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Diversos tópicos com enfoque histórico
ciclos e regularidades fundamentais | culturas/intercâmbios | relógios | instrumentos pré-telescópicos | mundividências | tempo qualificado e ciclos | astrologia | sistemas de referência - o zodíaco | "a escrita do céu" | o modelo geocêntrico | excêntricos e epiciclos | a idade média: o ensino, compatibilização do aristotelismo, a perspectiva islâmica, a síntese tardo-medieval e renascentista | desenvolvimentos... | perspectivas contemporâneas... | a era espacial...
"Disse Deus: Haja luminares no firmamento do céu para separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos." (Gn. 1,14) "...But back when the sky was not just an illusion in blue but a sphere of activity, people noticed the more obvious things and, like ourselves, fashioned an understanding of the cosmos from them." (Krupp, E. C. (ed.), In Search of Ancient Astronomies, Chatto & Windus, 1977) "A partir do raciocínio e do desígnio de um deus em relação à geração do tempo, para que ele fosse engendrado, gerou o Sol, a Lua e cinco astros, que têm o nome “planetas”, para definirem e guardarem os números do tempo." (Platão, Tim., 38c; Rudolfo Lopes (trad.), Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de Coimbra, 2011) Segundo o Thesaurus Linguae Grecae (TLG, University of California), a mais antiga referência à palavra "Astronomia" acontece na comédia "As Nuvens" (Νεφέλαι, Nephelai), de Aristófanes, c. 420 a.C. Décadas depois ἀστρολογία ("astrologia") surge em textos de Isócrates e Xenofonte. Em Roma, é na tragédia Iphigenia de Quintus Ennius (que viveu durante a República) que encontramos a primeira utilização do termo astrologi em Latim, referindo as suas profecias baseadas no nascimento das constelações (fr. 185–7; ed. H. D. Jocelyn, Cambridge University Press, 1967).
To the ancients, the sky was a source of power that drove the seasons and ordered the world. (Krupp, E.C. (2015). Astronomy and Power. in: Ruggles, C. (ed.) Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy. Springer) Os símbolos cosmológicos e celestes proporcionam instantaneamente, até de modo inconsciente, o reconhecimento das estruturas que a nossa psique "impõe" à envolvente. Cosmos (por oposição a Caos) significa "o Todo Ordenado" e, neste sentido, o próprio conceito reflecte os padrões e princípios da interpretação que fazemos dos acontecimentos que experenciamos. Tempo e Espaço formam a tessitura da ordem natural. Padrão, ciclo e ordem. A própria Ciência (no sentido clássico de scientia) começa justamente no reconhecimento de padrões. Os "universos" que concebemos reflectem as nossas percepções da ordem. Tal como os nossos antepassados, continuamos a pensar simbolicamente. Dependemos dos símbolos para comunicar, tanto o vulgar como o sublime. E apesar da linguagem do nosso sistema de crença (doravante 'secularizado') se ter alterado, continuamos a lidar com o céu. (vide Krupp, E. C., Echoes of the Ancient Skies, Oxford University Press, 1994 (1983), pp. 312-15) Baseando-se
no estudo dos espaços pessoais culturalmente definidos, sua
escala, percepção e influência na interacção comportamental (Proxémica),
desenvolvida pelo antropólogo Edward T. Hall nos anos 60 do século
passado, o autor C. E. Roth (The Sky Observers Handbook, Prentice Hall Press, 1986, p.4 et seq.)
salientou como a consciência do céu (entendido na sua plenitude
metereológica e astronómica) tem decrescido no confinamento das
sociedades contemporâneas. A gigantesca abóbada revela a nossa diminuta escala e
limites (i.e. coloca-nos em
perspectiva), por isso muitos preferem habituar-se à sua presença, não
deixar a sua percepção interferir ou os seus fenómenos entrarem na
consciência regularmente. Segundo Anthony Aveni, vivemos e trabalhamos
em "clausura", em
compartimentos, geralmente através de mediação tecnológica digital e
afastados da natureza. O céu tornou-se quase irrelevante, excepto pelos
detalhes meteorológicos quotidianos (e.g., se chove ou faz sol). Pelo contrário, o universo dos nossos ancestrais era "participatório": [...] for most of human
history, the sky was relevant. People paid attention to the rising and
setting sun, the phases of the moon, the coming and going of each of
the planets. The relative perfection of the firmament beckoned for
human connection. The first crocus might arrive a bit late, the last
snowfall a little early, but I know that when Arcturus, the brightest
star in the northern hemisphere, makes its first annual appearance in
the east after sunset, it’s my birthday. The sky became the logical
medium to mirror the ordered lives our species strove to lead. For ages
it would serve as the storyboard for morally based tales of heroism and
adventure. From season to season people found meaning in the dance of
the cosmic denizens who resided in the world above. (In the Shadow of the Moon, Yale University Press, 2017, pp.4-5).
"A common place where stars were given simple names and, most importantly, showed the way to pilgrims, marked the time of night, or set the rhythms to sow seeds orharvest crops and fruits." (Piero Barale, Lost Skies of Italian Folk Astronomy, in Ruggles, (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015, p.1756).
"Ca
las estrellas non son en sí. sinon querpos redondos, et fuertes, et
llanos, et apareíados para rescebir luz del sol. assí cuemo la el sol
rescibe de Dios." (M. Rico y Sinobas (ed.), Madrid, 1863; Tomo I, p.16) O Sol tinha, em relação às estrelas, um movimento inclinado quando comparado com a direcção do seu movimento diurno (devido, como sabemos, à inclinação da eclíptica). Movimentos análogos terão sido compreendidos relativamente ao outro luminar. A Lua nascia e descia em pontos diferentes do horizonte, alterando a sua posição para norte ou para sul, e atravessava diversas fases, num ciclo que se repetia em aproximadamente 28 dias: o Mês. No nascimento e no ocaso, o valor do afastamento angular máximo (norte ou sul) assumia um ciclo de cerca de 18 anos e meio (vide Alarsa, Flávio, Faria, Romildo P., et al., Fundamentos de Astronomia, Papirus, 1982, 1º cap.). Os pontos do horizonte eram a referência para o nascimento e ocaso dos principais corpos celestes ("marcadores") e, provavelmente, pelo menos desde o Neolítico, as direcções coincidiam com as designações usadas para as estações do ano e momentos dos equinócios e solstícios. Podemos especular e inferir que os nossos antepassados remotos conheciam a sua paisagem e provavelmente nomeavam as direcções como, por exemplo, a "do Verão" ou talvez "das chuvas". Do mesmo modo, mais tarde, os antigos navegadores, nos seus rumos, recorriam a uma orientação que fazia equivaler os abstractos pontos geográficos aos ventos (i.e. os ventos eram as direcções), por exemplo (no Mediterrâneo): Tramontana, Levante, Ponente, Maestro, Libeccio, Ostro, etc. Em Português ainda chamamos "rosa-dos-ventos" à representação esquemática das direcções geográficas. Arqueoastronomia (hoje mais conhecida como "Astronomia Cultural") é a área multidisciplinar que estuda a intencionalidade simbólica e cultural da interpretação dos fenómenos astronómicos pelos povos pré-históricos, por exemplo na construção dos seus monumentos ou na organização dos seus ciclos de contagem do tempo. Como precursores apontam-se os esforços de William Stukeley, John Aubrey, Henry Chauncy, Richard Proctor, Charles Piazzi Smyth ou Norman Lockyer. De modo mais consolidado, Alexander Thom (1894-1985) foi uma figura pivotal entre os anos 30 e 70 do séc. XX, abrindo perpectivas para as investigações actuais de Anthony Aveni. Clive Ruggles ou E. C. Krupp. Dos equívocos e especulações aos progressos conseguidos nesta área, permanece a dificuldade em estabelecer quais as orientações astronómicas previstas pelos seus antigos construtores e (supostos) intérpretes do céu. Ademais, como Jean-René Roy explica, devido à Precessão do eixo de rotação da Terra ao longo de um período de cerca de 26000 anos, o alinhamento por puro acaso de um megálito com uma das 45 estrelas mais brilhantes, em qualquer século, é de da ordem dos 10%. Por essa razão, um qualquer alinhamento relevante é "inevitável" num período de 1000 anos. É, portanto, crucial, determinar a idade dos monumentos, pelo menos com a aproximação de alguns séculos. (L'Astronomie et son Histoire, Presses de l'Université du Québec/Masson, 1982, p.76).
[Se os círculos estivessem no mesmo plano, não veríamos o
"loop" ou curva a que chamamos 'laçada'. Para Ptolomeu (séc. II),
e no contexto da solução geométrica entretanto adoptada, a explicação
residia, como veremos adiante, na inclinação dos círculos que
asseguravam as órbitas planetárias relativamente ao círculo a que
chamamos Eclíptica] Os planetas serão objecto de curiosidade e fascínio. Outros fenómenos atmosféricos ou astronómicos (distinção irrelevante no passado) decerto fascinavam e pressagiavam, e.g., relâmpagos, meteoros, halos, cometas.
Excerto de um calendário estelar Babilónico:
O arquivo incontornável, em todos os aspectos (dele faz parte, por exemplo, a Epopeia de Gilgamesh) é a biblioteca de milhares de placas em argila contendo textos em escrita cuneiforme associada ao rei
Assírio Assurbanípal (profundamente interessado na antiga cultura
literária da Mesopotâmia, m. 631 a.C.), que coligiu ou mandou copiar os
registos dos templos Babilónicos. O acervo (e outros ancilares) foi
encontrado no sítio da antiga Ninive em meados do séc. XIX por Austen
Henry Layard e Hormuzd Rassam. Processado de modo apressado e algo
desorganizado, acumula material de diversas proveniências desse site arqueológico. Encontra-se, na quase totalidade, no Museu Britânico. A
utilização de um sistema sexagesimal, bastante acessível (facilmente divisível) para
cálculos
com fracções, poderá ter tido origem na
estimativa do número de dias de um ano. É utilizado pelos povos da
antiga Mesopotâmia, desde o tempo dos Sumérios. O seu uso prevalecente
era científico (matemático), existindo concomitantemente outros sistemas
noutras áreas de actividade. Recorria-se
ao sexagesimal na divisão do tempo, bem como, antes de mais, na divisão
da circunferência. Como se utilizava um sistema numérico sexagesimal, o percurso a observar foi
dividido em 360º, bem como cada grau ("ush") em 60 minutos. O dia foi dividido em
12 horas diurnas e 12 nocturnas, John Steele explica que a preocupação primária da
astronomia na Mesopotâmia era a ocorrência de fenómenos regulares
protagonizados pela Lua e pelos planetas: a duração da visibilidade da
Lua em dias específicos em torno do novilúnio e do plenilúnio, o
movimento da Lua e dos planetas através de um repertório de estrelas
fixas de referência hoje conhecidas [na literatura especializada] como
"Normal Stars", eclipses lunares e solares, os fenómenos sinódicos dos
planetas (primeira e última aparição), as suas estações
[quando os planetas passam do movimento directo, na mesma direcção do
Sol e da Lua, ao retrógrado ou vice-versa] e os nascimentos acrónicos [quando um astro nasce vespertinamente, em oposição ao Sol]. (The Influence of Assyriology on the Study of Chinese Astronomy in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries,
in: Mak, Bill M. & Huttington, Eric (eds.), "Overlapping
Cosmologies in Asia...", 2022, p.23; trad. e aditamentos entre
parêntesis rectos são nossos). F. R. Stephenson (Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.118), resume o que julgamos conhecer dos métodos e medidas utilizados na Mesopotâmia: o US tinha uma duração fixa de 1/15 de hora. Dividia-se em 60 GAR (ou NINDA). US
deveria traduzir-se como "grau-tempo", pois mede efectivamente uma
duração, o tempo que a "abóbada" do céu demora, como sabemos, a rodar
cerca de 1 grau. O beru continha 30 US, equivalendo pois a duas horas. Na Grécia, que importará estas unidades, encontramos a designação chronoi isemerinoi
("tempos equatoriais"), mas o sistema Grego repalda-se no recurso a
horas (equinociais ou , alternativamente, sazonais). Convém referir que
os Babilónios utilizavam unidades diferentes para as medições angulares
entre dois corpos celestes: o "cúbito", KUS (equivalendo a cerca de 2 ou 2,5 graus), dividido em 24 "dedos" (SI). Historicamente, a divisão mais natural do dia ou da noite terá sido em 2, 3 (usada na Babilónia) ou 4 intervalos iguais (no Egipto). O. Neugebauer sugeriu uma curiosa explicação para o método desenvolvido na Mesopotâmia: sabemos que desde a época Suméria existia uma medida de distância (danna), uma espécie de "milha" utilizada para medição de distâncias mais longas, gradualmente associada ao período de tempo que demoraria a percorrê-la. Esta medida, enquanto intervalo de tempo, foi "transferida" pelos babilónios para os intervalos no céu. Como havia sido subdividida em 30 US ou uS (i.e. "comprimentos", segundo O. N.), a amplitude do círculo do céu acabou dividida em 12 (12x30 = 360 partes). Aqui radicará a origem dos nossos "graus" e o procedimento astronómico de divisão do tempo em graus. (Some Fundamental Concepts in Ancient Astronomy (1941) "Studies in the History of Science", Univ. of Pennsylvania). Os povos da mesopotâmia não possuiam o conceito de "esfera celeste" (vide Rochberg, F., The Heavenly Writing:..., 2004, Cambridge University Press, pp.126-7). [D. R. Dicks (Early Greek Astronomy to Aristotle, Cornell University Press, 1970, pp.166-67) consideva provável que (apesar do afirmado por Heródoto) a origem da divisão grega do dia e da noite em doze partes (ou horas) fosse uma influência do Egipto, onde se terá desenvolvido a partir da tradição do recurso aos decanos (v. infra) enquanto "calendários" siderais (Op. cit., pp.166-67).] A subdivisão da Hora na Antiguidade tardia e na Idade Média
Os
sistemas mecânicos utilizados na vida monástica a partir do séc. X, que
funcionavam usando água, eram descritos como relógios mas na realidade
eram simples "alarmes": não marcavam a hora, antes estavam ligados a um
mecanismo simples que após determinado intervalo fazia tocar uma
sineta, avisando o monge incumbente para avisar a comunidade para as orações diárias.
Na Mesopotâmia o dia era dividido em 24
horas: a parte diurna em 10 e a noite em 12 (sobrando 2 horas
crepusculares em ambas as transições). Gradualmente foi adoptado um sistema de divisão em 12 + 12 horas. É deles que nos chega o dia de 24 horas. Estas horas eram sazonais (desiguais, duração variável em função da estação do ano e da desigual duração dos dias e das noites; e.g.,
dividia-se a noite em 12 períodos iguais, obviamente diferentes
consoante as estações, maiores no Inverno e mais pequenos no
Verão, em função da latitude do lugar). Para os Gregos, "hèmera" designava (neste contexto) o intervalo diurno, do nascimento ao ocaso do Sol; "nux"
era o intervalo nocturno, complementar. Somente na época helenística (e
prioritariamente num contexto científico, astronómico) se
passará a ponderar a utilização de horas equinociais,
iguais (calculadas em função da duração da hora nos dias dos
equinócios), como sugerido por Hiparco (Hipparkhos). Hiparco verificou que as quatro Estações do Ano não tinham exactamente a mesma duração. Na sua teoria solar, preservada e adoptada por Ptolomeu, reconhece que, se o Sol parece não ter um movimento uniforme, a Terra não poderá portanto estar exactamente no centro da sua órbita: deve ser "excêntrica". Ou seja, para gerar estas anomalias (intervalos irregulares), a Terra deveria ser deslocada, segundo os cálculos do astrónomo, 1/24 do raio do círculo percorrido pelo Sol e a linha entre a Terra e esse centro deveria fazer um ângulo de 65.2º com a direcção do Equinócio Vernal. Com estes parâmetros, o modelo respondia adequadamente aos fenómenos observados (v. esquema; fonte: The Cambridge Illustrated History of Astronomy, Cambridge University Press, p.41) Todavia, verifica-se
generalizadamente a utilização das horas sazonais até muito mais tarde,
mesmo depois de surgirem os relógios mecânicos na Europa do séc. XIV (o
desenvolvimento de relógios e outros equipamentos mecânicos acontece
precisamente quando também assistimos à utilização de algoritmos mais
complexos, nomeadamente astrológicos, num "crossover" tecnológico que
incrementava o detalhe e a minúcia). Segundo L. Holford-Strevens (The History of Time: A Very Short Introduction, Oxford University Press, 2005, pp.8-9), os astrónomos gregos dividiam o dia natural em 24 horas equinociais ou iguais, cada qual com 15 moîrai
ou ‘partes’ (a mesma designação que utilizavam para os graus da
circunferência, pois em ambos os casos o total era 360; 1º equivale a 4
minutos de tempo). No contexto latino medieval, o adjectivo minutum,
‘coisa pequena’, foi utilizado de modo variável para 1/15 hora (4
min.), 1/10 hora (6 min.) e 1/60 dia (24 min.), mas nunca significou
1/60 hora, intervalo a que se chamava ostentum. Todavia, na Idade Média tardia encontramos uma nova divisão sexagésimal da hora em primae, secundae, e tertiae minutae (partes). Este sistema, já utilizado para as medidas angulares, deu origem aos nossos ‘minutos’ e ‘segundos’ Mas na contagem
do tempo, a tradição e o sistema de base 12 dos mostradores dos relógios vão
perpetuar a utilização de meias, quartos, etc. Segundo Jo Marchant, a partir do desenvolvimento dos relógios mecânicos nasceu um "novo" tempo que nos dissociou dos ritmos da natureza: "powerful enough to weaken our bond with both God and the universe, and set the foundations of a new way of life." (The Human Cosmos: Civilization and the Stars, Dutton, 2020, p.96).
O
reconhecimento de recorrências nos diversos períodos planetários foi
determinante e recua aos antigos astrónomos da Mesopotâmia, que assim,
pelo acúmulo de observações relevantes ao longo do tempo, conseguiram
antecipar as posições da Lua e dos planetas e mais tarde gizar
efemérides (da palavra gr. para "diário"; hemera significa "dia"): "The Babylonians had noticed the periodicity of the motions of the moon and the planets. For example, 71 years equals 65.01 synodic periods of Jupiter and 5.99 sidereal periods. Because these are very nearly whole numbers, the dates and longitudes of the interesting features of Jupiter’s motion (as listed above) in any one year will be repeated almost exactly 71 years later. Therefore the data for Jupiter this year can be foretold by looking at the data for 71 years ago. A compilation for a planet used for this purpose is called a 'goal-year text’ (a somewhat awkward literal translation of the German "Zieljahrtexte"). Another interval that works well for Jupiter is 83 years; 59 years serves for Saturn, 79 and 47 years for Mars, 8 years for Venus, 46 years for Mercury, and 18 years for the moon." (Thurston, Early Astronomy, Springer-Verlag, 1994, p.69) Durante
o período Babilónico tardio (c. 750 a.C - 75 AD), os astrónomos
respaldaram-se nos extensos e sistemáticos registos observacionais,
desenvolvendo diversas técnicas empíricas para prever as posições
futuras dos corpos celestes. Há diversos tipos de textos astronómicos
não matemáticos, classificados por Abraham Sachs como: 1) Astronomical Diaries, 2) Goal-Year Texts, 3) Normal Star Almanacs, 4) Almanacs e 5) Lunar or planetary texts (A. J. Sachs, 1948, A Classification of Babylonian Astronomical Tablets of the Seleucid Period.
Journal of Cuneiform Studies 2, 27 1-90). Os registos provenientes do
"Diário" para determinado ano permitiriam, utilizando a periodicidade
conhecida dos movimentos dos planetas e da Lua, antecipar as posições
no 'ano-alvo' desejado. Alguns planetas tinham dois períodos ou ciclos,
para diferentes fenómenos.
As tabelas de efemérides serão comuns mais tarde, na Idade Média, tanto no contexto Latino como no Islâmico (Ár. taqwīm, i.e. tabela, no sentido lato, translit. em Latim como tacuinum ou attacium). Na antiga técnica Helenística com origem na Babilónia (v. Almagesto IX,3), conhecida na literatura especializada - como vimos - como "goal-years"), baseada no uso de ciclos específicos para pada planeta, os almanaques eram perpétuos. Os ciclos continham um número inteiro de anos durante os quais um planeta cumpria um número inteiro de revoluções sinódicas e zodiacais. Ou seja, um determinado número de anos (Julianos, no contexto Latino medieval) no qual o planeta completa um número inteiro de revoluções em longitude e em anomalia ("inequalidade"). Na tabela seguinte (dados do Almagesto), verificamos, pegando por exemplo no caso de Saturno, que o planeta em 59 anos (solares, i.e. os nossos anos terrestres, como hoje sabemos) completa 57 revoluções sinódicas (i.e. mesma posição em relação ao Sol, tendo como ponto de referência o observador terrestre) e percorre 2 vezes o Zodíaco (demora, como se sabe, cerca de 30 anos a percorrer todas as constelações dessa faixa).
Também eram, no contexto mesopotâmico, obviamente observadas as datas do nascimento helíaco dos planetas (quando estes começam a estar visíveis antes do orto (nascimento) do Sol), bem como, por exemplo, os ciclos dos planetas no seu percurso zodiacal, cujos valores aproximados são, na ordem ptolomaica inversa: Saturno (30 anos), Júpiter (12 anos), Marte (2 anos), Sol (365 dias), Vénus (348 dias), Mercúrio (339 dias), Lua (29 dias).
Esta crítica é pertinente mas não interfere com a aquisição de um acervo observacional valioso para os efemeredistas e para a agilização da capacidade de previsão dos fenómenos, mesmo sem as ulteriores potencialidades de rigor, e também cosmológicas, da astronomia grega.
Do período, denominado "paleo-babilónico" (a partir de 1800 a.C.), alguns textos chegaram até nós. Em primeiro lugar, a tabuínha cuneiforme mais antiga com conteúdo distintamente astronómico: oriunda de Nippur, sugere que o céu foi dividido em três zonas e que a estas áreas estavam associadas não apenas a estrelas e constelações mas também, o que é interessante, a séries de números em progressão aritmética, primeiro traço conhecido de uma das ferramentas matemáticas que permitiu que os babilónios descrevessem fenômenos periódicos. O segundo período estende-se de 1530 a 612, data da destruição da grande biblioteca de Nínive quando a cidade caiu nas mãos dos Medos. Abrange a dinastia Cassita e depois a dominação Assíria. É em direcção ao final deste período que aparecem os primeiros registros sistemáticos de observações feitas pelos astrónomos ao serviço das cortes Assírias: o mais famoso, Enuma Anu Enlil ("Quando Anu e Enlil...", de acordo com as primeiras palavras da sua solene introdução) vem da biblioteca de Assurbanípal. Do terceiro período, denominado Neobabilónico, que vai de 611 a 540, possuímos um almanaque para o 37º ano do reinado de Nabucodonosor II (568 a.C.). Este almanaque já enfatiza os percursos da Lua e dos planetas: as conjunções com as estrelas (fixas) são cuidadosamente anotadas, bem como como as datas da primeira e última visibilidade. As zonas celestes, que anteriormente eram divididas em quatro partes nas quais o Sol viajava (três meses em cada) estão agora divididas em doze sectores convencionais de 30°. O quarto período é o da dominação Persa e continua na época Helenística. Os progressos são significativos e a tendência para a descrição matemática consolida-se. Mas temos de esperar pelos últimos três séculos antes da nossa era, nos reinados dos Selêucidas e dos Arsácidas, para que surjam os primeiros textos onde o estudo dos movimentos celestes se baseia em teorias matemáticas algebricamente elaboradas. Assim, em resumo, ao longo de milénio e meio os astrónomos da Mesopotâmia acumularam observações e desenvolveram teorias matemáticas que permitiram uma boa descrição empírica dos movimentos da Lua, do Sol e dos planetas, bem como da variação do comprimento dos dias e das noites. Por fim, esta prestigiosa cidade, tantas vezes (com toda a justiça) associada à Astronomia, foi devorada pelos séculos:
"The gyre of the heavens, perfectly round at every point, is bound by the line of the zodiacal circle, like the discrete settings of twelve gems adjacent to each other on a sort of girdle wrapped around a very large sphere." (Wallis, Faith (trans.), Bede: The Reckoning of Time, Liverpool University Press, 1999, p.55). Segundo Wallis, esta imagem do Venerável Beda pode basear-se nas doze jóias colocadas nos alicerces ("fundamentos dos muros") da Nova Jerusalém (Apoc. 21.19-20), relacionadas com os doze portões da cidade, voltados, três a três, para as quatro direcções cardeais (ibid. 21.13).
A origem do Zodíaco foi precedida pela criação de um sistema de constelações que ocupava praticamente todo o céu observável. Foi ainda precedida pela constatação da existência, para além do Sol e da Lua, de uma categoria especial de "estrelas" (que conhecemos como planetas). No período Babilónico Antigo (séculos XIX-XVI a.C.), aparentemente já existia um sistema de constelações praticamente completo. [Convém esclarecer que os povos da Mesopotâmia observavam e registavam os fenómenos mas não conceptualizavam uma "esfera celeste" com os seus grandes círculos; a ênfase "tridimensional" e geométrica será apanágio da abordagem Grega]. Há muitos textos, datando até ao 2º milénio a.C. que mencionam nomes de constelações. Todavia, nenhum apresenta qualquer vestígio de que o conceito de "zodíaco" fosse conhecido neste período. A situação muda no período Neo-Assírio (séculos X-VII a.C.). A definição de uma faixa de constelações é encontrada pela primeira vez de modo explícito no sistemático acervo MUL.APIN de listagens astronómicas. Um deste textos (I iv 31–39) descreve 18 constelações que a Lua atravessa no seu percurso mensal. Quase todas são já conhecidas de textos pretéritos. São descritas sequencialmente, i.e. de acordo com o incremento da sua longitude (regra nem sempre escrupulosamente observada). Analisando outros textos, conclui-se que os astrónomos da Mesopotâmia reconheceram pelo menos 22 constelações na faixa zodiacal no 1º milénio a.C. Depois de estabelecido o "caminho da Lua" (MUL.APIN II i 1‒8), seguem-se, separadamente, as definições dos "caminhos" do Sol e dos planetas. As fontes explicitam que esses "caminhos" relativamente ao fundo de estrelas são coincidentes, seguem o "caminho da Lua". Não restam dúvidas de que no período referido já se sabia que os todos esses percursos estavam confinados a uma estreita faixa das constelações. Contudo, não se conhecem referências explícitas em textos observacionais. No 1º milénio a.C. foi igualmente gizado um sistema de cerca de 40 estrelas (não uniformemente distribuídas) ao longo da faixa zodiacal. São hoje identificadas como "Normal Stars". Nos textos cuneiformes são designadas MUL.ŠID.MEŠ, lit. “As estrelas (para) contar”. As listas encontradas incluem um total de 17 nomes de constelações (quase todas referidas na lista dos "deuses no caminho da Lua", dos MUL.APIN), necessárias para determinar as posições relativas e identificar essas estrelas no céu. Os Babilónios conseguiam determinar longitudes zodiacais dos planetas (com uma aproximação de 1-2 graus) pela observação das distâncias angulares relativamente às referidas estrelas de referência cujas posições eram conhecidas (de Jong, T., A study of Babylonian planetary theory I. The outer planets. Arch. Hist. Exact Sci. 73, 1–37 (2019). Um sistema de 12 constelações ao longo da Eclíptica foi o que os Gregos encontraram quando adoptaram o Zodíaco da Antiga Mesopotâmia (entre finais do V e início do IV séc. a.C.). Como é que um sistema de cerca de 18 constelações se transformou no sistema de 12? A resposta, segundo Kurtik, está provavelmente disponível no texto classificado como 'WA77824', do séc. V a.C., no qual as 15 constelações situadas na faixa que será chamada "zodiacal" são divididas em 12 partes, correspondendo aos 12 meses lunares (esquemáticos, de 30 dias, não envolvendo intercalações) do calendário mesopotâmico. Foram descartadas as constelações que tinham apenas uma pequena porção da sua 'figura' na faixa relevante para o percurso da Lua e restantes "estrelas especiais" (planetas). A partir daqui há duas teorias: segundo a primeira, defendida por Kurtik, o zodíaco matemático (de 360º, dividido em sectores de 30º), associado aos meses esquemáticos, foi definido e somente depois se associaram as 12 constelações; a segunda opinião presente na literatura especializada inverte esta sequência: foi introduzido um esquema de 12 constelações e somente depois a 'equalização' matemática foi aplicada (cf. L. Brack-Bernsen, The Path of the Moon, the Rising Points of the Sun, and the Oblique Great Circle on the Celestial Sphere, Centaurus, 45 (2003), p.17, n.1). Como os nomes dos signos e das constelações, por regra, coincidem, é difícil discernir nas fontes o que é que está especificamente a ser mencionado. Em todo o caso, no IV século a.C. o perene sistema 12 constelações zodiacais estava aparentemente bastante disseminado na Mesopotâmia. Os astrónomos babilónicos introduziram, como vimos, a conhecida divisão zodiacal em doze partes ou sectores iguais, pois sem esta seria extremamente difícil assinalar comodamente e com um mínimo de consistência as posições da Lua e dos planetas. Todavia, como Elisabeth (Elly) Dekker refere (Illustrating the Phaenomena: Celestial Cartography in Antiquity and the Middle Ages, Oxford University Press, 2013, p.14), quanto à data da introdução desta divisão babilónica na Grécia, os historiadores divergem nas opiniões. Todas as referências nos textos dos astrónomos mais antigos se baseiam nas constelações zodiacais, não nos signos. Como Bowen e Goldstein salientaram, tudo indica que o próprio Eudoxus ainda não procedesse à divisão dos signos em sectores iguais: "The ultimate source of our knowledge of Eudoxus’ Phaenomena and Enoptron , does not support the claim that Eudoxus divided the ecliptic into 12ths and each of these into 30 degrees of arc but even suggests that he did not." (Bowen and Goldstein, ‘Hipparchus’ Treatment of early Greek Astronomy: The case of Eudoxus and the Length of Daytime’, Proceedings of the American Philosophical Society, 135, 1991, p. 245). De facto, o Zodíaco descrito por Aratus é delineado pelas doze constelações (incluíndo as "pinças" do Escorpião, futura Libra). Trata-se das constelações, não são os signos! A primeira referência aos signos resultantes da divisão em doze sectores iguais parece recuar a Autólico, (Αὐτόλυκος, Autolycus) de Pitane, séc. IV a.C., todavia não se referindo a estes arcos como unidades de 30º. Um dos problemas recorrentes é a confusão entre constelações signos, intercambiavelmente designados pela mesma palavra Grega. O nome do primeiro signo será, transliterado, MUL.LÚ.ḪUN.GÁ: "o trabalhador agrícola", "jornaleiro", "jeireiro". A substituição deste por Aries (Κριός) poderá ter ocorrido na tradição babilónica tardia, através da associação a Dumuzi (i.e. Tammuz), relacionado com a pastorícia (Rogers, John H. (1998). Origins of the Ancient Constellations: I. The Mesopotamian Traditions. Journal of the BAA, 108 (1). No ciclo Tammuz-Ishtar, a morte de Tammuz, a descida de Ishtar ao infra-mundo para o resgatar e o renascimento sazonal de Tammuz relacionado com o calendário pastoril e agrícola. No clássico Star Names and their Meanings (1899) R. Hickley Allen cita uma referência a "Athamas" por Columella (autor do séc. I), que Allen relaciona com o Tammuz ("The Only Sun of Life") do mito mesopotâmico (p.76). Todavia, Átamas é o nome de um rei, pai de Phrixus e Helle no mito do Velo de Ouro. Rupert Gleadow, The Origin of the Zodiac (Dover, 2001 (Jonathan Cape, London, 1968)), observa (em relação ao Carneiro) que não se tratando de constelação mesopotâmica, considerou-se que também não seria egípcia por não se encontrar uma correspondência no sistema de decanos. Contudo, este autor inclinou-se para a hipótese de uma origem egípcia, não relacionada com a sua futura posição zodiacal mas sim com a sua culminação aquando do nascimento da estrela Sirius. A partir do mapa do céu e de especulações relacionadas com a Precessão, refere uma 'Barca' ("Boat"), "um particularmente evidente emblema sagrado", e o 'Carneiro', ambos bem elevados no céu nesse importante momento do calendário. Conclui afirmando que se aceitarmos a [sua] associação da 'Barca' com a constelação Pegasus (v. p.200), então o 'Carneiro' era definitivamente uma constelação egípcia (pp.212-13). Autores mais cautelosos asseveram que, em rigor, desconhecemos a origem de Aries (e.g., Bartel van der Waerden, Sonderabdruck aus "Archiv fur Orientforschung, Band XVI, Zweiter Teil (reimpr. Archive of Oriental Studies, vol. XVI, Part II), 1952, p.226).
O Calendário Egípcio; os Decanos
No
Egipto utilizava-se um sistema numérico decimal. O ano civil era convencional, não astronómico. Tinha 360
dias, divididos em 12 meses de 30 dias cada. Considerava-se ainda 5 dias
'extraordinários', epagomenais
(na designação grega), aproximando este calendário do solar
'verdadeiro'. Simples, independente dos complexos movimentos lunares,
de intercalações e circunstâncias "ad hoc" locais de aplicação das mesmas. "The only
intelligent calendar which ever existed in human history", segundo
Neugebauer (The Exact Sciences..., p.81). Observava-se o nascimento helíaco de Sirius
(personificado pela deusa Sopdet, gr. Sothis)
para determinar o início do ano, concomitante com o da estação da cheia
fertilizadora do rio Nilo. Em tempos recuados verificou-se que quando o Nilo começava a incrementar o seu caudal em Mênfis (então a capital), Sirius surgia pela primeira vez de manhã no horizonte leste (nascimento helíaco). Aconteceu assim, na terceira década do mês que equivale a Junho, até cerca de 2000 a.C. Devido à precessão, em 1000 a.C. o nascimento da estrela já se verificava somente em meados de Julho, perdendo o seu carácter anunciatório (v. Pannekoek, A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961, pp.83-4). Mas o simbolismo permaneceu.
As ilustrações astronómicas dos sarcófagos (patentes a partir do Império Médio) são representações do céu, com os nomes das constelações dos decanos (ou 'decanatos') alinhados, como referido, em intervalos de 10 dias ao longo do ano, formando assim 36 colunas de 12 linhas, uma para cada uma das 12 horas da noite. A partir de um coluna para a seguinte, o nome de cada decano sobe uma linha. O que dá uma estrutura diagonal que lhe valeu o nome (inadequado) de calendário diagonal, embora seja um relógio estelar. Essa representação diagonal permite saber a hora da noite: basta procurar o decano que sobe na coluna da década (período de dez dias) atual.
A interpretação simbólica relacionada, de dias auspiciosos e nefastos, decerto antiga, vai determinar uma forma de prognosticação que mais tarde vamos encontrar nos calendários medievais: é a listagem dos nefastos ou dies Aegyptiaci (assim designados pelo menos desde o século IV). Atentar na etimologia de "aziagos", lat. aegyptiacus, gr. aiguptiakós (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]). Os dies atri romanos estavam presentes pelo menos desde a época de Augusto. Supunha-se que os "dias egípcios" (habitualmente 24, dois por cada mês), teriam sido sinalizados por veneráveis astrólogos egípcios ou então representavam os dias em que calamidades se haviam abatido sobre o país atravessado pelo Nilo, referência provável às célebres pragas bíblicas), Chamaram-lhe dies mali, maledicti, ominosi, infortunati ou tenebrosi. Evitavam-se empreendimentos e procedimentos médicos, como as purgas. Com o tempo, cada um destes dias foi associado a uma hora dita mala, timenda, aegra ou suspecta (vide Skemer, D., 'Armis Gunfe': Remember Egyptian Days, Traditio, Vol. 65, Fordham University, 2010, pp. 75-106) Em relação às contelações indígenas da "abóbada" Egípcia, J. Lull e J.A. Belmonte (Egyptian Constellations,
in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and
Ethnoastronomy", Springer, 2015, vol.3, Part IX, ch. 130). publicaram
esta tabela (.PDF, 544KB) que resume os casos em que os autores consideram a identificação "altamente segura".
Abordagens Gregas No resumo simplificado de Colin Ronan: "The Babylonians first made observations, next devised mathematics to describe what happened, and only then started to think about how this could be theoretically explained. (...) The Greek approach was almost completely the opposite—having recognized that planets move, they then constructed a theory; only after this did they observe the motions in detail and adjust thetheory to correspond. (Discovering the Universe, A History of Astronomy, Basic Books, Inc., Publishers, 1971, p.22) Podemos
ter uma ideia da estrutura primitiva grega do mundo seguindo Homero na
sua descrição do 'Escudo de Aquiles', no oitavo livro da Ilíada (483-89; cf. viii, 13-16; Od. i, 52-4. A cultura grega acrescentará (tradicionalmente a partir de Tales de Mileto, IV séc. a.C.),
uma concepção naturalista da explicação dos fenómenos e também o conceito
de Kósmos organizado e interdependente, que enformará
doutrinas sequentes. Preocupações filosóficas e cosmológicas e a dinâmica e natureza da matéria primordial ocuparam os chamados "Físicos Jónicos", aos quais Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) chamou physiologoi, i.e. "os que discursam sobre a natureza", que apenas conhecemos através das referências indirectas que outros fizeram das suas elucubrações.
Ideias Pitagóricas e Platónicas Os Pitagóricos deram ênfase a uma leitura qualitativa dos números e à
geometria. Platão, influenciado por esse misticismo numérico, descreverá nos seus diálogos toda uma influente
cosmologia e ciclologia (e.g., o 'Grande Ano' ou 'Ano Perfeito'). Os
Pitagóricos parecem ter subordinado os factos e os fenómenos naturais
às suas predilecções filosóficas e místicas. Um exemplo da sua
mundividência é a concepção de um "fogo central", relegando
surpreendentemente a Terra para um estatuto no qual simplesmente
revolve em torno desse fogo, tal como as restantes estrelas errantes e
fixas. Talvez as descobertas tradicionalmente atribuidas ao próprio
mestre (os principais intervalos musicais: oitava, quarta, quinta,
expressos através de rácios numéricos de 2:1, 4:3, 3:2, bem como o
facto de os primeiros quatro somarem 10, o número místico ou
"tetractys"; o célebre Teorema de Pitágoras,
etc.) tenham potenciado a crença nos
'números' enquanto entidade fundamental do universo. (Dicks, p.65). As
suas ideias são, portanto, fruto dessas elucubrações, baseadas no
primado do número, na simetria e na harmonia. A influência em Platão é
evidente mas Aristóteles será céptico e, por exemplo, considera
"absurda"
essa "harmonia" sonora universal:
"...a órbita do Outro, que, por ser oblíqua, atravessa a órbita do Mesmo e é dominada por ele. Alguns astros deslocam-se em círculos maiores, e outros em círculos mais pequenos; os que estão nos círculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estão nos círculos maiores deslocam-se mais lentamente. E por causa da órbita do Mesmo, parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcançados pelos que se deslocavam mais lentamente, quando eram aqueles que alcançavam este." (39-a) "Em
todo o caso, é pelo menos possível perceber que o número perfeito do
tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da
totalidade das oito órbitas, medidas pelo círculo do Mesmo em
progressão uniforme, se completam e voltam ao início." (39-e) Um conhecido comentário na República (530b-c) evidencia a postura de Platão e a sua suposta escassa promoção do conhecimento astronómico e das ciências experimentais em geral. Na interpretação mais frequente, o orador Sócrates pretende que se privilegie a base teorética apriorística e que se investigue o aspecto matemático e relações subjacentes, em detrimento do acumular empírico de informação baseada nos fenómenos. Reflecte a influência pitagórica e a dicotomia platónica entre a verdade das ideias versus as aparências. O contexto em que surge é o da discussão de um "currículo" para uma educação "ideal". A mesma tendência se verifica em toda a sua metafísica: o primado do intelecto e a profunda desconfiança relativamente aos que percebemos através dos sentidos.
A sistematização do observável conduziu ao modelo mais óbvio: o Geocêntrico, Este sobreviveu incontestado até muito tarde, tanto na Europa como em terras Islâmicas, por uma razão simples: apesar de algumas incongruências (compensadas na prática por estratagemas geométricos e de cálculo que abordaremos adiante), estava de acordo com os factos observados e com os dados disponíveis na época. Por isso durou tanto. A abordagem prática grega, informada pela geometria e pela Teoria dos Elementos (aparentemente remontando ao siciliano Empedócles, séc. V a.C., que chamava "raízes" a cada um destes imutáveis), tornar-se-á resiliente a partir da monumental estruturação de Aristóteles. Como Dicks resume (Op. cit., p. 199), para Aristóteles o Universo é finito (De Caelo i, 5, 6 e 7), pleno, i.e. não há vazio (Phys. iv, 214a16), é único (Caelo i, 8 e 9), não foi gerado nem tem "epílogo" ou término (De Caelo i, 10, 11 e 12). Deste modo contradiz a ideia platónica da criação demiúrgica, as concepções de vazio e multiplicidade de Demócrito ou Leucipo, bem como a versão "cíclica" (criação e destruição) de Heráclito de Éfeso. Segundo Aristóteles, o aether (etim. "em perpétuo movimento"), a famosa quinta essentia da filosofia medieval, ou "o primeiro corpo" (como o estagirita mais frequentemente lhe chama), é o constituinte básico das regiões celestes.
O conceito de Esfera Celeste e (provavelmente) o da esfericidade da própria Terra estabeleceu-se, entre os Gregos, a partir do século V a.C. [N.B: a segunda é uma questão mais delicada. Foi atribuida a autoridades como Parménides mas trata-se de um equívoco pois é referência à esfera tão somente enquanto sólido do geómetra (Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Cambridge University Press, vol.ii, 49). A especulação que envolve os pitagóricos baseia-se numa inferência a partir do que se conhece das suas ideias. O próprio Platão é ambíguo (de facto, a forma da Terra não é mencionada, nem no Timeu nem na República). O primeiro autor que refere a esfericidade do planeta, sem qualquer ambiguidade, é Aristóteles no De Caelo. O resto são meras suposições.] O desenvolvimento da astronomia teórica pode ser testemunhado (sempre indirectamente, acreditando na fiabilidade de compiladores e comentadores), pela criação de sucessivos modelos do Universo (alguns bastante peculiares, como o pirocêntrico do pitagórico Philolaus (Filolau), que incluia um fogo central (um "Fogo de Héstia") e uma anti-Terra, 'Antichthon', interposta, que o eclipsava (e por isso não o podíamos ver), ou o heliocêntrico, genericamente proposto por Aristarco de Samos (Αρίσταρχος ο Σάμιο), que lançou a sugestão que conhecemos através de uma referência no Αρχιμήδης Ψαµµίτης, Psammites ou 'Arenário', de Arquimedes (Lat. Archimedis Syracusani Arenarius & Dimensio Circuli) não disponibilizando um modelo funcional (vide prefácio de W. H. Stahl e pp. 136 et seq. em A History of Astronomy from Thales to Kepler, de J. L. E. Dreyer, 1905; reimpr. Dover Publications, 1953). De resto, como Dreyer salienta, nenhum sistema filosófico anterior à época de Aristarco supôs qualquer possibilidade de uma influência poderosa emanando do centro, com excepção do suposto sistema de Philolaus. (...) De acordo com Aristóteles, numa esfera ou num círculo todas as influências emanavam da circunferência exterior (periférica), prosseguindo na direcção do centro (p. 146; [trad. nossa]). As ideias de Aristarco não são mencionadas por Copernicus porque só foram divulgadas na Europa a partir de 1544.
A Latitude e os Climas
Entretanto, a partir da construção conceptual da Esfera Celeste e da esfericidade do planeta, tornou-se possível relacionar a duração do comprimento do dia mais longo do
ano (ou do dia mais curto) com a posição do Equador e dos Trópicos em
relação a um horizonte local específico, e que por sua vez esta relação
determinava a posição (i.e.
latitude) do observador na circunferência da Terra). Determinará o conceito dos "climas" (klimata), faixas de latitude nas quais a sphaera será dividida. Mas trata-se de um
desenvolvimento provavelmente mais tardio do que habitualmente se
supõe. A diferença em horas entre o dia maior e o menor do ano define, grosso modo, o "clima" em que a localidade se situa. Eudoxus de Cnido (c.395-390 - c.342-337 a.C.) foi quem primeiro advogou a quantificação da informação observacional e o seu tratamento matemático. O seu modelo das esferas homocêntricas prevalecerá e será mesmo ampliado e justificado pela Física
de Aristóteles, configurando um sistema finito, esférico e ordenado. Os
argumentos de Aristóteles sobre o modelo de Eudoxo são apresentados
especificamente no livro XII (conhecido como livro Λ, letra grega que o
identifica) da Metafísica. A outra fonte histórica é encontrada num
comentário ao de Caelo de Simplikios (Lat. Simplicius). A
matemática e, posteriormente, a trigonometria (nomeadamente as cordas),
estarão no centro dos desenvolvimentos (convém referir que o
desenvolvimento da trigonometria não é anterior ao segundo século a.C.,
justamente a época de um dos seus fundadores: Hiparco, 190-120 a.C.). Apesar de algumas especulações quanto à tábua Babilónica "Plimpton 322" e sugestões da presença de rudimentos de Trigonometria no chamado "Papiro de Rhind" ou "Ahmès" (Egipto, 1700-1550 a.C; British Museum 10057-8), foi na Grécia do século III a.C. que a Trigonometria adquiriu sistematização a partir da Geometria. A primeira tabela, supostamente construída por Hiparco, tinha por base uma única função que relacionava cada arco da circunferência com a sua respectiva corda. É a primeira abordagem científica. E Menelau de Alexandria (c. 100 a. C.), astrónomo e geómetra, escreveu um tratado sobre cordas. O sistema de Eudoxus, que recorria exclusivamente a movimentos de rotação, baseava-se, num “epiciclóide esférico" a que Eudoxus chama hippopede ("hipópede", a figura em "8" que pode ser gerada por duas esferas concêntricas com eixos não coincidentes, termo que Xenofonte explica pela comparação com um exemplo da equitação, por analogia com o percurso que os cavalos faziam em exercício nas pistas de treino). Uma lemniscata esférica, como hoje diríamos. Na eterna distinção entre a "esfera matemática" explicativa de um movimento e o "orbe material" (corpóreo), nada sabemos do estatuto ontológico atribuído por Eudoxus às suas esferas. Resumidamente utilizavam-se quatro esferas concêntricas para cada planeta. O eixo da primeira unia os pólos Norte e Sul e simulava o movimento diurno do planeta; a segunda estava colocada de modo a que o seu equador (o da esfera) coincidisse com o plano da Eclíptica, revolvendo de Leste para Oeste e reproduzindo no seu período de rotação o movimento médio do planeta no seu percurso completo ao longo do Zodiaco. As duas restantes esferas (rodando com a mesma velocidade em sentidos opostos), com eixos com inclinações adequadas e específicas para cada planeta, acautelavam as estações (paragens) e retrogradações. Ler infra uma breve descrição do modelo. - Vídeo elucidativo disponibilizado pelo Museo Galileo de Florença (narração em Inglês). Há
várias "reconstruções" matemáticas plausíveis gizadas desde o séc. XIX.
Mas alguns investigadores, como A. C. Bowen, colocam em causa a
perspectiva e os conhecimentos existentes no séc, VI a.C., nomeadamente
no que respeita às retrogradações e, consequentemente, as reconstruções
(v. Bowen, A. C., Perspectives on Science
2, 10 (2002)). A opinião mais comum é a de que o modelo explicaria
razoavelmente os fenómenos como Eudoxus os conhecia. Entretanto foram
sendo descobertas outras complexidades. Infelizmente,
segundo Simplicius, o sistema de Eudoxus não explicava as evidentes
alterações cíclicas do
brilho observado nos planetas em cada período sinódico, implicando que
as distâncias destes variava ao longo desse período (contudo C.C.
Carman coloca em causa este antigo argumento, v. Studies in History and Philosophy of Science 54, 90 (2015)). Na ausência de fontes originais, as reconstruções, como a de Schiaparelli (Le sfere omocentriche di Eudosso, di Callippo e di Aristotele,
Pubblicazioni del R. Osservatorio di Brera in Milano, No. IX. Milano,
1875), não podem ser consideradas "definitivas" (H. Mendell, Centaurus
40, 177 (1998)).
Na descrição dos
movimentos planetários, duas enormes dificuldades se verificavam: a
variável velocidade e as "paragens" e mudanças de direcção (do
movimento directo para o retrógrado e vice-versa). Apolónio de Perga (Ἀπολλώνιος ὁ Περγαῖος, Apollṓnios ho Pergaîos, 262 a.C.-194 a.C.), que viveu cerca de um século depois de Eudoxus, estudou as secções cónicas e estará ligado à
teorização do sistema de epiciclos e deferentes (utiliza-se habitualmente a terminologia medieval, e.g., "deferente", pois Ptolomeu (Κλαύδιος Πτολεμαῖος, translit. Ptolemaios, Lat. Claudius Ptolemaeus) não utiliza um termo específico para o "concêntrico que transporta o epiciclo"). Os
epiciclos foram introduzidos para acautelar os aumentos e diminuições
aparentes nas velocidades da Lua e dos planetas. Esta teoria constitui
uma inovação importante, uma representação geométrica dos fenómenos
observados e um sistema mais eficiente (na utilização prática) do que o
das esferas de Eudoxus e Aristóteles: "The
epicycle theory offered a far simpler and more accurate representation
of the variable course of the planets than did the rotating spheres of
Eudoxus and Aristotle. Moreover it explained their variable brightness
as a result of their varying distances from the earth. These distances could be computed easily from the sizes of the circles." (Pannekoek, A., A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961, p.133)
Hiparco
utilizará métodos precisos na representação dos
movimentos do Sol e da Lua e, entre muitas contribuições, descobrirá o
fenómeno de Precessão dos Equinócios. Na época
Helenística, Menelaus (Μενέλαος, c. 70 – 140 d.C.), será decerto autor da Sphaerica,
único livro deste matemático que sobreviveu (numa tradução árabe).
Tripartido, trata da geometria da esfera e da sua fundamental aplicação
às medidas e cálculos astronómicos.
Antes, procurou-se conhecer o tamanho da Terra. Eratóstenes de Cirene (276 a.C.-194 a.C.) calculou a circunferência da
a partir de uma proporção (a célebre experiência relacionando a
distância entre
Alexandria e Συήνη [Siena, actual Assuão] e as sombras projectadas,
sabendo, segundo se contava, que a luz do Sol incidia, ao meio dia
do solstício de Verão, perpendicularmente num poço na
segunda localidade, situada no sul do Egipto).
O
assunto, ao contrário da versão simplista geralmente divulgada, faz
correr rios de tinta entre os académicos há muito tempo (e decerto
ainda vai continuar). No último estudo relevante acerca deste assunto,
Christopher A. Matthew (Eratosthenes and the Measurement of the Earth’s Circumference (c. 230 BC),
Oxford University Press, 2023, ch.5) refere como o método terá
recorrido á sombra do gnómon em Alexandria (sabendo antecipadamente que
a localidade a sul se situava praticamente sob o Trópico de Câncer
nessa época, em função do determinante factor da obliquidade da
eclíptica, cuja inclinação determina a latitude dos dois Trópicos).
Quanto às medições das distâncias, refere antecedentes (citados por
Estrabão), com margens de erro que se verificam serem muito pequenas,
entre localidades na Pérsia e regiões adjacentes durante as campanhas
de Alexandre, das quais também infere a utilização do estádio (στάδιoν) Pan-Helénico
de 180 metros), a sistemática medição dos terrenos agrícolas no Egipto
e a provável informação existente resultante do trabalho dos bematistaitreinados
ao serviço dos Ptolomeus (soberanos do Egipto). Havia pois
capacidade e uma tradição de medições precisas. Relembra-nos que
Eratóstenes trabalhou com rácios, proporções, não com medidas angulares
(ao contrário do que se repete na pífia explicação popular do
procedimento). A divisão em graus, minutos e segundos ainda náo era
utilizada na sua época (somente um século depois). Antes da utilização
de círculos graduados as medidas eram enunciadas recorrendo a
proporções, por exemplo ao arco de um lado de um polígono regular. Do exame das fontes
e de toda a literatura especializada, C. A. Matthew, conclui que
Eratóstenes utilizou como argumentos o referido estádio Pan-Helénico de
180 metros (havia seis stadia
de diferentes comprimentos devido à antiga fragmentação geográfica e
política das cidades-estado; nome "estádio" deriva da infraestrutura
comunitária e desportiva das cidades gregas) e uma 'diferença
latitudinal' de cerca de 4500 stadia
entre Alexandria e Siena. Ou seja, privilegiou a diferença de latitude
relativamente à distância concreta no terreno seguindo a margem oeste
do Nilo (que todavia já conheceria de investigações pretéritas), até
porque as localidades não estão, de facto, precisamente no mesmo
meridiano. E isso, segundo C. A. Matthew, não interfere no procedimento
estimando correctamente a distância entre os paralelos de ambas as
localidades a partir da informação das sombras em ambos os
paralelos. A figura de 5000 stadia
atribuida por Cleomedes a Eratóstenes seria afinal uma "correcção"
feita por Hiparco (há diversas teorias para este facto, talvez Hiparco
tivesse tão somente recorrido a informação na "Geografia" do próprio
Eratóstenes acerca da distância medida no terreno, que inclui um desvio
assinalável na região de Luxor) e os valores que surgem ulteriormente
em autores romanos (e.g., 5,040 stadia, resultando nos 252,000 stadia
relatados por Plínio) radicariam em ajustamentos ulteriores seguindo
idealizações platónicas de perfeição numérica ou talvez para que o
número de stadia fosse facilmente divisível em graus. (Ver timeline dos relatos históricos nas pp.280-81).
Em resumo, a tentativa de medição da circunferência da Terra não era
nova mas esta, na sua genial e inovadora metodologia obteve, segundo a
interpretação de C. A. Matthew, um resultado extremamente preciso
(~224,100 stadia) para o diâmetro polar. Existem erros na metodologia
(elencadas nas pp. 139-141): as localidades não estáo no mesmo
meridiano, a Terra não é uma esfera perfeita, o efeito da refracção da
luz, etc. Mas quem pode censurar um sábio que ousou este cálculo circa
230 a.C.?. No séc. I a.C. Posidónio (c. 135-51 a.C.) mediu a circunferência da Terra seguindo um método similar, todavia utilizando estrelas e não o Sol. Terá efectuado medições da estrela Canopus (Alpha Carinae, na posterior designação de Bayer) a partir de Rodes e de Alexandria (que na realidade também não estão exactamente no mesmo meridiano). Pelas elevações da estrela relativamente ao horizonte estimou a diferença de latitude entre ambas as localizações. O resultado habitualmente referido é 240,000 stadia ou (supõe-se) 19,200 km. Demasiado pequeno, como comentado por Estrabão. Há todavia dois valores distintos atribuidos a esta medição, como I. E. Drabkin analisou num paper (Isis, Vol. 34, No. 6, Autumn, 1943). Tudo indica que, estando Canopus rasante no horizonte de Rodes, a refracção da atmosfera tenha tido um efeito decisivo no cálculo. Terá sido uma correcção (errada) da distância entre as localidades que comprometeu a proporcionalidade? Em todo o caso, é este valor mais "curto" que será divulgado pelo influente Ptolomeu. Sendo uma estimativa com grande visibilidade em autores sucessivos, contribui (a par da especulação Clássica da proporção entre Terra e Água, da exagerada dimensão da longitude da Ásia no relato de Marco Polo e da sua consequente interpretação pelo médico, matemático e geógrafo Paolo dal Pozzo Toscanelli) na origem do ulterior equívoco de Cristóvão Colombo que, como se sabe, acreditava num valor da circunferência ainda menor e, partindo na direcção de uma mítica Antilia, rumou a oeste em busca do próspero Cipangu (i.e. Japão) de Marco Polo e das Índias quando, em Outubro de 1492, encontrou por puro acaso um dos arquipélagos de um continente "novo" que mais tarde será chamado "América". Segundo Samuel Eliot Morison (Admiral of the Ocean Sea: A Life of Christopher Columbus, Boston, Little, Brown and Co., 1954 (1942), p.65), Colombo aceitou o cálculo do geógrafo e astrónomo Alfraganus (al-Farghānī, séc. IX), assumindo que as milhas (árabes) usadas por este eram equivalentes às mais pequenas milhas "romanas" (ou "italianas") e chegando assim à conclusão que um grau mediria 45 milhas náuticas (um valor demasiado modesto, aproximadamente 75% do verdadeiro). O globo de Colombo era, deste modo, 25% mais pequeno do que o de Eratóstenes, 10% mais pequeno do que o de Ptolomeu e até mais pequeno do que o do seu próprio "mentor" Toscanelli.
O primeiro manuscrito completo que conhecemos deste tratado astrológico data somente do séc. XIII. Mas existem excertos mais antigos no manuscrito florentino Laur. gr. 28,34 (L) do séc. XI, cópia de uma antologia de textos astrológicos conhecida como Syntagma Laurentianum (séc. IX), vide Heilen, Ptolemy’s Doctrine of the Terms and Its Reception, p.59 (in: Jones, A., (ed.), Ptolemy in Perspective..., Springer, 2010), [N.B.: O chamado Centilóquio (ar. Kitab al-Tamara (suposta tradução do gr. καρπος), o Livro dos Frutos, "colhidos" nos ensinamentos do Tetrabiblos, constitui um acervo de cem aforismos. Outrora atribuído a Ptolomeu, é considerado apócrifo, tendo um racional diferente do encontrado no texto pretende "sumariar".] O Almagesto de Ptolomeu (sábio que os árabes conhecerão como Batlamyus) é o verdadeiro compêndio, "obra prima da exposição técnica" e a principal referência da astronomia antiga, por isso também valiosa fonte de informação da obra de Hiparco (cujos textos originais se perderam). Tratado matemático e astronómico, "canonizou" o modelo geocêntrico. Expende as teorias dos movimentos do Sol, da Lua e dos planetas, explica a astronomia esférica e as coordenadas relevantes, a paralaxe, os eclipses, a precessão, etc. Também contém um catálogo estelar. É um dos textos científicos mais influentes de todos os tempos, autoridade até o século XVI. Segundo G. J. Toomer (trad. e ed.), somente os Elementos de Euclides revelaram maior longevidade. O seu nome era "Μαθηματικὴ Σύνταξις" (Mathēmatikē Syntaxis). Segundo uma interpretação, tornou-se conhecido pelo título (translit.) Hē Megálē Sýntaxis ("A Grande Colecção"). Os árabes passaram a designá-lo pelo superlativo daquele adjetivo (megístē), por corruptela: al-majisṭī, que gerou Almagesto: This
is undoubtedly derived (ultimately) from a Greek form μεγίστη (sc.
σύνταξις), meaning ‘greatest [treatise]’, but it is only later that it
was incorrectly vocalised as al-majasti, whence are derived the
mediaeval Latin ‘almagesti’, ‘almagestum’, the ancestors of the modern
title ‘Almagest’. (Toomer, Ptolemy's Almagest, Duckworth Books, 1984, p.2)
Principais edições modernas
Os historiadores tradicionalmente associam filosoficamente Ptolomeu e Aristóteles sem qualquer dificuldade. Mas, na realidade, Ptolomeu estará em contradição com Aristóteles ao privilegiar filosoficamente a Matemática em detrimento da Teologia: "Ptolemy began the work [Syntaxis] with a philosophically oriented preface, in which he discussed the organization of knowledge, concentrating particularly on the nature of and relationships between physics, mathematics, and theology. Here, in the preface, we see the first indication that Ptolemy broke with Aristotle, for he argued that mathematics is the highest form of philosophy, rather than theology." (Taub, Op. cit., 1993, p.3). As mais relevantes escolas filosóficas do século II a.C. incluíam a Academia (fundada por Platão), o Peripatos (por Teofrasto, romaniz. Theóphrastos, discípulo dilecto de Aristóteles), ambas datando do séc. IV a.C.; depois a Stoa (a escola Estóica, instalada por Zeno de Citium no séc. III a.C.), os Cépticos, os Neo-Pitagóricos e alguns pensadores que desafiam categorização. Ptolomeu teve, como Neugebauer referiu de passagem, uma atitude filosoficamente "eclética". A íntima associação filosófica aristotélico-ptolomaica parece, portanto, ser uma perspectiva algo simplificadora. No livro II das suas Hipóteses Planetárias (Ὑποθέσεις τῶν πλανωμένων), que sendo menos "instrumental" do que o Almagesto privilegia questões cosmológicas, Ptolomeu (segundo a interpretação de Lisa Taub), ataca directamente a Física Aristotélica e, mais espantoso, "dilui a distinção entre as duas naturezas" (neste particular o argumento não nos parece convincente) e defende a natureza animada dos planetas (fazendo uma analogia com o vôo das aves). Refere que o mesmo se testemunha noutras obras do alexandrino. (Op. cit., p.4; 112 et seq.). Ptolomeu agilizará os seus modelos recorrendo a excêntricos e epiciclos.
Na sua monumental L'Astrologie grecque (1899), Bouché Leclercq (p.576, n.1) vagueou pelo milefólio de atribuições fantasiosas do conhecimento astronómico aos deuses e heróis das lendas clássicas. O nosso resumo é incompleto e remetemos para o original, particularmente para as referências bibliográficas. Os ilustres representantes da Astronomia/Astrologia são imensos e surgem da tendência evemerista de interpretar os mitos numa óptica social e histórica. Nessa perspectiva, Atlas (condenado a suportar os céus, simultameamente Titã e montanha), torna-se um astrónomo, tal como Prometeu, Cefeu e outros (Cícero, Tusculanae Disputat. V. 3. Virgílio, Aen., I, 741. Plin., VII, 203). É filho de Lybia (personificação da África, "Lybiae filius", segundo Plínio, Nat. Hist., I, c; Eusébio, Praeparatio Evang., X). A associação das Colunas de Héracles a Atlas (Heródoto, ap. Clemente, Stromata ("Miscelânea"), I, 15) transformará (especula Leclercq) o herói musculado em aluno do gigante mitológico. Para os que seguiam Heródoto (Hist. II. 2), segundo o qual os Egípcios acreditavam que os Frígios eram a nação mais antiga, Atlas seria oriundo dessa nação. Os Cários (nas costas agrestes da Ásia Menor) e os Fenícios também concorriam para o título de nação disseminadora do conhecimento astronómico. Prometeu, que deu ao Homem o Fogo do Conhecimento, também seria astrónomo e teria o seu observatório no Cáucaso! Foi, talvez pela proximidade geográfica, hic primus astrologiam Assyriis indicavit ("o primeiro a ensiná-la aos Assírios" (aqui representando os povos da Mesopotâmia), segundo Servius, Eclog. VI, 42). Quíron, preceptor de Aquiles, e sua filha Hipe, também entram no rol dos sábios e astrónomos. O sábio Centauro também teria ensinado Medicina a Asclepius e Astronomia a Herácles. E a lira heptacorde de Orfeu também podia simbolizar os planetas (Ps-Luciano, Astrol., 10). Tirésias, o profeta da Odisseia, "descobre" o sexo dos planetas. Atreu, Belerofonte, Dédalo, Ícaro, Endimião et al. também são astrónomos. A Pítia de Delfos representava Virgo, o Apolo de Dídimos é um dos Gémeos (Gemini), o Oráculo de Ámon em Siwa (visitado por Alexandre Magno) estaria relacionado com Aries, o adultério de Marte e Vénus (Ares e Afrodite) na Ilíada era a conjunção dos planetas correspondentes, etc. Também há o sincretismo com os deuses estrangeiros, sendo Hermes-Thot exemplo paradigmático, autor de "milhares de livros". Deuses e sábios do Egipto e Caldeia são por demais referidos (e.g., Nechepso e Petosíris). A Ishtar babilónica passa a ser a instrutora de Hermes (Hygin., Astron., II, 42) e o Bel mesopotâmico (na realidade um título de diversas divindades) é o inventor das disciplinae sideralis (Martianus Cap., VI, 701). Segundo o épico Nono (Nonnus) de Panópolis, o Herácles Tírio (i.e. de Tiro, na Fenícia) é chamado Sol, Deus Universal, etc. E Leclercq acrecenta: "Cet Hercule fait un cours d'histoire à Bacchus et lui fait cadeau de sa robe constellée, le vêtement légendaire des astrologues". Noutro contexto, será o Patriarca Abraão a transportar a Ciência da sua Caldeia natal para o Egipto, tendo os Fenícios levado para a Beócia o que aprenderam com os Hebreus. E as curiosas referências continuam, intermináveis... Como o académico Checo Daniel Špelda refere (The Search for Antediluvian Astronomy: Sixteenth- and Seventeeth-Century Astronomers’ Conceptions of the Origin of the Science (Journal for the History of Astronomy, vol.44. Issue 3, August 2013), na Renascença, um período fascinado com as origens da
História e das instituições culturais, acreditava-se na existência de
um legado transmitido por Deus no início dos Tempos, e era a essa
tradição perene que se deveria resgatar. Mais tarde, nos séculos XVI e
XVII, acreditava-se que a Astronomia (enquanto saber prestigioso e de
amplo alcance simbólico) teria existido na Mens
Divina como um "Plano Eterno", de acordo com o qual os corpos celestes
foram criados e os seus períodos e revoluções definidos. As ideias
acerca da origem num passado áureo respaldavam-se em autores clássicos,
com a habitual referência ao Antigo Egipto enquanto fonte dos saberes
matemáticos (Heródoto, Historiae II, 50; II, 82; II, 143; Platão, Timaeus 22b; Plutarco, De Iside et Osiride X, 35E; Plutarco, De animae procratione in Timaeo 33, 103A–B; Diógenes Laertius, Vitae philosophorum, Proemium, VIII, 2–3; III, 6; Diodoro da Sicília (Siculus), Bibliotheca historica
I, 69, 3–4;). Todavia, pelo menos desde a época Helenística,
historiadores Judaicos contestaram essa versão e apresentaram a
alternativa "adâmica" da origem desses saberes. Destaca-se a apologia
de Flávio Josefo (Yosef ben Mattityahu) nas suas Antiquitates judaicae. Aí, fala-nos de Adão e dos seus descendentes (I, 2, 68–71; Jewish antiquities
I–IV, H. St. J. Thackeray (trans.), 1961, 32) e encontramos a célebre
referência a Seth, que antes do Dilúvio gravou em dois pilares, um de
tijolo e outro de pedra, o conhecimentos que deveria sobreviver e ser
transmitido à Humanidade futura. E teria sido o Patriarca Abraão, vindo
de Ur na Caldeia, a ensinar os Egípcios que depois transmitiram aos
Gregos os fundamentos da Aritmética e da Astronomia (Antiquitates judaicae I, 167–8, Jewish antiquities,
82.). Josefo terá uma recepção muito favorável por parte dos académicos
Cristãos do início do período moderno. A provecta idade dos antigos
patriarcas entrava na argumentação como uma vantagem na aquisição do
conhecimento dos ciclos e períodos astronómicos. Neste ambiente
cultural, não admira que também a astronomia tenha já surgido na
segunda metade do séc. XV nas contrafacções de um impostor como o
dominicano Annius de Viterbo (nascido Giovanni Nanni), no Berossi sacerdotis Chaldaici Antiquitatum libri quinque,
onde falsifica uma obra que atribui ao respeitado Beroso (ou Berossus,
séc. III a.C.). [Para além de criar genealogias e "registos" do passado
baseado em "obras perdidas" que afirmava ter "reencontrado" em Mântua,
e que influenciarão equivocamente, por exemplo, a nossa historiografia
penínsular até finais do séc. XVIII.]. Entretanto, com os resumos que
chegavam da China pela pluma dos Jesuítas, começamos a observar o
conflito da cronologia bíblica com a presumida antiguidade das
efemérides e registos orientais. Hevelius acreditava que os Chineses já
usavam efemérides antes do Dilúvio Universal mas, em conformidade com a
doutrina, considera que, "sem dúvida", aprenderam Astronomia com os
Antigos Patriarcas (Machina coelestis (Danzig (actual Gdansk), 1673),17: “Scientiam
Sideream ab Asiaticis, praesertim Chinensibus primam suam duxisse
originem; sine dubio ne a se ipsis, sed a Noa, vel Primis Patriarchis
eam hauserunt.”).
Intercâmbios: Índia, Pérsia e China. As eventuais influências recíprocas Na Índia, um sistema de "marcadores" siderais configura uma lista de nakshatras (a que os Árabes chamarão manazil al-qamar, as "mansões lunares"), com utilização calendárica e astrológica. O "caminho da Lua" era balizado por determinados asterismos. Os Nakshatras constituem o "backbone" da tradição indígena da Índia, recuando a um contexto ritualístico antigo de determinação do tempo específico para executar determinados rituais ou práticas espirituais. São referidos pelos nomes convencionais no Atharvaveda (Livro 19, Hino VII), que data provavelmente de 700-800 a.C. (um pouco mais antigo segundo Gavin Flood; datado c. 1200-1000 segundo Michael Witzel). Na tradição da Índia, a astrologia que "elege" um momento auspicioso sempre se baseou nos Nakshatras, i.e. nas constelações reais, siderais, do percurso da Lua, e ainda hoje o Zodíaco é preterido, podendo nem ser utilizado. A tradição astrológica Indiana (Jyotisha) mais antiga era, acima de tudo, calendárica. As técnicas especificamente horoscópicas surgem mais tarde no contacto com a tradição Helenística. De acordo com o académico Asko Parpola, a tradição Jyotisha e as descobertas relacionadas com o calendário luni-solar da Índia Antiga (bem como descobertas similares na Antiga China) são, muito provavelmente, paralelas e não oriundas de uma difusão comum a partir da Mesopotâmia, como se supunha: "...from convergent parallel development, and not from diffusion from Mesopotamia" (Beginnings of Indian Astronomy, with Reference to a Parallel Development in China, in "History of Science in South Asia", Vol. 1, 2013, pp.21–25). Mais tarde assiste-se à fusão com elementos Helenísticos (e depois Arabo-Persas) importados que serão "indianizados" e "sanscritizados", dando origem à horoscopia praticada no subcontinente. Na cosmologia dos Puranas (literatura popular de carácter enciclopédico, com datação variável e muito debatida, sendo seguro afirmar que foram registados, a partir de tradições orais pretéritas, ao longo do primeiro milénio da nossa era), uma série de rodas carregam os céus em torno da Terra. Os seus eixos estão fixados no sagrado Monte Meru, a sua força motriz é a respiração de Brahma. Uma visão híbrida influenciada pela cosmologia Grega mas não agilizada em termos de geometria esférica. Segundo P. Whitfield (The Mapping of the Heavens, Pomegranate Artbooks, 1995, p.20), a sabedoria Hindu foca-se, acima de tudo, nos caminhos para escapar ao mecanismo do destino e ao ciclo da acção e do sofrimento, e aqui a Astrologia assumiu um papel central.
O
sincretismo da época Helenística recolherá muitos dos contributos referidos:
gregos, mesopotâmicos, egípcios, persas, indianos... é o período
fundamental. Muito mais tarde, Newton e os seus contemporâneos, introduzirão a Dinâmica
na discussão dos fenómenos astronómicos. Otto Neugebauer, na
perspectiva da ulterior concepção europeia do
progresso da ciência, afirmou taxativamente: "Up to Newton all astronomy consists in modifications, however ingenious, of Hellenistic astronomy." (The Exact Sciences in Antiquity, (2nd edition),
Dover Publications, 1969, p.4). É verdade, na perspectiva dos futuros
desenvolvimentos científicos. Mas tende-se hoje a investigar e
valorizar os insuspeitados intercâmbios entre diferentes tradições.
Os Chineses raramente se referiam em termos de um deus "para além" do mundo, que o havia criado. os céus são a divindade suprema e o Imperador o seu filho, a cabeça do Estado e da sua religião. Os augúrios eram observados e relacionados com regiões, cidades ou até com divisões do Palácio Real. O mais importante ritual relacionado com o céu acontecia no Solstício de Inverno, quando o Yang voltava a aumentar após ter atingido o meu momento mínimo. (North, J. D., The Norton History of Astronomy and Cosmology, W. W. Norton & Company, 1994, pp.137-9).
A contagem do tempo: os relógios da Antiguidade Clássica e Helenística Apesar das melhores práticas que abordaremos de seguida, conhecer a hora certa era no passado tarefa difícil. Séneca revela quão complicado era saber horas exactas pois seria "...mais fácil os filósofos estarem de acordo entre si do que os relógios." (Apocolocyntosis divi Claudii, ii. 2-3) [Segue-se resumo traduzido a partir de exposição de Robert Hannah: Oxford Classical Dictionary (em linha: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199381135.013.1683)]
Os Gregos aplicaram aos mecanismos de medição do tempo as projecções gnomónica e estereográfica e por vezes recorreram a complexos sistemas de rodas dentadas. Para conhecer a "hora" aproximada durante o dia bastaria, de modo imediato,
medir com os pés a própria sombra projectada. O método expedito já é
mencionado pelo dramaturgo Aristófanes (na comédia Ecclesiazusae,
651–652). A primeira utilização documentada do gnómon (em rigor, o
estilo, a parte do relógio solar que possibilita a projecção da sombra)
pelos gregos está
associada a Anaximandro (séc. VI a.C.). A fonte é o biógrafo e doxógrafo
Diógenes Laércio (Laértios), que contudo nos informa que se destinava a
conhecer o tempo no calendário e não no dia (Diog. Laert.
2.1). Deste modo, parece aqui associá-lo a uma utilização
calendárica.
Sabemos, todavia, como constitui o instrumento "primevo" da abordagem à
estimativa do momento do percurso do Sol durante o dia. Entretanto,
Heródoto refere que o conhecimento do gnómon, na utilização
convencional como "relógio", teria origem na Babilónia
(Hist. 2.109.3), atribuíndo a mesma origem ao conhecimento das "duodécimas
partes do dia" (horas).
Um
dos tipos mais comuns de relógio era esférico: uma cavidade hemisférica
removida de um bloco de pedra com um ponteiro no centro. Eram inscritos
os círculos fundamentais (Equador, Trópicos e, obviamente, as linhas
das horas) (Evans, in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of
Archaeoastronomy...", Op. cit., vol.3, ch. 141, p.1590).
Um último instrumento, peculiar, é o prodigioso "Mecanismo de Antikythera" (Anticítera), resgatado no Egeu por pescadores de esponjas por volta de 1900. Tecnologia de ponta, decerto raríssimo e peculiar na sua época, combinava uma diversidade de modalidades de contagem do tempo. Muito mais tarde submetido a raio X e TC, sabemos que utilizava cerca de trinta rodas dentadas (num sistema diferencial que se julgava ter sido somente descoberto pouco antes da Renascença). Permitia correlacionar os ciclos do Sol e da Lua (o chamado "Ciclo Metónico" de 19 anos trópicos ou 235 lunações, que permite relacionar os calendários solar e lunar e saber quando uma determinada fase da Lua vai acontecer na mesma data do calendário solar; vide Derek Price: Gears from the Greeks: The Antikythera mechanism, a calendar computer from ca. 80 B.C. Transactions of the American Philosophical Society 64. Philadelphia: American Philosophical Society, 1974), e ainda, provavelmente, os movimentos dos cinco planetas conhecidos nos seus movimento epicíclicos através do Zodíaco. Segundo Cícero, Posidonius (c. 135-51 a.C.) também construiu um modelo do unverso, que exibia os movimentos diurnos dos luminares e dos cinco planetas. (De Natura Deorum, ii-34) .
Numa referência aos instrumentos pré-telescópicos (i.e. até ao séc. XVII), podemos incluir, para além do eterno gnómon (ponteiro) dos relógios de sol e das clepsidras, o astrolábio (principalmente na Idade Média e nunca um instrumento preciso e especializado), o quadrante (preferencialmente de grandes dimensões), fixado numa parede no plano do meridiano e a esfera armilar, que permitia a determinação directa das coordenadas equatoriais e eclípticas (seria o instrumento "perfeito" e um "modelo do Universo", multifuncional, todavia mais difícil de utilizar e provavelmente preterido relativamente a outros mais simples e especializados (quadrante, instrumento para medições zenitais, outro para estimar o momento do equinócio, etc.) com apenas uma funcionalidade, também descritos na época). Os Gregos Aristilus e Timocharis estão entre os primeiros astrónomos que determinam as posições das estrelas de modo preciso, utilizando coordenadas, Por essa altura, Euclides havia expendido a “doutrina das esferas”, i.e. o sistema de coordenadas usado para determinar as posições dos eixos e planos fundamentais aos quais os sistemas de coordenadas dos corpos celestes se referem (Abetti, G., History of Astronomy (Betty Burr Abetti, trans.), Abelard-Schuman, 1952, p.38). No final do séc. XIII assistimos ao aparecimento do 'novo quadrante' (combinação de quadrante e astrolábio) por Don Profeit Tibbon (conhecido como Profatius) e ao chamado "Bastão de Jacob" (Baculus Jacobi) ou Balestilha por outro Judeu Provençal: Levi ben Gerson (conhecido como "Gersónides", 1288-1344). Este instrumento era composto por um virote e uma soalha, que corria na perpendicular em relação ao virote e permitia medir o ângulo entre dois objectos no céu. Segundo Robert Recorde, todos os instrumentos (i.e. de medição angular, subentende-se no contexto) se baseiam, de uma ou outra maneira, na representação da "esfera material": "...yet all these are but parts (at the most) diuers representations of the Sphere" (The Castle of Knowledge, 1556, 2nd Treatise). Como Jean-Pierre Verdet salienta, ao longo dos cerca de dois mil anos que separam Hiparco de Tycho Brahe, os instrumentos de observação 'profissionais', de poste fixo, serão praticamente sempre os mesmos, bem como as respectivas técnicas de construção, materiais e precisão: "D’Hipparque à Tycho Brahe, soit donc pendant près de deux mille ans, le matériel d’observation sera extrêmement réduit et restera pratiquement le même, comme resteront les mêmes les techniques de construction de ces instruments, leurs dimensions (à peu près la taille humaine) et leurs performances. Tous réalisés en bois, les instruments d’observation utilisés, disons à poste fixe, sont au nombre de trois : le quadrant statique, le triquetrum et la sphère armillaire, appelée également astrolabe sphérique, terme que nous éliminerons pour éviter la confusion avec l’astrolabe planisphérique du Moyen Age qui n’a jamais été un véritable instrument d’observation, si ce n’est pour la détermination approximative de l’heure, mais plutôt un instrument à usage pédagogique." (Une Histoire de l'Astronomie, Éditions du Seuil, 1990).
O
quadrante estático era um quarto de círculo equipado com um sistema de
mira ou uma simples pínula que, perpendicularmente ao referido
quadrante, projetava a sua sombra. Estaria instalado numa superfície
vertical orientada na exacta direcção norte-sul, apontando o meridiano.
Outro instrumento para medir alturas, o triquetrum (imagem acima) era
um conjunto de três réguas, uma fixa e erecta, as outras duas móveis e
articuladas sobre a primeira no plano do meridiano, uma integrando uma
pínula e a outra uma graduação. Foi inventado para sobrepujar a
dificuldade de graduar arcos e círculos. O astrolábio esférico (ou
esfera armilar) era uma tradução tridimensional da esfera celeste,
reduzida aos seus maiores círculos de referência e equipado com um
sistema de visada; os círculos de referência eram graduados. O
astrolábio plano medieval não era um instrumento suficientemente
preciso para as medições astronómicas especializadas.
A atitude relativamente aos fenómenos naturais ao longo da Antiguidade não era marcada pela 'causalidade' mas sim pela 'finalidade'. A ligação entre os fenómenos não era vista em termos de 'causa-efeito' mas sim enquanto 'sinal' e 'significado'. (Pannekoek, A., A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961; trad. nossa) Os nossos ancestrais mitificavam e interpretaram o Universo seguindo referências familiares do quotidiano, das actividades sociais, cultuais e agrícolas, numa lógica de analogia e no quadro conceptual específico dessa sociedade. Os nomes dos meses hebraicos, e.g., Nisan (“Sacrifício”) ou Airu (“Florescimento”), reflectem a vida ritual e agrária desse povo no "carrossel" que é o ano. Há temas perenes, emergindo em todas as culturas devido à sua importância universal: a ordem, o ciclo da vida e a renovação, a criação, a transcendência, a oposição masculino-feminino, a complementaridade entre forças polarizadas (Krupp E. C., Beyond the Blue Horizon, Oxford University Press, 1992 (1991), 1 et seq.). Segundo Anthony Aveni, o importante a reter é que estamos perante cosmovisões racionais, em contexto ou "em situação", estruturadas na articulação entre as partes, hierarquia e alternância, relação espírito-matéria e procura de "significado" (Conversing with the Planets, Kodansha America, Inc. 1994, p.177).
Habitava-se um mundo pleno de correspondências e assinaturas simbólicas, caracterizado pela "cosmisação" do espaço e pela sacralização do tempo (vide Eliade, M., O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões, Livros do Brasil, 1975; 1959; caps. I e II). O calendário e as estações do ano serão determinantes na atribuição da natureza elementar e das qualidades de cada imagem ou signo. Prevalecia um princípio de analogia entre o Todo e as partes, materializado, por exemplo, através do paradigma da teoria elementar e humoral. A Filosofia codifica o conceito de “Alma do Mundo” (lat. Anima Mundi) que permeia o Universo. No Timeu (Timaios, o único texto platónico de grande fôlego disponível durante séculos no Ocidente latino através da tradução parcial e extenso comentário de Calcidius), é não somente a Causa Primeira e o Princípio da Vida (Kósmos enquanto ser vivo/organismo vivo) como se lhe atribui cognição (Helmig, Christoph (ed.), World Soul – Anima Mundi: On the Origins and Fortunes of a Fundamental Idea, De Gruyter, 2020. 2.: Plato's Timaeus as a likely 'story'). E neste diálogo platónico, cada "alma" voltará para a "sua estrela" Daí os versos de Dante, no Paradiso (Canto IV): Ancor di dubitar ti dà cagione
Nicholas Campion avançou a hipótese, provavelmente pouco fundamentada e candidamente "difusionista", de que o conceito da eternidade da alma, que não estaria explicitamente presente ou generalizado noutras religiões da Antiguidade, é proveniente do Egipto, influenciando ulteriormente outras culturas e concepções filosóficas como as de Pitágoras e, consequentemente, de Platão, com enorme influência, também no Judaísmo mais tardio. (Was There A Ptolemaic Revolution in Ancient Egyptian Astronomy? Souls, Stars & Cosmology, Journal of Cosmology, 2011, Vol 13. 4174-418).
Muito mais tarde, no saber medievo informado pelo aristotelismo assimilado a partir do séc. XII, os conceitos fundamentais radicavam nas simpatias, antipatias e a na apetência aristotélica pelo lugar "natural". Tudo tem esta "inclinação" para o sítio a que pertence e lhe é conveniente (Lewis, C. S., The Discarded Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature, Cambridge University Press, 1964, 92). É o que descreve Chaucer (Hous of Fame, II, 730 et seq.): Every kindly thing that is
"Ora sabede que diz Joam Gil no seu grande liuro de estronomia, que todallas cousas que som feitas, todas som feitas per natura naturante, que he Deus, ou por natura naturada, que Deus fez , que por elle he ordenada, segundo a ordenaçom que lhe elle pos, a qual ordenaçom chamamos nos outros natureza, (...) E este Deus segundo os philosophos que nom forom hereges, derom hum arneço pollo poder deste Deus, e disserom que elle todo sabedor, e poderoso, pollo seu saber e poder fez de nouo húa matéria, a qual nos nom podemos saber que he, nem de que he, senom que lhe chamam todollos philosophos 'ille', da qual fez os quatro ellementos, e que por esta materia, a que elles disserom ille, e que por esto leuarom elles nome ellementos, destes quatro ellementos segundo os philosophos criou Deus, a que elles dizem natura naturante, todallas cousas que som, também ceeos, como as pranetas, e signos, e estrellas..." (Edição de Francisco Maria Esteves Pereira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, pp. 125-6). Adiante referem-se os signos e os "pranetas", que imprimem as qualidades nas coisas sublunares, compostas pelos quatro elementos.
O Tempo Qualificado / Os Ciclos Cronológicos "O
homem religioso vive em duas espécies de tempo, a mais importante das
quais, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um
Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente
mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos." (Eliade, M., Op cit.,
82). Assim se vivia o calendário e a renovação cíclica do Homem e do
envolvimento, em todas as suas valências. Na Astrologia, traduzir-se-á
amiudadamente na horoscopia contínua e cíclica. O múnus do calendário é, evidentemente, qualificar o tempo. Vamos agora referir alguns ciclos ainda mais ambiciosos. Aveni argumenta que o objectivo do "jogo" da interpretação dos ciclos cronológicos, em diversas civilizações, por exemplo na China, na Índia (Yugas, “eras”) ou entre os antigos Maias (onde o maior ciclo era o kalpa), seria vincular a duração observável e sensível ao tempo gerido ou "dominado" pelas divindades planetárias. Os astrólogos da Pérsia, por exemplo, vão encontrar um sistema (de raíz astrológica) muito cómodo, através das conjunções (com periodicidade de 20 anos) dos lentos e ponderosos planetas Júpiter e Saturno (cada qual enquanto chronocrator, "Senhor do Tempo" na expressão grega). Uma concatenação de conjunções percorre os signos de uma Triplicidade astrológica, conjunto dos signos do mesmo elemento (Fogo, Terra, Ar e Água), mudando de Triplicidade e passando para outro Elemento após 240 anos. Somente após 960 anos (48 conjunções) é que ambos os planetas se conjugam no mesmo signo da mesma triplicidade. Esta será uma ferramenta cronológica e vaticinadora de acontecimentos “globais”, alterações dinásticas, religiosas, grandes cataclismos, etc. Fascinou muitos sábios desde então. Os textos de Ja'far ibn Muhammad al-Balkhī (787-886), Abū Ma'shar (conhecido no ocidente como Albumasar), divulgaram-na na Europa. Kepler estudou-a com denodo. E assim como os astros nasciam, se levantavam no horizonte, e se punham, assim as cidades, os impérios, as igrejas, floresciam e murchavam, envelheciam e morriam, e às vezes renasciam com "vida nova" (Eugenio Garin, O Zodíaco da Vida: a polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI, Editorial Estampa, 1987 (1976), p.47). [Albumasar também se debruçou sobre a questão do aparecimento dos "profetas", articulando as conjunções (grandes) com outras variáveis astrológicas que deveriam ser concomitantes (determinados planetas em certas casas significativas, etc.)]. No que diz respeito à interpretação Renascentista, Garin salienta a tensão entre "a instância humanista (...) que opõe a obra livre do Homem" e a "concepção de um renascer inscrito num carácter cíclico que parece subordinar qualquer acontecimento da hisória humana aos movimentos celestes" (ibid., p.48).
No esquema acima, como exemplo, observamos que a série de conjunções que começa no início de Aries (sendo a primeira identificada como "0") vai percorrendo signos da mesma Triplicidade (Fogo, neste caso) até que na "13" se transita para outro 'Elemento' com a entrada em Taurus (nestas mudanças reside a ancoragem dos grandes eventos históricos). Deste modo, as "grandes conjunções" (i.e., as "normais", de 20 anos, cada qual acontecendo 117º atrás, em longitude), resultam após 240 anos numa "conjunctio major" (designação latina), que acontece quando há mudança de Triplicidade (i.e. conjunção acontece num signo de outro elemento). Todavia, os cálculos não acontecem com rigor astronómico, pois recorrem ao chamado 'movimento médio' (mean motion, que assume velocidade angular constante numa órbita circular) e não o verdadeiro (que tem velocidade angular variável). Após 960 anos teremos a chamada "conjunctio maxima", quando a série volta à Triplicidade original. A estas últimas foram associados eventos civilizacionais, políticos e religiosos muito relevantes (e.g., o Dilúvio, o advento do Islão, a Reforma, etc.). Existindo diferenças, é impossível não relacionar o 'desenho' com teorias como o Grande Ano (que referiremos de seguida), com doutrinas do movimento da 8ª Esfera (Precessão e Trepidação), com os grandes ciclos planetários ou com as cronologias Persas (Zoroastrianas, mormente da época Sassânida) e Indianas (as idades cíclicas da cosmologia Hindu, os Yugas). O sistema de conjunções sofreu adaptações ulteriores, e.g., em Pierre D'Ailly (vide Smoller, L. A., History, Prophecy, and the Stars: The Christian Astrology of Pierre d'Ailly, 1350–1420, Princeton University Press, 1994). Uma das doutrinas cíclicas respaldadas em Albumasar é o chamado "horóscopo das religiões". As conjunções de Júpiter com cada um dos restantes planetas determinariam "Eras religiosas", e dado que são seis planetas, seis serão as Eras e as sectas principales: a conjunção com Saturno, significa livros sagrados e a religião mais antiga, o Judaísmo; com Marte, a "lei" Caldaica que ensina a adorar o fogo, com o Sol é a "lei" Egípcia e a adoração da milícia celeste conduzida pelo Sol, com Vénus é a "lei" venérea e voluptuosa dos Islamitas, com Mercúrio é a "lei" Cristã e com a Lua é a perturbadora "lei" do Anticristo. Roger Bacon, No século XIII, Roger Bacon, transcreveu este "esquema" no seu Opus maius. E o cardeal Pierre D'Ailly (1351-1420) não hesitará em admitir a dependência astrológica, até da própria 'Encarnação' do Cristo! É na abordagem pitagórica (ou neopitagórica, pois a mitificação da figura de Pitágoras pelos seus sucessores tornou-o praticamente "insondável"), que em matéria astronómica se baseou em fontes próximas, que assistimos à especulação em torno do "Grande Ano", conceito platónico decerto remotamente originário da Babilónia, onde provavelmente se baseava nos rácios orbitais dos planetas (múltiplo desses períodos). Não se relaciona com a chamada Precessão dos Equinócios, um fenómeno diferente. Para compreender Platão, imagine-se (segundo a comparação de Godefroid de Callatay, professor da UC Louvain) a convergência dos "ponteiros" do grande relógio cósmico, quando os planetas voltam à posição inicial (é o Ano Perfeito, que o filósofo não calcula nem do qual nos dá a demora). O "Grande Ano" e o posterior "Ano Precessional" (que não está relacionado com a astronomia da Mesopotâmia) têm implicações teleológicas, i.e., relacionadas com os fins, as finalidades do Universo. São diferentes entre si mas serão amiudadamente confundidos. Acerca do 'Grande Ano', desde Santo Agostinho que a perspectiva de um retorno cíclico das sete estrelas errantes [planetas] à mesma configuração era considerada teologicamente "perigosa". Estará mais tarde incluída nas famosas 'condenações' de 219 opiniões pelo Bispo de Paris em 1277. O carácter cíclico contrariava a mensagem Cristã de que a Redenção havia sido possível através do acontecimento histórico, único, do sacrifício de Cristo. (J. D. North, Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, p.37).
(...) esos orbes de diamantes, (Pedro Calderón de la Barca, excerto de La vida es sueño, 1635)
Num epítome feliz, "após seguirmos as imagens, acreditámos nas imagens" (Aveni, Op cit., 1994, ch.5). A Lua, "estrela" mais próxima e intermediária, presidia aos ritmos e "canalizava" os "influxos". Cada estrela (luminares e planetas) possuía as suas qualidades elementares, dignidades essenciais (designadas "quilates" pelos nossos tratadistas do séc. XVII) e acidentais (estas últimas em função da geometria (os "aspectos") e da presença "em corpo" em determinado Signo) e os seus "Domínios". Luna, Selene, Cynthia, "fria e húmida", preside sobre as Águas: ...the moist star, (Shakespeare, Hamlet, Act.1 Scene.1)
Every living being, plants as well as animals, was provided by the Creator with the four ‘natural faculties’ of attraction, assimilation, excretion and growth. Each part of the body had thus the potentiality, as a result of its elemental organisation, to feed on this nutritious blood, to assimilate whatever it needed to grow and to function, and to excrete potentially harmful residues that it no longer needed. The body was a living universe, responding to changes and actively seeking whatever it needed in order to exist and to function. (Nutton, V., Ancient Medicine (2nd ed.), Sciences of Antiquity, Routledge, 2013, p.239) Era, tradicionalmente, através do ciclo da Lua que se fazia a análise da evolução das doenças. Os chamados Dias Críticos eram fortes indicadores para se perceber se o doente recuperava ou morria. Eram contados a partir da posição da Lua no início da doença (decumbitura). Os dias em que o médico previa o aparecimento de uma crise.
- Pensar em termos de correspondências (diferentes níveis de "classes" da realidade), visíveis e invisíveis estão ligadas por um elo; O Universo é visto como uma espécie de teatro de espelhos onde todas as coisas podem conter referências a outras coisas; - A ideia de natureza viva entende o Cosmos como sistema complexo, dotado de alma e banhado por uma energia viva; - Imaginação e mediações indicam que o conhecimento acerca das correspondências exige imaginação simbólica ou revelação por "autoridades espirituais"; -
Finalmente, a experiência da transmutação cria um paralelo entre a
acção exterior e a vivência interior (evoca-se o exemplo da Alquimia).
Relacionando judiciosamente a origem da horoscopia com a Filosofia e a Cosmologia, Richard Gordon resume: "Most Hellenistic philosophers allowed that Fate was inexorable and granted it some limited place in their cosmological schemes. All these sytems in turn were heavily indebted to the rationalisation of the cosmos as a (benignly ordered) geo‒centric system developed by Eudoxus of Cnidus and Callippus of Cyzicus in the mid‒fourth century BCE, and progressively refined thereafter. With the impetus provided by the Babylonian calculation of solar, lunar and planetary positions, standardised in ephemerides (handy tables), the concept of the fixed zodiac, and primitive ‘horoscopes’ based on the day, month and year of birth, all of them schemes and techniques mediated into Greek in Seleucid Babylonia, the various modes and techniques of Greek horoscopal astrology were created – that is ‘emerged’, since all relevant names are pseudonyms such as ‘Zoroaster’, ‘Hermes’, ‘Nechepso’, ‘Petosiris’, even ‘hierogrammateis’ (i.e. senior Egyptian temple‒priests) ‒ no doubt in Alexandria, during the later third and second centuries BCE. This intense pseudonymous/anonymous labour produced what is today known as the ‘Hellenistic vulgate’. The notion of an immutable futurity, what the IVp author Firmicus Maternus terms fatalis necessitatis lex, a fixed law of absolute necessity, was generally asssumed by practitioners to be basic to the entire project of using the heavenly bodies ‒ regarded as visible divinities whose predictable movements follow unchanging laws - as a reference - point for divination. This was of course to pitch the claim to have found a means of rationalising uncertainty at the highest conceivable level, above all when it was a matter of the major art, that of genethlialogical astrology, the art of casting nativities for the entire life of an individual. The result, inevitably, was not merely a flight into complexity but an assiduous lack of interest in the theoretical underpinnings – a practitioner such as Vettius Valens in the High Empire could write an entire handbook of genethliacal astrology without once mentioning the problem of mediation, that is, how the stars affect human life." (Will my Child Have a Big Nose?: Uncertainty, authority and narrative in katarchic astrology, in Rosenberger, Veit (ed.), "Divination in the Ancient World: Religious Options and the Individual", Franz Steiner Verlag, 2013, pp.97-98)
Na época
Helenística, floresce uma literatura astrológica escrita em Grego, que
aglutina elementos mesopotâmicos, egípcios e gregos. Os chamados "Livros Herméticos", que contém toda uma teologia baseada num misticismo astral vão disseminar-se pelo mundo romano (vide Lloyd-Jones, Hugh, Myths of the Zodiac, Gerald
Duckworth & Co., 1978). O determinismo Estóico e a religião astral
da Mesopotâmia eram "aliados naturais". A Astrologia Helenística
respalda-se no conceito de um Kósmos interdependente, enformado por princípios de "simpatia" e correspondência, do qual o ser humano é parte integral. Nela encontramos um reflexo da physis
grega, da Teoria dos Elementos, da geometria.
Uma corrente estruturante com enorme 'autoridade' era, obviamente, a dos Aristotélicos (os Peripatéticos) do "Lyceum". Duas escolas ou "seitas", os Cépticos e os Cínicos, eram naturalmente adversos à Astrologia. Os seguidores de Platão, na Academia, eram muito mais abertos, tendo assimilado conceitos de outras correntes filosóficas e místicas. Entretanto, duas influentes escolas na percepção que viremos a ter do Homem e do seu lugar no Mundo serão a Epicurista e a Estóica. A primeira, cujo pensamento conhecemos principalmente a partir do De Rerum Natura, de Lucrécio (Lucretius) era ateísta e materialista (admitindo somente a existência dos "átomos" e do "vazio"), demarcando-se de intervenções divinas e "supersticiosas" e promovendo a tranquilidade através da indiferença ou ausência de medos (ataraxia) e do sofrimento físico (aponia), cultivando a serenidade e o conhecimento dos limites para os desejos. Era prática e empirista, rejeitando obviamente a Astrologia pelo seu vínculo às aspirações e emoções humanas. O Estoicismo era tecnicamente "materialista" mas com nuances. Não admitia a separação entre a matéria e o espírito. Adoptaram os quatro elementos e ainda o quinto elemento subtil ("aether", o éter), provavelmente por via aristotélica. Para os estóicos, a alma era material mas mais subtil, interpenetrando o corpo e, após a morte, voltando ao ambiente etéreo dos céus. A mundividência era fatalista, regulada pela ideia de Destino e de uma "simpatia cósmica" que era, deste modo, perfeitamente compatível com a Astrologia. Adequou-se, principalmente pelos ensinamentos de Posidonius, ao modus Romano, com o seu sentido do dever perante o Estado e da participação política. (Op. cit., pp.51-2 e 59-60),
[N.B.: no passado, "constelação" raramente significava uma figura ou padrão permanente, como para nós; era uma configuração transitória, temporária das posições relativas dos astros no céu, conceito intimamente relacionado com a sensibilidade astrológica.] A origem da chamada Horoscopia Helenística (i.e. prática astrológica individualizada que valoriza o Ascendente e os restantes cardines), baseada na "tetralogia" Planetas - Signos - Lugares (as "Casas") - Aspectos, recua aos textos em Grego, redigidos no Egipto, que se reclamam da "linhagem" dos considerados "Antigos" (em rigor são autores dos séculos I e II a.C. que se ocultam sob os nomes de Hermes-Asclepius-Nechepso-Petosiris). amiudadamente citados nos textos dos séculos I e II AD. Esta modalidade combina, no mínimo, contributos Mesopotâmicos, Egípcios e Gregos. O nosso conhecimento é provisional e sempre condicionado pela leitura dos intérpretes gregos, daí se referir a "miragem" do Egipto, preteritamente estudado somente "de fora" (perspectiva actual enfatiza o "transaccional" e "dialógico", e.g., em Ian Moyer, Egypt and the Limits of Hellenism, Cambridge U. P., 2011). Ainda se discutem as contribuições específicas de cada uma destas culturas, bem como a cronologia da evolução ou do aparecimento de conceitos e técnicas fundamentais. Em todo o caso, esta "arqueologia" padece de lacunas documentais que impedem uma delineação clara das fontes e da tramitação do conhecimento. Muitos conceitos (para além dos inequivocamente documentados, como o Zodíaco esquemático) parecem possuir um precedente (ou um paralelo) mesopotâmico (e.g., as 36 estrelas de referência podem ter tido uma função análoga à dos decanos, parece existir um esboço das "triplicidades", etc. Mas o que distingue a sofisticada abordagem helenística, formalizada nos autores dos séculos I e II, é a ênfase geométrica numa estrutura esférica, tridimensional (não apenas aritmética como no Oriente Próximo), o eclético suporte filosófico grego, particularmente o Aristotélico (muito evidente em Ptolomeu), conceitos pitagóricos, platónicos e a mundividência estóica, o recurso ao conceito dos Quatro Elementos e suas Qualidades, etc. O período entre o aparecimento da astrologia natal (não horoscópica) na Mesopotâmia (durante o período da dominação Aqueménida) e esta modalidade mais "sofisticada" está pouco documentado. Antes disso, como sabemos, temos o que parece ser a origem da Astrologia: a prática da observação e dedução de augúrios patrocinada pelo poder instituído, desde os séculos VII ou VIII, profusamente documentada nas bibliotecas de tabuínhas em escrita cuneiforme.
A Astrologia assumirá as duas vertentes: "natural" e "judiciária". Uma reflecte a inquirição no âmbito da Philosophia Naturalis ou estudo do "Livro da Natureza". A segunda foi desde cedo e amiudadamente proscrita (leis e diatribes contra os mathematici, genethliaci e prognosticadores, documentados deste a época Clássica). Entretanto, o sistema é integrado na doutrina Cristã, salvaguardando o fundamental livre arbítrio (as decisões individuais que determinam beatitude ou danação ad aeternum). Assim, a "influência" dos astros restringe-se aos eventos corpóreos (na Summa Contra Gentiles, Tomás de Aquino é taxativo: "é impossível que a operação do intelecto esteja sujeita aos movimentos celestes" (III. 84)): . Serão Causas Secundas, em relação à Divina Providência, a "Causa Primeira". Na chamada "Crónica de Portugal de 1419", um conselheiro de D. Afonso IV toma a palavra: "Senhor", disse, "os sabedores que amte nós forom, aynda que às costelações [i.e. configurações astrológicas do céu, no todo] grande poderio dessem, nom leyxarom porem de asynar livre alvidro [alvedrio, arbítrio],
ho qual muitas vezes pode fazer as costolaçoes serem verdadeyras.
E, posto que elas sejam juizes de inteligemçias que naturalmente mentir
não podem, o sobrenatural Regedor as priva muytas vezes de seus
naturaes efeytos por responder com justiça aos mereçimentos do livre
alvidro...". Um pouco adiante: "E,
pois que as costelaçoes e fados sam findos e a graça de Deos he
infinda, ho infindo de neçesidade vemçerá o que for findo. fazendo
çesar a costelaçao de sua detreminada obra." (Crónica de Portugal de 1419, ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, pp.242-3). A Astrologia, como um todo, fará parte do Quadrivium, o segundo patamar das Artes Liberais. Na mundividência medieval, a alma é distinguida em três componentes ou modalidades hierarquicamente organizadas: "thre manere soulis . . . vegetabilis that geveth lif and no feling, sensibilis that geveth lif and feling and nat resoun, racionalis that geveth lif, feling, and resoun." (Bartholomaeus Anglicus, De Proprietatibus Rerum). Ou seja, a vegetativa, a sensitiva e a racional, esta última exclusiva do ser humano. Contudo,
foi sendo paralelamente sugerido que os poderes dos signos e dos
planetas seriam, na realidade, "pessoais", espíritos (daemones) que podiam ser invocados (v. por exemplo o Liber Intelligentiarium de Antonius de Monte Ulmi (Montuolmo),
activo em Bolonha por volta de 1380). De resto, assistimos a curiosas
"acomodações" das práticas religiosas à Astrologia. Como exemplo, o
astrólogo da corte de Mântua Pellegrino Prisciani (1435–c.1518)
aconselha a Marquesa Isabella d’Este Gonzaga a encetar as suas orações
apenas no momento da benéfica configuração da chegada da 'Cauda do
Dragão' (Cauda Draconis, um dos nodos lunares) ao Meio-Céu, pois aumentará a eficácia (Graziella Federici Vescovini, The Theological Debate, p.117, in: Dooley, B. (ed.), "A Companion to Astrology in the Renaissance", Brill, 2014 ; ver também: Sophie Page, Magic in the Cloister. Pious Motives, Illicit Interests, and Occult Approaches to the Medieval Universe, University Park, Pennsylvania State University Press, 2013).
Como von Stuckrad explica, o lugar do Homem como centro da criação perder-se-á. Da Antiguidade até o século XVII havia, a bem da verdade, um consenso de que as Leis do Céu e da Terra seriam basicamente diferentes, como Aristóteles ensinara. Somente o mundo sublunar estaria exposto às leis da mudança e da decadência. Como consequência da nova filosofia, graças à igualdade de leis terrestres e celestes, o estudo das coisas comuns pode esclarecer as características universais do Cosmos. Desse modo, tanto a divisão aristotélica entre matéria e forma foi abalada, como também a opinião de que existiam conexões ocultas (e.g., "simpatia"). De acordo com a visão de mundo mecânica (pós-newtoniana) doravante defendida, somente explicaçòes físicas, como a gravidade das partículas, podem ser consideradas em tais ligações. Não pode haver dúvida acerca do efeito radical do novo pensamento. (Op. cit., p.279 et seq.)
A tendência para a fantasia continua, sem os exageros pretéritos mas com a mesma falta de rigor nas inúmeras obras de divulgação contemporâneas. Joanna Woolfolk, no best seller "The Only Astrology Book You’ll Ever Need (Taylor Trade Publishing, 2008), escreve estas coisas notáveis (p. 371): "The path of the stars was recorded 6,000 years before Christ was born. As early as 2767 b.c., a horoscope was cast in Egypt by Imhotep, the architect of the great Step pyramid in Saqqarah. That horoscope still exists! Ancient astrologers charted the movement of planets and stars, and made predictions about eclipses, upheavals, famine, and fortune. They developed calendars for marking and measuring the passage of time. You can still read star charts that were made by Egyptian astrologers in 4200 b.c. In ancient societies, astrology and religion were inextricably linked." [Na realidade, os horóscopos, ou mesmo o Zodíaco dividido em doze sectores de 30º cada, não existem antes do séc. V a.C., o horóscopo de uma natividade mais antigo que conhecemos data de 410 a.C. (Rochberg, Babylonian Horoscopes, p.3) e a horoscopia genetlíaca como a reconhecemos, de matriz greco-egípcia, surge somente no período Helenístico. A referência a Imhotep deve ter saído de um mau argumento de Hollywood!] Convém não esquecer a chamada "Astrologia Védica" (na realidade não se encontra qualquer vestígio de horoscopia
nesses antigos textos) e que por vezes se reclama de uma antiguidade
assombrosa, baseada nos ciclos temporais míticos das tradições
religiosas do Indostão (e.g., yugas, manvantaras)
e numa interpretação literal das antigas epopeias. Impregnados de um
nacionalismo pouco saudável, alguns praticantes fazem recuar a origem
da sua astrologia
(supostamente autóctone e independente de influências "bárbaras") tão
cedo que receamos recuar ao Cretácico ou até à própria origem do
Sistema Solar! Um perfeito absurdo que não faz
justiça às influentes e riquíssimas culturas em causa que, não sendo
estanques, tanto receberam como exportaram (o
sumamente importante "zero" é conceito indiano, bem como tantas ideias
e elucubrações religiosas e filosóficas, o infinito do próprio Tempo (Kãla, também associado à morte), as ideias-base teosóficas, novas sensibilidades nas cogitações científicas (por exemplo a influência no trabalho de Fritjof Capra et al.)
e nas crenças do quotidiano de tantos e tantos seres
humanos pelo mundo fora). Os académicos indianos são obviamente mais
moderados mas não estão isentos desse complexo, dirigindo amiudadamente
investigações no sentido de provar a prioridade dos textos da sua tradição. NB: os Vedas
foram registados ao longo de séculos, a partir da tradicional transmissão oral e recitatória. Os mais antigos datam c. 1500-1200
a.C. (alternativamente foi proposto o intervalo 1700-1100). A análise filológica
coloca-os na segunda metade do segundo milénio (texto mais antigo disponível estimado em
1200 a.C.). [Fontes: Anthony, David W. (2007), The Horse, The Wheel And Language. How Bronze-Age Riders From the Eurasian Steppes Shaped The Modern World, Princeton University Press; Oberlies, Thomas (1998), Die Religion des Rgveda: Kompositionsanalyse der Soma-Hymnen des Rgveda, Wien: Institut für Indologie der Universität Wien; Flood, Gavin, ed. (2003), The Blackwell Companion to Hinduism, Malden, Blackwell; Witzel, Michael (2001), "Autochthonous Aryans? The Evidence from Old Indian and Iranian Texts", Electronic Journal of Vedic Studies, 7 (3): 1–115; Kumar, Jay (2014), "Ayurveda and Early Indian Medicine", in Johnston, Lucas F.; Bauman, Whitney (eds.), "Science and Religion: One Planet, Many Possibilities", Routledge]
- (mais alguns tópicos acerca da perspectiva astrológica)
A opinião científica actual foi resumida por Philip C. Plait (Mars Is in the Seventh House, But Venus Has Left the Building: Why Astrology Doesn’t Work, in "Bad Astronomy", John Wiley & Sons, 2002): Astrology
lacks any sort of self-consistency in its history and in its
implementation. There is no connection between what it predicts and why
it predicts it, and, indeed, it appears to have added all sorts of
random ideas to its ideology over the years without any sort of test of
the accuracy of these ideas. (p.213). E completa: A
specific horoscope might be wrong. A vague one never is, which is why
horoscopes are generally very vague indeed. The complementary aspect is
the all-too-human ability to forget bad guesses and remember accurate
ones. (p.219). A
crítica por parte dos cépticos de que a Astrologia não é científica é,
evidentemente, acertadíssima. Não utiliza o método, não há mecanismos de controlo, não permite verificação, replicação experimental, etc. Todavia,
seria mais eficaz (e revelador de algum rigor) que se evitassem alguns
argumentos simplistas por vezes avançados, pois... - Toda a gente sabe que o actual sistema cosmológico não é geocêntrico;
Concluíndo,
convém conhecer estes detalhes ou
o enfoque passará a residir na relativa ignorância do céptico. Os melhores discursos adversus astrologiam
continuam a ser os provenientes de autores como Santo Agostinho ou
Giovanni Pico della Mirandola, obviamente contextualizados, porque
conheciam os textos fundamentais e a doutrina fazia, como vimos, parte
do "mapa" do conhecimento. A diversidade das actuais e sinuosas
abordagens astrológicas caracteriza-se pela sua inconsistência
(diríamos "pós-estruturalista", não-binária), desprezo pela coerência (e.g., afirmando-se "linguagem simbólica" mas integrando a esmo qualquer novo asteróide ou planeta anão recém-descoberto) e imenso à
vontade com as contradições. O problema reside na psicologia e na
mundividência do próprio sujeito que acredita nas "correlações". Pode respaldar-se
em "psicologismos", reclamar-se arquetípica, teosófica, divinatória, etc. Mas não
tenhamos dúvidas: o mais pequeno vestígio de "validação" científica
seria considerado prioritário e faria esquecer todo o mumbo-jumbo actual. A
Astrologia é completamente irracional, i.e,
tão irracional como qualquer outro 'sistema de crença'. O
problema é a tendência de muitos seres humanos para gerir a
contingência das suas vidas (e o "sem sentido" existencial inerente)
através desses "expedientes". Problema perene e complexo. Podemos
relacioná-lo com as crenças religiosas e a sua (in)fundamentada
perpetuação. Qual a racionalidade em acreditar em seres imateriais e
invisíveis, num 'deus' ou em deuses, em santos, nos
milagres, nos anjos, no paraíso ou na vida depois da morte física do frágil suporte material? O que fazer? Talvez advogar o combate aos apriorismos e aos determinismos, voltar ao argumento do 'livre arbítrio' (descartando a antiga envolvente religiosa) e reclamar a autonomia e liberdade que o ser humano possui e merece, e através da qual pode apreender o mundo e valorizar o Universo maravilhoso e desafiador que a Ciência gradualmente lhe desvela, acautelando evidentemente o enfoque epistemológco e a dimensão ética a que deve obedecer a utilização do "fogo prometeico", muitas vezes "redentor" mas amiudadamente perigoso, como a História nos ensina, e evitando os 'futuros' potencialmente distópicos que nos ameaçam.
Three different systems of astronomical reference were independently developed in early antiquity: the "zodiac" in Mesopotamia, the "lunar mansions" in India,and the "decans" in Egypt. The first system alone has survived to the present day because it was the only system which at an early date (probably in the fifth century BC) was associated with an accurate numerical scheme, the 360-division of the ecliptic. (Neugebauer, O., The Egyptian "Decans", "Vistas in Astronomy" (ed., A Beer), vol. 1, Pergamon Press, 1955; repr. in Astronomy and History: Selected Essays. Springer, 1983, 205) Matematicamente, segundo Neugebauer, (...) a Astronomia mais primitiva concentrou-se, principalmente, no enquadramento dos fenómenos tendo como referência o Horizonte, enquanto em períodos mais tardios se respaldou em menos óbvios mas bem mais convenientes sistemas de coordenadas, nomeadamente a Eclíptica e o Equador [i.e. baseados nestes Círculos] . Todavia, tal como em muitas outras circunstâncias, é a Astrologia que vai perpetuar conceitos antiquados, determinando a sua sobrevivência até em tratados estritamente técnicos. É provavelmente por esta razão que o Almagesto [de Ptolomeu] expõe, logo após o catálogo de estrelas (VIII, 5) o problema da determinação do ponto da Eclíptica que nasce em simultâneo com determinada estrela. As estrelas que nascem simultaneamente são chamadas "paranatellonta" e a doutrina astrológica associa as suas qualidades e influências como o ponto correspondente da Eclíptica. (A History of Ancient Mathematical Astronomy, Springer-Verlag, 1975, p.39; [trad. nossa])
As Mansões Lunares (Manazil al-Qamar) Num
estudo com algumas décadas (Chaucer's Universe, Oxford; Clarendon Press, 1988), J. D. North comentava que o sistema possui
obviamente raízes arcaicas sendo provavelmente pouco pertinente procurar
um único centro de difusão ("...it is probably a mistake to look for a unique centre of diffusion.", p.246). A divisão do tempo baseado na passagem da
Lua através das estrelas é [decerto] pré-histórica, e encontrada em
culturas cujas competências astronómicas são, de resto,
rudimentares. Uma vez que a Lua percorre a Eclíptica em aproximadamente
27 dias e meio, não surpreende que tenham sido atribuídos nomes a essas
27 ou 28 regiões entre as estrelas, cada qual ocupada supostamente pela
Lua durante 1 dia. O sistema Chinês de hsiu é equatorial enquanto o Indiano se baseia na Eclíptica. Desenvolveu-se autonomamente, difere do sistema indiano (que se tornou influente na astrologia "Ocidental")
na sua lógica interpretativa e nas divisões que estabelece e servia uma
espécie de hemerologia de dias fastos ou nefastos, bem como os augúrios
relacionados, por exemplo, com as diversas regiões do Império, Segundo North, numa época ainda pré-Islâmica, os Árabes adoptaram da astronomia indiana um sistema sistemático e organizado ["Manazil", Nakshatras no original]. As estrelas de demarcação no esquema indiano foram escolhidas de modo a ficarem situadas a alguma distância na Eclíptica, para poderem funcionar como "marcadores" estando visíveis apesar do brilho da Lua (a Lua afasta-se da Eclíptica até dez dos seus diâmetros, pelo que as estrelas de referência idealmente estariam afastadas em função dessa distância). Quanto à sua recepção no Ocidente Latino, por via da influência dos tratados em Árabe, North assinala, entre outros, o problema do deslocamento do posicionamento dos 'marcadores' siderais devido ao fenómeno da Precessão dos Equinócios (Op. cit., p.246). 'Cum Luna est in Alnath, id est in capite Arietis...’(Vienna, Nat. Bibl. MS 3394, fo. 238r.) Segundo o mesmo autor, uma vez que a Lua
percorre a Eclíptica em cerca de vinte e sete dias e meio, não causa
surpresa que certas culturas tenham dado nomes às regiões atravessadas
pela Lua entre as estrelas, cada qual supostamente ocupada pela Lua
durante um dia, enquanto outros designaram vinte e oito
[mansões]. Uma vez que as luas novas e cheias não se repetem
nesse período mas em cerca de vinte e nove dias e meio (o 'Mês'), a
"mansão" na qual uma sucessiva lua nova (ou cheia) é observada
altera-se paulatinamente, proporcionando expedientes para medir
períodos de tempo mais longos. Outros são abordados observando os
nascimentos e ocasos das "mansões", por exemplo qual está próxima do
ocaso quando o Sol nasce (de modo estrito, uma vez que as estrelas
desaparecem com a aurora ou o crepúsculo, seria observada a última
"mansão" visível e inferia-se a que estaria propriamente a ascender). É
evidente que se trata de uma modalidade astronómica razoavelmente
precisa e de um expediente bastante cómodo e funcional. Numa data ainda pré-Islâmica, os árabes adoptaram o
esquema indiano e tornaram o seu antigo sistema de marcadores (anwa’)
mais sistemático. As estrelas escolhidas para assinalar os Nakshatras
indianos foram escolhidas com algum distanciamento relativamente à
Eclíptica para funcionarem como marcadores evitando o brilho lunar.
[Também encontramos esta salvaguarda como probable ("provável") em P. Yampolski, Osiris, Vol. 9 (1950), p.63, que por sua vez cita Whitney, W. D., Oriental and Linguistic Studies,
ser. 2, New York, Scribners, I874, P. 349] (...) Os árabes deram-lhes
os seus nomes e estas [as "mansões lunares"] passaram para a astronomia europeia, todavia verificando-se
alguma confusão no processo, nomeadamente relacionada com a Precessão, o "movimento da oitava esfera" que, por exemplo, afastou Alnath (tanto a estrela [cornua arietis] como a 'mansão') para longe da cabeça de Aries. (North, Op. cit., p.246)
North comentou ainda as disputas de mais de um século visando a atribuição da prioridade da implementação do sistema (com
a China e a Índia na dianteira), afirmando que a verdadeira origem do debate recua à
recolecção de informação por al-Biruni, académico, astrónomo e viajante
na Índia do início do século XI (pp.246-47). Bouché-Leclercq (no clássico L'Astrologie grecque, p.463, n.2) refere que o autor Islâmico Haly: "...assure que les Arabes ont emprunté le système des 28 mansions aux Hindous, qui l'avaient pris "dans les livres de Dorothée [Dorotheus de Sídon]." (Haly filii Abenragel, scriptoris Arabici, de judiciis astrorum libri octo..., (cap. 100); ed. Petro Liechtenstein, 1571). Contudo, a difusão de um remoto precedente Mesopotâmico prevaleceu nas argumentações académicas, sendo referido como possibilidade na Encyclopaedia Britannica (em linha): "In
India a complete list of nakshatra are found in the Atharvaveda,
providing evidence that the system was organized before 800 BCE. The
system of lunar mansions, however, may have a common origin even
earlier in Mesopotamia". Mas uma origem paralela e independente é, porventura, muito provável. A origem Indiana da implementação prevalecente parece-nos evidente e foi também veiculada por O. Neugebauer (v. citação supra).
Disposição das "Mansões Lunares" (Philip Yampolsky, The Origin of the Twenty-Eight Lunar Mansions (Osiris, vol. 9 (1950))
Para Daniel Martin Varisco, o termo Árabe "manāzil" (habitualmente traduzido "mansions", mansões) será mais adequadamente traduzido (em Inglês) como "station" [talvez "estação" ou "paragem" em Português] (Illuminating the Lunar Mansions (manāzil al-qamar), in Šams al-maʿārif, Arabica 64 (2017), Brill, p.488, n.1) Enquanto os asterismos não definem porções iguais (pois não estão naturalmente localizados a distâncias uniformes), o modelo astronómico faz equivaler cada "mansão" a um arco com 12°51’ (i.e. 360° / 28). Uma vez que o "caminho da Lua" se situa sempre até 5º da Eclíptica, os asterismos situam-se quase todos em constelações zodiacais. (Varisco, p.492). As "mansões" foram associadas pelos antigos autores árabes às tradições relacionadas com a meteorologia das anwāʾ (sing. nawʾ) [sistema autóctone mais arcaico de marcadores] ainda na época pré-Islâmica. (ibid., p.493). O mesmo autor refere que alguns textos divinatórios em Árabe promoverão a sua associação com letras, aromas, formas geomânticas e a predição dos momentos propícios ou nefastos para determinados empreendimentos (ihtiyārāt, i.e. hemerologia ou electiones, em Latim).
O Zodíaco O nosso conhecimento acerca da evolução do Zodíaco é provisional. Bartel van der Waerden, no clássico History of the Zodiac (Archiv für Orientforschung, 1953), explicou que a ideia de fazer corresponder os meses e as constelações recua a listagens datadas na proximidade do 1º milénio a.C., associando a cada mês as estrelas ou constelações que nele nasciam. Mas a correspondência seria imperfeita. A utilização de constelações nas imediações da Eclíptica será mais precisa, e quase perfeita com a introdução dos signos zodiacais com igual dimensão. Enquanto na astronomia geométrica grega o enfoque será nos solstícios e equinócios [que são pontos "imateriais"], os babilónios calculavam as posições dos planetas e luminares aritmeticamente, de maneira "sideral" [i.e., baseados nas estrelas reais, observáveis], sem destaque para os referidos pontos imateriais de intersecção com o Equador Celeste. Há, de facto, uma diferença paradigmática entre as mundividências e metodologias Babilónica (anterior à Antiguidade tardia) e Grega. Pode ser entendida analogicamente como a diferença entre a aritmética e a geometria-cinemática. Como Francesca Rochberg explica em Periodicities and Periodic Relations in Babylonian Celestial Sciences ("Studies in Ancient Magic and Divination", vol.6: In the Path of the Moon Babylonian Celestial Divination and Its Legacy, Brill, 2010), a metodologia babilónica debruça-se sobre a recorrência dos fenómenos celestes num enquadramento temporal e posicional, munindo-se exclusivamente de técnicas aritméticas. O próprio conceito de sítio ou posição de um planeta no zodíaco estava relacionado com a data/hora que lhe correspondia. Cada divisão em 30º de um signo era somente uma baliza ou referência aritmética que não se respaldava numa estrutura cosmológica e geométrica como na astronomia grega, na qual as posições significavam longitudes num grande círculo que bissectava algo que concebiam como a "esfera celeste". Por outras palavras, ambas as culturas (Babilónica e Grega) concebiam um "zodíaco" (i.e. doze segmentos de 30º no percurso do Sol sobre o fundo de estrelas), mas o que este representava era diferente em cada uma dessas culturas. A analogia com o movimento de um corpo segundo um percurso circular definível relativamente a um centro (órbita) não era feita pelos astrónomos babilónicos, antes preocupados com o retorno de determinados fenómenos a certas direcções no céu, calculando a sua periodicidade. Não há uma "eclíptica" nem uma "esfera celeste" como na geometria esférica grega. Isto, como Noel Swerdlow enfatizou, torna a ideia de um movimento contínuo ao longo de um percurso circular totalmente irrelevante para a prática babilónica. Ainda segundo este autor (The Babylonian Theory of the Planets, Princeton University Press, 1998, p. 34) e também John Steele (Celestial Measurement in Babylonian Astronomy, "Annals of Science", 64 (2007), pp. 293–325), seria falacioso considerar o zodíaco babilónico equivalente ao de Ptolomeu ou ao moderno sistema de "longitudes" eclípticas. De facto, havia não só uma diferença cosmológica fundamental mas também na própria noção de "círculo" que, como Eleanor Robinson refere (Words and Pictures: New Light on Plimpton 322, "American Mathematical Monthly", 109 (2002), p. 111), era para os babilónios definido pela circunferência a partir "de fora", não a área definida pela rotação do seu raio ("de dentro para fora", por assim dizer). A astronomia babilónica determinava datas e posições dos fenómenos, a grega postulava uma cinemática de movimentos uniformes (àngulos iguais em tempos iguais) quando observados a partir do centro da esfera.
"The earliest direct evidence for the existence of the zodiac comes from fifth-century astronomical diary texts (e.g., No. -453 iv 2 and upper edge 2–3, No. -440 rev. 3', and No. -418:5, 10, rev. 8' and 14') and horoscopes (BH 1 and 2, both dated 410 b.c.), in which positions of the planets are cited with terminology used with respect to zodiacal signs as opposed to zodiacal constellations." (The Heavenly Writing, Cambridge University Press, 2004, p. 130. Esta fundamentação inclui dois horóscopos datados de 410 a.C. (BH 1 e BH 2, editados por Rochberg: Babylonian Horoscopes, Philadelphia, Transactions of the American Philosophical Society, Vol.88, Pt.1, 1998)
Before the introduction of the zodiac, the Babylonians used a number of constellations to locate bodies in the sky. For example, in MUL.APIN' the path of the moon is traced through 17 constellations. By the fifth century B.C., this had been reduced to 12 constellations. Finally, shortly before 400 B.C., these 12 constellations were replaced by the 12 equal divisions of the ecliptic into the signs of the zodiac. (Lis Brack-Bernsen e Hermann Hunger, The Babylonian Zodiac: Speculations on its invention and significance, Centaurus 1999: Vol. 41, p.280). Certos astros, os luminares (Sol e Lua) e os planetas, "erravam" pela esfera celeste apresentando diferentes configurações entre si. O círculo foi dividido na Mesopotâmia em 360º (mais tarde estruturado em "parcelas" de 30º em consonância com o calendário solar anual composto por doze meses, como Aratus referirá), chegando até nós através da designação grega, transliterada como "Zodiakos". Este, conduzido pelo círculo da Eclíptica, será chamado Circulus signifer ou Orbis signiferus por Cícero e Vitrúvio, poeticamente Media Via Solis, o Balteus stellatus de Manilius ou o varii Mutator Circulus anni de Lucano. Ptolomeu utiliza a designação "eclipticos" somente na relacionação com os eclipses. A Eclíptica é sempre, no seu texto, "o círculo inclinado através do meio dos Signos Zodiacais" (C. J. Toomer 1984, 20 [trad. nossa]). Cleomedes designa a eclíptica heliakos kuklos, o círculo do Sol, que é "o círculo no meio da faixa do Zodíaco" (I.2.43–59). Não havendo evidências inequívocas de um conhecimento pretérito, a constatação da sua obliquidade é atribuída pelos próprios gregos a Oenopides de Quios (Chios). Na sua interpretação, Aristóteles associava a estabilidade ao ciclo diurno do Sol e a geração e corrupção ao seu movimento anual no círculo oblíquo da Eclíptica (De generatione et corruptione, 2.10). A evolução para uma divisão em doze sectores de 30º está também relacionada com a determinação das horas (divisão de cada um dos períodos, diurno e nocturno, em 12 horas sazonais (ou desiguais, pois são variáveis ao longo do ano ao contrário das horas equinociais que hoje utilizamos), um signo zodiacal demorando aproximadamente duas destas horas a ascender). Aratus, no poema Phainomena faz eco desta utilização. Mais importante, segundo van der Waerden, documenta-se a implementação de "esquemas zodiacais" nos calendários gregos, através dos quais se dividia o ano em 12 meses artificiais ("artificiais" relativamente aos meses lunares habitualmente utilizados) durante os quais o Sol percorria sucessivamente cada um desses signos. O conceito também tem origem na Mesopotâmia. Os gregos adoptaram esta estrutura e estes signos, alterando o nome do primeiro, que se chamaram Aries, o Carneiro. Hiparco, Geminus, Ptolomeu e Teão (Θέων) utilizaram um zodíaco tropical, vinculando o início, por regra, ao Equinócio Vernal. Eudoxus e Aratus, todavia, utilizaram um zodíaco sideral (baseado nas estrelas, nas constelações reais). Este último sistema, utilizando habitualmente o 8º grau de Aries como início (tal como utilizado num dos dois sistemas babilónicos já referidos), permaneceu popular por muito tempo. Seguindo a edição de Kroll (p. 354), van der Waerden refere que Vettius Valens (astrólogo helenístico do séc. II) afirmou utilizar tabelas de Apolónio, acrescentando 8 graus aos seus valores (ou seja, sendo as tabelas calculadas tropicalmente, Valens converteu para valores siderais). No contexto Grego, Aratus ainda se refere inequivocamente aos sidéreos e às constelações concretas, cada uma com a sua dimensão, enquanto Hiparco, no único dos seus trabalhos que sobrevive (justamente o Comentário de Aratus e Eudoxus) assume (e.g., 2.1.14) uma metodologia diferente: os signos zodiacais medem exactamente 30º cada, dividindo o Zodíaco em doze signos matemáticos e permitindo o cálculo das posições das estrelas em graus e até fracções de grau. (Kidd, D, (ed., trans,), Aratus: Phaenomena, Cambridge Classical Texts and Commentaries, Cambridge University Press, 1997, p.379). É provável que Eudoxus, relativamente ao Zodíaco, também se refira às constelações e tenha assumido, por conveniência, que cada uma ocupe 1/12 do círculo, mas é improvável que tenha utilizado um sistema de arcos de 30º, que não está documentado antes do séc. II a.C. (Dicks, D. R., Journal of Hellenic Studies 86, 1966, 27-8; Early Greek Astronomy to Aristotle (London 1970, p.157). A divisão uniforme em sectores de 30º permitiu a utilização de um sistema de coordenadas (Kelley, D. e Milone, E., Exploring Ancient Skies - A Survey of Ancient and Cultural Astronomy, Springer, 2nd ed. 2011, 28) . As 12 constelações adoptadas formaram os Signos. A longitude passará a ser medida em graus, a partir do ponto vernal para Leste, ao longo do círculo pertinente, medindo com precisão os movimentos graduais para leste (excepto nas retrogradações) dos planetas e luminares, cada qual no seu "passo". - Os nomes gregos e latinos dos doze signos (os dodecatemorion de Ptolomeu) são os seguintes: Κριός (Krios) - Aries, Ταύρος (Tauros) - Taurus, Δίδυμοι (Didymoi) - Gemini, Καρκίνο (Karkinos) - Cancer, Λέων (Leõn) - Leo, Παρθένος (Parthénos) - Virgo, Ζυγός (Zygos) - Libra, Σκορπιός (Skorpios) - Scorpio, Τοξότης (Toxotẽs) - Sagittarius, Αιγόκερως (Aegokerõs) - Capricornus, Υδροχόος (Hydrochoõs) - Aquarius, Ιχθύες (Ichthyes) - Pisces. Como curiosidade, a associação de Cristo com o signo zodiacal Libra (a "Balança") era natural tendo em vista as ideias de Julgamento Divino e a pesagem dos pecados, e recua pelo menos à época Patrística. (W. Hubner, Zodiacus Christianus, Konigstein, Anton Hain, 1983, passim, em especial p.121)
Some say, he bid his angels turn askance
And even when the Star of Kneph has brought the summer round,
And the Nile rises fast and full along the thirsty ground,...
Com o passar do tempo, a Astrologia vai aglutinar os três sistemas com origem independente. Mas a "narrativa" do percurso do Sol através do Zodíaco será a mais importante. Doze signos do céu o Sol percorre, Ficções da nossa mesma consciência (Fernando Pessoa, Glosa 8/1925)
Assistimos amiudadamente à crença numa relação de "simpatia" existente entre os corpos celestes e os acontecimentos 'terrestres', base da doutrina astrológica, respaldada em observações que serviam a interpretação de augúrios nas cidade da Mesopotâmia, mais tarde revestida do rigor da geometria grega, de aspectos da filosofia Estóica e de profusos refinamentos árabes. Para além da vertente electiva (katarchai, escolha do "momento propício" para determinada acção), havia assumido, no contexto Helenístico, contornos genetlíacos (referentes ao nascimento, horóscopos individualizados) plenos, vide Holden, James H., A History of Horoscopic Astrology, A.F.A., 2006. Na antiga Mesopotâmia manifesta-se a necessidade de registar a configuração e os movimentos dos corpos celestes (traduzidos na significativa metáfora poética da "Escrita do Céu", vide Krupp, Op cit., 1992, p.127; Rochberg, F., The Heavenly Writing, Divination, Horoscopy, and Astronomy in Mesopotamian Culture, Cambridge University Press, 2004), suporte de aplicações do calendário e das prognoses divinatórias relacionadas com o Rei ou a Cidade, motivação para a elaboração de catálogos e tábuas de efemérides para os fenómenos celestes. Nesta perspectiva técnica, segundo Anton Pannekoek (A History of Astronomy, Op. cit., p.80), estamos perante um sistema único (não explicativo dos fenómenos físicos mas sistemático e formal) de representação matemática dos fenómenos: "...Its theory does not imply a new system of world structure, or a physical interpretation, but merely a formal mathematical representation of the phenomena". Neste contexto cultural já existia um vasto e antigo compêndio de 'presságios' (Enuma Anu Enlil). Por volta do primeiro milénio século antes da nossa Era, surgem os MUL.APIN, textos cuneiformes em placas de barro com informação específica e técnica. O nome "MUL.APIN" remete para o respectivo incipit, as palavras de abertura da listagem de estrelas e asterismos, literalmente "Estrela do Arado", a primeira entrada, padrão associado ao início do ano (que incluiria estrelas da actual constelação Triangulum e ainda Gamma Andromedae). O importante catálogo foi copiado até à época Helenística e teve grande influência e disseminação. Começa com a lista de estrelas e grupos de estrelas associados aos três caminhos (faixas de latitude celestial em que dividia o céu, atribuídas, de Norte para Sul, às divindades Enlil, Anu e Ea), descreve pares de constelações em função da posição simultânea no zénite e no horizonte (entre outras correspondências), inclui considerações acerca do movimento dos planetas, elenca as constelações no "caminho" percorrido pela Lua e ainda expõe um "calendário sideral", no formato a que os Gregos chamaram parapegma [etimol. "colocar uma pega (ou estaca) ao lado de..."; plural: parapegmata], que permitia determinar/assinalar as datas no ano através da verificação do nascer helíaco (data da primeira visibilidade no horizonte leste antes do orto solar), do ocaso de determinadas estrelas, etc. (Evans, J., The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, 5 et seq.). "Another common feature of public places was the parapegma
– a sort of star calendar. A parapegma listed the heliacal risings and
settings of prominent stars and constellations in the order of their
occurrence during the year. Often, but not always, these were
accompanied by notices of seasonal changes (beginning and end of the
season for Zephyros, the west wind, or for the Etesian winds). And many
parapegmata also predicted individual rainstorms. A parapegma could be
a text written on papyrus, but in its original form it was a public
document, engraved in stone. A small hole near each line of writing
allowed the insertion of a wooden peg that could be moved along from
one day to the next." (James Evans, Material Culture of Greek and Roman Astronomy, in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015. vol.3, ch. 141, p.1594) "Parapegmata
are among the oldest astronomical instruments from the classical world,
and are closely related to the earliest astronomical/astrological
tradition in Greece, that of stellar astrometeorology." (Daryn Lehoux, Image, Text, and Pattern: Reconstructing Parapegmata,
in: Jones, A. & Carman, C. (eds.) "Instruments - Observations -
Theories: Studies in the History of Astronomy in Honor of James Evans",
ISAW, 2020, p.109)
Outra
referência é a obra de (ou atribuída a) Ptolomeu: Phaseis ou "Fases"
das Estrelas Fixas (Gr. Φάσεις ἀπλανῶν ἀστέρων καὶ συναγωγὴ
ἐπισημασιῶν, "Das aparências das estrelas fixas e colecção de prognósticos").
Consiste em dois livros que estudam os nascimentos e ocasos das
estrelas e a sua influência metereológica. Apenas o livro II (um
parapegma precedido por uma introdução) sobrevive em Grego e foi esta
versão incompleta que foi traduzida em Latim nos séculos XVI e XVII.
Excertos de ambos os livros originais foram perpetuados em Árabe. Para Geminus (Γεμῖνος, Rodes, séc I a.C.), as estrelas somente indicavam,
não determinavam os fenómenos metereológicos. Em termos populares e no
enquadramento astrológico seria diferente. Como não relacionar os parapegmata com os ulteriores almanaques e repertórios? Encontraremos conteúdos astro-meteorológicos em Plínio, o Velho (Naturalis Historia, lib. XVIII) ou Columella (De Re Rustica, lib. XII), sem esquecer "Os Trabalhos e os Dias" (Ἔργα καὶ Ἡμέραι, romaniz.: Érga kaì Hēmérai)
do arcaico Hesíodo, remoto antecedente relacionável. Um formato que se
tornará mais sofisticado e se revelará perene e popular. Na astrologia medieval, por exemplo, o chamado 'ingresso' em Aries (Equinócio Vernal) era fundamental na antecipação do novo ano e previsão da abundância ou carência de produtos agrícolas, sua qualidade e preços, questões de "saúde pública", etc. Observava-se particularmente o horóscopo da lunação que precedia este ingresso (o mesmo, sem a mesma imporância para as restantes Estações). Mas existia uma dualidade de procedimentos entre o uso do horóscopo da lunação ou o do momento (conjunção) propriamente dito.
"Por volta do final do século V a.C., a julgar pela aparência de horóscopos cujo desígnio seria a determinação de aspectos da vida individual a partir dos sinais celestiais, acreditou-se que os céus significavam, não somente para o rei e o país, como acontecia no tradicional corpo textual dos augúrios, mas também para qualquer indivíduo. Poucos dos horóscopos que conhecemos contém detalhes acerca da vida do nativo, todavia todos informam a data de nascimento. A intenção é, portanto, inequívoca. A horoscopia cuneiforme baseava-se, obrigatoriamente, na disponibilidade de registos planetários e lunares e não na observação, pois nem todos os planetas estariam sempre observáveis acima do horizonte no momento do nascimento, e obviamente nem todos os nascimentos acontecem à noite. Pretende-se pois (neste capítulo) demonstrar a dependência babilónica relativamente a uma variedade de textos preditivos, observacionais e astronómicos. Assim se sugere que os escribas que gizaram os horóscopos, apesar de competentes nas metodologias da ciência dos astros (ou assim podemos assumir), não calculavam as posições planetárias directamente nos horóscopos, antes recorrendo a uma ampla escolha de textos astronómicos à sua disposição enquanto materiais de referência." [trad. nossa]
A
partir do séc. V a.C. o zodíaco é "normalizado", pois antes seria
composto por intervalos desiguais em função do diferente tamanho das
constelações situadas nesse percurso dos luminares e planetas.
Doravante cada signo ocupará um arco de 30º. Tudo indica que na
Mesopotâmia ainda não se implementava a associação a muitas das
"qualidades" que os signos assumirão mais tarde (e.g.,
género, domínios planetários, elementos). Todavia, esboça-se a divisão
dos planetas em dois grupos, que se supunha fornecerem augúrios ou
indicações positivas ou negativas,
antecipando a posterior divisão Helenística entre "benéficos" e
"maléficos". Do mesmo modo, começava-se a agrupar os signos em grupos
de três (como nas futuras "triplicidades"), contudo sem a associação
aos quatro elementos (Fogo, Ar, Água e Terra) da teoria Grega (vide Rochberg-Halton, Elements of the Babylonian Contribution,
Journal of the American Oriental Society, Vol. 108, No. 1 (Jan.-Mar.,
1988, pp. 60-62). O desenvolvimento da astrologia natal (genetlíaca)
parece concomitante com a disponibilidade dos antigos equivalentes aos
nossos almanaques e efemérides (i.e. diários). A Astrologia deixará de ser observacional e
será doravante baseada em informação tabulada que fornece as posições
dos planetas para a data pretendida (Rochberg, Heavenly Writing, op. cit., pp.153-163.). Segundo Dorian Greenbaum e Micah Ross (The Role of Egypt in the Development of the Horoscope, in: Bareš, L, Coppens, F., & Smoláriková K. (eds.), Egypt in Transition, Czech Institute of Egyptology, Charles University, 2010), os "decanos" Egípcios (designação derivada do gr. deka
= dez, inicialmente prováveis marcadores da passagem do tempo e
eventualmente impregnados de significado simbólico ou indicações fastas ou nefastas)
constituirão a motivação para o futuro desenvolvimento da doutrina das
doze "Casas". Fundindo ambos os sistemas, começam a surgir (no Egipto)
representações do Zodíaco que incorporam os decanos, que com o passar
do tempo deixarão de ser consideradados autonomamente. Uma das
explicações antigas e tradicionais para a transmissão do conhecimento astrológico
para o mundo Grego faz intervir um escritor e sacerdote oriental, Berossus (Gr. Βήρωσσος, séc. II a.C.). Assim lemos no De Architectura
(9, 6: 2) de Vitruvius (escritor Romano do séc. I). Uma coisa é
evidente: a Astrologia, no formato elaborado que prevalecerá, é definitivamente uma
criação Helenística, resultante de uma interessante fusão de
influências, nomeadamente Babilónicas e Egípcias numa estrutura
conceptual, "geométrica" e filosófica Grega (na qual o Estoicismo não
terá papel irrelevante), num período histórico propício após a
interacção cultural que se abre com as conquistas de Alexandre Magno. O Grego
passou a ser o idioma comum, a "língua franca", e será a língua dos
textos científicos no Império Romano (vide Heinlen, Problems in Translating Ancient Greek Astrological Texts, in: Imhausen, A. & Pommerening, T. (eds.), Writings of Early Scholars in the Ancient Near East, Egypt, Rome, and Greece,
De Gruyter, 2011" p.299). De facto, há a considerar o carácter
fragmentário das interacções, o problema da comunicação e das
traduções. Este complexo processo é pouco conhecido devido à escassez
de fontes coevas (não somente nesta área). É apenas a partir do séc. I AD que possuimos resumos ou referências a essas fontes por parte dos autores que delas deixaram notícia.
O modelo geocêntrico era "óbvio", respondendo a uma lógica experiencial e assimilando os conceitos filosóficos de perfeição e harmonia
tão caros aos pensadores clássicos. Havia uma indiscutível beleza,
mesura e hierarquia. Quanto à estrutura, escala e sentido do
maravilhoso que imprime, poucos o conseguiram traduzir como C.
S. Lewis, em The Discarded Image: O universo
fechado e sólido "estilhaçou" e, em seu lugar, surgirá o "Espaço",
somente descrito de modo abstracto e matemático, escuro, sem limites,
indeterminado...
Os Gregos foram dogmáticos relativamente à utilização exclusiva dos movimentos circulares. Simplicius, no seu comentário (Simplicii in Aristotelis de Caelo Commentaria) afirma que Sosígenes afirmou que esta opção se deve a Platão; Geminus (Isagoge, cap.I) afirmou que recuava aos Pitagóricos. Estes, provavelmente por razões teológicas, simbólicas e
estéticas, concebem a Terra como uma esfera, em torno da qual os astros
revolucionam em movimentos circulares uniformes e perfeitos. Os
predicados fundamentais dessa cosmologia serão bem acolhidos. Na República de Platão encontramos, no Mito de Er
(o Arménio que morreu em combate mas voltou e será "mensageiro das
coisas do "Além"), incidentalmente, uma descrição da estrutura axial do
universo e do "Fuso da Necessidade" (A Necessidade,
personificada por Ananke, é noção pitagórica), por cuja acção giram as
esferas. Na introdução de 1972 à sua tradução da obra com chancela da
Gulbenkian, Maria Helena da Rocha Pereira resume (XLI-XLII):
Relacionada com o símbolo do "axis-mundi", é comum a comparação do movimento diurno, circular e uniforme do céu em torno do pólo ao funcionamento de um moinho. Surge em Cleomedes (séc. I a.C.) e em muitas mitologias (prioritariamente em culturas que habitavam regiões boreais, pelos exemplos aduzidos). Encontra-se, por exemplo, entre os Ostyaks da Sibéria. No Kalevala (colectânea de narrativas tradicionais finlandesas), o sampo, objecto mágico difícil de definir mas que pode ser um pilar, uma árvore ou um moinho, suporta-se em três "esteios" ou raízes, como a célebre Yggdrasill, a "Árvore (i.e. "eixo") do Mundo" da tradição nórdica: uma raíz sobe para o céu, outra finca-se na terra e uma terceira num redemoínho, provável representação do inframundo. As Eddas nórdicas também parecem comparar a rotação do eixo celeste - ou o deus incumbente - a um moinho. A dedução, segundo Krupp, respalda-se na etimologia do nome Mundilfari, o progenitor do Sol e da Lua. (vide Krupp, E. C., Beyond the Blue Horizon..., Oxford University Press, 1992, pp.297 et seq.) Mais preocupado com a "mecânica" concreta e baseado na esferas de Eudoxus e na antiga teoria dos Elementos, Aristóteles gizará um sistema cosmológico elaborado e minucioso que se revelará duradouro. Este filósofo concebeu um universo finito e esférico, centrado numa Terra estacionária. N'A Astronomia de Os Lusíadas (publicada em 1913-15, reeditada pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1972), Luciano Pereira da Silva (p. 83, n. 1) traduz um excerto de Pierre Duhem que resume o essencial da perspectiva aristotélica, começando com a axiomática distinção entre movimentos 'naturais': o circular dos corpos celestes e o rectilíneo dos terrestres (Le système du Monde, t. II, Paris, 1914, pp. 61 e 62): O sistema do Mundo concebido por Aristóteles estabelece uma profunda distinção entre os Céus, região de ordem imutável e do movimento circular, e o espaço inferior à esfera da Lua, região da mutabilidade e do movimento rectilíneo. Esta segunda região é ocupada pelos quatro elementos, dos quais a Terra ocupa o lugar mais próximo do centro, seguindo-se a água, depois o ar e por cima o fogo, não havendo, porém, limites definidos a separar os elementos. Tudo o que fica adentro do orbe lunar está sujeito à geração e corrupção. Acima deste orbe ficam as esferas celestes, feitas de éter ou quinta-essência, substância cristalina imutável, incorruptível, distinta dos quatro elementos. Ora Aristóteles distingue três espécies de movimento: o rectilíneo, o circular e o misto, composto dos dois primeiros. A cada substância simples corresponde um só movimento natural, que deve ser também simples, portanto um movimento de pura translação, o rectilíneo, segundo a vertical, ou um puro movimento de rotação em volta da Terra, o que ele chama circular. Este último, único que pode efectuar-se eternamente no mesmo sentido, convém, por natureza, ao éter, substância celeste. O movimento rectilíneo é o natural aos corpos corruptíveis e geráveis; ele não pode prosseguir eternamente no mesmo sentido porque o Universo é finito e nenhum móvel pode ultrapassar os seus limites. As translações simples, sempre executadas na direcção vertical, são de duas espécies: centrípetas, de cima para baixo, e este é o movimento natural dos corpos graves; ou centrífugas, de baixo para cima, e este é o movimento natural dos corpos leves. O corpo mais leve, o fogo, subirá verticalmente até ao orbe etéreo da Lua, inultrapassável. O corpo mais pesado, a Terra, descerá até ao centro do Mundo, não podendo prosseguir além, pois começaria nesse ponto uma ascensão contrária à sua natureza. Se um corpo grave sobe, ou um leve desce, é porque sobre ele actua um motor estranho e o seu movimento deixa de ser natural para ser violento. Do mesmo modo, só por violência um corpo sublunar segue uma trajectória diferente da vertical. Os astros, tanto fixos como errantes, são transportados em esferas homocêntricas segundo o sistema de Eudóxio, adoptado pelo Estagirita, e assim se movem todos em esferas cujo centro é o da Terra, guardando sempre a mesma distância relativamente a ela. Não sofrem, pois, deslocamento no sentido vertical, executando um movimento circular simples, uma pura rotação, sem translação alguma, centrípeta ou centrífuga. Quando, com Hiparco e Ptolomeu, se fizeram mover os planetas em esferas excêntricas, clamaram os adeptos da Filosofia de Aristóteles que tal doutrina era contrária à teoria peripatética dos movimentos naturais. Um planeta, descrevendo um círculo excêntrico, ora se afasta da Terra até o apogeu, ora se aproxima até o perigeu. Assim, andando os astros errantes em volta da Terra a distâncias variáveis, o seu movimento não seria circular simples no sentido aristotélico, mas composto de circular e rectilíneo, ora centrífugo ora centrípeto.
Voltando ao percurso dos modelos pretéritos, o engenhoso sistema de esferas homocêntricas de
Eudoxus constitui, provavelmente, a primeira tentativa de
explicação mecânica do Universo. [Salvaguarda-se que seguimos uma
"reconstrução" académica commumente aceite mas baseada em fontes
indirectas]. Assim, cada planeta estava fixado numa esfera
que tinha liberdade para girar. Cada esfera com seu planeta estava
ligada pelos pólos a uma esfera secundária exterior concêntrica que
girava sobre um eixo diferente. Deste modo, cada esfera planetária
estava ligada
a outras, digamos, "não planetárias", ou "sem estrelas" seguindo a
antiga expressão de Teofrasto [romaniz. Theóphrastos] (cit. por Dreyer,
1953, p.90). As esferas possuiam movimento
uniforme. Cada planeta estaria incrustado no equador da sua esfera. os
pólos da esfera estaria fixados na próxima, e assim sucessivamente
(sistema recorria a 3 ou 4 esferas, o menor número no caso dos
luminares). J. L. E. Dreyer, no cap. IV do seu clássico reeditado como A History of Astronomy from Thales to Kepler
(Dover, 1953) descreve o modelo baseado nos estudos de
autores pretéritos como Ideler e, principalmente, G. Schiaparelli:
Como Michael Hoskin explica (The History of Astronomy (A Very Short introduction),
Oxford University Press, 2003), os ângulos dos eixos e as velocidades
de rotação eram escolhidos de modo a acautelar um resultado
"fidedigno", sendo a esfera exterior a responsável pelo movimento
diurno (a rotação aparente do céu em 24 horas). Os planetas, em que se observava retrogradação, apresentavam
uma pequena diferença na inclinação dos eixos de duas das esferas,
determinando um movimento numa linha que faria a figura de um "oito"
(v. infra) e permitia
ao conjunto das quatro esferas gerar o movimento "para trás" observável
no céu (i.e.,
os laços da hipópede respondiam às alterações nos movimentos, às
paragens e à alternância dos movimentos directos e das retrogradações).
Os aristotélicos posteriores recusaram isolar a discussão do movimento dos astros da respectiva natureza física. Como
Edward Grant explica, a cosmologia aristotélica, muito mais tarde reforçada
pelas ideias do seu comentador Averróis (ibn
Rushd, 1126-1198), exigia que
qualquer orbe celeste tivesse um corpo físico situado no seu centro. Os
averroístas descartaram os modelos ptolomaicos como "ficções" somente
úteis nos cálculos das posições. Adoptaram um sistema alternativo
que era uma modificação das esferas homocêntricas de Eudoxus (vide Katherine Tredwell: Latin Astronomy, in Glick, T., Livesey, S. and Wallis, F., Op. cit.
p.68). Num sistema no qual todos os orbes físicos eram concêntricos, a
Terra preenchia uma função essencial. Aristóteles afirmou a existência
de esferas transparentes e invisíveis às quais os corpos celestes
estavam fixados ou por elas eram "alojados". Na opinião corrente, estes
corpos (e.g., estrelas, planetas) eram observáveis porque, apesar de constituídos pelo mesmo 'éter'
transparente, este era aqui muito mais concentrado, capaz de receber
luz e tornar-se autonomamente luminoso ou, para os autores que
consideravam os corpos celestes opacos, de reflectirem a luz do Sol (o lucido Planeta
de Camões). Considerava-se ser a explicação mais acertada,
apesar de uma opinião alternativa que considerava os corpos celestes
capazes de serem tenuamente luminosos.
Todavia, no que diz respeito aos movimentos e brilho, a realidade das
observações astronómicas tornou insustentável a defesa do sistema
concêntrico. As irregularidades e a observação de variações na
luminosidade dos planetas tornou claro que as suas distâncias à Terra
sofriam variações. Daqui resultava que a Terra não poderia ser o centro
físico das respectivas órbitas. A Astronomia concêntrica de Aristóteles
foi substituída pelo sistema Ptolomaico dos orbes excêntricos no qual a
Terra, apesar de continuar estacionária e no centro do Mundo, não é
mais o centro dos movimentos planetários. (Grant, E., Cosmology, in: Lindberg, D. e Shank, M. (Eds.), The Cambridge History of Science, Vol 2, 2013, pp.442-3).
Surgiram alternativas: excêntricos e epiciclos. A combinação excêntrico-epiciclo
surgiu no período que medeia entre Cálipo de Cízico (c. 330 a.C., optimizador do sistema de Eudoxus) e
Apolónio de Perga (c. 200 a.C.). A formulação matemática do sistema, que substitui as simples (e insuficientes) esferas
de Eudoxus e Aristóteles na representação dos movimentos dos luminares
e dos planetas, recua, na opinião de Ptolomeu, ao segundo (Mourão,
Ronaldo R. de Freitas, Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica,
Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira S.A., 1995, 45; vide Almagesto 12.1).
A ordem dos planetas na antiga Mesopotâmia não estava obviamente relacionada com as distâncias, pois não existiam os conceitos de órbita ou da geometria do sistema. Uma destas primeiras sequências (Júpiter, Vénus, Saturno, Mercúrio, Marte) perpetuou-se na astrologia Helenística e está na origem da ordem "Caldaica" de uma das chamadas dignidades: os 'Termos' (como foi inicialmente constatado por Franz Boll). As variantes gregas já presumem a espacialidade e distância, mesmo que indeterminável. Apesar de pequenas complexidades com os planetas interiores, a ordem que prevaleceu (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio, Lua [de "fora" para "dentro"]) estava relacionada com as velocidades dos planetas em relação ao plano de fundo das estrelas. Apesar de não ser possível conhecer a distância e ordem dos planetas ainda por muito tempo, esta ordenação será tomada como definitiva, "pelo menos desde a época de Cícero" (J. D. North, Chaucer's Univerese, 1988, p.29). Encontramos um reflexo desta sequência nas horas planetárias e, a partir destas, nos nomes dos dias da semana em muitos idiomas. Segundo Goldstein (Theory and Observation in Medieval Astronomy, Isis 63. Washington, D.C., 1972, p.41): "With rare exceptions medieval astronomers supported the nesting principle, but they considered the order of the planetary spheres to be an open question. There were three views: Mercury and Venus both lie beneath the sun; Mercury is below the sun and Venus above it; Mercury and Venus both lie above the sun.". Como Ptolomeu havia afirmado, somente observando um trânsito teríamos uma prova conclusiva. Mas nunca tinha observado e sugeriu que talvez nem fosse possível devido à pequena dimensão angular. Prevalecia uma teoria de que as órbitas se encaixavam, a partir de estimativas e conjecturas muito incertas de algumas distâncias. A preocupação com a ordem dos planetas levou à consideração das suas distâncias. As distâncias de Ptolomeu (nas Hipóteses Planetárias) foram gizadas a partir das distâncias da Lua e do Sol que supostamente "conseguira" determinar (Almagesto), e assumindo proporções relativas para os restantes planetas (pois onde terminava o aparato geométrico de um. começava o do imediato). Na realidade, desde Hiparco que através da paralaxe se podia ter uma estimativa razoável das distâncias (maior e menor) da Lua; em relação ao Sol, não foi possível. Aristarco estava correcto em tese mas a agilização não era exequível e seu o resultado estava afastadíssimo da realidade. Somente após Edmond Halley e a observação dos trânsitos de Vénus (apesar do efeito óptico "black drop" que dificulta a medição) se conseguiu chegar a uma distância (média) minimamente fiável. Voltando ao método geométrico e apriorístico de Ptolomeu, a maior distância da Lua permitia-lhe (supostamente) conhecer as distâncias (sempre em raios terrestres) de Mercúrio e Vénus, a do Sol conhecer a dos restantes planetas e a da esfera das "estrelas fixas". Eram calculadas em raios terrestres, utilizando: o raio do deferente do planeta (R), o raio do epiciclo (r), a excentricidade (e). Assim, para Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, a maior distância relativa era D = R + (r + e); a menor d = R - (r + e). Mercúrio era um caso diferente e mais complexo (vide exposição e desenvolvimento em Goldstein, Bernard, and Swerdlow, Noel, Planetary Distances and Sizes in an Anonymous Arabic Treatise Preserved in Bodleian Ms. Marsh 621, Centaurus 15. Copenhagen, 1970-71, p.136). Muitos astrónomos medievais viam estas distâncias como somente provisionais, e surgiram diversos cálculos alternativos. Mas os valores nesses textos mais tardios situam-se, geralmente próximos dos de Ptolomeu, colocando a esfera das estrelas fixas (o limite do Universo) a 20000 raios terrestres. Toda esta abordagem deve ser contextualizada na estrutura teórica que a determinou. A variação de tamanho dos planetas, que ficou por abordar convenientemente por Ptolomeu, também era assiduamente discutida na Idade Média. Bem como outras consequências (ou "inconsequências") das teorias planetárias. Vénus, segundo a teoria, deveria mostrar fases. Como estas não eram observadas (só após a utilização do telescópio por Galileu foi possível), Al-Bitruji (o "Alpetragius" latino) resolveu a dificuldade afirmando que os planetas teriam luz própria! (Golstein, Theory and Observation..., p.45).
Assim, todas as mudanças relevantes (estações do ano, alteração no número de horas diurnas e nocturnas, direcções do orto e do ocaso do Sol, comprimento da sombra ao meio-dia) podiam ser explicadas através de um modelo no qual o Sol percorria um círculo (a Eclíptica) inclinado em relação ao Equador. Mas havia uma anomalia: a dimensão variável das estações do ano. A medição precisa da duração do ano era relativamente fácil e precisa recorrendo aos equinócios (os solstícios são, pela sua natureza, fenómenos mais difíceis de precisar). O equinócio podia ser aproximadamente determinado medindo, para começar, a altura do Sol ao meio-dia nos dias dos solstícios. A altura do Sol no dia do equinócio deveria situar-se exactamente a meio desses valores. Media-se a altura meridiana do Sol em dias sucessivos em redor da data esperada do equinócio e interpolava-se para determinar o momento exacto. Como a declinação do Sol muda rapidamente nesta altura do ano, era possível determinar o momento do equinócio com razoável aproximação (uma modesta fracção do dia). Dos diversos instrumentos à disposição, o quadrante colocado no plano do meridiano era o mais preciso na medição das alturas. Ptolomeu descreveu no Almagesto (I, 12) duas versões do instrumento. O
fenómeno da desigualdade das estações do ano é conhecido pelo menos desde
Cálipo (Κάλλιππος) e os valores de Hiparco (120 a.C.) são uma
referência fiável.
Demais, o tamanho das estações altera-se com a passagem
dos séculos; têm actualmente (sequencialmente e começando na
Primavera): 93, 93, 90 e 89 dias. Hiparco elencou (circa 130 a.C.): 94
1/2, 92 1/2, 88 1/8 e 90 1/8 dias. Descobriu-se assim uma "anomalia
solar" que comprovava que o movimento (aparente) do Sol não tinha a
mesma velocidade angular em todos os pontos da sua órbita. Assim, os
antigos astrónomos Gregos precisaram abandonar a sua versão simplista
circular e uniforme, com a Terra no exacto centro (esquema 1, infra),
inventando modelos que respondessem ao desafio. [Hoje sabemos que as
premissas eram falsas e que é a Terra que orbita o Sol segundo uma
elipse]. Todavia, procurou-se ajustar o modelo perpetuando princípios
físicos aristotélicos. Com um "pequeno" ajustamento, manteve-se o
movimento circular e a velocidade uniforme.
Outro modelo, gizado praticamente em paralelo, permite obter exactamente o mesmo resultado. Utiliza um deferente que "carrega" ou transporta um epiciclo (i.e. [pequeno] círculo que se move sobre outro círculo).
O conceito parece recuar a Apolónio de Perga, todavia (ainda) sem a
componente quantitativa exigida, apenas a explicação física. No esquema
3, o Sol (S) movimenta-se no epiciclo enquanto o centro desse epiciclo (K)
orbita (no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, retrógrado, como se observado do pólo norte da Eclíptica) o
círculo deferente, que por sua vez está centrado na Terra (O). O ângulo α aumenta uniformemente com o tempo. Entretanto, o Sol (S) movimenta-se (peculiarmente) no sentido dos ponteiros do relógio no seu epiciclo. Logo, o ângulo β também aumenta uniformemente com o tempo. Evoluíndo ambos os movimentos com o mesmo progresso, teremos β = α. Ambos os movimentos se completam num ano (pois trata-se do Sol) e os ângulos α e β
são sempre iguais. O movimento resultante da combinação de movimentos
não é nada mais do que o movimento uniforme de um círculo excêntrico, como usado no modelo anterior. Porque α = β, o raio rotativo KS (no epiciclo) permanecerá sempre paralelo ao segmento OZ. Os modelos são matematicamente equivalentes. Seguindo a (moderna) propriedade comutativa da adição (dos vectores); OS = OK + KS. Noutra ordem OS = KS + OK. É o que se representa no último esquema (4), um modelo excêntrico; o ângulo α
é chamado "anomalia média" (por definição: a conversão em ângulo do
tempo desde que o astro passou pelo periastro, na sua órbita).
- Ligação para o vídeo "Epicyclical Theory" (Museo Galileo, narração em Inglês). - Ligação para o vídeo "Ptolemaic system" (Museo Galileo, narração em Inglês).
No primeiro expediente, o planeta move-se uniformemente num círculo excêntrico
(relativamente à posição da Terra). Pareceria deslocar-se mais depressa
quando mais próximo e mais lentamente quando mais afastado. O segundo é, como vimos,
o sistema de epiciclos e deferentes.
Evidentemente, estes expedientes violavam os princípios filosóficos e
cosmológicos mas respondiam ao problema posicional dos corpos celestes
(aos fenómenos observados no céu).
Por exemplo, o epiciclo percorrido pela Lua movia-se ao longo do
deferente de
maneira "uniforme", contudo uniforme em relação à Terra
e não ao centro (do mencionado deferente). Trata-se portanto de um
movimento que não é uniforme! Ptolomeu expandirá o modelo utilizando
ainda outro expediente
artificial e polémico: o aequans
("equante"). Trata-se de um ponto simétrico à
posição da Terra (que é excêntrica). O planeta deveria mover-se
uniformemente relativamente a este ponto mas como este não está no
centro, para que isto acontecesse precisaria de verificar-se alteração
de velocidade na órbita planetária (ou seja, o movimento de um planeta,
cuja velocidade é variável, é aí observado como sendo aparentemente
uniforme). Tratou-se de um "truque" que simulou manter a premissa do movimento circular e uniforme. Assim era quando observado desse ponto fictício. Na realidade, os movimentos planetários observados da Terra não são uniformes (pois as órbitas são, como Kepler descobrirá, elípticas). Assim, Ptolomeu respondia aos fenómenos e o seu sistema, que era matemático, conseguia prever as posições com suficiente rigor. Isto não acontecia no modelo aristotélico que explicava o Universo na perspectiva da filosofia natural, todavia muito impreciso, mesmo "desastroso", na previsão concreta dos fenómenos. Mais tarde, o prolífico Nasir al-Din al-Tusi (séc. XIII), no seu Tahrir al-Majisti ("comentário ao Almagesto") proporá um dispositivo matemático no qual um pequeno círculo gira dentro de outro maior, permitindo evitar o recurso ao aequans. Tal como para a teoria lunar, no caso de Mercúrio Ptolomeu utilizou o expediente cinemático de um deferente móvel, cujo centro rodava num pequeno círculo (o circulus parvus dos astrónomos medievais) concêntrico com a Eclíptica. Como Peuerbach (Purbachius, Purbáquio) clarificou nas Theoricae novae planetarum ("Novas teorias dos planetas"), isto exige outro "centro" (para além dos três já utilizados: o do "Mundo", o do deferente e o ponto aequans), em torno do qual o centro do deferente executa numa pequena revolução.
O ponto ptolomaico suplementar a que mais tarde se chamará aequans equivalia ao foco "vazio" da elipse muito mais tarde gizada por Kepler na sua explicação definitiva do movimento dos planetas. Conforme as duas primeiras Leis do astrónomo Alemão, a Terra movimenta-se mais rapidamente quando próxima do foco (ocupado pelo Sol) e mais lentamente quando na proximidade desse segundo foco, a partir do qual o movimento do planeta parece uniforme. Foi uma engenhosa aproximação ao fundamental princípio da conservação do momentum angular. Kepler publica as suas conclusões acerca das órbitas no importantíssimo Astronomia Nova (1609), culminando a sua longa investigação do movimento de Marte. Mas o Epitome astronomiae Copernicanae, de 1618, constitui a primeira exposição completa do Sistema Solar com as órbitas elípticas dos planetas correctamente descritas.
Em resumo; o modelo-padrão ptolomaico (“the ferris-wheel universe”, "o universo roda-gigante" como lhe chamou Arthur Koestler) foi estabelecido na época Helenística (séc. II a.C.). O Almagesto (Al Kitab al Mijisti, arabização de Hē Megalē Syntaxis, Magna Syntaxis em Latim) de Κλαύδιος Πτολεμαῖος (Klaúdios Ptolemaios), autoridade por pelo menos catorze séculos, incluía um catálogo de estrelas, registava a determinação da Precessão, explicava técnicas de medição angular e os movimentos dos corpos celestes na visão geocêntrica do Universo. As órbitas planetárias são nele representadas por círculos (epiciclos) cujo centro se situava num círculo maior (deferente) que era simultaneamente excêntrico. Acrescentaram-se expedientes para adaptar o modelo à realidade dos fenómenos e assim salvar ou preservar as aparências. Tratava-se, no fundo, de representar o desenho geométrico do Universo. Proclus,
filósofo neoplatónico do séc. V, censura os astrónomos que acreditam
nos seus modelos, mantendo a perspectiva "instrumentalista" de que se
tratam somente de expedientes de cálculo e não de realidades físicas.
A excentricidade da posição da Terra "trai" os princípios
aristotélicos mas explica com aproximação os fenómenos observados. E
Ptolomeu mostrou que as irregularidades ainda verificadas podiam
ser reproduzidas. Como Michael H. Shank refere,
"Ptolomeu, no Almagesto, utiliza excêntricos e epiciclos para dar conta
das posições e velocidades dos planetas e para a criação de tabelas
que, por seu lado, tornam possível prever as posições. Epiciclos
transportados por deferentes orbitando centros que não são coincidentes
com o centro do Universo tornaram-se característicos da astronomia
matemática da tradição grega. Nestes modelos de algum modo
"descarnados" (geralmente vistos como arranjos de círculos em vez de
esferas), as considerações cosmológicas e os princípios físicos foram
preteridos relativamente ao objectivo primeiro: a previsão das
posições." (Rings in a Fluid Heaven: The Equatorium-Driven Physical Astronomy of Guido de Marchia,
Centaurus 2003: Vol. 45: p.176, [trad. nossa]). A visão espacial do
Universo e o conceito de órbita têm origem grega. Mas é somente com
Hiparco (gr. Ἵππαρχος; c.190 - c.120 a.C.), com enorme influência sobre
Ptolomeu, que a astronomia Grega passa de (apenas) descritiva a preditiva.
A informação tabulada assumiu um papel fundamental na prognose dos fenómenos. As tabelas de Ptolomeu (principalmente as tabulae manuales, as chamadas "handy tables" na literatura em Inglês, mais práticas e dotadas de comentários que vão sendo acrescentados à sucinta e insuficiente introdução disponível no original) são utilizadas pela minoria com maiores competências matemáticas. Paralelamente continuam a utilizar-se modelos aritméticos (cujas origens recuam à Mesopotâmia), e assim continuará a ser até ao final da Idade Média. O próprio Almagesto, compêndio sistemático e exigente, parece ter sido negligenciado pela maioria dos estudantes. Conheciam-no pelo nome mas cultivavam a Astronomia a partir de textos secundários e abreviados (Pedersen, O., (Jones, A., ed.), A Survey of the Almagest..., Springer, 2008 (1974)., p.19).
Os expedientes traduzidos no texto de Ptolomeu mitigaram o problema dos movimentos anómalos observados mas serão historicamente, em todo o caso, considerados por alguns como comprometedores dos princípios associados ao movimento circular uniforme, arquetípico (e.g., Nasīr al-Dīn al-Tūsī e outros astrónomos da tradição Hay'a, i.e. "Cosmologia", nomeadamente em Maragha, séculos XIII e XIV). De facto, estes métodos fazem com que o sistema não seja, strictu sensu, "geocêntrico". É em conceito mas não "mecanicamente". Maimónides
também havia comentado (no seu "Guia dos Perplexos", finais séc.
XII), utilizando argumentos aristotélicos, como seria comum:
Repudia
os expedientes que considera não compagináveis com os princípios
aristotélicos e afirma que os modelos astronómicos deverão ser
formulados geometricamente, todavia sem relação com a realidade física e as propriedades das esferas, que não eram, para o grande sábio Judeu, o múnus do trabalho dos astrónomos.
Quanto às dimensões do Universo, Ptolomeu acreditava que qualquer altura acima da Terra podia ser e era eventualmente ocupada por um, e apenas um planeta. Estimou a distância Terra-Lua equivalendo a 64 raios terrestres. O modelo geométrico para Mercúrio especificava a razão entre a sua altura mínima e máxima e multiplicava-a por 64, e assim sucessivamente. A distância Terra-Lua calibrava as dimensões do espaço das órbitas dos planetas e a distância ao firmamento (no limite máximo de Saturno), v. Hoskin, Michael, The History of Astronomy, Op. cit., 2003. O método clássico de determinação das distâncias de Aristarco, que segundo Ptolomeu foi seguido por Hiparco, baseava-se na observação da amplitude da sombra (da Terra) projectada na Lua durante os eclipses lunares, medindo o tempo decorrido e verificando as paralaxes do Sol e da Lua. O sistema de epiciclos não dava qualquer contributo para a determinação das distâncias dos planetas, somente fornecendo (para cada planeta) o rácio entre os raios do deferente e do epiciclo, em função do comprimento do arco de retrogradação observado. Ptolomeu (nas suas Hypotheseis ton planomenon), expende as distâncias calculadas em raios terrestres, e.g., as estrelas "fixas" estavariam a 19,865 raios terrestres). Com este valor, e não se observando paralaxe, nem se questionava a imobilidade do nosso planeta. A distância maior de um planeta era equivalente à menor do seguinte. As distâncias estão obviamente erradas. Quanto à ordem dos planetas (tirando o caso evidente da Lua), seria algo "incerta" pois as paralaxes eram demasiado pequenas para serem medidas com a tecnologia da época.
A Idade Média (percurso dos saberes após o declínio das instituições de suporte do saber clássico no Ocidente Latino) A Idade Média legou-nos, entre outros contributos, duas instituições fundamentais: a Universidade (com origem europeia, quando a erudição escolástica se consolida) e o, no contexto Islâmico, o Observatório (todavia, sondar os segredos dos céus era visto com desconfiança pelas autoridades religiosas e os observatórios foram geralmente efémeros). Mas esta época não foi decerto uma "Idade das Trevas" (conceito de Petrarca e, mais especificamente, baseada em saeculum obscurus, expressão utilizada pelo Cardeal Caesar Baronius no início do séc. XVII para referir a ausência de fontes documentais nos sécs. X e XI, sem intenção pejorativa). Historicamente, os textos mais influentes (início da Idade Média) são provavelmente o longo comentário neoplatónico de Calcidius ao Timaios ("Timeu", diálogo cosmológico de Platão) e as De nuptiis Philologiae et Mercurii de Martianus Capella, fonte inestimável de informação sobre o elenco disciplinar no contexto das Artes Liberais (onde, acolitando a philologia, cada uma das artes se apresenta, personificada, explicando a sua incumbência), influenciando a estrutura do ulterior ensino académico europeu: o trivium e o quadrivium. Aristóteles e Ptolomeu somente estarão acessíveis no século XII através de uma vaga de traduções.
A palavra "liberal" não está aqui relacionada com
"liberalidade" ou "liberalismo": significa aqueles saberes adequados ao
homem livre. Ora, os homens livres não precisavam trabalhar, pelo menos
manualmente. O único autor antigo que confessou tal "degradação" foi
São Paulo. O que eles utilizavam acima de tudo eram as palavras - nos
tribunais, na política, em polémicas e argumentações a propósito de
tudo e nada. Consequentemente, a sua educação devia
ser praticamente "inútil" excepto para fazerem discursos ou escreverem
livros [todavia gozando de um prestígio incomparavelmente superior ao
das artes 'mecânicas']. Portanto a Educação Grega, e depois a Romana, era
fundamentalmente retórica. Houve tentativas para integrar disciplinas
práticas como a Arquitectura ou a Medicina (ambas respeitáveis), sem
sucesso duradouro. É desta tradição Greco-Romana que emana o
preconceito que favorece as artes intelectuais e predominantemente
verbais em detrimento das manuais. Esta era uma tradição que servia
adequadamente [a burocracia] da Igreja. As Artes Liberais foram, por
volta do século VI, divididas em dois grupos: o [mais elementar] Trivium (Gramática, Retórica e Lógica); e o Quadrivium
(Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). A divisão traduzia a
separação dos graus de dificuldade e as etapas da instrução: um
conhecimento da Gramática, Retórica e Dialética era necessário para o
estudo das restantes quatro. Portanto, o Trivium constituia o estágio
elementar, daí o termo "trivial". A Gramática era aquilo que o nome
indica, sendo sinónomo de 'Gramática Latina'. (...) Na maior parte dos
casos, pelo menos até à adopção do tratado de Prisciano (Institutiones
Grammaticae) se tornar comum, no séc. XI, os manuais eram trabalhos
muito breves de Donatus, autor do séc. IV. Quando os rudimentos eram
assimilados, liam-se os Clássicos: primeiro e em particular a Eneida
de Virgílio e depois extractos de autores como Terêncio, Horácio,
Ovídio ou Estácio, todos incluidos em antologias escolares. A Retórica
eram as figuras de estilo, modalidades oratórias, métricas e artifícios
literários. A combinação da Gramática e da Retórica permitia um treino
linguístico suficiente, e muitos estudantes, mesmo na Antiguidade, não
íam mais além. Por 'Dialética' entendia-se a lógica Aristotélica, que
não era tão acessível e parecia menos relevante. Todavia, foi a partir da
Dialética [i.e. da Lógica,
cujo foco era a contraposição e contradição de ideias que levavam a
outras ideias] que se propiciou o aparecimento da filosofia
Escolástica, pois levantava muitas questões pertinentes enquanto
disponibilizava parcas sugestões de respostas. A Música - Como Joscelyn Godwin explica, os antigos conheciam a Musica mundana, a música do cosmos; Musica humana, a da entidade humana; e a Musica instrumentalis, cantada e interpretada. A Musica Humana
analisa o Homem como microcosmos, reflectindo a ordem cósmica. As
partes do seu corpo são governadas pelos signos, os seus sete órgãos
internos pelos sete planetas e os seus quatro humores correspondem aos
elementos. Ele também aloja um elemento subtil ou espírito vital, e uma
alma que, como os platonistas asseveram, é composta 'harmoniosamente'.
A Musica Humana procura
colocar este conceito em prática. Foram os Pitagóricos quem primeiro
formulou a ideia de que diferentes modos musicais tinham efeitos
específicos no corpo e na alma (Music? What does that have to do with esotericism?,
in: Hanegraaff, W, Forshaw, P. & Pasi, M., (eds.), "Hermes
Explains: Thirty Questions about Western Esotericism", University of
Amterdam Press, 2019, p.115). Hildegarda de Bingen (a "Sibila do
Reno"), abadessa do mosteiro beneditino de Rupertsberg, mística e
polímata do século XII, descreveu nas suas "Harmonias Divinas" a música
(teológica) como um meio para recapturar a pureza original do Paraíso,
pois antes da "Queda", a voz de Adão juntava-se à dos Anjos em louvor a
Deus. Depois, tornou-se necessário inventar a música e os seus
instrumentos. Também foi, de acordo, prolífica compositora (Symphonia armonie celestium revelationum).
O mito das "trevas" medievais europeias já foi dissipado há muito tempo. Bruce Eastwood e Gerd Graßhoff referem-no claramente, particularmente tendo em consideração a riqueza do legado Carolíngio:
"From the sixth to the twelfth
centuries in western Europe, it has long been assumed that there was no
scientific development of any significance." (...) "Studies
in recent years, especially from the 1970s forward, have begun to
change our view of Carolingian sciences. In his lengthy
directions to the clergy in 789, the Admonitio generalis (General
Directives), Charlemagne required the study not only of grammar,
writing, and chant, but also of computus. Is possible to categorize
computus as the arithmetical computation of the date of Easter and all
the other feast days of the Christian calendar that depend on it.
However, this definition presumes much and omits more. It presumes the
basic luni-solar astronomy behind the determination of the equinoxes,
basic to any Easter dating, and it omits a body of knowledge about the
twelve signs of the zodiac that came to be part of computistical
competency in the Carolingian era, if not earlier." (Eastwood & Graßhoff, Planetary Diagrams for Roman Astronomy in Medieval Europe, ca. 800-1500,
American Philosophical Society, Transactions of the American
Philosophical Society, Philadelphia, vol. 94, Part 3, 2004). Acrescentam que desde a época do Imperador (Carlos Magno), se encontram
evidências inequívocas de um estudo sério e investigação de matérias
astronómicas tanto na corte como em ambientes clericais. Como já
abordamos em parte, as fontes romanas essenciais na época foram Plinius
"o Velho" (Nat. Hist.), Marcianus Capella (De Nuptiis Philologiae et Mercurii), o comentário de Macrobius ao Somnium Scipionis de Cicero (onde Macrobius descreve uma cosmovisão que erradamente atribui a Platão) e o comentário de Calcidius ao Timaios. Nesta época ganha visibilidade um "sistema" geo-heliocêntrico patente em Martianus Capella (séc. V) e divulgado numa tradução do neoplatonista Johannes Scotus Eriugena (séc. IX) onde Mercúrio e Vénus orbitam o Sol e este último (bem como os planetas mais distantes) orbitam a Terra estacionária (voltaremos a encontrar este sistema adiante). Mais tarde Copernicus chamou a atenção para esta peculiaridade que ele, e outros, consideravam interessante no sistema de Martianus (acerca desta e outras interpretações heliocentristas, todavia consideradas textualmente ténues, vide O. Neugebauer (1975), HAMA, vol.III, section IV C 2, 2).
As
fontes medievas anteriores às traduções a partir do Árabe eram,
principalmente, Plínio, Calcidius, Macrobius, Martianus Capella e
Isidoro de Sevilha. Mas nenhum destes autores ensinou como localizar os
planetas (as suas longitudes) nos signos zodiacais. O material relevante para esse cálculo,
habitualmente disponível em tabelas, apenas se tornou acessível com a
tradução de al-Khwarizmi e com as chamadas Tabelas Toledanas. [O estudo dos exempla históricos recorre, na literatura actual, à comparação com as efemérides de referência de B. Tuckerman: Planetary, Lunar and Solar Positions A.D. 2 to A.D. 1649 at Five-Days and Ten-Days Intervals, Philadelphia, 1964]. Antes
das traduções, das suas tabelas e das suas metodologias mais
sofisticadas, os ciclos do Sol da Lua eram privilegiados devido à sua
importância no 'Computus' (que servia o Calendário Eclesiástico),
estando acautelados nos seus textos de suporte, por exemplo no de
Rabanus Maurus (baseado na obra de Beda e redigido no ano de 820).
Alguns outros fenómenos astronómicos (e.g., eclipses, conjunções) são referidos por autores desses séculos como simplesmente observados ("visa est"). Segundo David Juste, Whatever
the case, the examples of Rabanus Maurus and the Annales regni
Francorum show that it was possible both to obtain precise positions of
the luminaries by means of elementary rules of computus and to observe
the position of the planets (at least Saturn, Jupiter and Mars) in the
correct signs. (Juste, D., Neither
Observation nor Astronomical Tables: An Alternative Way of Computing
the Planetary Longitudes in the Early Western Middle Ages, in,
Burnett, C., Hojendijk, J. & Yano, M., (eds.), "Studies in the
History of Sciences in Honour of David Pingree", Brill, 2004, p.189).
Outro método elementar utilizava (ibid., pp.189 et seq.): (1) as posições dos planetas no thema mundi ou genitura mundi
de Macrobius e Firmicus Maternus (2) os períodos zodiacais dos planetas
e (3) o tempo decorrido desde a Criação (Bíblica, vetero-testamentária) do Mundo: 5199 anos
de acordo com a versão Septuaginta Grega ou 3952 anos de acordo com a tradição Hebraica. Uma variante desta metodologia surge no Liber Alchandrei (e em outras duas fontes estudadas por Juste). Segundo este académico, a colectânea de textos conhecida como Alchandreana constitui a mais antiga manifestação no Ocidente Latino de um conjunto de teorias (e.g., movimentos planetários, mansões lunares, casas mundanas, nodos lunares) a partir de fontes árabes e hebraicas (v. Les 'Alchandreana' primitifs: Étude sur les plus anciens traités astrologiques latins d'origine arabe (Xe siècle), 2007). O Liber Alchandrei
pertence a essa colecção primitiva que deu entrada no mundo Latino a
partir da Espanha, coligido na Catalunha na segunda metade do séc. X
(Juste, D., Neither Observation nor Astronomical Tables..., Op. cit., p.200). Antecedentes dos curiosos (e imprecisos) métodos elementares já se encontram em Vettius Valens (Anthologiae, 1.18, ed. D. Pingree, Leipzig, 1986, pp. 32-6), [vide Cristian Tolsa (Vettius Valens’ Longitudes (1.18), Balbillus, and the Illusion of Astrology’s Self-sufficiency,
Universität Osnabrück, 2019]
e em fontes Bizantinas. Nas fontes Gregas o referente inicial é a Era
de Augustus (=29 de Agosto de 31 a.C.), com excepção para a posição do Sol, calculada para o annus mundi 6414.
No Docta Ignorantia de Nicolau de Cusa lê-se: "Life,
as it exists here on earth in the form of men, animais and plants, is
to be found, let us suppose, in a higher form in the solar and stellar
regions. Rather than think that so many stars and parts of the heavens
are uninhabited and that this earth of ours alone is peopled - and that
with beings perhaps of an inferior type - we will suppose that in every
region there are inhabitants, differing in nature by rank and all owing
their origin to God, who is the centre and circumference of all stellar
regions." (trad. Inglesa de Steven J. Dick, Plurality of Worlds: The Extraterrestrial Life Debate from Democritus to Kant. Cambridge University Press, 1984, p.41; orig. em Latim editado por Hoffman & Klibansky, Lipsiae, 1932, p.107). Em breve se
colocarão outras hipóteses arrojadas, com mundividências admitindo um Universo infinito ou a pluralidade dos mundos (e.g., as de Giordano Bruno e Thomas Digges). A visão do primeiro é muito ampla e até relativista
(muito para além de simplesmente "heliocêntrica", como é amiudadamente
referido), advogando a pluralidade dos mundos, a relatividade do centro
(i.e. a ilusão de estar no centro do Universo, comum aos hipotéticos
habitantes de qualquer corpo celeste) e a infinitude espacial. Segundo Garin (p.131), no De immenso, Bruno, em nome da imanência da unidade divina da natureza, condena o céu dividido das esferas e vê Copernicus como um libertador, não tanto porque colocou o Sol no lugar da Terra, mas porque destruiu a esfera celeste dos "estultos matemáticos".
Mais tarde, na nova astronomia e no pensamento pós-aristotélico,
abre-se a oportunidade para novas especulações. Como Alexandre Koyré
referiu, os "mundos" já não eram "universos" plenos, no sentido
aristotélico. E Kant, em 1755, concluia que quase todos os
planetas devem ser habitados; os que não são, virão decerto a sê-lo noutra altura. O
espírito da época concebia com naturalidade esta possibilidade.
Entretanto, assiste-se ao retorno da prática astrológica, em maior ou menor grau, através da "ressurreição" de Platão (a relação Macrocosmo-Microcosmo), da tradução de autores Islâmicos (Abu Ma'shar, conhecido como Albumasar, al-Qabisi, o conhecido Alcabitius, etc.) e, claro, do Tetrabiblos de Ptolomeu. A própria noção aristotélica do Primum Mobile e das suas influências "causais" contribuiu para a relevância da doutrina das influências (e.g., na Medicina), mas sempre com desconforto eclesiástico, particularmente devido à questão livre arbítrio versus determinismo.
A
síntese do dominicano Tomás de Aquino, inicialmente contestado mas
ulteriormente canonizado, permitirá consolidar o papel da Filosofia
Natural e da Razão na abordagem ao divino. Uma "ousadia", atendendo à
pretérita predominância do pensamento de Santo Agostinho, que
filosoficamente se respaldava em conceitos do platonismo (no qual os
arquétipos ou ideias é que são verdadeiros, "reais" e pertinentes).
Aquino abraçou as ideias de Aristóteles - a que se referia como "O Filósofo"
- e sintetizou a filosofia aristotélica (onde prevalecem a lógica
dedutiva e método analítico indutivo no estudo da natureza e leis
naturais, bem como as conhecidas categorias que classificam e analisam os dez tipos de predicados ou géneros do ser (κατηγορία significa justamente "predicado"), i.e.
as dez categorias segundo as quais qualquer objecto no mundo poderia
ser classificado) com os princípios do Cristianismo. Aceitou o uso da
razão na especulação teológica. A almejada harmonia entre Teologia e
Filosofia (prevalecendo hierarquicamente a primeira), entre fé e razão,
encontra paralelos em outros âmbitos, como entre Igreja e Estado, e, em
última análise, entre Deus e o homem.
No Islão surgiram traduções e comentários, também inovações e
refinamentos matemáticos nascidos do estro dos seus autores, "aqueles para
quem o céu é o tecto" (Al-Biruni, apud R. Hinckley Allen, Star Names..., 1899).
O advento do Islão propiciou o desenvolvimento de uma astronomia "especializada" (mīqāt) aplicada às necessidades rituais (determinação da qibla, a direcção de Meca, determinação da primeira visibilidade do crescente lunar para conhecer o início dos meses do calendário, determinação das horas das orações diárias, etc.), agilizada por muwaqqits (os que "guardavam o tempo"), astrónomos ao serviço das mesquitas. O calendário, todavia, passou a ser exclusivamente lunar e observacional, proibindo-se as intecalações e assim nunca sincronizado com as estações do ano. As interpretações mais tradicionalistas, que amiudadamente se impunham, somente aceitavam as tradições consideradas nativas (anwāʾ e manāzil), i.e. o sistema baseado nos nascimentos helíacos das estrelas como marcadores sazonais (que para além de calendárico era um um sistema de astrometeorologia) e o das mansões lunares, repudiando, oficialmente, qualquer veleidade astrológica (sendo que sempre existiram augúrios e práticas divinatórias populares paralelas). Julio Samsó (Islamic Astronomy, in Glick, T., Livesey, S. and Wallis, F., Op. cit. p.64), explica que os árabes pré-Islâmicos utilizavam um calendário luni-solar e praticavam uma astronomia muito elementar, baseada nas fases lunares, no Sol, nascimentos helíacos de estrelas, etc. Em On both Sides of the Strait of Gibraltar..., Op. cit., 2020, pp.49-50, o mesmo autor salienta que os árabes pré-Islâmicos estavam conscientes do calendário solar, observando a última estrela (raqīb) que se elevava no horizonte oriental antes do nascer do sol no ponto em que este se elevaria; também observavam o ocaso acrónico (v. pág, Esfera) da estrela (naw'), que tinha o seu ocaso a 180º. Estes pares de estrelas (raqīb e nawʾ) alteravam-se ao longo do ano enquanto os sítios do orto e do ocaso solares também se alteravam. O sistema dividia o ano em 27 períodos de 13 dias mais 1 de 13 dias (equivalendo a 365 dias, 1 ano, no total). Acertava-se o calendário lunar e o solar intercalando um décimo terceiro mês. Com a implantação do Islão, a intercalação foi suprimida pelo Profeta, que considerava que a tradição popular de relacionar as naw' com ciclos meteorógicos de chuvas e secas tinha conotações astrológicas ou facilmente se prestava a essas elucubrações. O novo mês começava obrigatoriamente com a primeira observação do crescente lunar, na sequência da chamada laylat al-shakk ("noite da dúvida"), na transição para o novo mês. Entretanto, diversos expedientes matemáticos foram gizados para antecipar esse momento e conhecer a direcção do horizonte no qual a visibilidade aconteceria. O meio do mês é logicamente assinalado pelo plenilúnio, al-badr. A abordagem tradicional adaptada da época pré-Islâmica continuou a ser a mais comum: Adapted primarily from pre-Islamic
Arabia, folk astronomy flourished alongside mathematical astronomy over
the centuries, but was far more widely known and practised. Even the
legal scholars accepted it because of Kur’an, XVI, 16, ‘‘...and by the
star[s] [men] shall be guided’’. There were four main applications of
this traditional astronomical folklore: (1) the regulation of the
Muslim lunar calendar; (2) the determination of the times of the five
daily prayers, which are astronomically defined; (3) finding the kibla
by non-mathematical procedures; and (4) the organisation of
agricultural activities in the solar calendar. (King, David A., Makka: as the centre of the world,
in "The Encyclopaedia of Islam", 6, fac. 101-102, [pp. 180-187],
Leiden: E.J. Brill, 1987; repr. in "Astronomy in the Service of Islam",
Variorum Collected Studies Series; CS416, ch. X, p.7). A tradição original, não-matemática, baseava-se, portanto,
apenas nos fenómenos observáveis, tais como os nascimentos (na tradição
nativa, al-matla' era o ponto do horizonte onde se elevava um astro,
geralmente uma estrela, importante na Anwa' e no sistema de mansões
lunares), ocasos e as
passagens dos corpos celestes através da abóbada celeste, envolvendo
também a associação destes a fenómenos meteorológicos. Com raízes
pré-Islâmicas, assumiu como objectivos primordiais a regulação do
Calendário Muçulmano e do timing das orações, a determinação da kibla (ou qibla,
a direcção de Meca) através de métodos expeditos não matemáticos e
ainda a organização das actividades económicas, nomeadamente a
agricultura e a pastorícia, em função do ano solar (das estações). As direcções da kibla (palavra que, segundo King, parece estar relacionada com "kabul",
o vento de Leste) eram expressas através dos nomes dos ventos, das regiões
envolventes (Síria, Iémen, etc.) e das direcções cardeais. Antecedendo o
próprio Islão, a Ka'ba assumirá um papel fulcral na nova religião, enquanto "centro do mundo" e imago mundi. Segundo a lenda,
foi construída por Abraão (Ibrahim) e o filho Ismael (Ismāʻīl) segundo um paradigma celeste: al-bayt al-ma'mur (protótipo da Ka'ba situado acima desta, no "Sétimo Céu",
"continuamente visitada pelos anjos", como mencionado na Surata 52:4).
Estamos perante um modelo cosmológico com origem pré-Islâmica. Faces, ângulos e até diferentes segmentos da Ka'ba foram pois associados às direcções, ao ventos, às diferentes regiões do Mundo Islâmico, etc. O jurista (faqīh) Muhammad b. Ibn Surāqa al-‘Amiri (de origem iemenita, m. 1019 AD) está ligado ao desenvolvimento desta "geografia sagrada". Um esquema por si gizado, de oito sectores (definidos pelas direcções cardeais e pelos pontos do horizonte tocados pelo sol nos dois dias dos solstícios), foi divulgado por Ibn Rahik e refinado por Ibn al-Adjdabi. Outro esquema similar encontra-se, por exemplo, em escritos do egípcio al-Dimyati (séc. XII) ou em al-Fārisī (Adém, circa 1275). Os sectores estavam associados às faces e aos ângulos da Ka'ba. Outros esquemas incluíam onze ou doze sectores. Alguns esquemas mais tardios apenas grafavam os nomes das localidades em torno a Ka'ba, sem incluir qualquer informação explicativa acerca das respectivas qiblas. São exemplos os de autores como Yāqūt al-Rūmī (ca. 1225), al-Qazwīnī (circa 1250), bem como al-Ṣafāqusī (circa 1550), num belo esquema colorido incluído no seu atlas de navegação. Os esquemas foram copiados e utilizados até ao séc. XIX. Para compreeendermos quão integradora era esta geografia sagrada, na qual uma direcção, uma das faces ou um ângulo da Ka'ba, um vento, uma época do ano ou uma região geográfica eram sinónimos, (e.g., o horizonte sul, janūb, al-Yaman [o Iémen], nome da sudeste face da Ka'ba, etc.), atentemos neste excerto de Ibn al-Ajdābī, circa 1225 (in King, Sacred Geography & Qibla Sources, J. W. Goethe Univ., Frankfurt, 2019, p.21): “In
the Eastern sector to the South of the parallel of Mecca the qibla is
towards summer sunset and what is close to this, which is (the
direction) facing the wall of the Kaʿba going from the Yemeni Corner to
the Black Corner (that is, the Eastern corner with the Black Stone).
The localities in this sector are the Eastern parts of the Yemen,
al-Shiḥr, India, and the parts of Southern China beyond.” Vários
métodos matemáticos aproximados (um dos quais atribuído, erradamente, a
al-Battani) foram entretanto utilizados. As mesquitas eram
tradicionalmente orientadas para Meca, segundo as técnicas disponíveis
nessa época. Os estudos de mesquitas históricas que têm em consideração a moderna tecnologia disponível (e.g., Gibson, Early Islamic Qiblas: A Survey of mosques built between 1AH/622 C.E. and 263 AH/876 C.E., Independent Scholars Press, 2017 ou Deus, A.J., Monuments of Jihad - The Thought Process of Determining Qibla Orientations by Turks, 2018) radicam num erro basilar: utilizam a
direcção geográfica MODERNA de Meca e não a que podia ser
determinada no passado, há 8, 9, 10 ou 11 séculos (vide D. A. King, Islamic sacred geography for finding the qibla by the sun and stars, 2019, Appendix)
A ciência Islâmica é multicultural e desenvolve-se em contextos étnicos, culturais e até linguísticos diversificados (daí a actual utilização académica do termo "Islamicate" para acentuar toda a diversidade que se abriga na umbrela da influência religiosa prevalecente). Revela influências gregas, persas, e indianas (neste último caso particularmente na tradição das tabelas astronómicas (zij, pl. zijes ou zĩjãt) e na utilização dos numerais depois chamados "indo-arábicos", num cómodo sistema posicional: a posição do algarismo no número modifica o seu valor). A Astronomia distingue-se, antes de mais, por uma preocupação com a consistência física dos modelos e com a relação entre estes modelos e a observação (Morrison, R., Islamic Astronomy, in Lindberg, D. and Shank, M., Op. cit., p.109 et seq.). A tradição indo-iraniana, com origem grega pré-ptolomaica (nomes de diversos tratados Indianos denunciam a influência mediterrânica) começou a penetrar terras Islâmicas no período Omíada (a partir de c. 679), com grande desenvolvimento durante o califado de al-Mansur (754–775). Durante o califado de al-Ma‘mun (813–833) dá-se um ponto de viragem com a introdução da astronomia ptolomaica e a tradução do respectivo 'corpus'. A civilização Islâmica produziu traduções, comentários, astrolábios, zijes, i.e. tabelas com os respectivos cânones explicativos e desenvolvimentos matemáticos, nomeadamente o aperfeiçoamento dos métodos numéricos, um antigo e difícil desafio. Alguns dos nomes das estrelas que hoje utilizamos estavam gravados nos astrolábios, designações provenientes da tradição erudita (que por norma prevaleceu sobre a autóctone nomenclatura beduína), traduzidos do catálogo (ou melhor: compilação de catálogos anteriores) de Ptolomeu. É da tradução dos textos clássicos pela intermediação árabe e dos contributos dos autores Islâmicos coevos, inicialmente a partir da Península Ibérica, que o conhecimento alimentará a Europa, por exemplo através da influente tradução do Almagesto por Gerardo de Cremona em 1175. Segundo P. Kunitzsch, quase todas as zijes (tabelas que incluíam os cânones ou regras) usavam coordenadas eclípticas (mormente a longitude), extraídas do Almagesto,
e acrescentavam uma correcção (uma constante de precessão) às
longitudes das estrelas, dependendo da sua data ("epoch", como
actualmente dizemos). Para além da precessão, alguns astrónomos levaram
em consideração a chamada trepidação (v. infra). O valor da precessão "original" (i.e. a que Ptolomeu convencionou no Almagesto) era de 1º = 100 anos. Al-Biruni, por exemplo, usou a correcção [valor de Ptolomeu] + 11° e 10', para o ano equivalente a 880 AD
(utilizando um valor constante de precessão corrigido pelos astrónomos
Islâmicos: 1º = 66 anos). Ou seja, acrescentou 11º e 10' à longitude
"ptolomaica" de cada estrela. Raramente se construíam novas tabelas
pela observação independente, tanto no Oriente como na Europa medieval.
Como exemplos excepcionais, observações concretas estão na base da Zij al-Mumtahan (Lat. Tabulae Probatae, i.e.
"tabelas testadas"), sob o patrocínio do califa Al-Maʾmūn, também o
influente catálogo de Abd al-Raḥmān al-Sūfī.
Mas geralmente corrigiam-se as longitudes numa tabela pretérita, sendo
o catálogo de
Ptolomeu (que no contexto Latino é o da tradução de Gerardo de Cremona)
"matriz" privilegiada. Qualquer tabela que resultasse da
observação seria mais tarde base privilegiada para a construção de
novas tabelas. (vide Kunitzsch, Paul, Star Catalogues and Star Tables in Mediaeval Oriental and European Astronomy, "Indian Journal of History of Science" 21, New Delhi, 1986, pp.113-22; repr. in: The Arabs and the Stars : Texts and Traditions on the Fixed Stars, and their Influence in Medieval Europe (Variorum Collected Studies), Routledge, 2016 (orig. publ. 1989, Ashgate Publishing). Os
exemplares deste tipo complexo que maior circulação tiveram na Europa foram as Tábuas Afonsinas ( i.e. "Alfonsinas", de Alfonso X, el Sabio),
gizadas por astrónomos judeus e árabes. Na realidade desconhece-se
actualmente qualquer versão Castelhana. Somente uma introdução que não
estava originalmente incluída mas foi apensa na edição de Rico y
Sinobas, Tomo IV (Madrid, 1866). III-83: "Libro que a por nombre el de
las taulas Alfonsies". Na forma que podemos documentar
actualmente,
trata-se de uma colecção de tabelas planetárias e outras, em Latim,
compiladas (em circunstâncias que não são bem conhecidas) em Paris nos
anos de 1320. O valor da correcção das longitudes (devido à precessão)
adoptado
foi: Ptolomeu + 17º e 8', Os
cânones
explicativos de João de Saxónia (Jean de Saxe), da Universidade de
Paris, foram compostos em 1327 e servirão de base à primeira edição
impressa. As Tábuas Afonsinas, nesta versão "Parisiense", usavam o dia
como base para as suas tabelas do motus médio dos planetas, facilmente
adaptadas aos calendários (Juliano, Islâmico e Hebraico) usados em diferentes contextos culturais. Em resumo, quando falamos destas tabelas referimo-nos às declarações, regras ou cânones (originalmente Castelhanos) e às numerosas e sucessivas edições acrescentadas das tabelas numéricas Latinas de Paris. Todavia, sucintas tabelas com listas de estrelas para utilização no astrolábio (e também úteis para outros instrumentos, e.g., quadrantes, globos celestes), introduzidas na Europa a partir de traduções de exemplares árabes são as mais comuns. Segundo Kunitzsch (ibid., p.119), a mais antiga tabela do contexto Latino foi uma destas listas, com 27 estrelas, datável de finais do séc. X. Uma das suas coordenadas era a mediatio coeli (i.e., o grau da Eclíptica que culminava simultaneamente com a respectiva estrela). Para os astrónomos Islâmicos, Arin era o meridiano de referência: "Arin, de uma distorção no Árabe ('ryn, em vez de 'zyn = Uzayn), do nome da cidade indiana de Ujjayini. Parte da astronomia Árabe-Islâmica foi inspirada por textos indianos bem cedo traduzidos na corte dos califas em Baghdad. Daí Ujjayini enquanto lugar no centro do mundo, no meridiano zero e no equador, penetrou nos textos astronómicos e geográficos árabes, sendo ulteriormente transmitida ao ocidente medieval." (Kunitzch, P., On the Authenticity of the Treatise on the Composition and Use of the Astrolabe Ascribed to Messahalla, Archives Internationales d'Histoire des Sciences 31. Wiesbaden, 1981, p.58, n.70 [trad. nossa]). Ou seja, era o primeiro meridiano dos astrónomos indianos. Segundo North (Op. cit., 1988, p.160), algumas listas geográficas no ocidente referiram Arin [ou Aryn] como tendo latitude nula e longitude a 90º 'do Oeste'. Nas tribulações das traduções, o lugar também foi mesmo pontualmente confundido com o próprio "centro da Terra", ou seja, do Universo (enquanto referência idealizada, convencional).
Como exemplo, os equívocos "woke" repetidos nas actuais "Histórias" do Método Científico, apontados por Thony Christie (The Renaissance Mathematicus),
na sua "review" de um título de David B. Teplow. Este último descreve a
suposta origem do 'método experimental' em Roger Bacon, afirmando que
Bacon aprendeu tudo com os alunos de "Spanish Moors" e que o método
experimental não começou na Europa:
"It is absolutely wrong to
assume that experimental method was formulated in Europe. Roger Bacon,
who, in the west is known as the originator of experimental method, had
himself received his training from the pupils of Spanish Moors, and had
learnt everything from Muslim sources. The influence of Ibn al-Haitham
on Roger Bacon is clearly visible in his works."
T. Christie comenta este dislate: "To find this ahistorical garbage in a serious book is to say the least stunning. That Roger Bacon was the first European to write about and propagate the optics of al-Haytham is true but that he had received his training from the pupils of Spanish Moors, and had learnt everything from Muslim sources, is total cobblers." Em
todo o caso, os
ecléticos textos em Árabe foram traduzidos e recebidos com fervor no
ocidente Latino, sugerindo um léxico e práticas estimulantes, também no
que diz respeito à Astrologia: "The system of Abu Ma‘shar and other Arabic astrologers seems to be an amalgam of older traditions, and this it was that passed into Latin astrology. It was really late Greek astrology, from the first four or five centuries of our era, coloured by its passage through Persian and, to a lesser extent, Indian hands, which most filled the minds of the medieval astrologers, and only rather less the restrained art of Ptolemy’s Tetrabiblos. Not only were they attracted by all the new and strange Arabic terms — they revelled in hylegs rather than ‘prorogators’ and so forth — and also by the fashionable names, but the differences in emphasis may have made the Arabs’ astrology more exciting." (Tester. p.168).
Entretanto, o sincrético "modelo" ptolomaico-aristotélico que temos acompanhado é enquadrado através da interpretação escolástica na mundividência Cristã, consequentemente na sua explicação da "Máquina do Mundo", como mais tarde exposta pelo génio de Camões, quando Tétis a descreve ao Gama:
A observação era sempre preterida relativamente à inferência e razão da lógica aristotélica. A Esfera Universal dividia-se num coração central constituído pelos quatro elementos e pelas esferas etéreas dos corpos celestes. O mundo sub-lunar assiste à corrupção e ao devir. As esferas planetárias são constituídas por um "Éter" incorruptível e eterno, invariáveis na sua substância. O conjunto traduz-se numa organização hierarquizada, completa, imponente e inteligível. C. S. Lewis faz-nos experienciar o "modelo" pretérito, em contraste com o contemporâneo: ...Hence
to look out on the night sky with modern eyes is like looking out over
a sea that fades away into mist, or looking about one in a trackless
forest-trees forever and no horizon. To look up at the towering
medieval universe is much more like looking at a great building. The
'space' of modem astronomy may arouse terror, or bewilderment or vague
reverie; the spheres of the old present us with an object in which the
mind can rest, overwhelming in its greatness but satisfying in its
harmony (Lewis, C.S., The Discarded Image, Op cit, p.99). [Agilizou-se] a sobreposição de movimentos periódicos da forma mais simples, isto é, de movimentos circulares e uniformes. Os mais complicados movimentos celestes foram, dentro dos limites de precisão que permitiam atingir os instrumentos de observação à vista desarmada, representados com grande felicidade e sucesso pela aplicação daquele pensamento matemático. Os planetas movem-se em círculos (epiciclos) cujos centros se deslocam sobre outros círculos (deferentes) excêntricos em relação à Terra, colocada no centro do Mundo, resultando da combinação daqueles movimentos as suas estações e retrogradações. (p.71) (...) O sistema satisfaz os votos dos astrónomos ansiosos de cânones para o cálculo de tábuas de posições exactas dos planetas, tábuas que a observação confirme dentro dos limites dos erros dos instrumentos. Mas descontenta os adeptos intransigentes da Física peripatética [de Aristóteles], cujos princípios julgam ameaçados pelo autor da Magna Sintaxe [Ptolomeu]. (...) [Todavia] as várias rotações sobre epiciclos e deferentes são, segundo ele [Ptolomeu], puros artifícios de cálculo, e o único princípio que deve guiar o astrónomo na escolha das hipóteses é o da maior simplicidade. Mas não deve hesitar-se em juntar combinações mais complexas sempre que seja preciso para salvar as aparências, isto é, para levar a coincidirem as posições calculadas dos astros com as posições observadas com os instrumentos. (p.73) Purbáquio [Peuerbach], nas suas Teóricas, adoptou as esferas sólidas dos árabes [a pretérita teoria da solidez das esferas, preferida pelos mais influentes autores Islâmicos, compartimentando o espaço], feitas de quinta-essência, [justamente e rigorosamente] com as dimensões suficientes para, dentro delas, terem livre jogo os deferentes e epiciclos de cada planeta. O modelo criado para a concepção do Universo deixa, pois, de ser puramente geométrico; é um modelo físico-mecânico. É a máquina do Mundo, que ao Gama e companheiros é dado ver com os olhos corporais. (p.79). [Peuerbach foi o primeiro, no Ocidente, a expender de modo completo a teoria dos epiciclos, inserindo-a nas esferas aristotélicas e separando a região de cada planeta recorrendo a esferas sólidas.] Ou seja, gizou um célebre epítome, publicado em 1454, com as teorias planetárias apresentadas de modo coerente e integrado, que combinavam habilmente a exposição básica dos excêntricos e epiciclos de Ptolomeu com as "esferas cristalinas" e sólidas de Aristóteles, contíguas entre si.
"Chamãsse fixas porque estão sempre em hũa mesma distancia de nos por estarẽ todas ẽ hũ soo ceo q he o oytauo: o qual per razam dellas se chama firmamento & amostrãsenos estas estrellas sempre per hũas mesmas figuras & guardã o mesmo sitio as quaes cousas nã ha nos planetas. E segũdo a comũ escola dos astrologos a nona esphera não he primeiro mobile mas segundo & ho decimo he ho primeiro: & nestes dous ceos de cima nã ha estrellas & por tanto não se comprehende pello sentido [i.e., não se vê directamente] se não per razã porque experimentamos os seus mouimentos na .8. que não sam proprios a ella." [Ou seja, infere-se a realidade das referidas esferas pelo efeitos indirectamente percebidos nas esferas inferiores, nomeadamente na 8ª] Quanto à cinemática deste complexo modelo, reza o texto de Sacrobosco: "Mas o primeiro mouimento moue & leua com seu ympeto todallas outras Spheras & em hũ dia cõ sua noite fazẽ per derredor da terra hũa reuolução [o movimento diurno, d'o ceo volubil com perpetua roda, "Os Lusíadas", VII, 60]. E porem ellas sem embargo deste mouimento: andão em contrayro. A oytaua Sphera em cem annos hum grao [a Precessão, valor anual segundo Ptolomeu]: & a este segundo mouimento parte per meo ho zodiaco, debaixo do qual cada hũ dos pranetas [planetas] tem propria sphera: em a qual anda per proprio mouimento: contra o mouimento do derradeyro ceo [i.e., do Primum Mobile]: & em diuersos espaços de tempos fazem suas reuoluções. Saturno em .30. annos: Jupiter em .12. Mars em dous. Sol em .365. dias: & quasi seys oras. Venus & Mercurio quasi em outro tanto tempo, a Lua em vinte & sete dias & oyto oras." Ou seja, o céu das estrelas fixas possui dois movimentos (o Diurno e o de Precessão), que lhe são transmitidos respectivamente pela 10ª (Primum Mobile) e 9ª (Coelum Aqueum ou Cristalino). Seguidamente, Nunes faz uma adenda, acrescentando um terceiro movimento que é próprio da 8ª Esfera, de inspiração árabe e comummente aceite na sua época: a trepidação ou titubatio: "Isto segundo a opinião de ptolomeu porque os astrologos que depoys forã [i.e., mais recentes] acharam que este mouimẽto de occidẽte pera oriẽte pella ordẽ dos signos pertence a nona esphera: & que nã he em cem ãnos hũ grao mas em 200. hũ grao & .28. minutos de sorte que ẽ 49. mil ãnos falando naturalmẽte se cõprira sua reuolução. E o mouimento proprio a oitaua he o da trepidação que se faz em .7000. annos." Paulus Ricius, no séc. XVI, terá relacionado estes períodos com números bíblicos, nomeadamente com o ano sabático, aqui "amplificado" (7000x7000=49000). Em resumo, Pedro Nunes adopta esta "novidade" e o valor precessional de 1º e 28' em 200 anos. Anteriormente, Sacrobosco ou Dante limitaram-se a seguir Ptolomeu (1º = 100 anos), enquanto al-Battani (conhecido entre nós como Albaténio, c. 858–929), suficientemente lúcido para renunciar à Trepidação, chegou, por suposta comparação com valores atribuídos às observações de Menelaus de Alexandria, a um valor de 1º em 66 anos, muito próximo da realidade do fenómeno. Copernicus levou a trepidação muito a sério no De Revolutionibus.
Relacionada com a precessão, como surgiu a teoria da trepidação? James Evans explica:
Precession
is a term used to describe a constant rate of increase in the tropical
positions of the fixed stars, and trepidation refers to models
according to which precession varies (and can even be negative for
certain periods of time) (José Chabás and Bernard R. Goldstein, The
Alfonsine Tables of Toledo, Springer Science+Business Media Dordrecht,
2003, p.256). O termo "trepidação" não surge nos textos medievais;
encontramos accesus et recessus [Ár. al-iqbāl wa l-idbā] (Chabás and Goldstein, Op, cit.,
p.217). O objectivo era determinar uma "precessão total", combinada.
Para uma abordagem da teoria como emerge em textos Indianos, v. David
Pingree, “Precession and trepidation in Indian astronomy before A.D. 1200”. JHA 3, 1972, pp.27–35. Uma passagem do Pequeno Comentário às "Handy Tables" (Procheiroi kanones ou "tabelas manuais" de Ptolomeu) por Theon
(Teão) de Alexandria, 12º capítulo, refere uma lenta "oscilação" nas
posições dos equinócios e dos solstícios. A única outra referência
antiga surge em Proclus, Hypotyposis 3.54 (v. Manitius 1909, 66–68). É
muitas vezes considerada uma primeira referência à célebre "trepidação" medieval.
O que se pode afirmar é que é legítimo interpretar a fórmula de Theon como
sendo uma conversão da estrutura de referência tropical de Ptolomeu
numa estrutura de referência sideral, cogitação fortemente suportada pela
predominância de longitudes siderais na astronomia dos papiros e textos
astrológicos antigos, pelo menos até ao séc. III (Jones, A. (ed.), Ptolemy in Perspective: Use and Criticism of his Work from Antiquity to the Nineteenth Century,
Springer, 2010, pp. 15-17). A ligação da teoria (que assumiu vários
modelos geométricos) a Thābit ibn Qurra foi rejeitada definitivamente
por F. J. Ragep (vide Naṣīr al-Dīn al-Ṭūsī’s memoire on astronomy (al-Tadhkira fī ʿilm al-hayʾa), 2 vols., 1993, pp.400-408) com argumentos aceites por N. Swerdlow ou O. Neugebauer (1984, I, p.43).. Como Elly Dekker refere, no século X alguns modelos de trepidação foram expendidos no Kitāb Ḥarakāt al-Shams por Ibrāhīm ibn Sinān (908–46), neto do célebre matemático e astrónomo Thābit ibn Qurra. (Illustrating the Phaenomena: Celestial Cartography in Antiquity and the Middle Ages, Oxford University Press, 2013, p.281). A teoria da trepidação foi particularmente bem recebida no al-Andaluz. Todavia, como J. Samsó e M. Comes demonstraram, havia pouca uniformidade nas opiniões, proliferando diferentes modelos. Até ao séc. XV, o método mais utilizado, pela sua visibilidade, foi aquele incluído nas Tabelas Alfonsinas. O movimento de Trepidação seria próprio da '8ª Esfera'. Com origem na revitalização Islâmica do séc. IX, a teoria (re)nasce na sequência da tentativa de determinação do valor exacto do lento movimento de Precessão. Este somente podia ser compreendido na comparação com valores documentados numa época distanciada. Recorreu-se às informações de Ptolomeu (que por seu lado se baseavam na comparação com as observações de Hiparco). Os astrónomos Islâmicos calcularam assim o valor de 1º = 65 anos em relação aos dados de Ptolomeu (AD 139). Foram ludibriados pela estimativa exagerada do astrónomo alexandrino (1º=100 anos), pois se tivessem comparado directamente com o valor da época de Hiparco teriam chegado a um resultado muito próximo do real. Assim não aconteceu e gerou-se o equívoco de que a Precessão estaria a acelerar. Apesar da cautela de astrónomos como Al-Battani perante esta difícil questão escassamente provida de dados observacionais fiáveis, surge esta resposta atribuída (de modo espúrio, tudo indica) a Thābit, a partir de um tratado que subsiste apenas na sua tradução latina: De motu octave spere (v. Thomas Hockey et al. (eds.). The Biographical Encyclopedia of Astronomers, Springer Reference. 2007, pp. 1129-1130). Estava "destinado" que a Astronomia, através dos seus melhores praticantes, mergulharia por séculos nestas investigações que radicavam em imprecisões observacionais e equívocos, todavia dificilmente evitáveis nesses tempos. Como J. L. E. Dreyer explicou, na versão tradicionalmente associada a ibn Qurra (grafa "ben Korra"; "ben Chorath" em Delambre), imaginou-se uma nova esfera (a oitava) para se articular com a eclíptica "fixa" da nona esfera. A "fixa" intersectava o equador em dois pontos segundo um ângulo de 23º 33'; a eclíptica "móvel" (que é a observável), na oitava esfera, estava ligada a dois pequenos círculos diametralmente opostos (amiudadamente representados em gravuras do modelo geocêntrico), os centros das quais coincidiam com os equinócios médios e cujos raios mediam 4º 18' 43". Os pontos tropicais móveis de Cancer e Capricornus nunca abandonavam a eclípica "fixa" mas avançavam e recuavam a extensão de 8º 37' 26"; os dois pontos que se situam a 90º destes percorriam os pequenos círculos mencionados. Assim, a eclíptica móvel alternadamente elevava-se e descia relativamente à posição da eclíptica "fixa", enquanto os pontos de intersecção do equador e da "móvel" (pontos equinociais) avançavam e recediam 10º 45', em ambas as direcções. (A History of Astronomy..., 1953 (1906), p.276). Apesar de ibn Qurra (ou do pseudo-ibn Qurra) não o referir, a variação da obliquidade da eclíptica seria necessariamente afectada. O lugar da maior declinação do Sol altera-se continuamente, pois situa-se sempre a 90º das instersecções do equador com a eclíptica fixa. A maior decinação tanto acontece em Gemini como em Cancer. (Delambre, M., Histoire de L'Astronomy du Moyen Age, Paris, M.me V.e Courcier, 1819, p.74). Interpretando toda esta teoria como uma enorme e desnecessária confusão, Delambre humorizou (p.73): "Tout
ce qu’on sait et ce qu'on peut dire de cet arabe [referindo-se ao autor
tradicionalmente associado à teoria], c’est qu’il a été le Ronsard de
l’Astronomie." Foi
uma teoria muito fluida e repleta de variantes. Combinava-se
frequentemente a precessão de 1º em 100 anos (valor de Ptolomeu) com a
"oscilação". Segundo Dreyer, na época de Alfonso X, percebeu-se que os
equinócio haviam recedido muito para além do que a teoria permitia. Doravante, acreditava-se que os
equinócios percorrian todo o círculo em 49000 anos, sendo o período de
inequalidade da trepidação de 7000 anos, "so that in a sort of Great Jubilee year everything was again as it had been in the beginning". (p.278). Com a ajuda do esquema anterior (Evans: 1998, p.277), verificamos que neste sistema o Equador Celeste (AJ) é intersectado em A pela Eclíptica Fixa ("Fixed Ecliptic", que não é a real, observável, mas uma referência fictícia inscrita na 9ª Esfera). Esta referência é "fixa" em relação ao Equador, com o qual faz um ângulo de 23º33', de acordo com a estimativa da época. O pólo do Equador é o ponto P. O coluro solsticial (PIJ), que não é o real, observável, intersecta a Eclíptica Fixa e o Equador perpendicularmente. Ademais, com centro em A (e no ponto diametralmente oposto, não mostrado no esquema) há pequenos círculos cujo raio é de cerca de 4º (4º18'). Tudo isto são estruturas de referência fixas, coerentes entre si, situadas na 9ª Esfera [vide estes pequenos círculos no penúltimo anel do esquema do Cosmographicum liber de Apianus reproduzido mais acima nesta página]. Percorrendo este pequeno círculo com centro em A está o ponto C (o princípio de Aries), movendo-se uniformemente, pelo que a amplitude do ângulo assinalado pela letra Beta aumenta gradualmente também de modo uniforme (segundo o (pseudo-)Thabit, percorria os 360º em 4182 do Calendário Islâmico, 4057 anos no Calendário Juliano). Do outro lado acontece algo semelhante com o princípio de Libra. Mas estes dois pontos (Aries e Libra) estão sempre opostos em relação ao Equador, quando um está a Norte o outro está a Sul e vice-versa (como o sistema mecânico das rodas de uma antiga locomotiva a vapor). A Eclíptica real, verdadeira ou observável (chamada Móvel, "Moveable" no esquema) movimenta-se em relação ao Equador. Passa pelo ponto C (princípio de Aries) e pelo ponto oposto que assinala o início de Libra (não mostrado no esquema). O verdadeiro Ponto Aries Equinocial, observável, é a intersecção desta Eclíptica Móvel com o Equador. O ponto D (início de Cancer) fica sempre a 90º de C e permanece sempre na Eclíptica Fixa (que sabemos ser nocional), tendo aí um movimento de avanço e recuo. Também é fictício! O verdadeiro ponto solstícial observável em Cancer está representado no esquema pelo símbolo que tradicionalmente identifica o signo e fica, naturalmente, na Eclíptica Móvel (a observável). - Ver segundo esquema (Evans, ibid.) com exposição diacrónica do funcionamento (nomeadamente o accessus et recessus da estrela "S") preconizado por esta "criativa" teoria. Nesta teoria, o primeiro ponto de Aries mudaria de posição, por vezes na sequência dos signos, outras vezes contra esta sequência, com um desvio máximo de 9 graus. Para terminar, convém referir que todas as estrelas e também os "auges " (apogeus) dos planetas estão plasmados na esfera da Eclíptica Móvel e sujeitos à sua movimentação, [NB: A linha que une o apogeu e o seu oposto (perigeu) é a chamada linha dos ápsides. Era, no passado medievo chamada linha do aux (pl. auges), a palavra 'aux' vem do Árabe 'awj' ("apogeu"). Em Latim habitualmente sofre a inflexão (gen. augis, pl. auges)] Todos os modelos foram finalmente rejeitados devido aos esforços de Tycho Brahe em finais do séc. XVI, sendo a precessão fixada bem perto do valor actualmente aceite de 1º em 72 years. A fórmula actual é: p = 50".2564 + 0".000222 t, onde "t" é o nº de anos desde o referencial 1900 (avançando ou recuando nos séculos, + ou -).
Os
principais contributos da Idade Média para a Astronomia foram o
desenvolvimento dos relógios mecânicos e a adopção do sistema numérico
conhecido como indo-arábico (notação decimal inventada na Índia, talvez em torno de 500 AD, na qual a posição do número mostrava que potência de 10 representava, enquanto para as posições vazias se utilizava o zero). Os relógios mecânicos são a mais importante contribuição
tecnológica medieval. Os primeiros horológios
(como se dizia entre nós) funcionais surgem no século XIII. Não eram
ainda servidos por molas mas sim por sistemas de pesos que desciam
suspensos em cordas, e não eram precisos (David Bergamini, The Universe,
"LIFE Nature Library", Time Inc., 1962, p.14). Eram comummente
acertados com a ajuda de relógios de Sol. Shakespeare humorizou com a
sua imprecisão na comédia Love’s Labour’s Lost, quando Lord Berowne (ou
Biron) diz (cena I, 3º acto):
Tornar-se-ão, todavia, gradualmente mais sofisticados. No século seguinte, alguns complexos relógios astronómicos mecânicos vão conseguir "capturar", emular e traduzir o grande fenómeno do Universo, abrindo o percurso para os magníficos e muito refinados mecanismos que vão ser construídos ao longo dos séculos seguintes. Como exemplos de vanguarda, ainda no século XIV, o instrumento concebido por Richard de Wallingford, descrito no Tractatus Horologii Astronomici, de 1327 [vide monografia de referência de J. D. North, implementada a partir do estudo do MS Ashmole 1796: "God’s Clockmaker: Richard of Wallingford and the Invention of Time" (London: Hambledon, 2005)] ou o Astrarium de Giovanni de' Dondi (1318-1389). Este último, terminado em 1362, demorou dezasseis anos a construír. O seu complexo mecanismo de rodas dentadas traduzia os movimentos astronómicos, nomeadamente os planetários. Nesta reconstituição (Smithsonian Institution),
os mostradores que vemos em cima representam, respectivamente, os
movimentos de Marte, Sol e Vénus; o mostrador central mais abaixo é um
relógio de 24 horas. Com a imprensa de tipos móveis de Gutenberg (c.
1440), a disseminação da informação incrementa a discussão de novas ideias. Como J. Pacheco resumiu, conjuga-se
a universalidade consubstanciada na invenção da tipografia [depois da
mais limitada xilogravula, gravação em madeira] com o uso do Latim como
língua internacional. Concluíndo que: "a inovação de Gutemberg vai alterar a estrutura
das relações culturais, políticas e económicas na Europa." (A Divina Arte Negra e o Livro Português: Séculos XV e XVI, Vega, s/d (1988), p.35). No século XV, muitos textos clássicos voltaram a estar disponíveis nos originais e muita produção contemporânea ganha visibilidade. Incidentalmente, a estética renascentista procurava debalde nos modelos ptolomaicos a "harmonia" que o redescoberto Platão afirmava ser apanágio do Kósmos. Filosoficamente, as qualidades literárias dos seus diálogos e o seu elegante desenho matemático começavam a suplantar o naturalismo aristotélico. Seguindo de perto a síntese de Noel Swerdlow (Astronomy in the Renaissance, in: "Astronomy Before the Telescope", Op. cit., 187 et seq.), as peripécias que conduzem a uma nova astronomia começam a esboçar-se com a recuperação e exposição, por Johannes Muller de Königsberg (i.e. "Monte Régio", latiniz. Regiomontanus), 1436-1476,
dos métodos matemáticos e observacionais de Ptolomeu (bem como de alguns
acréscimos feitos por autores Islâmicos), ainda no quadro da física da revolução das esferas como causa dos movimentos celestes. Esse génio do
cálculo procurou incrementar a precisão, denunciando as anomalias
e disparidades observáveis nos fenómenos, mormente os desfasamentos
entre o calculado e o efectivamente observado.
O próprio nunca imaginaria a enorme mudança que precisaria acontecer. Os
erros por si apontados revelaram-se tão sérios que as soluções vão precisar de
Tycho, Kepler, do telescópio de Galileu e da total reformulação da
Astronomia nos finais do séc. XVI e início do seguinte. Brahe usou o sistema de pontos transversais (em ziguezague) nas graduações dos instrumentos introduzido por Johann Hommel (Homilius) ou por um tal Scultetus, mas B. R. Goldstein afirma que esta escala oblíqua recua a Levi ben Gerson, o inventor do chamado "Báculo de Jacob". Permitia leituras com maior precisão. Na ilustração, valor seria 2.4 (Thurston, Op. cit., fig. 10.7). Ver ilustração numa edição de 1598 da Astronomiae Instauratae Mechanica de Tycho Brahe
"He
observed and measured and did both more patiently and more accurately
than any man before him. As regards specific points, he proved that a
bright comet was several times as far away from the earth as the moon
is, hence that comets were astronomical and not meteorological
phenomena. He proved that the star of 1572 was a fixed star, hence that
changes go on in the far-away “sphere” of the fixed stars. He
determined the precession of the equinoxes to be 51 seconds of arc per
year and showed it to be continuous; in short, he killed the
“trepidation of the equinoxes.” He produced perfect positions for 777
stars, but he did not finish his catalogue." (Willy Ley, Watchers of the Sky: An Informal History of Astronomy From Babylon to the Space Age, Viking Press, 1964 (1963), p.92).
Nicolaus Copernicus (Mikołaj Kopernik em Polaco; Niklas Koppernigk em Alemão, 1473-1543) propôs, como sabemos, um modelo heliocêntrico (ou melhor helioestático)
que baniu a Terra do centro do Universo, todavia continuando a
acreditar firmemente na circularidade dos movimentos e nas esferas
"sólidas" do
passado, deste modo recorrendo obrigatoriamente a epiciclos.
A teoria não resultou de novas observações, foi antes o resultado
intelectual de uma demanda por uma mais bela e harmoniosa (no sentido pitagórico e platónico) estruturação do sistema
planetário. A extensa pesquisa de Owen Gingerich demonstrou que para a
maioria dos
astrónomos da época, o maior conseguimento da teoria de Copérnico foi a
eliminação do punctum aequans, satisfazendo o antigo princípio estético de que os movimentos
celestiais deveriam ser uniformes e circulares, ou explicados por
componentes uniformes e circulares (The Book Nobody Read..., Walker & Company, 2004). O Ad lectorem (não autorizado) adicionado por Andreas Osiander (que acompanhou a impressão do De Revolutionibus...), declara que "o dever do astrónomo é registar, através de
competentes e diligentes observações, os movimentos celestes, tendo
depois que propor as suas causas, ou melhor, hipóteses, pois não se pode
almejar conhecer as verdadeiras razões..." [trad. nossa]. Assim defendia a teoria
enquanto modelo matemático,
amenizando a profunda implicação filosófica que de facto representava.
A intenção de Copernicus, que o próprio enfatizou, era preservar o movimento circular
uniforme adulterado nos modelos ptolomaicos. Nesse desiderato técnico
foi, segundo algumas opiniões,
provavelmente influenciado (por vias sinuosas e ainda pouco conhecidas)
pela chamada "Escola de Maragha", estabelecida na Pérsia do
séc. XIII (vide Swerdlow, N., Copernicus and Astrology, with an Appendix of Translations of Primary Sources,
Perspectives on Science, vol. 20, no. 3, MIT, 2012, p.372). Todavia, o cenário coperniciano parece, apesar das consequências, ser pouco inovador ou eficiente. Convém relembrar que Copernicus não colocou o Sol no centro mas perto do centro e que, no seu sistema, a Terra não se movimenta como os restantes planetas (é o único que não tem epiciclo). Otto Neugebauer (On the Planetary Theory of Copernicus, 1968; .PDF, 665KB), sempre acutilante e matematicamente muito competente, desconfia da interpretação contemporânea prevalecente: "the ever increasing modern tendency toward hero worship on the basis of "ideas" and disrespect for technicalities". Para ele, "...the Copernican theory is only a formal transformation of the Ptolemaic theory." (p.103), pois todos os procedimentos adoptados têm a sua réplica no Almagesto. Acrescenta que o objectivo não foi abolir o aequans mas, tal como os antecessores Islâmicos (e.g., Ibn ash-Shatir, al-Tusi), demonstrar que um epiciclo secundário seria capaz de produzir o mesmo efeito da utilização do famigerado punctum. E o modelo tornou-se, na realidade, ainda mais complicado. Comenta, como alguns antigos matemáticos de vanguarda como Vieta (François Viète, 1540-1603) o haviam feito, que os procedimentos adoptados são arcaizantes, sempre procurando emular Ptolomeu. Como em todos os modelos "circulares", a determinação dos parâmetros planetários exigia 3 posições médias e 3 verdadeiras, necessárias para caracterizar o círculo ou órbita. Foi assim desde Apolónio até Kepler. Osiander (no já mencionado prefácio) acaba, segundo Neugebauer, por ter razão ao considerar estarmos somente perante um modelo cinemático e não uma explicação dos fenómenos. A matemática de Copernicus não é brilhante, há muitos erros, metodologias incoerentes e utilização de dados datados e imprecisos. Vale a pena seguir a detalhada exegese técnica de Neugebauer (todavia demasiado complexa para o típico historiador contemporâneo). Como maior contribuição de Copernicus, o grande historiador da Brown University assinalou a abertura do caminho para a determinação das dimensões absolutas do sistema planetário. Em síntese, sem Tycho Brahe e Kepler, nada de matematicamente relevante se teria extraído da teoria: Modern historians, making ample use of the advantage of hindsight, stress the revolutionary significance of the heliocentric system and the simplifications it had introduced. In fact, the actual computation of planetary positions follows exactly the ancient pattern and the results are the same. The Copernican solar theory is definitely a step in the wrong direction for the actual computation as well as for the underlying cinematic concepts. The cinematically elegant idea of secondary epicycles for the lunar theory and as substitute for the equant - as we now know, methods familiar to a school of Islamic astronomers - does not contribute to make the planetary phenomena easier to visualize. Had it not been for Tycho Brahe and Kepler, the Copernican system would have contributed to the perpetuation of the Ptolemaic system in a slightly more complicated form but more pleasing to philosophical minds. (p.103)
"Outros pensam que a Terra está fixa. Mas o pitagórico Filolau diz que ela gira em órbita à volta do fogo, num círculo oblíquo à semelhança do Sol e da Lua. Heraclides do Ponto e o pitagórico Ecfanto atribuem movimento à Terra, não de maneira a sair da sua posição mas girando como uma roda do Ocidente para Oriente, à volta do seu centro" (As Revoluções dos Orbes Celestes, A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (trad.), Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª Edição, 2014). O
movimento axial era anteriormente visto como implausível (habitava-se
"terra firma") e supostamente contrariado pelo movimento dos
projécteis, como as setas. Não prioritariamente por argumentos
astronómicos. Celio Calcagnini, que conheceu Copernicus em Ferrara,
sugere (de modo todavia vago) a rotação da Terra: "Quod Caelum Stet, Terra Moveatur". Na Índia, por exemplo, Brahmagupta (no tratado Brāhmasphuṭasiddhānta,
628 A.D.) declara que Aryabhatta defendia que a Terra executava um
movimento de rotação axial, opinião que refuta. Segundo Giorgio
Abettio, Schiaparelli acreditava que esta ideia era proveniente de
fontes Gregas (History of Astronomy (trad, de Betty Burr Abetti), Abelard-Schuman, 1952, p.25). Como se sabe, a demonstração definitiva da rotação da Terra acontecerá somente em 1851, através da célebre experiência do Pêndulo de Foucault
(Jean-Bernard Léon Foucault, 1819-1868), cuja alteração gradual no
alinhamento determina que o planeta se desloca sob o plano de oscilação
livre desse pêndulo. A experiência aconteceu no Panteão de Paris e
utilizou um pêndulo com 67 metros de altura e, como peso, uma esfera de
28 kg. Ecfanto, bem como o discreto Hicetas (que talvez seja o Nicetus Syracusanus também referido no livro de Copernicus), podem ter sido somente personagens dos diálogos de Heraclides. Mas há referências que parecem recuar a Theophrastus, ainda contemporâneo de Heraclides (v. Pythagoreanism, in: Stanford Encyclopedia of Philosophy), tratados como históricos na posterior doxografia. Heraclides do Ponto (Ponticus), c.390-c.310 a.C., colocou a hipótese da rotação diária da Terra sobre o seu eixo e, em muitas resenhas históricas, surge amiudadamente referido como proponente de soluções heliocêntricas. Segundo Bruce Eastwood (Heraclides and Heliocentrism: Texts, Diagrams, and Interpretations, 1992), não existe qualquer fonte documental que o corrobore: "Nowhere in the ancient literature mentioning Heraclides of Pontus is there a clear reference for his support for any kind of heliocentrical planetary position" (p.256). Ou seja, estamos perante mais um exemplo de repetição acrítica. Copérnico
manteve-se sempre "próximo" de Ptolomeu e da tradição geral. "A
renovação da teoria cósmica consistia numa transcrição do sistema
ptolomaico, copiando os dados e observações e atribuíndo-lhes outros
nomes: aquilo a que se chamava "deferente de Marte" era agora chamada a
sua 'órbita real'". (Pannekoek, Op. cit., p.193; trad. nossa). Manifesta
excessiva confiança nos autores pretéritos e, por isso mesmo, propenso a
aduzir complicações como a trepidatio
(precessão alternadamente lenta e rápida, um equívoco da astronomia medieval), a que vai
procurar responder complicando ainda mais o que já o era sem essa inexistência.
A "renovação" e "simplicidade" do sistema eram fictícias. O seu livro
revela um astrónomo tradicional, com ideias que acreditava já terem
sido propostas, nada ousado. Mesmo
tendo retirado a Terra da sua posição central, sentiu-se compelido a
dar-lhe um paradoxal papel fundamental no seu novo sistema. Para este
"funcionar" sem o punctum aequans ptolomaico, e em resposta ao problema da diferença de distâncias dos planetas no
afélio e no periélio (posições 1 e 3 no esquema seguinte, respectivamente a posição mais afastada e a mais próxima do Sol), não é o luminar
que está, na realidade, no centro do sistema e os planetas são ainda
obrigados a percorrer um pequeno epiciclo cujo raio está relacionado com a
distância do Sol ao ponto S.
O centro é, entretanto, ocupado por esse ponto (S, no esquema seguinte), que é, pasme-se, o centro da órbita
da Terra. Este estranho "Centro do Mundo" é, consequentemente, o centro
das órbitas dos restantes planetas. Demais, o ano terrestre (o período de revolução da Terra) estava, no sistema, intimamente ligado com os movimentos
dos dois planetas doravante inferiores (Mercúrio e Vénus). [i.e. Copérnico (Copernicus), não
tirando todas as conclusões da sua escolha heliocêntrica, continuará a
fazer passar todos os planos orbitais pela Terra, e consequentemente as
linhas dos nodos (o que perpetuou as consideráveis dificuldades na
comparação com as observações, por exemplo, das latitudes dos planetas
interiores)]. Em resumo, os planetas orbitam o
centro da órbita da Terra e não o Sol. Esta circunstância arrevesada compromete o que Copernicus afirma, no início do De Revolutionibus, quando argumenta que o lugar de tão proeminente astro (o Sol) deveria
ser o centro do Universo. O sistema não é, efectivamente,
heliocêntrico, apenas heliostático. (vide e.g., Pannekoek, Op. cit., pp.193 et seq.).
Kepler terá afirmado que Copernicus "nem sabia quão rico era", e que "mais tentou interpretar Ptolomeu do que a Natureza".
De facto, esteve longe de desenvolver aquilo a que hoje habitualmente
chamamos "Sistema Coperniciano" (o "sistema coperniciano" não era, de
facto, exactamente aquilo que actualmente assim nomeamos) mas, em todo o
caso, foi pretexto para
uma alternativa que após desenvolvida viria a alterar a
nossa imagem do Universo (vide Dreyer, J. L. E., Op. cit., 342 et seq.). Como A. Pannekoek reconhece (Op. cit.,
p.193), significou uma perturbação da mundividência que, com o
disseminar da ideia, acabou por influenciar o pensamento moderno
desde então, Entretanto, as tabelas Pruténicas (i.e. "Prussianas", em honra do duque da Prússia, protector do seu autor, Erasmus Reinhold), Tabulae prutenicae em Latim, publicadas em 1551 (reimpr. em 1562, 1571 e 1585) basearam-se nos métodos do De revolutionibus.
No
que diz respeito ao papel da Igreja enquanto suposto "entrave" à teoria heliocêntrica,
Thony Christie (no texto previamente mencionado) esclareceu com
propriedade:
A a teoria de Copernicus levantava novos problemas. Um destes era o da dimensão do
Universo. Se a Terra orbitava em torno do Sol, a deslocação deveria,
independentemente da estimativa do diâmetro da órbita, determinar um
efeito de paralaxe
nas estrelas observadas (devido às alterações da
perspectiva nas diferentes posições da órbita). Este efeito não era
observado (porque, como sabemos, as estrelas estão muitíssimo mais
longe do que era concebível). Tal como o sistema
ptolomaico, o novo sistema também não explicava as desiguais
velocidades observadas nas diversas fases do
percurso de cada um dos planetas (pois ainda não se imaginavam órbitas
elípticas).
O movimento de Marte no céu acontece do modo seguinte: quando a Terra e o
planeta se aproximam num mesmo sector das suas órbitas, em função da
posição do Sol, Marte é observado da Terra num movimento cada vez mais
lento até parecer parar no céu (contra o fundo de estrelas). Após este
momento estacionário, recomeça o seu movimento na direcção oposta
(retrogradação), mas retorna ao seu movimento "normal" algum tempo
passado após a oposição. Esta "laçada" é aparente é somente um efeito
de perspectiva: a Terra é mais rápida e apanha e ultrapassa o planeta
mais afastado do Sol. Uma dificuldade consiste no facto de que o
intervalo entre duas oposições é variável (Ley, Op. cit., p.100 [trad. nossa]) O astrónomo Christen Sørensen (dito Longomontanus) tentou enfrentar, a pedido de Tycho, as complexidades matemáticas do cálculo desta órbita. Mas Kepler foi mais competente e persistente, tendo também a sorte de estarem reunidas duas condições: por um lado, a excentricidade relativamente forte da órbita de Marte (cujo comportamento praticamente irreconciliável com a antiga teoria determinou o enorme empenho no seu estudo), que colocou o matemático na trilha da utilização da oval e depois da elipse; por outro lado, a comparativamente fraca excentricidade da órbita terrestre. Como Z. Kopal resume, foi Kepler - não Copernicus - quem colocou o Sol no centro do Sistema Solar e descreveu as órbitas planetárias através de um modelo simples e exacto, com enorme alcance (Op. cit., p.66). A Nova Astronomia (uma das mais extraordinárias obras científicas de todos os tempos, que expende duas das três Leis dos Movimentos Planetários; a terceira surge no Harmonices Mundi de 1618) é, como qualquer trabalho de Kepler, um exercício honesto e transparente, quase um diário científico das suas investigações nesses anos de 1602-1604. Ao contrário de Newton, explicou o processo, a metodologia, os erros e os recomeços, e reconhecia generosamente os contributos (algo em que Newton ou Copernicus foram sempre relutantes). E o que dizer de Galileu, sempre atento a honrarias e lucros?
As Leis de Kepler - Vídeo elucidativo das Leis de Kepler disponibilizado pelo Museo Galileo de Florença (narração em Inglês).
É
curioso verificar a complexidade de uma época na qual um matemático tão
influente como Kepler é também, numa das suas facetas, "not a mathematician of the modern, Leibniz-Newton kind, but a Ficino-mathematician, of the Neo-Platonist, Cabalistic type." (Tester, Op. cit.,
p.233).
"In Tycho Brahe’s and Kepler’s work the new method of scientific research is embodied — the method of collecting data from experimentand observation, and from them deriving rules and laws which form the body of science. They were not the only ones; at the turn of the century, in every field of knowledge, investigators appeared: Simon Stevin and Galileo studied mechanics, the laws of equilibrium and motion, Gilbert studied magnetism, Vesalius studied anatomy, Van Helmont studied chemistry, and Clusius studied botany." (Op. cit., p.242). Com a Terra remetida para a sua nova e mais humilde condição, o edifício teórico aristotélico deixou de explicar fisicamente os fenómenos. Antes, os elementos procuravam o seu "lugar natural". Agora as teorias prevalecentes do peso e movimento eram insuficientes, precisava-se de uma nova Física que explicasse os movimentos da Terra e porque é que os seus habitantes não sentem a "estonteante" sensação da velocidade. O De Revolutionibus de Copernicus não apresentava respostas. Seria necessário percorrer todo um percurso até Newton (passando por Kepler) para responder a muitas questões e transformar a Astronomia de uma ciência de Geometria numa ciência da Física. Aristóteles acreditava que qualquer corpo exigia uma força actuante contínua para perpetuar o seu movimento, e que somente poderia efectuar um único tipo de movimento de cada vez. A teoria é contestada por autores medievais. No início do século XIV, Jean Buridan afirmou que um corpo (e.g., um projéctil) não exigia a acção contínua e ininterrupta de uma força mas apenas um ímpeto ("impetus") inicial. Mais tarde, Galileu mostrou que, ao contrário do afirmado na doutrina aristotélica, os corpos de peso diferente caem à mesma velocidade. Também demonstrou que os corpos podem executar mais do que um movimento em simultâneo, e comprovou que o trajecto de um projéctil é uma curva (parábola) e não dois movimentos rectilíneos sucessivos. Mais tarde Newton estabelecerá as suas três Leis do Movimento, sendo as duas primeiras extensões das conclusões de Galileu. A primeira (a da inércia), também confirmada por Descartes, estabelece que um corpo perpetua o movimento ou a quietude a não ser que uma qualquer força actue sobre ele. Segundo Newton, dois corpos atraem-se com uma força cuja intensidade é inversamente proporcional ao quadrado da sua distância e directamente proporcional ao produto das suas massas. Foi o colapso da explicação aristotélica e a abertura de uma nova Física abrangente.
A designação óbvia ("telescópio") foi criada três anos depois por Giovanni Demisiani. O esboço telescópico da Lua feito por Thomas Harriot e datado de 26 de Julho de 1609 é, provavelmente, o primeiro desenho de um corpo telescópico, precedendo Galileu quase quatro meses (Kanas, Nick, Solar System Maps: From Antiquity to the Space Age, Springer/Praxis Publishing, 2024, p.146). Mas é Galileu quem inaugura a observação telescópica sistemática do céu. Descobre, em paralelo com Simon Mayr, lat. Marius (1573-1625), os quatro principais satélites de Júpiter (Medicea Sidera, como lhes chamará, os "Circulatores Jovis" de Hevelius; prevalecerão os nomes mitológicos escolhidos por Marius). Observa ainda as fases de Vénus e outros fenómenos (que, à maneira da época, vai divulgando em missivas "puzzle" com linguagem codificada, de modo a mais tarde defender a prioridade das suas descobertas; recorria-se à publicação de logogrifos e anagramas para salvaguardar a descoberta enquanto se investigava e confirmava). Galileu foi useiro e vezeiro neste método. Um
exemplo de Christiaan Huygens (1629-1695) é sobejamente conhecido. O
planeta Saturno, na época o mais longínquo, era caracterizado como monosphaericus ou trisphaericus,
pelo seu aspecto no telescópio. Huygens descobriu a natureza da sua
verdadeira morfologia e utilizou um criptograma para divulgar a sua
descoberta:
"aaaaaaacccccdeeeeeghiiiiiiillllmmnnnnnnnnnooooppqrrstttttuuuuu". Era
usual, como vimos, após descobrir algo que exigisse sequente prova e
investigação, recorrer-se a um anagrama (transposição de letras),
evitando que alguém "roubasse" a primazia da descoberta. O cientista
anunciaria-a laconicamente sob a forma de anagrama cujo significado só
ele conhecia. Quando fosse conveniente, desvelaria o segredo. Três anos
depois, seguro da sua conclusão, Huygens o seu segredo: Annulo cingitur, tenui, piano, nusquam cohaerente, ad eclipticam inclinato ("É rodeado por um anel, fino, plano, que não o toca em qualquer sítio, inclinado com a eclíptica"). O seu tratado (Systema Saturnium)
foi publicado em Julho de 1659 mas Huygens não manteve completamente em
segredo a grande novidade, confidenciando e permitindo a revelação no
ano anterior, num encontro da Académie de Montmor (Paris), v. Van
Helden, A., "Annulo Cingitur": The Solution of the Problem of Saturn, JHA v (1974), 155-174. Contudo, a "carreira" observacional de Galileu foi, como verificaram historiadores como Z. Kopal, de uma duração (surpreendentemente) curta: basicamente entre 1609 e 1611. Um trabalho breve, todavia muito importante (desaprovando a natureza etérea e incorruptível da natureza do 'éter' aristotélico). Galileu abraça a visão heliocêntrica, que não conseguirá vindicar, mas contribui com as suas observações para a pulverização da crença num universo imutável. Cynthiae figuras aemulatur mater amorum ("A
mãe dos amores [Vénus] imita as figuras [fases] de Cynthia
(Artemisa, Diana, i.e. da Lua). Foi assim que Galileu, resolvido o
anagrama,
divulgou a sua descoberta telescópica, que provava que Vénus orbitava
em torno do Sol. Os herméticos anagramas publicados nessa época eram a
salvaguarda da prioridade de uma descoberta que entretanto se
verificasse e confirmasse. Também Giovanni Borelli (1608-1679) continuará a desenvolver princípios de observação e testagem das hipóteses científicas (vide Koyré, Alexandre: The Astronomical Revolution: Copernicus-Kepler-Borelli, Cornell University Press, 1973). A médio prazo, a utilização de telescópios apontadores, com tubos longos e pequenas aberturas (pouco brilho mas razoável ampliação), como instrumentos de medida, será importantíssima para a precisão das observações. O Italiano Francesco Generini (1630) teve a ideia de utilizar um fio de mira no plano focal, consequentemente o Inglês Gascoigne (c. 1640), e ainda Montanari (de Bolonha) introduzem a utilização do micrómetro (para aferir com rigor distâncias entre duas estrelas). Os Franceses Auzout e Picard, incorporam a utilização de círculos graduados nos telescópios. Deste modo, as medições das coordenadas tornam-se muito mais precisas (v. Abetti, Op. cit., p.126).
Descartes considera três substâncias: a divina (eterna, perfeita e infinita. i.e. Deus), a substância pensante finita e dependente (res cogitans) e, finalmente, a matéria (res extensa). A Extensão é a característica essencial da matéria. A característica essencial ou atributo dos corpos é a extensão, quer dizer, o estar no espaço, com suas modificações ou modos: a quantidade, a forma e o movimento. Como consequência disso, os corpos submetem-se à quantidade e podem ser explicados em termos mecanicistas e a filosofia que os explica possui carácter obviamente matemático. Num argumento de tipo escolástico, o filósofo concluiu que uma vez que um 'atributo' somente existe como atributo de uma qualquer substância, não pode existir 'extensão sem matéria', ou seja, não pode haver vácuo. Em resumo, só havia um tipo de espaço e um tipo de matéria. O espaço não é variável em densidade, nem o é a matéria. Conclui que espaço sem matéria - um vácuo - seria conceptualmente absurdo. Contudo, os cartesianos podiam explicavam o estado presente mas somente muito raramente podiam antecipar ou prever o posicionamento futuro dos corpos celestes, algo que a Física Newtoniana permitirá. Na explicação cartesiana, cada estrela estava rodeada por um vórtice no éter. Na gravura, o percurso de um cometa de um vórtice para o seguinte, enquanto viaja pelo Universo (Principiorum Philosophiae, Pr. III)
Mas como Sir Edmund Whittaker explicou (From Euclid to Eddington: a Study of the External World,
Dover, 1958, pp.11-2), existia uma teoria contemporânea rival,
inspirada por Pierre Gassendi, religioso que leccionava no Collége de
France. Gassendi devotou imensos esforços a tentar provar que a fé
Católica não era incompatível com a filosofia Epicurista. Em oposição
ao plenum cartesiano, defendeu a teoria de átomos
movimentando-se no vazio, que Epicuro (c. 300 a.C.) havia
(supostamente) adoptado de Leucipo e Demócrates (c. 400 a.C.). De
acordo com a teoria, os elementos últimos da matéria são pequenos
corpúsculos indivisíveis, variáveis no tamanho e na forma, mas não na
sua constituição. A importância da perspectiva de Gassendi reside, em
grande parte, no facto de ter sido adoptada por Newton. Uma perspectiva
"atomista" e um espaço absoluto. Curiosamente, no século XIX, com a
constatação do
movimento ondulatório da luz, os físicos reabilitarão uma espécie de
"plenum" na substância do éter. Como o estro de Lord Balfour referiu: "they invented the aether in order to provide a nominative for the verb ‘to undulate’" (Whittaker, Op. cit., pp.13-4)
Voltaire, nas suas "cartas escritas de Londres" (Lettres philosophiques ou Lettres anglaises, publ. 1734), comparou, com a sua habitual argúcia, as explicações cartesianas (ainda comuns em França) com as newtonianas, já aceites na Inglaterra, que serão vindicadas (v. Quatorzième Lettre, da edição de F. A. Taylor (Basil Blackwell, 1965), .PDF, 279KB).. Em plena revolta das colónias americanas, Thomas Paine (no seu "incendiário" panfleto Common Sense,
de 1776), utilizou ideias e metáforas de inspiração newtoniana, prática
comum nos precursores modernos da Democracia ("democrata", no contexto,
tinha conotação pejorativa) e do Liberalismo (um anacronismo pois termo
somente se começa a usar no século XIX). defendeu a Revolução Americana
(que no início era mais um protesto do que uma manobra independentista)
num discurso repleto de referências newtonianas, e.g., “In no instance hath nature made the satellite larger than its primary planet.”.
Paine defendia a igualdade de todos os homens (ao contrário dos que
defendiam que a representatividade dependia da propriedade e dos bens;
Kant, por exemplo, chegou a sustentar que empregados e mulheres, por
dependerem de outrém, careciam de personalidade civil),
e era obviamente contra a monarquia (ao contrário de Hobbes que, apesar
do pensamento de vanguarda, acreditava na necessidade de uma garantia
de "coesão" contra a anarquia, na figura de um soberano; ou de Locke
que somente salvaguardava que os poderes de um monarca deviam ser
limitados). Paine foi uma figura interessantíssima e "inclassificável".
Os princípios newtonianos terão uma influência decisiva tanto no
Iluminismo como na posterior filosofia Positivista, no desdém pelas
metafísicas e no primado da articulação entre observação e razão. As
"ondas de choque" newtonianas estenderam-se a outras áreas, por exemplo
às supostas "leis" da Psicologia (respaldadas em estatísticas) ou à
Economia (Adam Smyth no seu The Wealth of Nations (1776) defende a não intervenção nos mercados, de modo a que os preços se acomodem "naturalmente").
Nature and nature’s laws lay hid in night.
De facto, as Leis do Movimento de Newton constituem os axiomas fundamentais da Mecânica:
Não menos importante foi a evolução da tecnologia e a precisão incrementada nas observações. No início do séc. XVII surgem as tabelas de logaritmos, que muito facilitavam os cálculos (John Napier em 1514, Henry Briggs, que as adaptou ao sistema decimal e Adriaan Vlacq, que as completou e publicou em 1628 com a assistência de Ezekiel de Decker). Numa interessante aplicação da nova dinâmica, o Dinamarquês Ole Rømer (1644-1710), trabalhando no Observatório de Paris, verificou um desfasamento na observação dos eclipses das principais luas de Júpiter (particularmente nos da mais próxima do planeta, Io), relativamente às rigorosas previsões de G. D. Cassini, o director do observatório. Mostrou que a velocidade da luz, sendo enorme, era finita (a velocidade era tradicionalmente considerada infinita, algo "instantâneo", e nem sequer ponderada até essa época). O método: os eclipses dos satélites de Júpiter eram observados a partir da Terra adiante do timing previsto matematicamente quando o planeta (e os seu cortejo de "luas") estava mais próximo mas mais tarde do que o timing computado quando Júpiter se encontrava mais distante. Rømer concluiu logicamente que a luz demorava mais a chegar quando o planeta se encontrava no ponto mais afastado da sua órbita e o inverso quando estava mais próximo. Em 1676 extrapolou a velocidade utilizando o valor da Unidade Astronómica aceite na época (a média entre o afélio e periélio da Terra, ou seja, entre o ponto mais afastado e o mais próximo da órbita em torno do Sol). Chegou a um valor equivalente a cerca de 200,000 km/seg. (2/3 do real). Provou assim que esta velocidade era finita. (Segundo alguns especialistas, e.g., Jan Teuber, Ole Rømer og den bevægede Jord – en dansk førsteplads? (2004), o próprio Rømer nunca publicou os resultados e a extrapolação foi feita por outros autores, nomeadamente por C. Huygens, a partir dos dados coligidos por Rømer) Bibliograficamente, a "trilogia" fundamental da chamada Revolução Científica é constituída pelo De revolutionibus orbium coelestium de Copernicus (1543), pela Astronomia
Nova ΑΙΤΙΟΛΟΓΗΤΟΣ seu physica coelestis, tradita commentariis de
motibus stellae Martis ex observationibus G.V. Tychonis Brahe de Kepler (Heidelberg, 1609) e pelos Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica de Newton (1687).
O enorme Newton era extremamente complexo. Segundo John Maynard Keynes
(o célebre filósofo e economista), que teve acesso ao seu espólio, foi "O Ultimo dos Mágicos" (tradução do manuscrito, base do texto utilizado nas conferências do Trinity College e Royal Society Club,
1936; trad. João Zanetic, .PDF, 1.91MB). "Obcecado" por
assuntos místicos, alquímicos e de cronologia bíblica. Acreditava também que Pitágoras já detinha um conhecimento abrangente da mecânica do Universo, que transmitiu de modo encriptado. Newton personifica uma
época de transição, paralelamente apto a descodificar as "verdades ocultas" na Natureza e nas Escrituras. Vide, por exemplo, Karin Figala, Newton's Alchemy, in The Cambridge Companion to Newton, ed. I. Bernard Cohen and George Edwin Smith, Cambridge University Press, 2004, 37; Josephson-Storm, J., The Myth of Disenchantment: Magic, Modernity, and the Birth of the Human Sciences. University of Chicago Press, 2017, pp. 43 et seq., Ch. 2, passim).
Não esqueçamos que o próprio Robert Boyle (1627-1691), um dos
fundadores da Química, também foi um alquimista. [A Alquimia tradicional, com o seu labiríntico simbolismo e literatura repleta de metáforas e complexas imagens, era a demanda da chamada Pedra Filosofal (para almejar a Crisopeia, a transformação dos metais vis em metais nobres, e da Panaceia
ou "elixir da vida", promotor da saúde). Uma prática do âmbito da
Filosofia Natural que estabelecia uma hierarquia da matéria e se
fundamentava na ideia de "gestação" (análoga à dos seres vivos) dos
minerais e metais, que aconteceria no seio da Natureza e os faria evoluir
no caminho da perfeição plena (e.g., os metais plenamente maturados seriam sempre metais nobres), bem como na correspondência Macroscosmo-Microcosmo (Quod est inferius est sicut quod est superius). As operações alquímicas (que em conjunto constituiam a Magnum Opus)
eram faseadas e enalteciam processos como a destilação e o isolamento
de uma substância primordial ou "quitessencial", a da Criação.
Respaldava-se nas polaridades (ou complementaridades) e na ideia de
aperfeiçoamento que o alquimista, emulando a divindade, precipitava ou
acelerava, ajudando a Natureza no seu trabalho e aperfeiçoando-se
espiritualmente em simultâneo. De resto, os elementos e os princípios
dicotómicos e complementares do Mercúrio e do Enxofre (Sulfur) (interpretados simbolicamente) estão na sua base, bem como a cristalização no "corpo" (o Sal). A tria prima referida por Paracelsus. Encontra-se na Meteorologica
(lib. III) de Aristóteles referência à origem dos minerais a partir de
um "vapor aquoso" (da Água) e de um "fumo terroso" (da Terra), que
foram ulteriormente associados nos textos da tradição hermética,
nomeadamente os atribuídos a Geber (Jābir ibn Ḥayyān, suposto autor do
séc. VIII), aos dois princípios "consagrados", já referidos. Acresce
que já em Aristóteles, expurgada da 'forma' a matéria-base é sempre a
mesma, uma matéria primeva. O filósofo postulava a já mencionada ideia
de maturação e aperfeiçoamento operada no seio da natureza.]
O paradigma do século XVII será "mecanicista". Existiam mecanismos cada vez
mais complexos e a "filosofia mecanicista", também conhecida como
"corpuscular" ganhava adeptos (e.g.,
Gassendi, Boyle, Huygens, Newton). Concebe-se a constituição
da matéria (em oposição às teorías físicas aristotélicas) segundo uma
inspiração atomista, adaptada
às leis deterministas da mecânica de Galileu e Newton. Sustenta-se que as
características dos corpos e seus fenómenos se explicam pelos
movimentos de partículas (indivisíveis ou não, segundo os autores): os
corpúsculos ou átomos. Newton ficará fascinado pela cosmologia
cartesiana e será somente através dos estímulos das inovadoras
sugestões de Hooke e da verificação das já conhecidas Leis de Kepler
que avançará do equivoco do plenum
cartesiano para a concepção de um Universo "espaçoso" que obedece à
gravitação (a mútua atracção entre os corpos celestiais, como Hooke
supunha), doravante com carácter universal. As Três Leis de Newton
(base para o entendimento do comportamento estático e dinâmico dos
corpos) permitirão explicar os fenómenos do Sistema Solar, as marés, até
prever o retorno de um cometa que celebrizará o influente Edmond
Halley, que "decifrou" a sua periodicidade (Halley fez
observações meteorológicas e magnéticas, mapeou marés e procurou
explicar a direcção dos ventos e as monções como consequências da
rotação terrestre, publicando as suas conclusões em 1686). A
aberração da luz (provocada pelo movimento orbital da Terra, de que constitui prova ou evidência) e a nutação (que se deve a uma pequena oscilação periódica do eixo de rotação da Terra) devem ser tidas em conta para obter
medições astronómicas correctas e efectivamente precisas: estas duas descobertas
fundamentais devem-se a James Bradley (1692–1762), que foi Astronomer
Royal a partir de 1742). Assim, tornou-se possível medir com aproximação na ordem dos
segundos de arco (1" é uma quantidade muito pequena, representando
1/100mm num círculo com 2 metros de diâmetro). A Mecânica é a ciência das forças e movimentos. Newton publicou os seus Principia e compatibilizou a Mecânica Terrestre e a Mecânica Celeste, na sua Teoria da Gravitação Universal.
Pressupunha assim a falência definitiva do modelo aristotélico das duas naturezas
distintas (a dos céus incorruptíveis e a do mundo sublunar, dos quatro
elementos, da geração e corrupção).
Quando publicado, o trabalho de Newton foi recebido com hostilidade no
meio filosófico. A ideia de uma espaço e tempo absolutos e a "acção à
distância" era entendida como uma "qualidade oculta", bem como a acção
da gravitação no espaço vazio, algo que se antagonizava com o plenum cartesiano ainda em voga. Mas gradualmente será aceite. Newton começou por adoptar, no que diz respeito à dinâmica planetária, a perspectiva cartesiana. Em relação às 'estrelas fixas', manteve uma postura "teologicamente correcta" e inflexível, deixando-as de fora das suas investigações. Deus criou-as como um cenário ideal, de simetria, eventualmente intervindo para as manter assim. Newton tinha estas complexidades. Mas tarde, em 1802, Herschel, ao verificou que componentes de estrelas duplas previamente observadas por si, tinham entretanto alterado as suas posições. Seria a gravidade a força actuante? Somente em 1827 é que o Francês Félix Savary conseguiu confirmar que as duas estrelas do sistema Xi Ursae Majoris se moviam em órbitas elípticas em torno do centro comum de massa. Entretanto, a observação dos enxames ou aglomerados também conduzia à conclusão lógica do processo pelos quais estes se formavam, a saber: a força gravitacional. (v. The Cambridge Illustrated History of Astronomy, Op. cit., p.235).
Modelo mecânico do Sistema Solar ("Orrery"). O primeiro destes 'planetários' foi, provavelmente, inventado sob o patronato de Charles Boyle ("4th Earl of Orrery"), daí o nome em Inglês. Demonstravam, de uma perspectiva externa, as revoluções dos planetas e, por vezes, dos seus satélites. Um Tellurium era um modelo "abreviado" que incluia somente o sistema Sol-Terra-Lua. De um modo interessante, estes mecanismos traduzem a percepção setecentista de um Universo enquanto mecanismo racionalmente concebido. (Detalhe do "Grand orrery" (Wh.1275), construído por George Adams, c.1750; Whipple Museum of the History of Science, Cambridge)
William
Heschel foi um dos mais notáveis e incansáveis observadores de sempre.
Foi acompanhado pela sua irmã Caroline e seguido pelo seu filho John
Herschel. E sabemos como este trabalho podia significar "immensi labores et graves vigilie", como já se queixava Paolo Toscanelli no século XV. Leonhard Euler (1707-1783) parece ter sido o primeiro a concluir que, como consequência da Lei da Gravitação Universal, um planeta não descreve "rigorosamente" uma elipse em torno do Sol mas ambos descrevem elipses em torno do centro de massa comum, o mesmo acontecendo com os planetas e seus satélites. Friedrich Wilhelm Bessel mediu a primeira medida da paralaxe trigonométrica de uma estrela, 61 Cygni, efectuada entre 1836 e 1838), chegando ao resultado de que a estrela estaria a 10,3 anos-luz do Sol. Joseph-Louis
Lagrange estudou o "problema dos três corpos", envolvendo a interacção
Terra-Lua-Sol, os movimentos dos satélites de Júpiter e é conhecido
pelos chamados "Pontos de Lagrange" (ou "pontos de libração", que são
pontos de equilíbrio para objectos de pequena massa sob a influência
gravitacional de dois corpos massivos em órbita). A presença de matéria cósmica foi pressentida por Halley por volta de 1720 mas a primeira formulação científica de uma teoria de absorção interestelar deve-se a F. G. W. Struve em 1847. Struve baseou-se no mapeamento das estrelas em diferentes partes do céu levada a cabo por W. Herschel. O padre Angelo Secchi fez comentários tempestivos acerca da existência destas "massas", que interpretou correctamente como "nebulosidades escuras", em 1877 (v. Abetti, pp.292-93). Edward Barnard confirmará fotograficamente estas presenças e, em 1919, publicará o artigo "On the Dark Markings of the Sky".
Mais tarde, já no séc. XX, James Jeans (1877-1946) elaborou uma teoria (que já tinha antecedentes) muito dinâmica, na qual um encontro entre o Sol e uma estrela "intrusa" que passava nas imediações resultou, devido à perturbação gravitacional, na libertação de uma "língua" de matéria que se estendeu do Sol. Após o afastamento da estrela, essa matéria fluida separou-se e cada uma das porções tornou-se gradualmente num planeta. A teoria revelou debilidades e foi sendo abandonada.
Assitiremos aos ulteriores avanços da instrumentação nos anos de oitocentos. Convém, antes de mais, recordar que na última década do século XIX se assiste a uma verdadeira "explosão" na Física: Raios-X, o átomo, a radioactividade. Novas tecnologias (e.g., fotografia, espectroescopia/espectrografia) e novas metodologias para a determinação das distâncias cósmicas, culminando no início do séc. XX nas perspectivas cosmológicas abertas por Albert Einstein, com o estudo acerca da natureza do átomo, do nascimento, vida e morte das estrelas, com a consciência de que a Galáxia não é a única (algo pressentido por pensadores pretéritos como Kant no séc. XVIII e finalmente comprovado pelas pesquisas de Edwin Hubble em 1924). Quanto à fonte da energia do Sol e das restantes estrelas, a pista fundamental foi descoberta independentemente em 1938 por dois astrofísicos: Hans Bethe e Carl von Weizsacker. Resumidamente, o hidrogénio é transformado em hélio e energia é libertada nesse processo. É a origem da radiação do Sol. Como sabemos, o hidrogénio é a substância mais leve e abundante do Universo. Se a energia do Sol tivesse origem na combustão química, não poderia ser mantida por mais do que alguns milénios. No século XIX, Lord Kelvin (William Thomson) e Hermann von Helmholtz sugeriram que o astro gradualmente se comprimia, libertando energia nesse processo e assim explicando a energia expelida ao longo de milhões de anos. Daqui se inferia que o diâmetro deveria diminuir ao longo desse período. Somente mais tarde, após a descoberta da radioactividade (por Henri Becquerel em 1896), se abria o caminho para a posterior descoberta da verdadeira natureza do que acontece no Sol (e nas outras estrelas). Enfim, a Astronomia tornar-se-á definitivamente Astrofísica. Francisco da Costa Lobo (1864-1945), do Observatório a Universidade de Coimbra será entre nós pioneiro e terá um papel fundamental na internacionalização da nossa astronomia, na abertura à Astrofísica e às novas tecnologias entretanto utilizadas (Vitor Bonifácio, “Costa Lobo (1864-1945), the Coimbra Spectroheliograph and the Internationalisation of Portuguese Astronomy”, Cahiers François Viète [Online], III-3 | 20; aceder),
Uma classificação abrangente das estrelas da Galáxia em "populações" (Population I, II e uma hipotética III, mais antiga e que já não podemos observar) foi gizada pelo mencionado e influente W. Baade em 1944, desenvolvendo uma ideia já avançada anteriormente por Jan Oort. Esta classificação das estrelas baseia-se em características como a sua localização, tipo de órbita no sistema galáctico e elementos pesados presentes na sua constituição ("metalicidade"). Estas características dependem da idade da Galáxia quando as estrelas se formaram, pelo que as "Populations" I, II e III contém estrelas que se formaram em épocas progressivamente mais recuadas. O
ponto de partida é o Sistema Solar; o método é geométrico e a base é a
órbita da Terra: em intervalos de seis meses, a Terra ocupa duas
posições separadas por 300 milhões de quilómetros. Permite medições de
paralaxe. Na etapa seguinte, a base utilizada é o
deslocamento aparente do Sol em relação a certas estrelas, determinando
a velocidade aparente na esfera celeste (de afastamento ou
aproximação), usando o efeito Fizeau-Doppler,
percebendo as direcções nas quais as estrelas aparentam mover-se (o
movimento próprio das estrelas havia sido descoberto em 1718 por Edmond
Halley). A terceira etapa utilizou a física das estrelas: o brilho
aparente, ou magnitude m, de uma estrela é uma função do seu brilho
absoluto, ou magnitude absoluta M, e da sua distância. Surgem catálogos
baseados na análises do espectro das estrelas (coligidos no Harvard
College Observatory), bem como a esquematização desenvolvida
independentemente por Hertzsprung e Russell, patente no diagrama hoje
identificado pelos seus nomes. Em 1912, Henrietta Leavitt publicou um
artigo onde apresentou a relação matemática relacionando o período e a
magnitude aparente de um determinado tipo de estrelas variáveis (as
Cefeidas, nomeadas segundo o exemplar "típico" originalmente estudado:
a estrela Delta Cephei).
Tinha acabado de descobrir uma nova maneira de relacionar a magnitude
aparente com a absoluta e, portanto, conhecer a distância. Tornou-se
possível determinar a distância de um objecto onde se encontre uma
cefeida. Posteriormente, E. Hertzprung estudou as distâncias destas
variáveis estatisticamente, a partir dos seus movimentos próprios. No
passo seguinte, verificou-se que o espectro luminoso de um astro nos dá
a sua velocidade radial. Move-se para o violeta se a estrela se
aproxima, para o vermelho se ela se afasta. Este fenómeno de grande
escala (teoréticamente interpretado como um efeito Doppler)
permitiu retirar ilacções quanto ás distâncias e, consequentemente,
quanto à expansão do Universo. É ao trabalho de V. Slipher, E. Hubble e
M. Humason que devemos a determinação das maiores distâncias
acessíveis. (Une Histoire de l'Astronomie, op. cit., Troisième partie, 3, 4). Refira-se
também, na estimativa de distâncias, a relação entre o período de
pulsação e a magnitude absoluta das estrelas do tipo RR Lyrae
(a "estrela modelo" situa-se na constelação boreal de Lyra), que as
transforma em excelentes velas padrão, particularmente no interior da
Via Láctea.
Hoje sabemos que as galáxias são as unidades organizacionais básicas do Universo. Supõe-se que as nuvens de hidrogénio e hélio (os elementos químicos leves, produzidos no Big Bang) se condensaram para formar as primeiras gerações de estrelas que, agregando-se, criaram estruturas comparáveis ou mesmo similares aos enxames globulares. Estas coalesceram em galáxias. Nestas, a fusão nuclear em estrelas maciças deu origem a elementos químicos mais pesados, libertados através da explosão de supernovas no medium interestelar. Nas nuvens de gás e poeiras assim formadas, nasceram e nascem as novas gerações de estrelas. Demais, o Universo surge em expansão e ganha dimensões avassaladoras. A recessão é mais evidente quanto mais distantes estão as galáxias observadas. Os estudos pioneiros são publicados por Vester Slipher no Lowell Observatory e Edwin Hubble, cujo primeiro paper descrevendo a relação entre redshift (desvio para o vermelho no espectro electromagnético) e distância (comprimento de onda proporcional) data de 1929. Também uma referência a Ernst Öpik (1893-1985), que publicou, antes de Hubble, um paper com uma estimativa da distância da galáxia de Andrómeda (com maior aproximação do que a do astrónomo americano) e também demonstrando a sua exterioridade relativamente à Via Láctea (entre outras descobertas relevantes, e.g., a chamada Nuvem de Öpik-Oort, hipotética região esférica de planetesimais voláteis na periferia do Sistema Solar, onde se acredita estar a origem dos cometas). Um notável precursor da teoria de suporte ao modelo cosmológico prevalecente foi Georges Lemaître (1894-1966). Este sacerdote e astrónomo havia sugerido, em 1927, ainda antes da constatação da expansão do Universo por Edwin Hubble, a possibilidade teórica de compreender retrospectivamente um Universo em expansão, recuando no tempo até ao ponto a que chamou "Átomo Primevo". As conhecidas teorias de Einstein (1879-1955) têm como antecedente
(por analogia) as elucubrações de Michael Faraday (1791-1867) e James C.
Maxwell (1831-1879), que relacionaram a electricidade, o magnetismo e a luz num mesmo fenómeno, o campo electromagnético. Einstein, por seu lado, estuda o campo gravitacional e publica a sua Teoria Geral da Relatividade em 1915.
O espaço-tempo deforma-se quando existe matéria. Como exemplo, o Sol deforma o espaço em seu redor e assim determina o movimento dos planetas. A luz também é afectada, permitindo estudar a magnitude do efeito lenticular que é a curva provocada pela gravidade quando a luz de um objecto distante é desviada por outro mais próximo, como foi comprovado pela primeira vez no célebre eclipse total de 1919, e desde então inúmeras vezes. Perspectivas contemporâneas...
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