desiguais" (melhor seria designá-las como proporcionais) - horae temporales ou planetariae - desenhadas apenas abaixo da linha do Horizonte (a linha "que separa o dia da noite") para evitar confusão na representação, o que não é problemático pois são simétricas. (Fazia sentido utilizar esta divisão dos períodos diurno e nocturno em 12 intervalos iguais, numa época mais ligada aos ritmos agrícolas e litúrgicos, à Natureza. Estas horae sazonais variavam ao longo do ano, sendo que as horas diurnas só teriam a mesma duração que as nocturnas nos dois Equinócios).

- A rete (também aranea, i.e. "aranha", axabeca ou alhancabut (Ar. ankabut), por vezes também adequadamente volvellum em Latim) integra um mapa do céu simplificado, assinalando tradicionalmente algumas das estrelas mais conspícuas através de claviculi, pequenos ponteiros na própria estrutura, grafando o nome na proximidade (ver imagem no topo desta página). (Elencamos alguns dos nomes de estrelas amiudadamente encontrados nos astrolábios latinos: Alramech (Arcturus), Aldebaran, Alhaiot ou Hircus (Capella), Arided ou Deneb adigege (Deneb), Sceat (Sheat), Alhabor (Sirius), Algomeisa (Procyon), Calbalased ou Cor Leonis (Regulus), Denebalased (Denebola), Azimech ou Alchimech (Spica), Alacrab ou Calbalacrab (Antares), Benenaz (Benetnasch, alternativamente Alkaid, al-qa'id, "o líder"). [v. adenda]

- O conjunto do Astrolábio estava fixado pelo pino central, clavus, marcando o pólo boreal e mantido seguro por uma peça (o cavalo, conhecida nos tratados Árabes como alpheraz) que provavelmente ganhou o nome devido à figura habitualmente aí moldada pelos artesãos. Na frente, uma régua, agulha ou ostensor. O movimento da rete simula o movimento diurno. A representação planificada representa a esfera celeste vista do "exterior".

- "Description d'un Astrolabe...": memória de Louis Amélie Sédillot (1808-1875), descrevendo detalhadamente um exemplar Islâmico (em Francês, .PDF 441KB)


Astrolábio desmontado (Ibn al-Saffar, circa 1020)

Anotações acerca da utilização

- Em primeiro lugar, a Hora devolvida pelo Astrolábio (ou por um Relógio de Sol) é sempre a HORA SOLAR APARENTE (Verdadeira). Para converter em HORA LEGAL (a do nosso relógio ou telemóvel), são necessárias diversas correcções:

Longitude: afastamento em relação ao meridiano de referência (no nosso caso, adicionar 4 minutos por cada grau de longitude a Oeste de Greenwich).

Fuso Horário: compensar diferença para o Tempo Universal (UT). Não aplicável em Portugal Continental. Todavia, acautelar diferença de 1 hora no chamado "Horário de Verão".

Equação do Tempo: o Tempo Solar Aparente não progride de maneira uniforme, variação resultante da combinação do efeito da excentricidade da órbita terrestre com a inclinação do eixo de rotação da Terra em relação à Eclíptica. Em termos práticos, a Equação do Tempo reflecte o desvio entre a hora estimada a partir da posição do Sol no firmamento, ou Tempo Solar Aparente, e a hora sideral (ou civil), determinada pelo Tempo Solar Médio (ver gráfico seguinte para corrigir em consonância).


Variação da Equação do Tempo (M. Bezerra, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=789341)

NB: caso queiramos converter a Hora Legal para a "hora do astrolábio" (representar no instrumento a configuração do céu para determinada hora "do relógio"), corrigimos inversamente (e.g., a configuração do céu em Aveiro às 22H00 do dia 26 Fev. (Sol: 8º Pisces) corresponderá no astrolábio aproximadamente às 21H13, aplicada a correcção de 34 minutos decorrentes da longitude geográfica (8ºW30') e a Equação do Tempo para esta data específica: ~13 minutos; total a subtrair: 47 minutos. Se se tratasse do dia 27 Out. às 22H00 (Sol: 4º Scorpio), a hora do astrolábio deveria indicar 21H42 (subtraindo os 34 minutos da longitude à hora legal e, desta vez, acrescentando (e não subtraíndo) aproximadamente 16 minutos da Equação do Tempo. Comparar datas no gráfico para visualizar esta diferença)

DETERMINAÇÃO DA HORA

- Os cálculos fundamentais (e.g., determinação da hora) baseiam-se na articulação da data (através de um grau zodiacal específico) com a elevação do astro (medida recorrendo ao dorso da mater, segurando pela alça e apontando a alidade que inclui duas pínulas para auxiliar a visada e permitir a "linha de fé", como se dizia entre nós). O grau referido anteriormente traduz a data específica (é, em rigor, o "sítio" do Sol na Eclíptica, a "via Solis", nessa mesma data) e localiza-se facilmente na parte de trás do instrumento, no alinhamento dos círculos do Calendário dos meses/dias com o do Zodíaco (ver imagens infra).

(ATENÇÃO; na medição da altura/elevação do Sol, NÃO olhar directamente, antes utilizar sombra das pínulas da alidade)

De seguida passa-se para a face do Astrolábio, roda-se a engrenagem e "transporta-se" a posição do astro (o Sol ou uma estrela representada na rede ou aranha) para o círculo de altura correspondente ao valor medido, com o cuidado da sua colocação no hemisfério correcto, em relação ao Meridiano (e.g., Sol: manhã - Leste; tarde - Oeste). Finalmente, coloca-se a régua a passar no Círculo da Eclíptica (no grau específico da data em questão (previamente determinado no dorso do aparelho) e, agora que se replicou o céu local, lê-se a hora no circulo horário exterior, no limbo.

(NB: A medição das horas é sempre lida em função da posição do Sol na data específica (longitude, grau zodiacal), pois a hora no Astrolábio é solar ou "verdadeira", vide acima as correcções a efectuar. Deve evitar-se a medição da altura de uma estrela próxima do Meridiano, pois esta altera-se aí mais devagar, maximizando o erro na determinação da hora).

- Transportando a localização de um astro para o Horizonte (Leste/Oeste) ou para o Meridiano rodando a rete ou aranea (rede ou aranha), permite conhecer rapidamente hora do nascimento e/ou ocaso, bem como a culminação, com aproximação satisfatória (repare-se que um desfasamento de 4 minutos corresponde a somente 1º na Esfera Celeste, pois 15º correspondem a 1 hora, 360º ao movimento diurno de 24 horas).

 


Nesta imagem a alidade está colocada a meio caminho entre os dias 15 e 16 de Abril, equivalendo ao Meio-Dia do dia 16, correspondendo no Zodíaco a Aries 26.5º (Mitchell, T., Astrolabe, The Missing Manual)
Sol em Pisces (10º) e aranha (a cinzento) colocada de modo a que o astro esteja com 25º de elevação (previamente medida), no hemisfério oriental. No limbo lê-se a hora: 8H45 (assinalada). Repare-se na escala de declinação gravada na régua do astrolábio, o zero correspondendo ao Equador Celeste ((Mitchell, T., Astrolabe, The Missing Manual)

[A imagem permite acompanhar as etapas da determinação da Hora a partir de uma estrela (Spica, neste exemplo), tendo previamente medido a sua elevação (30º, neste caso), transportando a sua posição para o círculo de altura dos 30º desenhado no instrumento (assinalado pela seta 1; estrela representada pelo brilho visível no quadrante Sudoeste do instrumento, seta 2), acautelando posição relativamente ao Meridiano (porque há dois pontos elegíveis no círculo referido, a Leste e a Oeste do Meridiano; escolhe-se em consonância com a posição efectiva da estrela na abóbada celeste). Seguidamente, a régua faz a leitura da hora (no limbo) mediante o grau zodiacal inerente à data específica (seta 3), i.e., posição do Sol no Zodíaco, que se encontra a esta hora nocturna abaixo do horizonte (fonte: Projet Qantara, Patrimoine méditerranéen: Traversées d'Orient et d'Occident, Institut du Monde Arabe)]

 

- POSIÇÕES DA LUA E DOS PLANETAS


Equatorium de Júpiter, Petrus Apianus, Astronomicum Caesareum (1540)



Equatorium (e astrolábio), proveniente do sul de França ou norte de Itália, finais do séc XV (Inv. 49847, Billmeir Collection, History of Science Museum, Oxford). Constituído por uma mater, duas retes, dois tímpanos. O lado do equatorium (na imagem) possui uma lâmina extra para traduzir os movimentos dos 'auges' (Ar. auj, "apogeu") dos planetas, uma régua, ainda um disco com três braços e três lóbulos, cada um incluíndo um disco planetário e um index ou ponteiro

Determinação obviamente impossível no astrolábio propriamente dito, ao contrário do que se lê em descrições pouco informadas. Exigia-se recurso a tabelas de efemérides ou a equatoria. A principal função destes últimos instrumentos era a determinação geométrica da longitude eclíptica de um planeta, do Sol ou da Lua. A velocidade angular dos planetas quando observados da Terra, enquanto centro assumido do Universo Ptolomaico, não é constante. Esta constatação cedo conduziu a modelos que assumiram órbitas circulares excêntricas (relativamente ao centro do nosso planeta) e, adicionalmente, a rotações epicíclicas nessas órbitas excêntricas de suporte. Falamos pois de deferentes e de epiciclos. [O deferente era chamado circulus major, o epiciclo circulus promovens] A Theorica Planetarum (1261–64) de Campanus de Novara é, em boa parte, dedicada a estes instrumentos e será muito influente. Provavelmente já existiam no período Clássico tardio mas são os andaluzes al-Zarqali e Ibn al-Samh que estão ligados à sua disseminação, sendo do último o primeiro tratado conhecido do equatorium planetário. Na sua enorme diversidade, os equatoria foram utilizados até ao século XVII.

As volvelles e equatoria baseavam-se aproximadamente no princípio do astrolábio. Eram esquemas mecânicos (amiudadamente em pergaminho ou papel) que rodavam e exigiam interacção do utilizador e que foram utilizadas para imensos propósitos (divinação, mnemónica, cálculo, etc.). Na Astronomia/Astrologia, os cálculos "tradicionais" eram morosos e exigiam o recurso a tabelas e a complexas interpolações. Nestes expedientes técnicos, mais especificamente nos equatoria (que tiveram renovado impulso no séc. XV), os resultados aproximados são geometricamente obtidos (quase) directamente. Na descrição dos movimentos planetários recorria-se obviamente à excentricidade dos círculos e a outros expedientes para acautelar os fenómenos (existem diversas irregularidades pois, como sabemos hoje, as órbitas são na realidade elípticas).

Os equatoria baseavam-se no mesmo princípio cinemático de funcionamento e eram utilizados para encontrar as posições do Sol, da Lua ou dos planetas geometricamente, sem o uso explícito de cálculos astronómicos. Enquanto as funções privilegiadas do astrolábio acompanhavam os dias do ciclo anual, os equatoria acompanham o movimento dos planetas nos seus períodos específicos. O nome radica no Latim aequatio, que neste contexto traduz a correcção que deve acontecer para converter a posição média na posição actual de um determinado planeta. Uma categoria particular, as volvelles, eram verdadeiros "computadores analógicos de papel" (Kanas, N., VOLVELLES! Early Paper Astronomical Computers. Mercury, March–April 2005). Notáveis exemplos podem ser encontrados no Astronomicum Caesareum (Ingolstadt, 1540) de Petrus Apianus, que incluia praticamente toda a informação necessária plasmada nos instrumentos (quase não exigindo tabelas de suporte) e ainda hoje demonstra uma precisão razoável, para um contexto pré-telescópico (vide Frederick A. Stebbins, A Sixteenth-Century Planetarium, in: The Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, vol.53, nº4, 1959; Lars Gislén, A commentary on the volvelles in Petrus Apianus' Astronomicum Caesareum, in: Journal of Astronomical History and Heritage, Lund University, 2018).


Ainda na antiguidade, encontram-se alguns diagramas para calcular geometricamente posições segundo modelos ptolomaicos. Teão (Θέων) de Alexandria (séc. IV) introduziu alguns no seu comentário às "Tabelas Manuais" e Proclus (séc. V) descreveu a construção de um equatorium solar (Hypotyposis Astronomicarum Positionum. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Karl Manitius (ed.). Leipzig: Teubner. 1909). As raízes do equatorium recuam ao astrolábio. As primeiras descrições surgem nas traduções de um texto do séc. XI de Ibn al‐Samḥ e num tratado de Arzaquel (al-Zarqālluh), incluídos no Libros del saber de Alfonso X. Outra referência, Theorica Planetarum (c. 1261–1264) de Campanus de Novara, descreve um equatorium e antecede os complexos exemplares que surgem na Europa nos séculos seguintes.

"No que respeita a um [primeiro] equatorium genuíno (todavia apenas para o Sol), o mais antigo que se conhece é o de Proclus (séc. V). No seu Hypotyposis, Proclus deixa indicações para fazer um equatorium solar: numa prancha de madeira ou numa chapa de bronze, deve desenhar-se um círculo zodiacal e, dentro deste, um círculo excêntrico, dividindo ambos em graus, e assim por diante. O trabalho astronómico de Proclus é apenas um resumo ("hypotyposis") ou esquema de hipóteses astronómicas baseadas em Ptolomeu. Há muito pouco de original neste autor. A ideia de um equatorium solar foi decerto tomada emprestada. As mais recuadas descrições que temos de equatoria planetários surgem na Espanha medieval. No séc. XIII, o rei Cristão Alfonso X de Castela agiu como patrono num vasto âmbito de actividades culturais, com ênfase na astronomia. Um dos produtos deste patrocínio foi uma colecção chamada Libros del Saber de Astronomía. Esta compilação inclui traduções em Castelhano de dois textos do séc. XI, em Árabe, acerca dos equatoria. O primeiro é um texto por Ibn al-Samh de Granada (princípios do séc. XI). O segundo é um tratado de al-Zarkali [al-Zarqālluh] (meados do séc. XI), conhecido dos Europeus medievais por variados nomes como Arzachel, Azarchel, ou Azarquiel. Al-Zarqali é uma figura maior da astronomia medieval. É principalmente conhecido pelos seus cânones para as Tabelas Toledanas. Os equatoria entraram na astronomia Latina em simultâneo com as teorias planetárias de Ptolomeu. A primeira introdução completa ás teorias planetárias escritas no ocidente Latino foi a Theorica planetarum de Campanus de Novara (séc. XIII). A maior parte do livro de Campanus é dedicado às instruções para a construção de um equatorium. O instrumento assemelha-se a um astrolábio, no qual as lâminas para cada planeta podem ser colocadas numa única mater. Os discos, presumivelmente de madeira, girariam em cavidades vazadas noutros discos de madeira. O instrumento de Campanus decerto funcionaria mas os problemas práticos colocados pela sua construção levaram alguns a duvidar de que alguma vez tenha sido construído como descrito. Em todo o caso, o livro de Campanus constitui um alicerce para a tradição dos equatoria na Europa Latina. A sua influência pode ser observada em quase tudo o que se segue. Campanus provavelmente baseou-se num qualquer tratado árabe, com grande probabilidade oriundo de Espanha, mas a sua fonte específica não pode ser determinada. O melhor manuscrito da Theorica planetarum contém figuras que ilustram as diversas partes do equatorium. Algumas incluem instrumentos funcionais em papel ou pergaminho, com volvelles [obviamente] móveis. Os construtores de equatória nestes materiais tendiam, amiudadamente, para simplificar as coisas dedicando um instrumento separado a cada planeta. Aqueles que seguem o desenho de Campanus caracterizam-se pela fidelidade obstinada ao diagrama geométrico. São também caracterizados por utilizarem apogeus fixos, pelo que os instrumentos eram construídos para um século em particular. Quase todos os exemplares medievais eram de papel ou pergaminho mas existem alguns em madeira. (...) O mais antigo texto acerca dos equatoria em Inglês é um tratado anónimo do séc. XIV, The Equatorie of the Planetis, que subsiste numa cópia única do acervo do Peterhouse College, na Universidade de Cambridge. Derek J. Price argumentou - de modo convincente para muitos - que teria sido composto e redigido por Geoffrey Chaucer. A atribuição baseou-se em comparações de exemplos caligráficos e outras evidências. Este Equatorie of the Planetis dá indicações para a construção e uso de um equatorium com assinalável dimensão - seis pés de diâmetro [circa 1,83 cm] - de modo que todos os planetas possam ser assegurados por um único grande disco. Não se sabe se alguma vez foi construído. É, em todo o caso, de assinalar que um equatorium esteja presente nos primórdios da astronomia científica em Inglês. O conteúdo habitual de um tratado medieval acerca destes instrumentos consistia em indicações para a sua construção e procedimentos para a sua utilização. Embora houvesse um consenso quase universal quanto aos detalhes da teoria planetária subjacente(a de Ptolomeu), os desenhadores de equatoria tinham margem de manobra para a diferença e para a criatividade na materialização concreta. Os primeiros equatoria eram essencialmente diagramas da teoria ptolomaica, planos e giratórios. O principal problema de construção para a teoria de Vénus e dos planetas superiores estava relacionado com os "três centros" [ver esquema seguinte]: o centro do epiciclo deve mover-se num círculo cujo centro é C, mas o transferidor para a medição das longitudes médias deve estar centrado em E, e o que vai medir a longitude real, efectiva, deve estar centrado em O. A história destes instrumento é, em grande parte, a das soluções concretas para as dificuldades colocadas por estes pré-requisitos. Os primeiros equatoria impressos foram os de Johannes Schoner (1477-1547). (Evans, J., Op. cit., 1998, pp.404-5 [trad. nossa]).

James Evans fig. 7.32
Teoria final para as longitudes de Vénus e dos planetas superiores (Evans, Op. cit., 1998, Fig. 7.32)


Segundo J. D. North: "The essential principle behind the most elementary sorts of equatoria is that for each planet the ecliptic may be represented by one disc, the eccentric deferent by a second, the epicycle by a third (to a scale that must be carefully chosen), and the lines through the point representing the Earth by a rule extending to the ecliptic scale, or simply a thread, stretched out from T [Terra] along a radius. [v. ilustrações] Each planet might thus be given its own instrument to simulate the Ptolemaic construction. The aux [apogeu] of date would be marked on the ecliptic scale; mean motus could be found from simple tables for the date of interest, and the mean argument* likewise. The centre of the epicycle (O) might then be placed correctly according to the mean motus (but laying off the directions from the equant point, with the help of an equant scale, if constructing parallels through T was to be avoided). The planet’s position (P) on the epicycle might be found by rotating the latter through an angle representing the mean argument. The rule or thread extended from T and through P would indicate the planet’s true place on the ecliptic scale. Fewer stages would be needed for the Sun, and more for the Moon and Mercury, but the whole enterprise was one that should have been understood with ease by any clerk who had been schooled in the Theorica planetarum. In practice, matters were more complicated than this brief account might suggest. There was the problem of scale, for no equatorium less than a foot or so across would be of much practical value—one might as well dispense with equations, and use mean motions. There was the problem of cost and complexity, that led astronomers to place all the planets on a single base-plate. There were then mechanical problems of pivoting discs around adjacent centres; there were problems in using a single base-plate with epicycles of many different sizes, if costly metal were to be conserved, and the problem of confusion of the numerous points at the centre of the eccentrics. Astronomers applied themselves to these problems with energy and imagination." (North, J. D., Chaucer's Universe, Clarendon Press, Oxford, 1988, pp.156-7). Seguiram-se soluções diferentes que já não constituíam uma simulação directa dos diagramas do Almagesto, antes exigindo que o astrónomo calculasse previamente alguns dados (também por métodos analógicos e tabelas), antes de os combinar com o motus médio do planeta e o argumento nas escalas do instrumento.

* Medido do 'aux' médio, um ponto determinado através de uma linha traçada a partir do ponto oposto ao centro do deferente no seu pequeno círculo; quando somado - ou, durante metade do ciclo, subtraído - à "equação do centro" (a diferença entre aux médio e verdadeiro, determinada recorrendo a uma linha entre a Terra e o centro do epiciclo), o argumento "médio" transformava-se no verdadeiro.


Aspecto muito interessante, o já mencionado e genial Ibn al-Zarqālluh (Toledo, séc. XI) utilizou uma elipse na tradução do movimento do deferente de Mercúrio no seu equatorium. É, como Samsó observa, provavelmente a primeira vez que uma secção cónica é usada em astronomia, todavia somente para agilizar o correcto funcionamento do instrumento. Na lâmina seguinte, uma espécie de oval traduz o movimento de Mercurio (tratado de la lámina universal para los siete planetas, de Azarquiel, i.e. Al-Zarqalluh; Libros del Saber..., ed. Rico y Sinobas, Tomo III, p.282).

Mercúrio - lâmina equatorium

Rico y Sinobas comenta: "...creemos hubiera sorprendido á Keplero en ciertos momentos de su vida científica la vista de la primera órbita elíptica de mercurio, inspeccionando el planetario de Azarquiel." (Libros del saber..., T.III, p.XXXI). Adiante: "(...) trazando Azarquiel en Toledo su planisferio planetario, resultó la órbita de mercurio ovalada y próximamente elíptica, escribiendo con tal motivo en su libro las importantísimas palabras que siguen: 'Et con esta figura saldrá el logar de aquella estrella cierto mas que de otra manera, de qual manera quier de so enderezamiento, maguer que a en fazer los cercos de mercurio gran graueza [esforço, dificuldade] por ser el çerco de so leuador ["levador", o deferente] et el çerco de so aux [apogeu] ayuntados de muchas linnas.'" (T.III, xxxii-xxxiii). Saliente-se, contudo, que se tratava apenas de um expediente para traduzir uma órbita na lâmina do "planetario" que incluía traçados para os vários planetas, acomodá-la à experiência da observação e prever as posições de Mercúrio, não de um modelo cosmológico da dinâmica do sistema, o que seria anacrónico.


- Descrição breve de procedimento comparável (mas muitíssimo mais simples, seguindo uma "tradução" moderna com algumas analogias) para determinação geométrica da longitude eclíptica de um planeta.

Esquemas disponibilizados por Donald Menzel - A Field Guide to the Stars and Planets, 1964): a partir de uma "data zero" ou raiz (posição correcta, acautelando irregularidades, do planeta está indicada para essa data "base" no desenho), calcula-se o intervalo (e.g., em dias para os planetas mais "rápidos") entre essa e a data cuja posição se pretende conhecer; divide-se esse intervalo pelo período médio (conhecido) da revolução do planeta (utilizando a mesma unidade, neste exemplo são dias) e, usando a operação modulo, o remanescente permite conhecer o seu ponto na órbita para a data pretendida (i.e. o nº de ciclos cumpridos é descartado, ficando o nº de dias percorrido no actual ciclo). Conhecendo, no mesmo esquema, a posição da Terra para essa data, através do calendário grafado ao longo da sua órbita, unem-se os dois pontos encontrados até interceptar o  círculo exterior (com os graus do Zodíaco, representando o céu, o firmamento); atendendo a que o centro desse círculo zodiacal é ocupado pelo Sol (ponto central), uma linha paralela à primeira deverá ser desenhada para encontrar o ponto "exacto" no Zodíaco (lendo então a longitude directamente).

Menzel - determinação posições Merc. e Ven.
Esquema para a determinação das longitudes de Mercúrio e Vénus (Menzel, D.,
A Field Guide to the Stars and Planets, Houghton Mifflin, 1964, ,p.298)


Astronomicum Caesareum (contextualização; demonstração do funcionamento de um equatorium; .PPT, 6.35MB; Unilab Project, California Institute of Technology)

A construção recorria, quase sempre, a suportes pouco perenes. Todavia, uma vez que os instrumentos astronómicos eram amiudadamente alterados e customizados, alguns equatoria, em metal, seriam instalados no dorso de astrolábios (Falk, 2016: 46 et seq.).


No astrolábio, as coordenadas equatoriais (eventualmente lidas numa tabela) são facilmente 'colocadas': a ascensão recta (ou ângulo horário) através das horas grafadas na circunferência ou deduzida com recurso à escala graduada na periferia do instrumento; a declinação (tendo como origem o Equador Celeste) na escala disponibilizada na própria régua sobreposta ao instrumento. Na prática, utiliza-se, por comodidade, a longitude eclíptica (lida na circunferência do Zodíaco, como se faz para o Sol) e a declinação, coordenada com origem no Equador Celeste e lida na régua, como referido. Para os astros mais "velozes" (e.g., Lua), pode ser conveniente utilizar uma fórmula de interpolação com os dados tabelados, para maior rigor. Por exemplo:

V = (T2 - T1) / D (V: valor de correcção que se pretende determinar para somar a T1; T1 e T2: são os valores tabelados, anterior e seguinte, respectivamente; D: diferença entre valor precedente e momento exacto para o qual se pretende determinar a coordenada).

Swiss Ephemeris (tabelas em formato .PDF; Astrodienst)

Quando se pretende determinar a longitude (no Meridiano) da Lua, planeta ou estrela (não incluída na "rete"), adopta-se o princípio de que quando o astro em questão está no Meridiano (culmina) se pode conhecer directamente a sua longitude na Eclíptica (o que, em rigor, é uma aproximação pois não toma em consideração a latitude ecliptica). O procedimento utiliza um astro "conhecido", mapeado no astrolábio. Mede-se a altura e coloca-se na almocântara correcta, do lado adequado à sua posição (oriental ou ocidental). A partir daqui, na linha meridiana do astrolábio pode ler-se directamente a longitude (grau) na Eclíptica do astro do qual a desejávamos conhecer.

 

- ORIENTAÇÃO

Conhecendo a data e a hora (Solar): articular data (grau e signo) com a hora específica. Verificar o azimute do grau dessa posição do Sol no Zodíaco. Com o instrumento na horizontal, apontá-lo, sem alterar configuração, de modo que a régua aponte na direcção do Sol verdadeiro. Doravante temos uma autêntica bússola, utiliza-se a graduação em graus no limbo para eventuais medições azimutais. Na direcção do Trono, a posição do Meio Dia (equivalente ao Sul) indica o Sul geográfico (azimute 180º).


 - MEDIÇÃO DE ALTURAS


Medindo a altura de uma torre (Elucidatio fabricae ususq[ue] astrolabii, Stöffler, 1553)

É possível afirmar que o dorso do astrolábio está mais vocacionado para utilização nos assuntos "terrenos". Nesta aplicação não astronómica (medição da altura de uma árvore, torre, poço, etc.), o instrumento desenha no seu dorso escalas altimétricas em dois "quadrados de sombras" adjacentes. Um deles trabalhava com a proporção 7 (por razões históricas e religiosas, a hora das orações Islâmicas tradicionalmente determinadas a partir da sombra de um gnómon com 7 pés de altura), outro com a 12 (muito mais comum, habitualmente duplicado). Cada um possui uma escala graduada horizontal e outra vertical, identificadas como "Umbra recta" ou "extensa" e "Umbra versa". A utilização de uma ou outra depende do ângulo medido, determinando o ponto do quadrado onde a alidade vai passar (consequentemente a proporção a usar, directa ou inversa). A proporção é sempre sobre a distância horizontal ao objecto do qual se pretende determinar a altura. Por exemplo, utilizando escala de 12, se graduação marcar 4, altura é 3x a distância horizontal medida (pois 4 é 1/3 de 12); se a graduação 4 for medida no segmento da "Umbra versa", inverte-se. Aqui, altura será 1/3 da distância horizontal ao objecto. (idealmente o instrumento de medição deveria estar na cota zero, ao nível do solo).

Outras aplicações expeditas, nomeadamente topográficas ou de orientação, podiam utilizavar o limbro graduado da facies para medições angulares.

 

- CASAS ASTROLÓGICAS

"Eu vou prover logo essora
Naquella casa dozena
Dos males que he malfeitora ..."

(Gil Vicente, Cortes de Jupiter)

 

Aspectos técnicos - Os eixos fundamentais do horóscopo

O Astrolábio apresenta limitações em termos de precisão. Todavia, e não somente no nosso imaginário e na iconografia, terá servido amiudadamente o trabalho do astrólogo. É importante referir que na 'astrologia do astrolábio', falamos somente da domificação (divisão das casas) e na determinação da longitude solar para a data em questão. E é tudo! Não seria possível calcular um horóscopo completo com um astrolábio.

As casas (gr. oikos, lat. domus) reflectem o movimento diurno do Primum Mobile. Traduzem as circunstâncias locais e específicas. Em qualquer sítio, num dado momento, uma metade do céu estará visível. O meridiano divide a esfera em duas metades: a oriental e a ocidental. Há um ponto da Eclíptica que "culmina" (o Medium Caelum) e, no seu nadir, o ponto mais baixo (Imum Medium Caelum). Os pontos da Eclíptica que tocam a linha de horizonte (o "Ascendens" e o ponto diametralmente oposto, que descende) definem, com os anteriores, os quadrantes fundamentais e as cúspides das quatro casas mais importantes do "thema" (horóscopo, esquema) na maioria dos sistemas de domificação.

Octatopos       Círculo das Athla  
A divisão em oito loci.
Os quadrantes equivaleriam às quatro fases da vida humana. Janua Ditis é o "Portão de Plutão" (i.e. do subterrâneo). Esta estrutura, que Bouché-Leclercq esquematizou (p.276), parece ser um equívoco e uma interpolação no texto de Manilius. Segundo J. P. Goold, editor da edição Loeb da Astronomica, seriam tão somente os primeiros oito "Templos" (é assim que Manilius designa as actuais "casas") da habitual divisão em doze, segundo a sequência da primeira à oitava, do Nascimento até à Morte (vide Antiochus, CCAG VIII. 3. 117; Firmicus, Math. II. 14). À direita temos o peculiar "Círculo das Athla", i.e. labores, sortes (as actuais "partes") de Manilius, 3. 43-159, retirado da edição Loeb (1977). A referência inicial seria a athlum da Fortuna. As restantes seguiam na sequência ilustrada. O círculo não é, portanto, fixo, estacionário relativamente ao observador (como o dodekatropos) e parece, na opinião de Goold, estar relacionado com o ramo da Astrologia designado como katarchai ("interrogações"). Só o encontramos neste autor, que provavelmente se baseou numa fonte entretanto inacessível.  


A domificação (aequatio domorum) divide a Esfera, como se fossem gomos de uma laranja. As casas "emolduram" o céu, para o contexto (local e momento especificos). Uma divisão em oito, i.e., "oktatopos" é, provavelmente, mais antiga e pode ter aberto o caminho para o "dodekatopos", intuitivamente apropriado considerando o paralelismo com o número de signos zodiacais. (Beck, 2007:45). A origem da representação gráfica deve ser procurada nos manuscritos Bizantinos (Bezza, G., Representation of the Skies and the Astrological Chart, in: Dooley, B., A Companion to Astrology in the Renaissance (Brill’s Companions to the Christian Tradition, Vol. 49), Brill, 2014, p.61), mas os manuscritos medievais adaptaram as figuras quadradas a partir de manuscritos árabes, mudando a orientação do desenho (a direcção oriental, do horóscopo, que aparecia em cima, passará a ser colocada à esquerda). Aleuantar figura era desenhar este esquema dos três quadrados inscritos, para determinado momento. O desenho do thema coeli era considerado uma engenhosa solução, no modo como "descreve a máquina celeste".


Fr. António Teixeira, Epítome das Notícias Astrológicas para a Medicina (Lisboa, 1670, p. 338)


"Casas da figura Celeste"; Gaspar Cardozo de Sequeira, Thesouro de Prudentes (edição de 1626, p.180)

As Casas detalham as áreas de experiência, atribuíndo significados mundanos a cada uma das divisões (loci). Houve sempre ambiguidade na terminologia. Bonatus (séc. XIII, em sig.d4v) reserva signo ou mansão para o Zodíaco e casa ("domus"), cúspide ou torre ("turris") para as estas divisões (Liber astronomiae, Augsburg, 1491). As casas astrológicas (sedes, partes, loca templa em Manilius) são numeradas no sentido anti-horário a partir da cúspide (ponto inicial) da primeira, e sempre projectadas na Eclíptica. Trata-se das condições "acidentais", impostas pelo horizonte local e pela hora, i.e., a divisão em "lugares", de I a XII (em Latim: vita, lucrum, frates, parentes, filii, valetudo, nuptiae, mors, peregrinationes, honores, amici, carcer). Cada uma relacionada, como se infere, com diferentes facetas da vida. O seu valor relativo depende, em grande medida, dos chamados aspectos (adspectus ou radiationes).


Esquema com morfologias típicas do desenho das casas em horóscopos medievais. Os exemplos latinos desenham a 1ª casa à esquerda (segundo North, J. D., Some Norman Horoscopes, in: Burnett, C. (ed.), Adelard of Bath, Op cit., p.148; modificada para ajustamento gráfico)


A Astrologia não distribuiu as casas e as suas qualidades baseando-se nos movimentos dos corpos celestes ao longo do Zodíaco mas sim no movimento do Primum mobile, dando ênfase ao movimento mais rápido do céu (Bezza, G., Op. cit., pp.60-1).
Quanto à atribuição simbólica do orbe aos pontos cardeais, Ibn Ezra (século XII), no Sefer ha-Te'amim, expõe e subscreve a opinião dos "peritos no astrolábio": "Alguns dizem que (o quadrante) entre o grau do ascendente e a linha inferior do meridiano [i.e., o Imum Medium Caelum] é oriental, e (o quadrante) da linha do meio-céu ao grau do ascendente é austral, e (que) da linha inferior do meridiano até ao grau do descendente é boreal, e (que) do grau do descendente à linha do meio-céu é ocidental" (traduzimos a partir da edição crítica de Shlomo Sela: The Book of Reasons, Brill, 2007, III.4, pp.63-5).

Na Esfera Oblíqua (i.e. nas latitudes geográficas intermédias, afastadas da linha equinocial), somente quando os pontos iniciais de Aries ou Libra tocam o horizonte oriental (i.e., coincidem com o Ascendente) é que os quadrantes são exactamente iguais. Nos restantes cenários serão assimétricos (imagem seguinte).

(N.B.: a chamada Esfera Recta refere-se à latitude equinocial, nula; a chamada Esfera Paralela referir-se-ia aos movimentos observados a partir dos pólos)


Oscilação do eixo MC-FC ("MH"-"LMH", Meio-Céu e Fundo-Céu (terminologia actual). No esquema à esquerda (equinócio vernal), os quadrantes são rigorosamente iguais (como serão no equinócio outonal) ; à direita, assimetria na dimensão dos quadrantes (Beck, R., A Brief History of Ancient Astrology, Blackwell Publishing, 2007, p.32)


Na prática astrolábica, as posições do Ascendente (o horoscopus dos Clássicos), o ponto da Eclíptica que "sai" ou se levanta no horizonte Leste (que decerto radica na prática ancestral da contagem das horas do nascer ao ocaso do Sol), e a do Descendente (diametralmente oposta, i.e, a 180º) determinavam-se facilmente, na intersecção da linha de Horizonte com o anel da Eclíptica. O Medium Caelum também seria óbvio (no Meridiano), bem como o ponto oposto (Imum Medium Caelum). Assim se determinavam os ângulos, as quatro casas principais (I, VII, X e IV, seguindo ordem referida previamente). O factor mais crítico seria o facto de a latitude do lugar determinar diferentes elevações do pólo. Quando esta se altera, também assim acontece com o grau ascendente, que define a importante Casa I. Estas complexidades tornam a Astrologia uma 'disciplina' muito técnica.

O problema técnico da divisão das casas está intimamente relacionado com alguns conceitos que procuraremos elucidar. A designação Ascensão Recta também se utiliza enquanto referência ao grau do Equador Celeste que "chega" ao Meridiano concomitantemente com um determinado grau da Eclíptica. A relação da Ascensão Recta com a Longitude Eclíptica não se altera com a Latitude geográfica do observador, pelo que pode ser tabulada universalmente, desde que tenha sido determinado um valor específico para a Obliquidade da Eclíptica (o ângulo desta com o Equador Celeste; o valor de Ptolomeu, em 138 A.D., era de 23º 51'). Já a Ascensão Oblíqua, traduzindo o grau do Equador que sobe ou ascende em simultâneo com determinado grau da Eclíptica, está dependente da Latitude. (vide esquema).

A partir dos quatro "esteios", seria implementada a ulterior divisão intermédia, dependendo da modalidade adoptada (existiam diversos sistemas de domificação, um dos debates insanáveis da prática astrológica pós-medieval. Placidus de Titis resume a diversidade de opiniões em Physiomathematica sive Coelestis Philosophia naturalibus hucusque desideratis ostensa principijs (Milão: 1675), ii, 7, 174). Apesar da minúcia e complexidade dos procedimentos, a contagem do tempo seria, no passado, muito problemática. As populares natividades ou genituras seriam tecnicamente "inexactas" devido à imprecisão nas horas e suas fracções. Esta insuficiência técnica já havia sido referida por Pico della Mirandola nas suas Disputationes contra Astrologos (1498). Até ao advento de mecanismos precisos, seria extremamente difícil alcançar leituras fiáveis com relógios de Sol ou clepsidras, mesmo com astrolábios ou com os primeiros relógios mecânicos. Apesar da existência de métodos de "rectificação" (e.g., Animodar, Trutina [i.e., "balança"] de Hermes, designação criada, segundo Shlomo Sela, por ibn Ezra) decerto aconteciam grosseiros desfasamentos, nomeadamente no cálculo do Ascendente, divisões mundanas (domificação) e noutros cálculos necessários às inquirições astrológicas.

 

Equatione domorum

Geoffrey Chaucer, no seu célebre Treatise, inclui duas "maneiras" para as "equaciouns of howses by the Astrelabie". Uma destas (ii.37) dividia os intervalos dos quadrantes Ascendens - Medium Coeli e Imum-Coeli ("Fundo-Céu", na Meia-Noite do astrolábio) - Ascendens em três sectores iguais ("evene parties") cada. (Procedimento só deve ser utilizado nos dois arcos do Hemisfério Oriental, como descrito). Para a supracitada divisão, utilizava a graduação do limbo ("bordure") do astrolábio, no fundo dividindo os intervalos de tempo ao trissectar estes ângulos no Equador Celeste (em rigor, no Círculo Diurno do Ascendente, trajectória que este percorre no céu durante o dia, paralelamente ao Equador, ver imagem adiante). Seguidamente, com a ajuda da régua ("label"), o astrolabista guiava-se pelas divisões "apontadas" no limbo e, respondendo a cada uma, lia os graus correspondentes no círculo do Zodíaco, localizando deste modo, em definitivo, as cúspides (início) das Casas dos dois quadrantes em causa (XI e XII e II e III, pois as cúspides das Casas I, IV, VII e X já se conheciam ab initio). Saberia, automaticamente, as cúspides restantes, diametralmente opostas, através do "nader" (nadir) das previamente determinadas.

N.B.: O sistema recorre às ascensões rectas e não às longitude zodiacais, baseando-se assim no Equador Celeste (i.e., no ciclo diurno) e não na Eclíptica (ciclo anual). O arco diurno do Ascendente (obviamente paralelo ao Equador) é dividido em iguais segmentos em função do tempo que estes demoram a nascer. No Equador, arcos iguais demoram exactamente o mesmo tempo (pois este círculo é perpendicular ao Eixo da Terra). As divisões são depois projectadas na Eclíptica recorrendo a círculos que irradiam dos pólos da Esfera. As casas terão o mesmo tamanho em Ascensão Recta mas não em Longitude (pois a Eclíptica é inclinada, circa 23.5º). Na opinião de John David North, o sistema baseado nas Ascensões Rectas funcionará como método-padrão ("Standard Method") entre 500 a 1500 A.D. (Horoscopes and History, Warburg Institute Surveys & Texts, London, 1986, pp.3-6). Segundo John Christopher Eade (he Forgotten Sky: A Guide to Astrology in English Literature, Clarendon, 1984, p.44), está implícito (pois não é identificado mas inferido a partir dos resultados obtidos) nas duas técnicas utilizadas no Treatise, bem como na generalidade dos autores coevos. O mesmo se aplica às influentes Tábuas Afonsinas (“Tablas Alfonsíes”), compiladas na década de 1270.

Vide excerto relevante dos procedimentos a adoptar, no "Englisshe" medieval do Treatise de Chaucer (ii. 37):

"Tak thin ascendent, and than hast thou thy 4 angles; for wel thou wost that the opposit of thin ascendent, that is to seyn, the begynnyng of the 7 hous, sitt upon the west orisonte, and the begynnyng of the hous sitt upon the lyne meridional, and his opposyt upon the lyne of mydnight [i.e., os quatro ângulos]. Than ley thy label over the degre that ascendith, and rekne fro the point of thy label alle the degrees in the bordure tyl thou come to the meridional lyne; and departe alle thilke degrees in 3 evene parties, and take there the evene equacions of 3 houses; for ley thy label over everich of these 3 parties, and than maist thou se by thy label, lith in the zodiak, the begynnyng of everich of these same houses fro the ascendent; that is to seyn the begynnyng of the 12 hous next above thin ascendent, the begynnyng of the 11 hous, and than the 10 upon the meridional lyne, as I first seide. The same wise worch thou fro the ascendent doun to the lyne of mydnyght, and thus hast thou othre 3 houses; that is to seyn, the begynnyng of the 2, and the 3, and the 4 hous. Than is the nader of these 3 houses the begynnyng of the 3 houses that folewen."

Eade (p.44), elabora uma concisa descrição do procedimentos [trad. nossa]: "Deve tomar-se a distância ao longo do Equador Celeste entre a ascensão recta (não a ascensão oblíqua) do Ascendente e a ascensão recta do Meridiano. Dividir este intervalo por três e sucessivamente acrescentar o resultado à ascensão recta do Meridiano. A conversão destas novas ascensões rectas em longitudes vai definir as casas intermédias."

Na sua edição de A Treatise on the Astrolabe (Variorum Edition of the Works of Geoffrey Chaucer, 6; University of Oklahoma Press, 2002, p.292), Sigmund Eisner explica a vantagem do expediente, pois nele a grelha de referência depende da posição do Ascendente e adapta-se em função do seu lugar no Zodíaco. Noutras modalidades, e.g., o chamado sistema de Regiomontanus, que Eade (p.45) classifica como 'Equatorial' (sendo que depende mais do modo como é agilizado do que do recurso ao Equador, comum a outros sistemas, como vimos), a framework só funcionaria para uma latitude geográfica específica.

Eisner (p.286), completa que o sistema de divisão exposto (baseado nas Ascensões Rectas, por definição divisões do Equador Celeste), foi mais tarde associado a Alcabitius, um autor que Chaucer nomeia. Também conhecido como Alchabitius ou Alkabucius, trata-se de Al-Qabisi, o "Alquebício" dos nossos antigos tratadistas lusos, um dos mais lidos e comentados autores da Astrologia. O sistema trissecta em partes iguais cada intervalo definido pelos quadrantes no Equador, recorrendo a círculos tirados dos próprios Pólos Celestes que vão determinar as cúspides quando atravessam a Eclíptica. Baseia-se na constatação de que, apesar de situados na Eclíptica, o nascimento e ocaso dos Signos está subordinado à rotação do Equador, i.e., do Primum Mobile.

O sistema exposto precede o sábio do século X, cerificando-se uma metodologia comparável num horóscopo atribuído a Rhetorius (do séc. V, mais especificamente de 428 A.D.), estudado por Neugebauer e Van Hoesen (Greek Horoscopes, 1987 (1959), No. L428, pp.138-40).


Círculo diurno do ascendente ('ASC'), divisão no Equador e cúspides correspondentes projectadas na Eclíptica, Sistema de Alcabitius (i.e., método nº 1, "The Standard Method" na classificação de J. D. North, vide tipologia infra; neste método, cada casa mede (em ascensão recta) 1/3 do arco semi-diurno; fonte: Mateus, M. J., The Porphyry, Alcabitius and Regiomontanus House Systems Examined, 2001, modificada)


Na "Practice de astralabe" de Pèlerin de Prusse (traduzido e editado por Edgar Laird e Robert Fischer: Pèlerin de Prusse on the Astrolabe, Medieval & Renaissance Texts & Studies, State University of New York, 1995) é exposta a maneira de dividir mais documentada na tratadística astrolábica medieval (também incluída por Chaucer no Treatise, ii.36). O autor, astrólogo na corte francesa do século XIV, escreveu a sua Practice no vernacular, com o patrocínio do futuro monarca Charles V, e recorreu ao mesmo (pseudo-)Masha'allah em que Chaucer se respaldou.

Segundo Eisner, o método exposto por Chaucer em ii.36 (que é exactamente o mesmo que Pèlerin ensina) não teria sido ainda identificado de modo inequívoco ("...cannot be identified conclusively", p.286). Na tese de Garth C. Carpenter (Chaucer's Solar Pageant: An Astrological Examination of The Canterbury Tales (unpublished PhD thesis), 1997, p.30) é incidentalmente referido como o sistema de Porphyrios ("Porphyry"), que efectivamente devolve resultados com muita aproximação aos do sistema de Alcabitius. [O sistema trissecta em partes iguais os arcos de longitude definidos pelos quadrantes, através de círculos tirados a partir dos pólos da própria Eclíptica (sem obviamente recorrer ao Equador). Este método, que Eade qualifica como "aritmético" (p.43), foi exposto no séc. II por Vettius Valens (Anthologiae, iii.2, vide tradução de Mark Riley, .PDF, 116KB), onde a sua autoria é atribuída a um (incógnito) Orion. Era o procedimento atribuídos aos Antigos]. Trata-se, todavia, de uma falsa questão e de um equívoco. A técnica encontrada em Chaucer e Pèlerin divide tempo (através das horae desiguais (que são delineadas dividindo o Equador Celeste e Paralelos, ver imagem seguinte). Não divide imediatamente longitudes eclípticas (o que se materializaria na simples aritmética dos graus de longitude eclíptica), pelo que constitui, tão somente, uma maneira alternativa, que igualmente se suporta na Ascensão Recta (cf. Eade, p.44).

Um procedimento astrolábico evidente, de divisão segundo o método mais comum, vem exposto em Horoscopes and History, p.59. Neste, a rete do astrolábio não se mexe. Utilizando a régua radial do instrumento, a passar pelo Ascendente, temos, naturalmente, nesse ponto da Eclíptica, a cúspide da primeira casa (a cúspide da Casa VII opõe-se-lhe). Rodando a régua até à linha que marca o final da décima hora desigual, teremos, onde a régua corta a Eclíptica, o início da Casa II (oposto ao início da Casa VIII). Rodando sucessivamente e utilizando as horas pares (8. 6, 4, 2), encontramos as restantes cúspides. Portanto, a régua no final da 8ª hora permite encontrar as cúspides das casas III e IX quando 'corta' a Eclíptica, no final da 6ª hora aponta o eixo meridiano e as cúspides das casas IV e X, no final da 4ª hora, as cúspides das casas V e XI, e o mesmo para as restantes. Todavia, a variante técnica exposta por Chaucer (ii.36), Pèlerin e muitos outros terá parecido mais intuitiva (obviamente devolvendo os mesmos resultados).

Neste médodo-padrão, cada intervalo de 2 horae (que são períodos de tempo proporcionais) divide os semi-arcos (diurno e nocturno) em 6 partes cada, utilizando as linhas desenhadas no tímpano (por comodidade somente abaixo do horizonte oblíquo, motivo pelo qual se faz a leitura das cúspides na linha da Meia-Noite). A divisão faz equivaler cada casa a 1/6 do semi-arco (nos Equinócios equivalem rigorosamente a 30 graus, i.e., 2 horas 'iguais' ou equinociais, a dos nossos relógios!). North (1988:6) qualifica o método como "based on simmetry of rising times" (baseado na simetria dos tempos ascensionais). O conceito (que tal como o sistema sexagésimal constitui legado babilónico) é explicado por Francesca Rochberg:

"A rising time is the time required for one zodiacal sign to cross the eastern horizon. Since both horizon and ecliptic are great circles on the celestial sphere, at any moment, one-half of the ecliptic (6 zodiacal signs) is above the horizon and the other half is below. During the interval of sunrise to sunset, 180" of the ecliptic will have crossed the horizon." (A Babylonian Rising-Times Scheme in Non-Tabular Astronomical Texts, in: Burnett, C., Hogendijk, J., Plofker, K. and Yano, M. (eds.), Studies in the History of the Exact Sciences in Honor of David Pingree, Brill, 2004, p.56). Já abordámos o conceito nesta página.

Os procedimentos habitualmente descritos passavam pelo conhecimento da duração do dia e da noite quando o Sol está no Ascendente específico. 1/6 de cada um desses períodos (dupla hora), era então acrescentado três vezes sucessivamente. Por exemplo, acrescentando uma hora dupla nocturna à Ascensão Recta do Ascendente permitia conhecer as cúspides das casas II, III e IV. E se acrescentada sucessivamente uma hora dupla diurna à cúspide desta última casa, determinavam-se as cúspides das casas V, VI e VII. O procedimento podia, alternativamente, começar pelo Meridiano, acrescentando sucessivamente 1/6 do arco diurno à Ascenção Recta da cúspide da casa X (determinando as cúspides das casas XI, XII e I) e um 1/6 do arco nocturno à Ascensão Recta do Ascendente (casa I), localizando as que dizem respeito às casas II, III e IV (vide Kennedy, E. S., The Astrological Houses as defined by Medieval Islamic Astronomers (in From Baghdad to Barcelona. Studies in the Islamic Exact Sciences in Honour of Prof. Juan Vernet, Josep Casulleras and Julio Samsó (eds.), (Anuari de Filologia, Universitat de Barcelona) XX, 1996, Vol 2, pp.535-78. Repr. in E. S. Kennedy, Astronomy and Astrology in the Medieval Islamic World (Collected Studies), Variorum, 1998, No. XIX).

Em resumo, as linhas das horas desiguais servem muito adequadamente o médodo "standard", que foi mais tarde relacionado com o nome de Alcabitius. Francisco de Tornamira (séc. XVII) associou este sistema a "Firmico [erradamente], Alboali, Albumasar, Albubaté, Bonato, y otros Astrologos" (Repertorio de los Tiempos, edição de 1635, p.109). Esta atribuição pouco criteriosa demonstra, todavia, a sua generalização e provecta idade.


Etapa da delineação geométrica das horas desiguais ou proporcionais na lâmina do astrolábio, dividindo em 12 partes o arco do trópico (entre os dois pontos de intersecção com o Horizonte local). Método baseado no Equador Celeste. O mesmo se deverá fazer com este círculo e com outros paralelos, de modo a determinar pontos das curvas desta divisão proporcional do tempo (Evans, 1998:161)


Pèlerin avisa (ii.16) que chegámos ao capítulo mais importante e mais necessário! Salienta a necessidade de conhecer o Ascendente e, a partir deste, os pontos fundamentais que definem as Casas I (Ascendente), IV (na linha da Meia-Noite), VII (simétrica à I) e X (simétrica à IV) na "figure". E continua a sua exposição para as restantes maisons (trad. nossa):

"O grau ascendente deve ser movido para o fim da 8ª hora [trata-se das horas desiguais ou sazonais; o "fim" (Fr. "bout") é onde a hora desigual termina, na prática é o início da hora sequente]; o grau e o signo que chega [que "cai" ou é doravante coincidente] à linha da Meia-Noite [segmento da linha meridiana que aponta na direcção da hora referida e do horizonte N do astrolábio], dá início à 2ª casa [i.e., cúspide da 2ª Casa]. Depois devemos mover o ascendente para o fim da 10ª hora e o lugar do Zodíaco que chega à linha da Meia-Noite dá início à 3ª casa. Depois movemos o lugar oposto ao ascendente [i.e., o chamado Descendente, o "Dysis" helenístico, a 180º do Ascendente] para o final da 2ª hora; e o lugar do Zodíaco que chega à linha da Meia-Noite dá início à 5ª casa. E se depois movermos o mesmo lugar oposto ao ascendente para o fim da 4ª hora, o [grau] que chega à linha da Meia-Noite dá início à 6ª casa.". (Seguidamente, localiza as maisons simétricas, opostas às que foram determinadas; capítulo relevante, em Francês, "Practice de astralabe", ii.16, Laird e Fischer (eds./trads), pp.52-3; .PDF, 552KB) O método respalda-se nas antigas horas desiguais, planetárias ou sazonais. Sabendo que cada divisão do céu deverá ter em média 30º e que estes demoram em média duas horas na sua ascensão.

No Elucidatio fabrica ususq[ue] astrolabii (edição de 1564), encontramos um Exemplum segundo os "antigos" (pp.133 et seq.), utilizando o método comum a Chaucer e Pèlerin. Estando o Ascendente 16 Sco (ergo, o Descendente é 16 Tau), Stoffler chega aos seguintes resultados: IV (1 Pis), X (1 Vir), II (21 Sgr), VIII (21 Gem), III (25 Cap), IX (25 Cnc), V (25 Pis), XI (26 Vir), VI (22 Ari) e XII (22 Lib) . Um copista de um manuscrito do Treatise de Chaucer (RI 1196, Bibliotèque Royale Albert I, 4862-69, Bruxelas) incluiu outra útil exemplificação: com Ascendente 6 Leo (e consequente oposto em 6 Aqr), determinou as cúspides das casas II (28 Leo), III (21 Vir), IV (16 Lib), V (24 Sco) e VI (29 Sgr); restantes são simétricas, e.g., X (16 Ari).


Do primeiro exemplo: 16º Taurus é o Descendente que, sendo colocado no término ou final do intervalo da IV hora sazonal ou desigual (horas estão em numeração romana), permite encontrar sobre a vertical da Meia-Noite o grau 22 de Aries (setas apontam os graus relevantes). Trata-se da cúspide da Casa VI

 

EXCURSUS: as Casas Astrológicas (métodos, tipologia)

Atendendo a que o astrolábio permitia determinar as cúspides das casas astrológicas (segundo alguns dos métodos de divisão), vamos procurar aprofundar este tema.

"...It was also used for another kind of division of the zodiac, dependent on the time of day and the place from which the sky is observed. The division in question is something about which Ptolemy was strangely silent, although at least five different methods of performing the division have been (wrongly) ascribed to him at one time or another. The division usually — but not always — started from the ascendant, the point of the zodiac (ecliptic) where it crossed the eastern horizon. The houses were then numbered in the direction of increasing longitude, that is, with the first six under the horizon. The details do not concern us here, but we must emphasize that many of the eight or so quite different methods for effecting the division were mathematically difficult to apply." (North, J. D., The Norton History of Astronomy and Cosmology, W. W. Norton & Company, 1994, p.259). Como adiante veremos e J. D. North conclui (ibid., p.260), a atribuição da autoria dos diversos sistemas é caótica: "The history of these difficult techniques is a tangle of mistaken ascriptions."


A divisão provavelmente mais antiga dos loci, como especulou S. J. Tester, foi em quadrantes. Para os antigos egípcios, o Sol e as estrelas eram jovens e vigorosas no nascente, ascendiam ao seu máximo poder no Meio-céu, e declinavam com a idade e a decrepitude a caminho do ocaso. Daqui se extrapolou uma relação com a vida humana em que cada quadrante governava uma fase da mesma. Isto já é claramente referido num tratado hermético que sobrevive numa tradução em Latim, citado por Tester. Os quatro pontos que dividem os quadrantes serão designados (em Latim) centra ou cardines (gr. κέντρα): o ponto da eclíptica que ascendia no horizonte, o ponto no qual o meridiano intersecta a eclíptica, o ponto da eclíptica que descende no ocidente e o ponto inferior oposto ao segundo. O primeiro é o horoscopus ou ascendens, o segundo é o medium caeli, o terceiro o occasus, o quarto é o imum caeli (A History of Western Astrology, Boydell Press, 1987, p,25). O método primitivo de divisão dos loci era simplista e aproximado. Somente após a invenção da Trigonometria, não anterior ao tempo de Ptolomeu, os sistemas mais sofisticados se tornaram possíveis. Há decerto uma relação entre as técnicas e o aparato matemático e geométrico à disposição e, inversamente, este aparato predispõe à invenção de sistemas mais sofisticados.


Há três categorias de sistemas: o
s que são baseados na Eclíptica dividem este círculo directamente; os sistemas baseados no espaço, dividem o volume da Esfera Celeste (segundo um dos grandes círculos) e depois determinam como as casas se relacionam com a Eclíptica; os que se baseiam no tempo, dividem o tempo da rotação aparente do orbe (24 horas) e os seus semi-arcos (i.e. os tempos ascensionais), determinando cúspides que depois são igualmente transportadas para a Eclíptica. A maior parte dos sistemas produz casas que são desiguais quando transportadas para a Eclíptica. O sistema atribuído a Alchabitius (Alcabitius) pertence a esta categoria, o que actualmente se atribui a Porphyrios divide a Eclíptica directamente, ou seja, a distância do Ascendente ao Meio-Céu é dividida em três partes no Zodíaco, e assim sucessivamente. O sistema de casas iguais ("Equal Houses") baseia-se na primeira categoria descrita (eclíptica) mas não nos quadrantes (se o Ascendende for início da Casa I, o Meio-Céu não coincide, salvo circunstâncias muito particulares - vide supra figura descritiva da oscilação do eixo MC-FC -, com a cúspide da Casa X), ao contrário dos métodos anteriores, que se respaldam nos eixos fundamentais Ascendente-Descendente e Meio-Céu-Fundo-Céu.

Os métodos têm limitações. O criticismo é fundamentado. O belicoso e empedernido geocentrista Jean-Baptiste Morin (1583-1656), por exemplo, referiu a fragilidade dos sistemas que conhecia e escrutinou a sua pertinência (apresentando um novo sistema, nunca muito divulgado), Apontou disfunções, nomeadamente as distorções no tamanho das casas ou mesmo a impraticável utilização nas latitudes mais elevadas (Remarques Astrologiques..., Paris, ed. 1657, pp.77 et seq.). A extrema distorção (e até supressão de 'casas') nas latitudes mais elevadas do globo resulta aí da discrepância na duração dos dias e das noites.

No tema da divisão das casas, Ptolomeu foi omisso. Na "quarantiesme proposition" do seu L'usage de l'Astrolabe..." (edição de 1558, p.57), Dominicq Jacquinot elenca os sistemas de divisão que conhece, segundo duas vias principais: "à maneira dos Antigos" [é o mesmo sistema que abordámos supra, acerca de Pèlerin ou de Chaucer, Treatise, ii.36] ou à maneira dos "Astrologues modernes" ("Monteregio, & Purbache"). [Estes "modernos" são os célebres Johannes Muller, chamado "Regiomontanus" (i.e., de Monte Regio, Konigsberg) e Georg von Peuerbach, autor das Theoricae Novae Planetarum]. Refere um terceiro sistema. Trata-se do sistema de domificação atribuído a Campanus de Novara, matemático do séc. XIII, que divide o Primeiro Azimute (ou primeira vertical), o grande círculo que passa pelo Zénite e inclui os pontos Este e Oeste, em 12 partes iguais, afirmando que este não fora ainda objecto de tratadística visando utilização no astrolábio. Jacquinot favorece o sistema de "Monteregio" ("meilleure & plus raisonnable"), seguindo uma opinião comum na Renascença, e apresenta instruções para o desenho de linhas-guia no instrumento, destinadas à determinação das casas segundo esse método.

A interpretação das escassas evidências no Tetrabiblos está na origem de muitos equívocos e elucubrações que resultaram na multiplicação das variantes, e todas pretendiam restaurar o "verdadeiro" método de Ptolomeu. Como S. Vanden Broecke comprova (The Limits of Influence, Brill, 2003, p.246 et seq.) Jacques Peletier (Jacques Peletier du Mans, lat. Iacobus Peletarius), humanista, poeta e matemático francês da Renascença, 1517-1582) contestou de modo convincente a adopção (muito generalizada na sua época) do método de Regiomontanus (v. infra). Matem+aticos como Regiomontanus e Johannes Stadius (Estadius) partiam da premissa de que Ptolomeu delineava as Casas segundo graus equatoriais e não eclípticos. Todavia, Peletier concluiu, no De constitutione horoscopi (1563), através de rigorosa análise textual do texto grego (e.g., III.2 e III.10), edição de Camerarius (1535), que o medium caeli astrológico de Ptolomeu [cúspide da Casa X] não coincidia com o Meridiano [i.e. o seu método não era angular], antes sendo definido pela intersecção da eclíptica com o grande círculo que passava pelos pólos do zodíaco e pelo zénite. Uma vez que o único método que adopta esta metodologia é o das longitudes zodiacais, este seria o verdadeiro sistema utilizado pelo sábio alexandrino. É o método já encontrado em Firmicus, modus aequalis ("The Equal House Division" na classificação de J. C. Eade, "Single Longitude System" na classificação de J. D. North, como veremos adiante). Esta judiciosa opinião é hoje quase consensual.

O célebre "modus rationalis" parece, segundo J. D. North, recuar a ibn Mu'adh al-Jayyani (2008, p.288). O mesmo historiador refere (segundo Hermelink, H., "Tabulae Jahen", in: Archive for History of Exact Sciences, 2, 1964, p.109) que Regiomontanus possuia uma tradução latina das Tabulae Jahen (i.e., de Jaén) compiladas por este autor. O célebre Pico della Mirandola acusou Regiomontanus de plágio relativamente a Abraham Ibn Ezra (Abenezra, Abraham Avenarre), eminente e versátil sage judeu ibérico do séc. XII ao qual foram atribuídos diversos sistemas porque deles deixou descrições ou referência). A acusação era equívoca mas, de facto, o método já existia. O Franciscano Ilario Altobelli (Hilarii Altobelli, 1560-1637) refere a atribuição do método mas esclarece que, segundo um dos livros Alfonsinos, este deriva de Mua'dh (aben Mohab): “porro Monteregius assumpsit modum dividendi domos, ut quidam dicunt ab abraham abenesre, sed alphonsus rex libro secundo armillarum cap. 42 dicit fuisse modum derivatum ab antiquissimo aben Mohab.” (Tabulae Regiae divisionum duodecim partium coeli, et syderum obviationum, ad mentem Ptolemaei, Macerata, 1628, p.41). Doravante associado a Regiomontanus, este "método equatorial" exigiria o desenho de uma grelha adequada no tímpano do astrolábio, pois nesse caso as linhas-guia que cortar a Eclíptica emanam do ponto Norte do horizonte oblíquo. Num paper mais recente, Jan Hojendijk e Josep Casulleras afirmam ineqivocamenteque os sistemas de Regiomontanus, Campanus and Placidus têm antecedentes  Islâmicos: "...medieval Islamic origin" (Progressions, Rays and Houses in Medieval Islamic Astrology: A Mathematical Classification, Suhayl 11 (2012), p.39).

Em todo o caso, o poder do livro impresso vai disseminar e promover a aceitação da proposta de Regiomontanus, pela disponibilidade de informação técnica e de tabelas. O matemático expõe o método em 1467 nas Tabulae Directionum (E. Zinner, Leben und Wirken des Joh. Müller von Königsberg, Otto Zeller, Osnabrück, 1968, p.148). É sensivelmente a partir desta época que assistimos ao hábito de elencar os métodos, a tomadas de posição extremadas, à argumentação comparativa das diversas opções disponíveis e, como sempre, ao jogo das atribuições autorais (vide North, J. D., Horoscopes and History, Op. cit., Appendix I, .PDF, 31KB). Com o advento da imprensa, e após Regiomontanus e Johannes Gazulus (1400-1465, que advogou o método atribuído a Campanus), assistiremos ao sucesso das colecções de genituras exemplares ou exemplificativas. Como precursores destas antologias, podemos recuar a Firmicus e, na proximidade, ao "Geniturarum exemplar. Praeterea et multa quae ad interrogationes et electiones..." (1555) de Cardanus. Teremos em breve, neste modelo 'literário', a vistosa colectânea "Astrologiae methodus in qua secundum doctrinam Ptolemaei exactissima..." de Johannes Garceus (Basileia, 1576). Mais tarde, a 'democratização' da Astrologia revelar-se-á na proeminência do seu ramo "Horário" (William Lilly et al.), procurando responder às questões mais comezinhas e quotidianas.


Lâmina com linhas auxiliares para a divisão das 12 Casas. O sistema de Regiomontanus (Johannes Müller, 1436-1476) divide o Equador em 12 partes iguais, fazendo passar nessas divisões diversos grandes círculos a partir do ponto Norte do Horizonte, que também concorrem no ponto Sul do mesmo (imaginando a planificação completa do círculo do Horizonte). Os pontos referidos são pólos do primeiro azimute (ou primeira vertical). Repare-se como as linhas são convergentes no ponto que assinala o Norte, comum ao Meridiano e ao Horizonte oblíquo; Dominicq Jacquinot, L'usage de l'Astrolabe, avec un petit traité de la Sphere (Second Edition), 1558

 

Tipologias de divisão

Sem negligenciar os clássicos Delambre (1819) ou Nallino (1903), a tipologia disponibilizada por J. C. Eade (The Forgotten Sky: A Guide to Astrology in English Literature, Clarendon, 1984, II.3) constitui a primeira abordagem contemporânea, compreensiva e metódica que conhecemos (o livro de Koch & Knappich, Horoskop und Himmelshäuser, 1959, não é, devido a erros históricos e matemáticos, considerado pertinente). Eade delineou a seguinte categorização, incluíndo sempre um nome ao qual o sistema foi eventualmente associado: 1. The Equal House Division (Ptolemy), subdividido em (1) divisão a partir do Meridiano e (2) divisão a partir do Ascendente); 2. The Arithmetic System (Porphyry); 3. The Right Ascensions System (Alchabitius); 4. The Vertical Circle System (Campanus); 5. The Equatorial System (Regiomontanus). Eade disponibiliza tabela comparativa (.PDF, 99KB) com um exemplo prático da utilização dos diferentes 'sistemas' (p.46).

Julio Samsó, em "Astrology" (in al-Hassan, A. Y., Ahmed, M. and Iskandar, A. Z. (eds.), The Different Aspects of Islamic Culture, Vol. 4, UNESCO Publishing, 2001, ch. 2.2(c), pp.291-5), aborda, entre outros temas, os métodos de determinação das casas (Ar. buyut). [Em geral, a domificação partia, como sabemos, da determinação dos ângulos fundamentais do horóscopo (al-tali‘ (ascendente), al-Gharib (descendente), wasat al-sama’ (meio-céu), watad al-ard (fundo-céu)]. Samsó recorre à tipologia que John David North expendeu no seu Horoscopes and History, Op. cit., vide especificamente pp.46-7), mais completa e burilada, que se tornou referência na literatura especializada. A classificação é relevante para o estudo dos procedimentos matemáticos, da transmissão e datação, documentando os métodos em presença no contexto imediato mas, por extensão, assumindo interesse para o estudo dos procedimentos no ocidente latino.

Emmanuel Poulle, em Le Traité de l'Astrolabe d'Adélard de Bath, in: Adelard of Bath: an English Scientist and Arabist of the Early Twelfth Century (Op. cit.), p.128, elencou de modo preciso e sucinto os quatro principais métodos medievos (vide anexo, .PDF, 360KB):

1. Neste método, o círculo de referência é aquele que é percorrido, em cada dia, pelo grau no qual o Sol se encontra [este círculo é sempre paralelo ao Equador, coincidente nos equinócios], sendo composto por duas partes (um arco diurno e um arco nocturno) ordinariamente desiguais [excepto nos equinócios]. A partição é feita nestes arcos, cada qual dividido em 6 partes iguais. Os pólos utilizados para traçar os grandes circulos delimitadores das casas coincidem com os da projecção estereográfica, i.e., os pólos do Equador. Por definição, estes círculos são dinâmicos, não podendo ser inscritos num tímpano. Todavia, as linhas das horas desiguais [ou proporcionais] do astrolábio confundem-se, precisamente, com os lugares geométricos da divisão, explicando o procedimento utilizado. É o método mais comum.
2. Os pólos são o norte e o sul de um dado horizonte e o círculo de referência é o Equador, dividido em 12 partes iguais. Uma partição deste jaez é sempre, para cada horizonte (latitude), fixa ao longo de todo o ano. Traduz-se, no astrolábio, por arcos de círculo concordantes no ponto de intersecção entre o horizonte e o diâmetro vertical (meridiano) [o ponto de intersecção é, deste modo, o ponto norte do horizonte]. Distintos das horas desiguais, estes arcos de círculo surgem amiudadamente em instrumentos do séc. XVI. É o método associado a Regiomontanus.
3. Os pólos são novamente o norte e o sul de um dado horizonte mas o círculo de referência é o primeiro azimute desse horizonte (primeira vertical), particionado em partes iguais. Uma partição deste jaez é sempre, para cada horizonte (latitude), fixa ao longo de todo o ano. Traduzir-se-ia, no astrolábio, por linhas semelhantes ou análogas às do sistema precedente (todavia, o autor nunca as encontrou em instrumentos). Equivale ao método associado a Campanus.
4. Equivale a um antigo procedimento também documentado no séc. IV em Firmicus [cf. "The Arithmetic System (Porphyry)", Eade], utiliza os pólos zodiacais e as divisões acontecem na Eclíptica.

Poulle refere que, apesar da atenção concitada pelo método 4, a partir do séc. XII, numa amplitude de técnicas astrológicas (bem como da referência a outros métodos), somente o método 1 [apropriadamente designado "Standard Method" por J. D. North] é praticado na 'equação das casas' pelos astrolabistas contemporâneos de Adelardo, e.g., Raymond de Marselha, o (pseudo-)Messahalla, o 'Maslama' traduzido por João de Sevilha e até ibn Ezra (que alguns associaram ao método 2). Poulle considera que esta unanimidade pode estar relacionada com a prolongada ausência de linhas específicas vocacionadas para as casas celestes inscritas nos astrolábios medievais, até à posterior disseminação do médodo 2 (atribuído a Regiomontanus).

Entretanto, a tipologia de J. D. North foi adoptada (e ampliada) por Edward S. Kennedy em The Astrological Houses as defined by Medieval Islamic Astronomers (in From Baghdad to Barcelona. Studies in the Islamic Exact Sciences in Honour of Prof. Juan Vernet, Josep Casulleras and Julio Samsó (eds.), Op. cit.), que elenca os métodos de domificação que se inferem num acervo de fontes Islâmicas medievais. Assim, Kennedy procedeu à exposição dos 7 métodos descritos no texto de J. D. North (numerados de 0 a 6), adoptando a sequência, numeração original e designação, acrescentando mais dois da sua iniciativa (7 e 8). Seguidamente, utilizou referências (textos, exempla, tabelas, etc.) das 28 fontes que foram objecto de análise, identificando métodos e procedimentos [estudo (texto íntegral), .PDF, 6.60MB].

Percorreremos esta listagem, cruzando com as listagens de Eade e Poulle, e subsidiando com comentários do próprio estudo ou outros, quando considerado pertinente.

0 - "Hours Lines Method" - O nome denuncia a utilização astrolábica. Os cardines são determinados do modo mais comum. As cúspides intermédias encontram-se na intersecção da Eclíptica com as linhas das horas desiguais pares do astrolábio. (Vide representação desta estrutura horária e da divisão das casas nesta ilustração (crédito: Luís Ribeiro) e repare-se nas linhas das horas desiguais, definidas em função do percurso do Sol, limitadas pelos extremos - os solstícios - que os dois Trópicos materializam). E. S. Kennedy não encontrou esta divisão nas fontes estudadas. Segundo Samsó (Op. cit., 293) a autoria do método não foi ainda determinada. Descrito por Ibn al-Saffar (m. 1035), com procedimentos expostos por ibn Ezra no Keli ha-nehoshet, i.e., 'Tratado do Astrolábio', no Sefer ha-moledot e no De rationibus (vide Casulleras & Hogendijk, J., Progressions, Rays and Houses in Medieval Islamic Astrology: A Mathematical Classification, Suhayl 11, 2012, p.84), será o sistema disseminado por Placidus de Titis no séc. XVII (estando na realidade relacionado com um algoritmo de Giovanni Antonio Magini, que acreditava seguir Ptolomeu, vide North, 1986: 20 et seq.). Será popularizado pelas tabelas de Raphael no séc. XIX. Muito antes, Habash (766-c.869) atribuiu o método a Ptolomeu (Casulleras, J. e Hogendijk, Op cit, pp.83-4). As cúspides intermédias seriam determinadas, como exposto, nas intersecções das linhas das horas desiguais pares (2, 4, ...) com a Eclíptica. Por exemplo as casas XI e XII cairiam nas linhas das horas 2 e 4, antes do meio-Dia. Um método acessível no astrolábio mas complexo do ponto de vista matemático (North, 1986, p.21).
1 - "The Standard Method" - "The Right Ascension System (Alchabitius)" (Eade) e o nº1 de Poulle. Pode assumir várias combinações e condições. Basicamente, projectam-se os quatro cardines (Ar. awtãd) no Equador a partir dos pólos equatoriais, i.e., pólos da Esfera. Trissectam-se os segmentos ou sectores equatoriais iguais resultantes e, de seguida, transportam-se esses pontos intermédios de divisão para a Eclíptica, utilizando círculos que passam nos pólos equatoriais, para determinar as cúspides (Ar. marãkiz). Vimos este método na companhia de Chaucer e Pèlerin (séc. XIV). É o "Right Ascension System" de Eade (1984: 44). É, segundo Samsó, atribuído nas fontes Islâmicas a Ptolomeu, Vettius Valens, al-Battani e al-Qabisi (Alcabitius, ao qual é modernamente associado). Era decerto conhecido pelos astrólogos Helenísticos, surgindo num horóscopo de Rhetorius, c.500 AD. Segundo North (1986: 22, n.2), al-Biruni designa-o como "o bem conhecido ("mashhur") método". Foi de longe o mais utilizado (Kennedy encontrou-o em 27 das fontes analisadas, e 6 destas incluiam tabelas específicas para a sua aplicação). Poderia ser calculado através de tabelas de ascensões rectas e de ascensões oblíquas, disponíveis no Almagesto. As zijat (singular: zij), tabelas planetárias com informação tabulada e instruções (cânones), incluiam-nas (para além de tabelas de diferenças ascensionais, vide conceitos relacionados). Al-Khuwarizmi (780-850) chega ao detalhe de incluir uma tabela computada para cada grau do ascendente, que permitia conhecer as longitudes do início das restantes casas (Samsó, 2001, p.293). A alternativa facilitadora seria, obviamente, o astrolábio, utilizando as linhas das horas desiguais (que são totalmente adequadas pois o método baseia-se na simetria dos tempos ascensionais).
2 - "The Dual Longitude Method" - "The Arithmetic System (Porphyry)" (Eade), o método 4 da listagem de Poulle. "Dual" pois considera ambas as longitudes do Ascendente e do Meio-Céu. Trissectam-se os 4 arcos cardinais (quadrantes), medidos na própria Eclíptica, ou seja, é uma trisecção precisa em longitude, utilizando o Pólo da Eclíptica. Era bem conhecido nas terras Gregas e Islâmicas e atribuído por al-Biruni aos "Antigos". Já exposto por Vettius Valens no séc. II (Anthologiae, iii.2), foi atestado num horóscopo literário do séc. V (L497), atribuído prioritariamente a Eutocius (N&H, Greek Horoscopes, Philadelphia, 1987 (1959), pp.152-7, vide em particular p. 155). Kennedy encontrou-o em 7 das suas fontes. Sendo pré-Islâmico, acabou contudo mais tarde associado ao Maghrib (regiões ocidentais do Islão) pelos autores Islâmicos próximo-orientais. Na Renascença será vinculado ao nome de Porphyrius (filósofo do séc. III).
3 - "The Prime Vertical Method" - "The Vertical Circle System (Campanus)" (Eade), o 3º referido por Poulle. O Horizonte e o Meridiano dividem a primeiro azimute ou primeira vertical (o grande círculo que passa pelo Zénite e inclui os pontos Este e Oeste) em quadrantes. Trissectando estes quadrantes em sectores iguais, passam-se pelos pontos resultantes grandes círculos utilizando o eixo definido pelos pontos Norte e Sul (i.e., de intersecção do Meridiano e do Horizonte). Quando estes círculos cortam a Eclíptica, localizam as cúspides. O método foi associado a Campanus de Novara (séc. XIII) no Ocidente latino, defendido por Gazulus e, pelo que se infere, considerado por Tycho Brahe o mais adequado, todavia preferindo uma figura com 8 divisões, mais adequada à dinâmica lunar e à meteorologia (North, 1986: 176). O método antecede Campanus. Utilizado na Pérsia e Ásia Central, al-Biruni (séc. X-XI) considera-o 'favorito' e reclama a sua autoria (que lhe é amiudadamente atribuída nas fontes Islâmicas). [Levanta-se a pertinente questão se al-Biruni seria ou não, afinal, conhecido no Ocidente latino]. Esta técnica de divisão é sobejamente conhecida no al-Andalus (aqui atribuída a "Hermes" e al-Zarqalluh (al-Zarqali, séc. XI). [Também na domificação se procurou fundamentar e validar os métodos atribuíndo-os a figuras prestigiosas.] Kennedy documenta-o em 12 das suas fontes, pelo que foi bastante utilizado.
4 - "The Equatorial (Fixed Boundaries) Method" - "The Equatorial System (Regiomontanus)" (Eade), o 2º referido por Poulle. Utiliza o Equador à maneira da primeira vertical no método precedente. Procede-se à trissecção dos quadrantes equatoriais (previamente definidos pela intersecção do Horizonte com o Meridiano). Passam-se grandes círculos pelos pontos achados, a partir dos pontos Norte e Sul do horizonte (como no método 3), encontrando assim as cúspides na Eclíptica. É o sistema do Regiomontanus das Tabulae directionum profectionumque, a que a Renascença chamou racional. Surge muito antes em al-Biruni no contexto de outro problema astrológico (o tasyir, baseado nas progressões e na teoria do apheta, de origem helenística) e num dos tratados do Libro del Saber de Astrología. É atribuído a um al-Ghafiqi, que, segundo J. D. North, pode ser um dos discípulos de Maslama al-Majriti (950-1007): ibn al-Saffar (séc. XI). Nas fontes Islâmicas é somente encontrado no Maghrib.
5 - "The Equatorial (Moving Boundaries) Method" - Projecta-se o Ascendente no Equador a partir do Pólo Norte. Começando no ponto projectado, marcam-se doze sucessivos arcos equatoriais de 30º cada. As cúspides são as projecções das divisões equatoriais na Eclíptica, a partir do Pólo Norte (Pólo da Esfera). Note-se que, geralmente, a cúspide da Casa X não vai coincidir com o Meio-Céu. Nenhuma fonte de Kennedy denunciou a utilização deste método.
6 - "The Single Longitude Method" - "The Equal House Division (Ptolemy)" (Eade). "Single" pois é somente considerada a longitude do Ascendente. O método simplesmente desenha casas iguais, de 30º, a partir do Ascendente. Samsó (Op. cit., p.292), esclarece que os quatro pontos fundamentais estarão sempre distanciados 90º entre si. As casas estavam "ancoradas" ao horizonte ou então ao meridiano, sendo na prática contadas a partir do ascendens ou do medium caelum (ou até, eventualmente, de outros 'lugares', como a chamada pars fortunae). Começando a contagem no ascendens, a cúspide da Casa X seria o ponto mais elevado da Eclíptica nesse momento, não coincidindo geralmente com o meridiano. (Nos métodos angulares, que começam pela divisão através dos cardines, a cúspide X pertence ao Meridiano). Este método de casas iguais foi utilizado por Firmicus Maternus (modus aequalis) no séc. IV (Mathesis, II.19) e por astrólogos Islâmicos como Masha'allah ibn Athari (séc. VIII). Todavia, Kennedy não encontrou a sua utilização nas fontes estudadas. O sistema foi, eventualmente, associado ao Tetrabiblos de Ptolomeu (com parcas referências), interpretando-se aí um suposto desfasamento de 5º (que abordaremos mais adiante, porque se tornou doutrina independente dos métodos).
7 - "The Method of Habash" - encontrado somente em al-Biruni, evoca o iraniano Habash al-Hasib al-Marwazi (séculos VIII-IX). Recorre a um procedimento peculiar. A partir dos cardines, trissecta-se o arco do Horizonte entre o Ascendente e o ponto Sul (geográfico, no Horizonte). Projectam-se os 2 pontos da trissecção na Eclíptica, com centro no Zénite. Resultam assim as cúspides XI e XII. As II e III são encontradas analogamente, trissectando o arco do Horizonte entre o Ascendente e o ponto Norte, projectando seguidamente na Eclíptica a partir do Zénite, etc.
8 - "The Split Differences Method" - encontrado por Kennedy apenas em Ibn al-Raqqam (séc. XIII). Parece ser um cômputo aproximado (pois matematicamente exigiria a solução numérica de uma equação cúbica, i.e., do 3º grau) para determinação das cúspides de acordo com o método (0) "Hour Lines"), intersectando a Eclíptica com as linhas das horas desiguais ou sazonais. Como North conjecturou (A reply to Prof. E. S. Kennedy, in: From Baghdad to Barcelona, Op. cit., Vol 2, p.580), parece ser um método aproximativo ou uma aplicação equivocada do método standard, não um novo método.

Os resultados proporcionados pelos métodos "fixos" da classificação de North podem, como o autor refere (1986, p.59), ser "lidos" imediatamente numa representação esquemática, como acontece utilizando um astrolábio. Pelo facto de nestes ("Prime Vertical", "Equatorial" (Fixed Boundaries)" e "Hour Lines") a Eclíptica ser cortada por Grandes Círculos (que podem ser inscritos definitivamente numa lâmina de latitude), bastaria configurar a posição do círculo excêntrico (Eclíptica) do instrumento para a hora correcta, permitindo leitura directa das cúspides. Pelo contrário, nos restantes métodos é sempre necessário um procedimento faseado e dinâmico, movimentando uma ou outra componente do instrumento.

O Método mais utilizado...


Explicação geométrica do método-padrão (fonte: E. S. Kennedy)

O "método-padrão" (nº1) utiliza, como vimos, arcos com o mesmo tempo ascensional. A figura acima inclui o Horizonte, a Eclíptica e o Equador Celeste. O Horizonte considera-se fixo, para este propósito o sistema Equador-Eclíptica revolve sobre os pólos da Esfera Celeste. O ponto H é o Ascendente (Horóscopo), δ1 é a sua declinação. V é o Ponto Vernal (origem da Ascensão Recta), O ponto E está na intersecção do Horizonte e do Equador Celeste, a longitude eclíptica é assinaladas pela letra λ; O ângulo ε representa a obliquidade da Eclíptica. A ascensão oblíqua do ponto ascendente (H), corresponde à ascensão recta α0 (lugar onde está o ponto E, o ponto do Equador que ascende simultaneamente com o grau horoscópico); O ponto vernal (V, na intersecção do Equador e da Eclíptica) nasce nessa posição E e o ponto com longitude λ1 (onde está o ponto H) ascende sobre o Horizonte quando a Esfera roda (sobre os respectivos pólos) segundo o ângulo α0. A ascensão oblíqua de α0 é o ângulo equivalente (razão de 15º por cada Hora Sideral) ao tempo ascensional do arco da Eclíptica entre V e H. (North, Horoscopes and History, p.3, fig.2 (simplificada)); vide informações relacionadas. O problema é antigo: a conversão de arcos eclípticos em equatoriais, e vice-versa (neste caso para conhecer o ponto do Equador que ascende simultaneamente com o ponto H). A tradição babilónica do cálculo dos tempos ascensionais dos signos era observacional e utilizava uma progressão aritmética com limites baseado no rácio de 3:2 do respectivo clima (diferença das horas de luz entre o maior e o menor dia do ano). Ptolomeu descreve um método rigoroso baseado na diferença ascensional. Depois de Ptolomeu assistimos à aplicação dos seus procedimentos ou, geralmente, a alternativas menos precisas. A longo prazo, a divisão seria feita com recurso a instrumentos planisféricos (e.g., astrolábio) ou tabelas. Um exemplo útil são estas tabelas actualizadas (declinação/ ascensão recta para qualquer grau da Eclíptica, climas para hemisfério norte e tabelas das ascensões rectas dos graus do Zodíaco (em intervalos de dois) para diversas latitudes geográficas; retiradas de Fitzpatrick, R., A Modern Almagest; PDF, 141KB). Estas tabelas seriam também úteis para cálculos astrológicos nas técnicas "dinâmicas", e.g., direcções primárias.

Por fim, disponibiliza-se PDF com fórmulas (preliminares e específicas deste método e do de Regiomontanus, designações e notações trigonométricas actuais), incluídas no livro de J. C. Eade (The Forgotten Sky..., p.222-4). Eade chama ao primeiro, como vimos, "The Right Ascension System (Alchabitius)". Trata-se do "Standard Method" de North, o mais utilizado ao longo de toda a Idade Média.

NB: A abordagem aos horóscopos e julgamentos antigos e medievais respalda-se na análise do texto (na língua veicular) e do contexto, abrangendo a 'narrativa', suporte, traçados, tipos ou caracteres, convenções numéricas, eventual marginalia, etc. A vertente matemática refere-se particularmente ao 'esquema', o thema ou 'horóscopo'. É aqui que se enquadra o estudo das técnicas (e.g., de domificação) e da informação astronómica que subjaz à sequente interpretação ou a outros procedimentos técnicos "dinâmicos" (direcções, revoluções, etc.). Importa pois discernir referentes cronológicos, identificar correlações com as referências coevas (e.g., calendários, almanaques, tabelas), etc. Está-se pois a aferir, na realidade, a precisão dos recursos utilizados (e.g., tabelas, instrumentos) e a agilização de procedimentos na sua aplicação, não a informação astronómica. A astrologia já não é observacional há muitos séculos. A posição dos cardines pode denunciar a latitude e as posições planetárias (prioritariamente as dos "lentos" Júpiter e Saturno) são úteis na datação (as posições da Lua e dos planetas mais "rápidos" são muito problemáticas). Apesar dos méritos desta metodologia mais "positiva", as limitações são evidentes. O próprio North referia a escassa preocupação dos astrólogos de antanho com a precisão matemática e as "aberrations" encontradas. Richard Lemay, na sua review do Horoscopes and History de North, foi muito crítico relativamente à eficácia da extracção de informação matemática confiável na aplicação de técnicas deste jaez aos antigos horóscopos (Isis, Vol. 81, No. 4, Dec., 1990, 753-754). O investigador David Juste, num 'podcast' (Horoscopes and their judgements, in: The Astra Project, ep.50), arrisca afirmar que, pelo menos até ao séc. XVI, quase todos os horóscopos terão erros de cálculo, por vezes grosseiros. O contexto era propenso: procedimentos onerosos, manuais, por vezes recorrendo a tabelas incorrectas ou inadequadas à região em causa (latitude), cópias descuidadas, o recurso a simplificações, equívocos ou impreparação. Em conclusão, fica a impressão de que talvez a precisão matemática nunca tenha sido o mais importante neste "jogo" tão complexo. Os exempla eram copiados e muitas vezes alterados, transcritas posições planetárias com as cúspides das casas recalculadas para uma situação local, etc. Interpolava-se material derivativo proveniente de autoridades reconhecidas. Para além dos lapsos da transmissão textual, acresce o referido problema das tabelas utilizadas (as tábuas das casas, bem como as da ascensões oblíquas estão dependentes da latitude) e o valor assumido para a inclinação da eclíptica (vide e.g. Horoscopes and History, Op. cit., II.3., pp.75 et seq.). As latitudes geográficas eram pouco precisas e, desde cedo, parecem artificialmente "arredondadas" para números inteiros no caso das cidades mais importantes e emblemáticas, e.g., Cairo (30º, segundo ibn-Yunos), Costantinopla (45º, segundo al-Khwarizmi e ibn-Yunus), Meca e Medina (21º e 25º habitualmente assumidos), Jerusalém (32º, sendo que bar-Hiyya utiliza, estranhamente, no Megillat ha-megalleh, o valor de 36º, etc.). Com a invenção da imprensa, no séc. XV, nem tudo se resolveu. Por vezes uma informação importante podia ser deslocada numa gravura por motivos técnicos. O impressor não podia justapor um tipo ou caractere a uma linha de separação das casas e por vezes colocavam-se informações relevantes num qualquer espaço vazio.


Origens

Casas (Helenísticas) Houlding
Tabela com os 12 "lugares" segundo Firmicus Maternus, transliteração dos nomes gregos e significados aproximados em Inglês (fonte: Houlding, D., The Houses: Temples of the Sky, Wessex Astrologer, 2006 (1998, Ascella Publ.)). Listagem de
Chris Brennan no livro Hellenistic Astrology: The Study of Fate and Fortune (2016, pp.323-24) é a seguinte: 1) Horã (hora), Anaphora (ascensão), Anatellon (ascendente), Anatolẽ (nascente, leste) ou Hõronomos (regulador da hora); 2) Haidou pulẽ (Portão do Inferno); 3) Thea (Deusa); 4) Hypogeion (Subterrâneo, inframundo); 5) Agathẽ tuchẽ (Boa Fortuna); 6) Kakẽ tuchẽ (Má Fortuna); 7) Dusis (Ocaso); 8) Argos (inactivo, vazio, ocioso); 9) Theos (Deus); 10) Mesouranẽma (Meio do Céu); 11) Agathos daimon (Espírito Bom); 12) Kakos daimon (Espírito Mau)


No artigo A reply to Prof. E. S. Kennedy (in From Baghdad to Barcelona, Op. cit., Vol 2, Vol 2, 1996, pp.579-582), J. D. North especula acerca da origem dos métodos de domificação. Adianta a possibilidade de uma analogia homomórfica dos planetas e suas casas, reconhecendo que a sua génese está... "lost in the mist of antiquity". Todavia, refere que esta origem não se situa, aparentemente, num período assim tão remoto! Dos 168 horóscopos Gregos estudados por Neugebauer e Van Hoesen (datados no intervalo 71 a.C.-621 d.C.), somente 27 incluem o Meio-Céu (ou o Fundo-Céu) e o Ascendente. Apenas 2 incluem os limites das doze casas. Um destes é de Rhetorius (L428; i.e., 'Literário', com data 428 A.D.) e utiliza o que North designou "Standard Method". Outro, anónimo (data: 497), é uma espécie de criação "bastarda", inclui os cardines mas trissecta os arcos directamente na Eclíptica (e não do Equador). North chama a nossa atenção para quão tardia é a introdução da divisão segundo procedimentos matemáticos mais complexos (opinando que, por isso, aqui não deverá estar em presença qualquer antiga influência babilónica). Imagina o que designou "método-padrão" (Standard Method) como sendo o primeiro a desenvolver-se. Depois, por via da complexidade matemática (gerando simples aproximações ou utilização selectiva de procedimentos) e da incompreensão (ou eventual corrupção dos textos), surgiu a multiplicação de métodos e variantes. North exemplifica com a zij de ibn Ishaq al-Tunisi (séc. XIII) que considera ordinariamente aceitável o método simplista da trissecção dos arcos de longitude, mas aconselha o que conhecemos como método-padrão para os "assuntos importantes, que requerem maior precisão".

Verifica-se a precedência Islâmica da maioria dos métodos históricos, mas podemos recuar alguns dos mais utilizados à matriz Helenística ou ao período Bizantino. A invenção de sistemas mais complexos nutriu-se, provavelmente, do desenvolvimento da matemática (no contexto Islâmico) com a facilitadora adopção da numeração indo-arábica [de numero lndorum, em Latim]. O método mais utilizado na Idade Média, tanto no contexto Islâmico como no Ocidente latino, é definitivamente o nº 1 da útil sistematização 'North-Kennedy'. Outros terão sido utilizados (dependendo do nível de competências matemáticas, da disponibilidade das referências (mormente as tabelas), do contexto cultural, do procedimento astrológico específico a implementar, do zeitgeist, etc. Verificaram-se, depois da Renascença, equivocadas tentativas revisionistas ou "purificadoras" da doutrina (e.g., Morinus e a sua Astrologia Gallica, publicada em 1661), sendo a conformidade com supostos "ditames" de Ptolomeu habitualmente argumentada na afirmação dos sucessivos sistemas, como o de Placidus. Este tornou-se dominante a partir da primeira metade do séc. XIX devido à sua inclusão nas Raphael's Ephemeris e porque (equivocamente) se acreditava ter sido expendido pelo próprio Ptolomeu! Segundo Ornella Faracovi, este "retorno", de modo abrangente, "assumiu um notório afastamento relativamente à tratadística árabe, que, traduzida em Latim, havia influenciado decisivamente a astrologia e o debate relacionado. Os proponentes almejam expurgar os estudos astrológicos dos "nugae arabum", as frivolidades dos árabes, opondo-se vigorosamente às interpretações mágicas e herméticas da astrologia herdadas da Idade Média." (The Return to Ptolemy, in: Dooley, B. (ed.), A Companion to Astrology in the Renaissance, Brill, 2014, p.87 [trad. nossa]).

Outros métodos e abordagens continuaram a surgir até ao século XX. Mas a diversidade já era exasperante no passado. Citados por Giuseppe Bezza (Op cit., p.64), o célebre Cardanus (num comentário ao derradeiro capítulo do livro IV do Tetrabiblos) lamentou: "quod haec est difficultas maxima in tota astrologia", enquanto Juan de Rojas, no seu Commentariorum in astrolabium..., rematou: “quot homines, tot sententiae”! (cf. Altobelli, I., "Tabulae Regiae..." (1628), pp.52-3)

O nosso périplo pelos loci (Gr. topoi) não pode deixar de referir uma outra subtileza. Em Greek Horoscopes, Neugebauer e Van Hoesen (pp.7-8) elencam dois sistemas (como os interpretaram nos antigos exemplares estudados): uma divisão em casas iguais (de 30º, marcadas a partir do Ascendente ou, ocasionalmente, da chamada Parte da Fortuna e um sistema que trissecta cuidadosamente os quadrantes, análogo ao que conhecemos da prática medieval. Hannu Töyrylä, no seu estudo acerca de Abraham bar Hiyya Ha-Nasi (Abraham Savasorda, Abraham Albargeloni ou Abraham Judaeus), nascido na Catalunha circa 1065, elenca dois modos paralelos de abordar a domificação. Por um lado, o "cálculo" ou "contagem dos signos" (cada signo inteiro sugere equivalência a um "lugar", uma casa, coincidindo). Por outro lado, Bar Hiyya observava uma "divisão dos graus dos signos" ou simplesmente "graus dos signos", isto é, a domificação que temos vindo a considerar, muito provavelmente (como sugere Töyrylä) seguindo o "método-padrão" de North (Abraham Bar Hiyya, on Time, History, Exile and Redemption: An Analysis of Megillat ha-Megalleh, Brill, 2014, pp.468-9). Esta concomitância de dois métodos, a "contagem" e a "divisão" também parece estar presente em Masha'alla (Kennedy & Pingree, The Astrological History of Masha’allah, Harvard University Press, 1971, p.92):

“There are two methods of reckoning the twelve places or δώδεκα τόπος. The simplest way (‘by counting’) merely counts each sign as a place; the other (‘by division’) uses equal arcs of 30 degrees along the ecliptic measured from the ascendant degree" [este último caso descreve uma divisão em casas iguais; Single Longitude Method, na classificação de North].

A interpretação desta "contagem dos signos" remete para a recente temática das "Whole Sign Houses" (v. infra), com antecedentes no hipotético "sistema" que James H. Holden designou como "Sign-House" no paper Ancient House Division (Journal of Research of the AFA, Vol I, No.1, 1982, c/ notas acrescentadas em 2003 e 2007, .PDF, 71KB). Holden considerou, especulativamente, que a prática Helenística, associando signos completos aos topoi (lugares com relevância nas diversas categorias mundanas, qualificados em função da relação geométrica com o ascendente), sequencialmente, precede a invenção do conceito de cúspide e as futuras metodologias de divisão. Após o sistema de casas iguais ou equivalentes (com as suas cúspides), o reconhecimento do Meio-Céu como ponto "sensível" ou pertinente poderá estar na origem dos sistemas baseados nos quadrantes.

O sistema doravante conhecido como "Whole Sign Houses", onde a cúspide do signo que contém o ascendente é também a cúspide da primeira casa, é um tema efervescente nos círculos astrológicos nas últimas décadas...


A discussão acerca das chamadas Casas de Signo Inteiro ("Whole-Sign Houses")

O tema da divisão das "Casas Astrológicas" já era confuso. Agora é ainda mais! Vamos procurar descrever a actual discussão acerca do suposto sistema de "Signo Inteiro" ou "Casas-Signo" (a nossa tradução, próxima do termo criado por James Holden que foi, como vimos, o proponente decisivo da existência histórica deste método, onde a 'casa' coincidiria com o signo onde começa). Antes, Koch e Knappich (Horoskop und Himmelshäuser – Grundlagen und Altertum. 1959, p.44 [ver]) referiram a ausência de domificação (hauserlose) na prática popular egípcia (baseados no datado L'Astrologie Grecque, de 1899) e num Palchos, suposto autor do séc. V (hoje acredita-se que este "Palchos" ou "Palchus" não existiu: ou se trata de uma miscelânea de fragmentos gregos traduzidos para o Árabe e de novo para o Grego na época Bizantinaou seriam textos originais em Árabe e depois traduzidos. Nome parece relacionar-se com a cidade persa de Balkhi) . Seja como for, Koch e Knappich reconhecem estar na presença de um "método signo=casa" (Zeichen-gleich haus methode) que, afirmam, é ainda hoje "usado pelos astrólogos ortodoxos Indianos'"(orthodoxen Hinduastrologen benutzt). Explicam esta prática como sendo mais rudimentar e leiga (todavia aqui supostamente implementada por um astrólogo erudito).

Em contraposição, temos os comprovados sistemas de domificação Angulares (baseadas nos Quadrantes) ou Iguais (modus aequalis). A discussão acontece (principalmente) em Inglês em fora, blogues, publicações e livros. Argumentações acesas e apaixonadas. O "sistema" de Whole-Sign teve um enorme impulso no final do século passado, tornando-se, segundo os seus detractores, quase um "culto". Alguns astrólogos que se afastaram da conclusão prevalecente foram acusados de "denialism", retorquindo que os seus defensores parecem impacientes por impôr um fictício sistema impoluto e primevo, não corrompido por "equívocos". Parece ter nascido no âmbito do projecto Hindsight (traduções e interpretações de textos clássicos), iniciado por alguns astrólogos americanos nos anos 90 do século passado. Estes inferiram este "sistema" a partir da interpretação de fontes helenísticas e estabeleceram um paralelo com a actual prática indiana. Chegaram a uma conclusão que nunca foi previamente elencada enquanto 'sistema' por historiadores do calibre de O. Neugebauer, E. S. Kennedy ou J. D. North, para citar apenas três nomes.

Tentaremos expôr os argumentos através das opiniões de dois competentes e antagónicos intérpretes: Martin Gansten (cauteloso e céptico das conclusões assertivas dos proponentes) e Levente László (defensor desse "sistema"). O tema é complexo pois as fontes podem ser extremamente difíceis de interpretar, bem como problemáticas na sua estrutura e datação. O resumo traduzido e aditamentos entre parêntesis rectos são nossos.

Um número substancial dos horóscopos preservados da Antiguidade tardia somente revela posições nos signos do Ascendente e de alguns ou todos os planetas, sem disponibilizar os graus específicos. São os chamados horóscopos básicos ou elementares (que, como Dorian Greenbaum refere, não sabemos se são "natais" ou "eleccionais"). Daqui se pode concluir, entre outras coisas (segundo Martin Gansten, sanscritista, especialista renomado no estudo das tradições orientais), que deve ter sido prática comum utilizar os próprios signos como "Casas" (ou "lugares" para traduzir correctamente a terminologia grega), começando a partir do ponto ascendente. De facto, isto acontece ainda hoje na Índia nas cartas conhecidas como rāśi-cakra (‘sign wheel’, 'roda dos signos'). Todavia, salienta, os astrólogos mais "astutos e conscienciosos" complementam este diagrama com a chamada bhāva-cakra (‘house wheel’, 'roda das casas') or calita-cakra (‘moving wheel’,'roda movente'). Os antigos autores Gregos e Latinos fornecem instruções específicas para a determinação dos graus específicos, tanto através de Casas Iguais, "Equal Houses" (Valens, Ptolomeu, Firmicus) como Angulares, "Quadrant Houses" (Valens, citando um autor [mítico] mais antigo, Orion). Tanto quanto Gansten afirma conhecer, não há [na literatura] declarações equivalentes formalmente esclarecendo o sistema de Casas-Signo nem [como afirmam os actuais promotores de tal "sistema"] que as casas calculadas segundo os graus específicos fossem utilizadas somente em situações [finalidades] específicas, como é argumentado. Logo, não pode ser aventado de modo convincente que o Meio-Céu astronómico usado nos sistemas Angulares tenha sido introduzido mais tarde do que o Ascendente, pois ambos radicam na prática pré-horoscópica Egípcia de anotar os decanos 'ascendentes' e 'culminantes' (https://astrology.martingansten.com/for-astrologers, aced. em 18 de Junho de 2023). No tópico Equal House System in Renaissance Astrology? (fórum skyscript.co.uk, Jun. 2018), Gansten referiu que a determinação de "lugares" através um suposto método de Casas-Signo nunca foi explicitamente exposto como sistema nas fontes, sendo talvez apenas uma aproximação, um método abrangente ("platikos") enquanto a alternativa [os verdadeiros 'sistemas'] eram decerto considerados mais precisos. Salienta  e reafirma que há passagens textuais que asseveram a utilização do que agora conhecemos como "Equal-House System" em Valens, Ptolomeu (com uma ligeira variação [refere-se decerto ao desfasamento de 5 graus]) e Firmicus, bem como de sistemas Angulares. Considera ponto crucial que a palavra "signo" ('um doze avo', em Ptolomeu), usual na referência aos signos zodiacais (Aries, Taurus, etc.) seja utilizada em mais do que um sentido nos textos, nomeadamente como uma unidade de medida para cada intervalo de 30 graus sucessivos.

Pelo contrário, Levente László (jovem filologista clássico), no mesmo fórum, afirma que todas as evidências da prática helenística apontam [por exclusão de partes?] para a utilização das Casas-Signo, não existindo provas de utilização concreta de divisões angulares antes do séc. V [interpretação ousadíssima, com um crivo demasiado "apertado"]. Em resumo, Levente afirma que até circa 500 AD, as interpretações das "instruções" [efectivamente parcas] de Ptolomeu (Tetr. III.11) bascularam entre um sistema de Casas Iguais ("Equal-Houses") e um sistema Angular ("Quadrant-based") proporcional, mas [na sua opinião] não era líquido que estes na realidade representassem a exposição de um "sistema de domificação" [opinião curiosa perante algo documentado, todavia não descartando um "sistema" hipotético que nunca foi sequer mencionado na literatura]. É [segundo Levente] Rhetorius quem, propriamente, descreve versões modificadas dos sistemas [que hoje conhecemos como] Porfirius e Alcabitius enquanto métodos de domificação, "aparentemente em conjunto com um sistema Casas-Signo" [acrescenta]. Tudo indica que os comentadores medievais [sendo Alī ibn Riḍwān, início do séc. XI, o primeiro que conhece] continuaram a interpretar as palavras de Ptolomeu como explicações para o delineamento de um "sistema" [no sentido que se tornará comum], porquanto a utilização das Casas-Signos cessa por essa altura. O célebre Robert Hand, após décadas em "azimutes" psicologizantes, abraçou este sistema (Whole Sign Houses: The Oldest House System, AHRAT Publications, 2000). Chris Brennan (Hellenistic Astrology: The Study of Fate and Fortune, Amor Fati Publications, 2017) e Benjamin Dykes (Introductions to Traditional Astrology: Abu Ma'shar & al-Qabisi, Cazimi Press, 2010, pp.18-19) também consideram que o sistema "Whole-Sign" é a base, sendo os sistemas mais complexos, com as suas "cuspis", somente utilizados em situações tópicas, pontuais [seguindo um raciocínio que acreditamos recuar ao argumentário do tradutor e "mentor" Robert Schmidt (1950-2018), um dos dinamizadores do projecto de traduções]. Noutra perspectiva muitas vezes expendida, estes últimos sistemas angulares decorrem de interpretações erradas, equívocos nos sucessivos processos de tradução e comentário. Numa opinião mais benevolente seriam inovações criativas que poderão ter "funcionado" comprovadamente em determinados processos.

Um paper recente (2023) de Martin Gansten (Platikos and moirikos: Ancient Horoscopic Practice in the Light of Vettius Valens’ Anthologies, International Journal of Divination and Prognostication, 4(1), 1-43; .PDF, 1.1MB) pode ser esclarecedor. Parte da análise de horóscopos apresentados por Vettius Valens e permite algumas extrapolações. A antiga prática implícita em muitas fontes textuais (mas nunca formalmente prescrita) de identificação, pelo menos provisional, dos doze "lugares" (dōdekatropos, os topoi impropriamente designados 'casas') com os signos zodiacais é hoje unanimemente aceite como característica da antiga astrologia, mesmo a nível conceptual. Todavia, após essa abordagem aproximada e tecnicamente muito simplista, o cálculo dos "lugares" pelos seus graus, com limites diferentes dos signos, terá sido consistentemente adoptada por ser mais rigorosa e útil. Gansten alerta-nos para o [especioso] argumento baseado no silêncio (",,,from silence", p.12) que assume um discurso deste jaez: 'se um horóscopo é apresentado de modo básico (como prevalece nos exempla disponíveis), está provado que não foi utilizado qualquer sistema complexo que permitisse conhecer os graus, ergo comprova-se definitivamente o uso de um sistema de Casas-Signo ("Whole-Sign Houses")'. Ora, certamente esses exemplos deixaram de fora muita informação a que hoje não temos acesso mas que foi por vezes (comprovadamente) utilizada na sua elaboração. Conclui-se que era comum formular uma opinião geral sobre a natividade pela simples distribuição dos planetas e do Ascendente pelos signos, i.e. uma aproximação baseada somente nos signos. Mas após esta abordagem geral, verificava-se com grande probabilidade (e com toda a certeza no autor estudado) a determinação rigorosa de graus para evitar erros e refinar julgamentos, em diversas áreas da prática horoscópica. Por isso é duvidoso que a abordagem 'geral' possa sequer ser considerada um 'sistema', pelo menos no trabalho de Valens (pp.39-40).

As supostas "Whole-Sign Houses" parecem ter insuflado uma nova vida neste negócio. O tema surge na sequência do Project Hindsight de traduções de textos "clássicos, promovido por astrólogos. Uma iniciativa muito meritória. Contudo, a ausência de respaldo académico, a selecção e segmentação dos textos traduzidos, a urgência com que por vezes se divulgavam "novidades", comentários interinos e interpretações precipitadas, geraram algumas cautelas, Resultou um acervo interessante de traduções ou, pelo menos, uma base para edições mais buriladas (num contexto académico recorre-se a um conjunto alargado e comparado de fontes, comentários e ao escrutínio dos peers), Aqui a verdadeira questão coloca-se na ulterior interpretação de trechos seleccionados, com as peremptórias conclusões eventualmente retiradas.

Na nossa opinião, a realidade histórica da existência de um "sistema" de "Whole Sign Houses" é inconseguida. Tememos que se esteja a criar "tudo" a partir do "nada". Parte-se do princípio da presença de uma tradição "primeva" e completa, sem acautelar a sua diversidade, dinâmica e fluidez. Opina-se aprioristicamente, chegando a "conclusões" sem acautelar as anomalias. Se a esmagadora maioria dos horóscopos da Antiguidade tardia não apresenta divisões como as que mais tarde se tornarão regra, isso não significa necessariamente a presença de um sistema "arquetípico", nunca explicitamente referido (ao contrário das múltiplas instâncias em que se encontram referências e até instruções para o cálculo dos topoi). Numa abordagem "panorâmica" do thema horoscópico bastaria provavelmente considerar somente algumas presenças fundamentais (os asterismos que ascendiam, o lugar dos planetas, aspectos abrangentes, etc.) de modo "plático", i.e. aproximado, nos signos. Parece consensual e nesse sentido tudo seria razoável. Provavelmente era apenas uma conveniência, [O blogger Anthony Lewis humoriza: o que concluiriam os historiadores do futuro se encontrassem somente os inúmeros exemplos da astrologia de jornais e revistas do século XX? (The House Wars of Astrology, Feb. 11 2023). É esse o problema das estatísticas, também nos horóscopos do passado. Representarão a prática real, completa?] Entretanto, a actividade astrológica informada e apetrechada recorria a verdadeiros 'sistemas', documentados desde muito cedo, que permitiam calibrar e detalhar as relações geométricas (e.g., aspectos) e a informação posicional. Apesar dos exempla simplificados, diversos autores aconselham veementemente os seus leitores a não desprezarem a pormenorização dos graus específicos:

Sextus locus in VI. ab horoscopo signo constituitur; qui a CL. parte horoscopi initium accipiens usque ad CLXXX. extenditur. In hoc signo causam vitii ac valitudinis inveniemus. ("O sexto lugar é constituído pelo sexto signo [a partir] do ascendente, o qual, tomando o seu início do 150º grau contado do ascendente, se estende até ao 180º. Neste signo, encontraremos a causa do defeito e enfermidade")
(Firmicus, Mathesis II 19)

χρὴ μὲν οὖν ἀκριβῶς καὶ μοιρικῶς τοὺς κλήρους ἐξετάζειν · πολλάκις γὰρ κατὰ μὲν τὴν πλατικὴν θεωρίαν εἴς τι ζῴδιον συνεκπίπτει ὁ κλῆρος, κατὰ δέ τὴν μοιρικὴν εἰς ἄλλο · συμβαίνει δὲ τοῦτο παρὰ τὰς τῶν φώτων καὶ ὡροσκόπου μοίρας <εἰ> ἤτοι ἐπὶ τέλει ἤ ἐν ἀρχαῖς τῶν ζῳδίων εὑρίσκεται. ("É necessário examinar as 'partes' com cuidado e por grau, pois muitas vezes a 'parte' estimada aproximadamente cai num signo mas, usando graus, em outro [signo]. Isto acontece por conta dos graus dos luminares e do ascendente [se] estes se encontrarem no final ou no início dos signos.")
(Valens, Anthologiae, II 37)


A autora e astróloga Deborah Houlding contesta abertamente o "pensamento único" e a promoção das "Whole Sign Houses" (The Sign, the Whole Sign, and Nothing But the Sign... Really?).
Salienta que a principal função simbólica e prática da domificação é a interpretação do tempo, dos efeitos do movimento diurno, in Mundo (circunstâncias locais), a "inspecção da hora" (v. etimol. de horoskopos), o movimento ascensional ou descensional, a "culminação", em suma, a angularidade. Segundo Houlding, a abordagem desinveste da fundamental angularidade e pode (em condiçoes específicas) "violar" o 'princípio' do movimento primário (diurno), ao permitir que um planeta possa 'retrogadar' nas casas, contrariando o simbolismo inerente.

Em resumo, na afirmação das "Whole Sign Houses" parece haver demasiado wishful thinking, selecção de evidências (num eixo negativo de coordenadas, a partir de "ausências") e marketing. "The past is another country": o que sabemos dos horóscopos "básicos", com reduzidos ou imprecisos detalhes posicionais? Que procedimentos e eventuais cálculos preparatórios, originalmente apensos e a que não temos acesso, os acompanhariam? Não sabemos quase nada. Falamos de uma época anterior à imprensa em que suportes, tabelas e outros recursos eram escassos, preciosos, onde se privilegiava a oralidade e, por vezes, o recurso a 'tabuleiros horoscópicos' demonstrativos (conhecidos como pinax) ou a diagramas circulares. Não há na literatura primária uma descrição explícita de um suposto "sistema" (a questão é também semântica) no qual as casas coincidissem com os signos. O nosso conhecimento é provisional.

Team Whole Sign Houses
"Team Whole Sign House";
Neurospicy Astrology Channel (YouTube) [Sem comentários]


A "doutrina" dos 5 graus

Uma convenção muito generalizada resultava numa "deslocação" de 5º nas Casas e considerava esta geometria para a abordagem astrológica ao cálculo dos Aspectos (relação geométrica entre os planetas e entre estes e diversos pontos nevrálgicos) e das Dignidades (cada sítio do Zodíaco pertence a um planeta segundo uma hierarquia de "dignidades"), em particular no importante eixo Ascendente-Descendente), uma "regra" de Ptolomeu documentada na prática do bizantino Rhetorius (North, 1986:45; 1988:7). Assim, os 5 graus zodiacais adjacentes ao Ascendente, acima do Horizonte já pertenciam à Casa I, que se estenderia até 25º abaixo do horizonte. Sem este expediente, esta porção "diurna" (acima do horizonte) do Zodíaco pertenceria à Casa XII (a "Casa Dozena" da nossa antiga tratadística). Também encontramos esta prática nos manuais em Português, vide o célebre Thesouro de Prudentes (editio princeps: 1612) do mathematico Gaspar Cardozo de Sequeira (Lib.4, Tratado 4, Cap.14), aquando da determinação do Senhor ou Dominador da Casa, i.e., o planeta com mais alta influição (que aí detém mais Dignidades Essenciais: Domicílio, Exaltação, Triângulo, etc.). Resulta, decerto, da interpretação de uma passagem do Tetrabiblos de Ptolomeu (III.10 ed. Robbins; III.11 ed. Boll-Boer) relacionada com a escolha do Prorogator ou Apheta (Ar. al-haylaj, o Hyleg, Hylech ou Ilec medievais, utilizado para o cálculo da longevidade) e dos seus loci adequados/elegíveis, vide excerto na tradução de F. E. Robbins (Harvard University Press, Loeb Edition, 1980, p.273):

"In the first place we must consider those places .... in which the planet must be that is to receive the lordship of the prorogation; namely, the twelfth part of the zodiac surrounding the horoscope [=ascendente], from 5° above the actual horizon up to the 25° that remains, which is rising in succession to the horizon (...)."

Chaucer (ii.4) refere-se a esta geometria "after the statutes of astrologiens". Pèlerin de Prusse, no seu Livret de eleccions (Laird & Fischer, Op. cit., p.99) explicita-a: "Por exemplo, a primeira casa nesta figura [demonstração do autor segue um exemplo] começa no 10º grau de Aries, ao qual acrecento 5 graus de modo a que o seu poder [ou domínio] começará no 5º grau de Aries. A segunda casa começa aos 9 graus de Taurus, aos quais acrescento 5 graus e começará a 4 graus de Taurus. (...) E deveremos proceder para todas as casas desta maneira." [trad. nossa]

Apesar de ser comum considerar que Ptolomeu se referiu a casas ou lugares "iguais", de 30º cada, um excerto do contemporâneo Antiochus, mantendo o procedimento dos 5º, pressupõem inequivocamente divisões desiguais:
"Each of these 12 places obtains as its lot the 5 pre-ascended degrees and the 25 post-ascending degrees, if the squares [i.e., the angles] should occur through ninety degrees, divide the degrees of the square numbers equally into three parts, and you know how many degrees each place of the zodiac has." (Thesaurus, ch.46, p.32; trans. R. Schmidt, ed. R. Hand, Project Hindsight "Greek Track" Vol.II-B, Golden Hind Press, 1993)


Domificação: resumo

Ptolomeu não demonstra preocupação com a exposição do delineamento das casas, ao contrário do que acontecerá nos textos de outros astrólogos da sua era e nas práticas de grande parte dos astrólogos Islâmicos e Cristãos. A preocupação com a classificação dos sistemas ou métodos é relativamente recente, acontecendo a partir da Renascença. Quase todos os horóscopos medievais seguem operações bem assimiladas e quase intuitivas. Utilizou-se amiudadamente o astrolábio, com limitações em termos de precisão mas dispensando a necessidade de tabelas. Isto deixará de acontecer a partir da adopção de sistemas matematicamente mais exigentes, pós-Regiomontanus, que parecem ter criado uma clivagem entre o praticante e a sua "arte", no que ao entendimento "intuitivo" das operações geométricas diz respeito.

As técnicas mais utilizadas no astrolábio europeu medieval são as descritas pelo influente (pseudo-)Masha'allah, que encontrámos em Chaucer, Pèlerin de Prusse e nas retrospectivas de autores como Stoeffler ou Jacquinot, entre outros. O procedimento habitual trissecta cada quadrante utilizando os arcos alternados das horas desiguais (II, IV e VIII, X...) pois cada casa demorará em média 2 horas para atravessar o Meridiano. As divisões homogéneas tornam-se desiguais quando, utilizando os Pólos da Esfera, são geometricamente transportadas e "convertidas" em longitudes eclípticas (o que no astrolábio significa, tão somente, utilizar a régua/agulha e verificar, a partir dos pontos da divisão equatorial, os graus do Zodíaco que correspondem). O método respalda-se no desenho prévio dos quadrantes, a partir do grau ascendente e do grau que culmina. Ptolomeu não expõe qualquer método (Eade, 1984: 44) mas, em todo o caso, assistimos à génese de um método de divisão em casas iguais, decorrente da interpretação de uma passagem do Tetrabiblos (III, 10), também descrito no séc. IV por Firmicus Maternus na sua Mathesis (II, 19). Foi ainda utilizado (numa primeira fase) por Cardanus (Gerolamo Cardano) em pleno séc. XVI. Noutro registo, a chamada "contagem dos Signos" parece estar presente (mormente) em autores Islâmicos e Hebraicos, traduzindo uma prática radical (i.e., proveniente de raízes Helenísticas). Todos estes modus seriam imediatamente exequíveis no astrolábio.

Por contraposição, qualquer sistema "fixo" (na adjectivação de North, vide supra) que utilizasse eixos cardeais definidos por pontos do Horizonte local (não dependendo de um ponto ascendente particular, antes desenhando quadrantes formados pelas duas linhas perpendiculares Meridiana-Meia-Noite e Este-Oeste) e vinculado a uma latitude específica, só poderia teoricamente funcionar quando os pontos Aries ou Libra ascendessem exactamente no ponto geográfico Oriental. Nas restantes circunstâncias seria necessário o desenho das linhas adequadas no tímpano (para leitura imediata das cúspides). O célebre sistema de Regiomontanus é exemplo, vide acima imagem de lâmina com as linhas referidas e imagem seguinte.


Esquema da Esfera com dois círculos de posição (passando nos pontos Norte e Sul do Horizonte local) no sistema atribuído a Regiomontanus (fonte: radixpro.com)

Numa nota final, a domificação é naturalmente integrada com a doutrina astrológica dos aspectos (distâncias angulares significativas de 60º, 90º, 120º ou 180º). Como Poulle (Op. cit., pp.129-130) resume, devem ser considerados 3 tipos de aspectos, em função dos círculos da Esfera sobre os quais são apreciados: o primeiro respalda-se na Eclíptica, o segundo, relacionado com Ptolomeu, baseia-se no Equador (onde o aspecto é ponderado como a diferença entre as ascensões rectas dos pontos considerados, no Zodíaco). No terceiro método, os aspectos ganham a designação de radiationes: contados no Horizonte do lugar, diferença entre as ascensões oblíquas das posições dos pontos (i.e., lugares dos planetas ou outros pontos nevrálgicos) sobre o Zodíaco. O método envolve a conversão das ascensões rectas em ascensões oblíquas. Como Josep Casulleras explica (ibn Mu'adh on the Astrological Rays, Suhayl 4, 2004), a doutrina medieval da 'Projecção dos Raios' era por vezes definida em termos de "raios emanados" pelos planetas/pontos em direcções astrologicamente significativas. A teoria da projecção dos raios está impregnada dos princípios coevos das cogitações sobre óptica e a natureza da visão:

"'Seeing' originally meant 'casting rays upon', and was derived from the very common theory of vision according to which the eye sends out rays to 'grasp' the object. (...) The basic idea, then, is the emission and reception of influence. Precisely the same is behind 'aspect', the Latin 'aspectus' meaning 'seeing'." (Tester, S. J., A History of Western Astrology, The Boydell Press, 1999 (1987), p.140)

A geometria inerente aos aspectos considera relações angulares de 60, 90, 120 ou 180 graus, para além da conjunção. Deste modo, cada corpo celeste emanava sete raios, como está explicado numa Introdução ao Tetrabiblos atribuída a Porphyrius (CCAG, Vol. 4, Brussels, 1940, 198, 19–21): "Três são enviados de cima, e vão para a direita; três são enviados de baixo e vão para a esquerda; um é enviado ao longo da linha do diâmetro". No âmbito da geometria das casas celestes, daqui decorre que as casas II, VI, VIII e XII são consideradas inconiuncta (não têm qualquer relação em termos de aspecto com o Ascendens), o que determina as inerentes leituras astrológicas desfavoráveis. Abraçando a complexidade (considerada prestigiante) e a consonância com outros sistemas astrológicos (como a domificação ou as progressões (tasyr), o cálculo dos aspectos exigia a projecção da longitude do planeta no círculo equatorial (das Ascensões Rectas, como era praticado no método-padrão de divisão das Casas), devolvendo depois o ponto "aspectado" à Eclíptica. Procedimentos mais complexos tomavam em consideração também as latitudes eclípticas. A agilização passava, tecnicamente, por um de três expedientes: tímpanos astrolábicos adequados, tabelas ou algoritmos (vide Kennedy, E. S. and Krikorian-Preisler, H., The Astrological Doctrine of Projecting the Rays, Al-Abhath, 25, 3-15, repr. in Kennedy, E. S., Studies in the Islamic Exact Sciences, Beirut, 1983; Hogendijk, J. P. , The Mathematical Scructure of Two Islamic Astrological Tables for 'Casting the Rays'", Centaurus, 32, 1989, pp.171-202). Como Julio Samsó explicou, outro tópico relacionado é o do tasyir, a já referida técnica (que se chamará 'progressões') que determina o intervalo de tempo até que algo venha a acontecer (era utilizada, por exemplo, no cálculo da longevidade do nativo). Baseava-se na teoria do apheta explicada por Ptolomeu no Tetrabiblos e por outros autores (e.g., Dorotheus), sendo provavelmente mais antiga. O procedimento consistia em dirigir ou deslocar artificialmente um planeta, uma cúspide de uma casa (ou qualquer outro ponto relevante) para outro "sítio", aspecto ou casa, de modo a calcular o número de graus entre os dois pontos ('chamados 'significador' e 'promissor'). O número de graus correspondia a um período de tempo, de acordo com regras da equivalência. ("Astrology", Op. cit., p.289; Casulleras, J. & Hogendijk, J.P.: Progressions, Rays and Houses in Medieval Islamic Astrology: A Mathematical Classification, Suhayl 11 (2012), pp. 33-102)

 

A Precisão do Astrolábio

Seria um anacronismo comparar a precisão com a de qualquer instrumento científico actual. Ademais, entre os historiadores é consensual que o Astrolábio nunca foi utilizado como instrumento observacional de precisão (Kremer, Richard L., Astrologers and astrolabes: The Niederaltaich horoscope of 1514, AAS Meeting, 1983). Também na utilização astrológica documentada é comum, pelas incorrecções dos horóscopos ou arredondamentos, saber quando os cálculos foram feitos recorrendo exclusivamente a este instrumento. Seria útil para a exposição de princípios teóricos, como modelo, e para alguns cálculos aproximados. Segundo R. K. E. Torode (A study of astrolabes, Journal of the British Astronomical Association, vol.102, no.1, 1992), a precisão do astrolábio tem limitações que lhe são inerentes pois, em termos práticos, é impossível conseguir leituras mais precisas do que 1/2 grau e porque a escala varia imenso em função da distância ao eixo da projecção [Como regra, quando encontramos horóscopos históricos com informação dos minutos de grau, sabemos que foram utilizadas tabelas e não um astrolábio]. O mapeamento das estrelas não é fácil nas regiões adjacentes ao anel zodiacal e noutras partes da estrutura da aranha. O design adoptado implica compromissos.


Estampa representando a "rete" ou "aranea" de um Astrolábio, apontando e identificando diversas estrelas e incluindo o anel excêntrico representando do Zodíaco. A Treatise on the Astrolabe, Walter W. Skeat (ed.), Trubner & Co., 1880 (1872). Veja-se, no topo, o al-muri, o "elmuri" do Libro del saber. Originalmente um pequeno ponteiro ou "mão" colocado na no início de Capricórnio (longitude 270º, onde o círculo zodiacal toca a escala graduada na periferia do instrumento) utilizado para aí obter medições.

Rete de astrolábio nda época de Chaucer
Rete de um astrolábio da época de Geoffrey Chaucer, com 29 estrelas devidamente precessionadas, in: North, J. D., Chaucer's Universe, p.547. (v. adenda: nomes das estrelas nos astrolábios latinos)


Pela nossa experiência, no cálculo das horas (e.g., nascimento, trânsito, ocaso de um astro), uma aproximação até 7 ou 8 minutos (~2 graus) é facilmente conseguida. 4 minutos será uma boa aproximação (NB: 360º equivalem às 24 horas do movimento diurno, ergo, 4 minutos de tempo equivalem a 1º). A medição de alturas (elevações) é possível mas difícil com instrumentos pequenos (daí a "adaptação" náutica, mais simples, instrumento maior e mais pesado).


Um dos modernos astrolábios utilizado nas nossas aferições (clicar para ver imagem completa)

Numa abordagem prática da determinação das cúspides das casas astrológicas utilizaram-se astrolábios gizados para a latitude 40º N. Significa que não se respeitou a diferenciação da latitude nos exempla literários utilizados, como seria metodológicamente correcto. Determinaram-se casas intermédias a partir do conhecimento do Ascendente (cúspide da casa I) com exemplos recolhidos em Eade, p.46 ("Comparison of Results", para lat. 52ºN), especificamente o que se respalda no que o autor designa como "Right Ascension System"), Eisner, p.290 (cit. "ensaumple to the forseid conclusioun", acrescentado por copista num ms. do Treatise de Chaucer) e Laird e Fischer, p.96 (exemplo incluído no Livret de eleccions de Pèlerin de Prusse, apenso nessa edição; exemplo vinculado à latitude de Paris. Aqui, o grau referente à casa III foi decerto erradamente transcrito (cf. dissertação de Floriane A. Gaignard: Le dauphin et l’astrologue: le Livret des elections universelles des 12 maisons de Pèlerin de Prusse, Université de Montréal, 2014, p.72, onde se grafa o valor correcto).

Neste pequeno universo de três exempla verificou-se um desfasamento médio de 1.5 graus, aceitável atendendo às latitudes diferenciadas. Finalmente, uma comparação com resultados informáticos (Astrolog, Walter D. Pullen), software configurado para as devidas coordenadas geográficas (Aveiro) e para o sistema de divisão Alcabitius. Utilizou-se, como pretexto, o ascendente de 18º Aquarius (o "nativo" é o autor desta página). Não se verifica diferencial relevante em qualquer leitura (ver tabela seguinte), apesar de duas das cúspides (diametralmente opostas) caírem em signos diferentes (porque quase coincidentes com limites dos signos). Ou seja, resultado naturalmente mais aproximado do que nos worked examples, obviamente sem a precisão dos algoritmos informáticos. Não se assemelhou exequível detalhar fracções de grau na determinação analógica.

O recurso a este instrumento nunca permitiu o rigor proporcionado pelo cálculo ou pela utilização de informação tabulada, tendo há muito sido preterido. Permitia uma aproximação dentro dos limites da sua, digamos, "geometria de compromisso", em muitos casos suficiente.

 
O astrolábio exigia uma construção meticulosa, o que nem sempre se verificava devido à complexidade e ao contexto tecnológico. Levantavam-se problemas complexos (e.g., a divisão do Calendário em 360º e 365 dias com intervalos rigorosamente iguais), meses diferentes, a existência de anos bissextos, etc. Assistia-se muitas vezes a simplificações. No estudo alargado de astrolábios históricos levado a cabo por Torode (Op. cit., pp.25-30) elencam-se outras disfunções relativamente comuns: a representação do Zodíaco nem sempre é rigorosamente circular ou é dividida (de modo errado) em intervalos iguais, a deficiente articulação mecânica entre as partes determinando desfasamentos em pontos nodais (e.g., equinócios, solstícios), o expediente utilizado para indicar a posição das estrelas (apontadores imprecisos ou pouco "aguçados" não identificam claramente as posições). A escolha de algumas estrelas (preterindo outras mais conspícuas) pode ter estado relacionada com a facilidade ou inconveniência do "mapeamento". A montante, o movimento dos auges e estrelas fixas, ou seja, da Precessão dos Equinócios, "...que vem a ser o espaço que o primeiro ponto de Aries do Asterismo se tem apartado do primeiro ponto de Aries do Decatemorio da decima esfera." (Fr. Antonio Teixeira, Epítome das Notícias Astrológicas para a Medicina, Lisboa, 1670, p.335). [O apogeu e o perigeu são os pontos do movimento mais lento e mais rápido, respectivamente, habitualmente designados "aux" e "oppositio augis", respectivamente. Paleograficamente, encontramos "sublimatio" por "aux", particularmente nos textos medievais mais antigos].

O zodíaco da Astrologia chamada "Ocidental" (especificamente na do Ocidente latino) é nocional, baseia-se nos pivotais Equinócios e Solstícios, reportando-se, como se dizia no passado, à 9ª Esfera, a dos Signos, e não à 8ª Esfera, que a astronomia universitária medieval reservará para as estrelas "em corpo" (entretanto desfasadas em longitude devido ao movimento de Precessão), que haviam motivado num passado remoto a identificação desses mesmos Signos (ver imagem seguinte). É Tropical e não Sideral (este último segue as estrelas "actuais", acautelando assim a Precessão, e.g., a tradição indiana Jyotisa, que através de um Ayanamsa (um parâmetro que funciona como uma espécie de "epacta"), procura estabelecer a diferença entre os zodíacos sideral e tropical). Segundo Martin Gansten (numa entrevista no âmbito do Astra Project), a classificação não é linear pois também é possível encontrar técnicas ou tabelas com enfoque 'sideral' (e não 'tropical'), noutras tradições astrológicas (e.g., no contexto Islâmico, infuenciado pela tradição iraniana).


O Universo Geocêntrico no Tratado da Esfera de Sacrobosco (edição de Melanchthon, 1538); gravura reproduzida em 1870 no The Treatise on the Astrolabe de Chaucer, por Andrew E. Brae (ed.). Observe-se o desfasamento entre Signos Tropicais e constelações


James Evans, (Op. cit., pp.250 et seq.) expõe os métodos clássicos para a medição das longitudes das estrelas, nomeadamente utilizando a diferença da longitude do Sol (sobejamente conhecida do calendário solar) para a da Lua (medida no crepúsculo); no segundo momento, a partir da Lua, determinava-se a de algumas estrelas fixas entretanto visíveis, de referência para as restantes e para os planetas. A questão do ritmo da Precessão e o acúmulo de imprecisões deram origem à teoria da "Trepidação" ("accesus et recessus"), que foi atribuída a Thabit ibn Qurra (autoria é hoje questionada) e que "equivocou" a Astronomia durante um milénio. [ver a excelente explicação de Evans, pp. 274 et seq., exposta nesta nossa página]

Muitos astrolábios introduziam coordenadas incoerentes a partir de listas de estrelas vinculadas a épocas distintas (diferentes valores para a precessão), amiudadamente desactualizadas [Paul Kunitzsch, como já referido, criou uma pertinente tipologia das tabelas de estrelas representadas nos astrolábios, vide Typen Von Sternverzeichnissen..., 1966, p.28]. Estas e outras questões são enfocadas no contexto da análise de um astrolábio medieval neste interessante paper de Bennett & Strano (The So-Called ‘Chaucer Astrolabe’ from the Koelliker Collection, Milan; Brill, 2014; .PDF, 2.16MB).

Giorgio Strano (A New Approach to the Star Data of Early Planispheric Astrolabes, in: Astrolabes in Medieval Cultures, Op. cit., ch.14) contextualiza as abordagens relacionadas com a datação de instrumentos históricos e veicula o criticismo aos que se respaldam na posição do ponto Vernal ou na informação precessional das estrelas representadas na rete:

"(...) Such methods usually overlooked the many problems behind the instruments’ design and construction and the vicissitudes in a particular object’s history. Criticisms of the naiveté of the scientific approach did not persuade scholars with an astronomical background." (p.447). E ainda: "Among the “scientific” methods to accomplish the purpose, two are largely preferred. They both rely upon the implicit assumption that astronomers in the past acted in the same way that they do today and that they always used reliable, freshly gathered data. By following this line of reasoning, the astronomical information represented on an instrument would approximate the real sky at the moment of the instrument’s creation." (ibid).


Contradizendo o método da posição do Ponto Vernal, favorecido por Robert Gunther nos anos 20 do século passado, Henri Michel (Traité de l’Astrolabe, 1947) havia apontado dois problemas: 1) o sistema horário dos astrolábios mais antigos era astronómico, contado em horas equinociais a partir do Meio-Dia; 2) o ciclo dos anos bissextos produzia uma oscilação na data do equinócio de mais ou menos 12 horas). Strano (p.453) refere que, uma vez transformado em anos, o somatório das incertezas de qualquer tentativa de datação em função da posição do Ponto Vernal ascende a mais ou menos 230 anos, o que é demasiado. Isto sem considerar outras fontes de erro, como a utilização de informação desactualizada (e.g., instrumentos, tabelas) no fabrico dos instrumentos. Quanto ao posicionamento das estrelas na rete, Roland Torode propôs uma abordagem estatística, procuranto calcular a média dos desvios individuais detectados no incoerente posicionamento e obter um resultado mais fiável. Em suma, estes métodos são problemáticos. Todavia, Strano concede que, mesmo não descrevendo o céu no exacto momento da fabricação do instrumento, estas informações podem ser consideradas fontes 'não-textuais' contendo informações com interesse, nomeadamente relacionando conjuntos de instrumentos com antigas tabelas de posições de estrelas (pois é nesse tipo de documentação que reside a "raw data" utilizada no desenho dos exemplares).


Articulação do Calendário Juliano com o Zodiacal. A data assinalada com traço vermelho (10 de Março) corresponde ao início de Aries (à esquerda de "AR") neste astrolábio do século XV (King & Turner, The astrolabe presented to Cardinal Bessarion by Regiomontanus in 1462, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1994). Este instrumento é obviamente anterior à correcção gregoriana, que acontecerá em 1582. O princípio de Aries deverá, num astrolábio actual, opor-se a 20-21 de Março

 
- A Catalogue of Medieval Astronomical Instruments (Provisional Table of Contents, May 2002, David A. King)


Por fim, como "anticlímax", perguntamos: será que os astrolábios eram mesmo utilizados? O especialista Derek Price sugeriu, nos anos 70 do século passado, que o teriam sido bem menos do que supomos. Também Emmanuel Poulle. Segundo David A. King (The Astrolabe: What it is & what it is not (A supplement to the standard literature), Frankfurt, 2018, p.37), outros instrumentos seriam opção em tarefas especializadas, mas decerto foi recurso didáctico e o instrumento a ter, coleccionar, conhecer, mostrar ou oferecer. Sempre parece ter havido um prestígio associado, por isso há muito contrafacção (vide por exemplo Gingerich, O. & King, D. & Saliba, G., “The ‘Abd al-A’imma astrolabe forgeries”, Journal for the History of Astronomy, 3 (1972): 188-198, repr. in King, Islamic astronomical instruments, VI) e as peripécias envolvendo as falsificações detectadas pelo antiquário e livreiro Alain Brieux (1922-1985), estabelecido na rue Jacob em Paris.

 

Na prática...

- Replicando uma experiência de muitos séculos (recurso pedagógico disponibilizado por Dominic Ford)

Os actuais e acessíveis astrolábios pedagógicos são rigorosos na geometria, actualizados e substituem a aranha por uma layer transparente que inclui um mapa relativamente legível e rigorosamente precessionado.

As melhores réplicas e exemplares "actualizados" (atenção à escolha adequada da lâmina - latitude) são os instrumentos de Torsten Hiller (CHRONOS-Manufaktur) (que continua a tradição de excelência de Martin Brunold) e os de Brigitte Alix.


- Versão "ready-made":

- ASTROLÁBIO - LATITUDE 40ºN (.PDF, 297KB; para outras latitudes, aceder ao sítio in-the-sky.org)

Montagem...

- Convém imprimir em cartolina ou papel com boa gramagem, eventualmente colando numa base. As pranchas 1 e 2 (Figure 1 e Figure 2 no ficheiro PDF disponibilizado) são as duas faces da base. A 2ª equivale ao tímpano para o nosso "clima" ou latitude (no site de origem é possível produzir versões para outras latitudes). O resultado permite compreender e praticar as funcionalidades do astrolábio. Todavia, a estrutura frágil dificilmente permitirá medições de altura fiáveis.

- 4 (Figure 4) é o equivalente à "aranha" (rete), aqui um verdadeiro mapa. Imprimir em suporte transparente (acetato)

- 3 (Figure 3) inclui a régua e a alidade.

- No final, fixa-se tudo com um "eixo" improvisado, integrando a régua frontal e a alidade (no dorso do instrumento)


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Adenda: alguns nomes de estrelas astrolábicas no ocidente latino

Os nomes das estrelas surgem em muitas variantes e nem sempre associadas aos "alvos" correctos, problema de uma cultura de traduções, transliterações e cópias manuscritas, com as incertezas inerentes. Nesta lista (.PDF, 144KB) com nomes provenientes do Ms. Fermo No .85 (séc. XIII), Biblioteca Comunale, Fermo, Itália. (Kunitzsch, P., Zur Problematik der Astrolabsterne: eine weitere unbrauchbare Sterntafel, Archives internationales d'histoire des sciences 43. Roma, 1993, p.204) estão indicadas (ícone desenhado com três pontos) as estrelas que se enquadram na classificação "Type III" de estrelas astrolábicas do editor. Como se pode inferir, os nomes radicam em transliterações de nomes arábicos ou respaldam-se na descrição latina do posicionamento na respectiva constelação (cor scorpionis, cauda galline, etc). Por vezes assumem forma "híbrida" e até redundante, e.g., humerus equi alferas, descrição latina ("escápula do cavalo") seguida de designação proveniente do Ár. al-faras, i.e. "o cavalo"). Em alguns casos, basta alterar uma ou outra letra para conseguir interpretar a forma corrompida, e.g., rascaben - rastaben - a "Rastaban"Draconis) dos atlas mais recentes. Baseada no Ár. ra's al-thubãn (originalmente: ra's al-tinnin (a "cabeça da serpente"). Os nomes foram amiudadamente transladados para outras "coordenadas".

No chamado "Old Corpus" (designação de Kunitzsch) de textos do astrolábio, acompanhado por uma lista de 27 estrelas, bem como nas "aranhas" mais antigas e próximas das fontes hispano-arábicas, não encontramos nomes próprios latinos (muito menos gregos, reintroduzidos tardiamente, em particular na Renascença)
. Também ainda não encontramos disseminadas as simples descrições em Latim (e.g., cor scorpionis, o "coração do escorpião", α Sco; cauda galline, a "cauda da galinha", α Cyg), Nunca, como referido, nomes como Capella, Arcturus, Spica, Antares, Sirius ou Procyon. Nessa época recuada encontramos (entre outros) os da lista seguinte, numa das variantes/alternativas.

Existe
um núcleo relativamente estável de estrelas (na identificação, raramente na grafia dos nomes), sendo o seu número necessariamente limitado pelo espaço disponível na aranha dos instrumentos, A seguir, as estrelas identificadas por Dekker e Kunitzsch (a partir da informação posicional) num instrumento do séc. X (o já referido e conhecido "Astrolábio Carolíngio" ou "Astrolábio de Barcelona", Musée de l'Institut du Monde Arabe (Paris), inv. no. AI 86-31; foto ©IMA): Paul Kunitzsch & Elly Dekker, The stars on the rete of the so-called 'Carolingian Astrolabe', in: From Bagdad to Barcelona, Studies in the Islamic Exact Sciences in Honour of Prof. Juan Vernet, Barcelona 1996, vol. 2, pp. 655-672. Curiosamente, a lista não inclui a estrela mais brillante do firmamento: alhabor (Sirius). Em todo o caso, critério estaria relacionado com as longitudes e condicionado pela morfologia e estrutura dos instrumentos. Para os nomes mais tardios, da mesma tradição, elencados na lista apensa às edições das Tábuas Alfonsinas, v. Kunitzsch, P., The Star Catalogue Commonly Appended to the Alfonsine Tables, JHA, xvii (1986).
 
N.B.: instrumento não nomeia qualquer estrela. Lista elenca a grafia dos nomes mais antigos documentados no ocidente Latino, em tabelas de estrelas e instrumentos. Equivalências com a letra de Bayer/Constelação são de D. e K., bem como as referências originais arábicas, excepto onde assinalado)
 
alcimec, alhimech, asimec, azimec (α Vir) - as-simak al-a’zal
*
aldebaran, aldevaran (α Tau) - al-dabarãn
alfard (α Hya) - al-fard
alfeca, alfecat, elfeta (α CrB) - al-fakka
alferat, alferas, halferaz (β Peg) - mankib al-faras (nome foi alterado, provavelmente transferido de β Peg para α And)
algol (β Per) - ra's al-ghũl (um dos mais antigos, adoptado desde o séc. X)
algomeza, algomeiza, algoize (α CMi) - al-ghumaisã (transferido para β CMi)
algurab, ganamalgurab (γ Crv) - al-ghurãb
alhaioch, alhaioth, alhaiot, alioc (α Aur) - al-anz ou al-'ayyuk **
alhawi, alhauui (α Oph) - ra's al-hawwã'
alramech, aramech, ariamech (α Boo) - al-rãmih
**
alrif (α Cyg) - al-ridf
altair, altayr, altahir (α Aql) - al-nasr al-tã'ir
alrrucaba, alrucaba, arrucaba (θ UMa) - al-rukba ou rukbat al-dubb
benenaz, bennenas (η UMa) - banãt na'sh (alternativamente conhecida como alkaid, com etimologia diversa)
calbagra, calbalagrab (α Sco) - qalb al-'aqrab
calbalaze, calbalazeda, calbalacet, kalbeleced, (α Leo) - qalb al-'asad
delfin (ε Del) - al-dhanab al-dulfim (astrónomos árabes adaptaram designação ptolomaica da constelação)
**
denebalix (δ Cap) - dhanab al-jady
egreget (ι Cnc) - provável corrupção latina de al-rijl
pantangaitot (ζ Cet) - batn qaitus
rigel, rigil (β Ori) - rijl al-jauzã'
wega, vega (α Lyr) - al-nasr al-wãqi'

* emparelhada com as-simak ar-ramih [Arcturus] enquanto "as-simakan", os dois "postes" que elevavam o "tecto" do céu, na enorme figura do leão arábico, al-asad, que se estendia por 135º; v. ilustr. (Danielle Adams)
**
Richard Hinckley Allen, Star Names and Their Meanings, G. E. Stechert, New York, 1899.

- Vide conteúdos relacionados na pág. cartografia (inclui sucinta bibliografia)

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