A S T R O N O M I A
Início |A Esfera Celeste...A Estrutura do Universo...Cosmologia...Cartografia...Observação...Recursos...

Diversos tópicos com enfoque histórico

Tapeçaria Flamenga
Detalhe de tapeçaria Flamenga, provavelmente de Tournai (Doornik), c.1500-1515, (Röhsska Museet, Göteborg). O astrónomo segura uma esfera armilar e, à sua direita, a Musa da Astronomia aponta para o céu.

ciclos e regularidades fundamentais | culturas/intercâmbios | relógios | instrumentos pré-telescópicos | mundividências | tempo qualificado e ciclos | astrologia | sistemas de referência - o zodíacoseta_dir | "a escrita do céu" | o modelo geocêntrico | excêntricos e epiciclos | a idade média: o ensino, compatibilização do aristotelismo, a perspectiva islâmica, a síntese tardo-medieval e renascentistaseta | desenvolvimentos... seta | perspectivas contemporâneas... | a era espacial...


N.B.: Esta página, como referido em epígrafe, colige tópicos. Achegas por vezes avulsas, não uma sequência cronológica rígida dos desenvolvimentos.


"Disse Deus: Haja luminares no firmamento do céu para separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos." (Gn. 1,14)

"...But back when the sky was not just an illusion in blue but a sphere of activity, people noticed the more obvious things and, like ourselves, fashioned an understanding of the cosmos from them." (Krupp, E. C. (ed.), In Search of Ancient Astronomies, Chatto & Windus, 1977)

"A partir do raciocínio e do desígnio de um deus em relação à geração do tempo, para que ele fosse engendrado, gerou o Sol, a Lua e cinco astros, que têm o nome “planetas”, para definirem e guardarem os números do tempo." (Platão, Tim., 38c; Rudolfo Lopes (trad.), Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de Coimbra, 2011)

Segundo o Thesaurus Linguae Grecae (TLG, University of California), a mais antiga referência à palavra "Astronomia" acontece na comédia "As Nuvens" (Νεφέλαι, Nephelai), de Aristófanes, c. 420 a.C. Décadas depois ἀστρολογία ("astrologia") surge em textos de Isócrates e Xenofonte. Em Roma, é na tragédia Iphigenia de Quintus Ennius (que viveu durante a República) que encontramos a primeira utilização do termo astrologi em Latim, referindo as suas profecias baseadas no nascimento das constelações (fr. 185–7; ed. H. D. Jocelyn, Cambridge University Press, 1967).

Kudurru, séc. XII a.C.
Pormenor de estela em basalto do rei Marduk-Apla-Iddina (Babilónia, séc. XII a.C.). Neste kudurru (i.e. estela de registo, marco de limitação), a deusa Gula/Ninkarrak (Medicina) surge acompanhada pelo Escorpião, pelo crescente lunar de Sin, pela estrela de Ishtar (Vénus) e por Shamash, o Sol


A percepção dos ciclos e regularidades fundamentais

To the ancients, the sky was a source of power that drove the seasons and ordered the world. (Krupp, E.C. (2015). Astronomy and Power. in: Ruggles, C. (ed.) Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy. Springer)

Os símbolos cosmológicos e celestes proporcionam instantaneamente, até de modo inconsciente, o reconhecimento das estruturas que a nossa psique "impõe" à envolvente. Cosmos (por oposição a Caos) significa "o Todo Ordenado" e, neste sentido, o próprio conceito reflecte os padrões e princípios da interpretação que fazemos dos acontecimentos que experenciamos. Tempo e Espaço formam a tessitura da ordem natural. Padrão, ciclo e ordem. A própria Ciência (no sentido clássico de scientia) começa justamente no reconhecimento de padrões. Os "universos" que concebemos reflectem as nossas percepções da ordem. Tal como os nossos antepassados, continuamos a pensar simbolicamente. Dependemos dos símbolos para comunicar, tanto o vulgar como o sublime. E apesar da linguagem do nosso sistema de crença (doravante 'secularizado') se ter alterado, continuamos a lidar com o céu. (vide Krupp, E. C., Echoes of the Ancient Skies, Oxford University Press, 1994 (1983), pp. 312-15)

Baseando-se no estudo dos espaços pessoais culturalmente definidos, sua escala, percepção e influência na interacção comportamental (Proxémica), desenvolvida pelo antropólogo Edward T. Hall nos anos 60 do século passado, o autor C. E. Roth (The Sky Observers Handbook, Prentice Hall Press, 1986, p.4 et seq.) salientou como a consciência do céu (entendido na sua plenitude metereológica e astronómica) tem decrescido no confinamento das sociedades contemporâneas. A gigantesca abóbada revela a nossa diminuta escala e limites (i.e. coloca-nos em perspectiva), por isso muitos preferem habituar-se à sua presença, não deixar a sua percepção interferir ou os seus fenómenos entrarem na consciência regularmente. Segundo Anthony Aveni, vivemos e trabalhamos em "clausura", em compartimentos, geralmente através de mediação tecnológica digital e afastados da natureza. O céu tornou-se quase irrelevante, excepto pelos detalhes meteorológicos quotidianos (e.g., se chove ou faz sol). Pelo contrário, o universo dos nossos ancestrais era "participatório": [...] for most of human history, the sky was relevant. People paid attention to the rising and setting sun, the phases of the moon, the coming and going of each of the planets. The relative perfection of the firmament beckoned for human connection. The first crocus might arrive a bit late, the last snowfall a little early, but I know that when Arcturus, the brightest star in the northern hemisphere, makes its first annual appearance in the east after sunset, it’s my birthday. The sky became the logical medium to mirror the ordered lives our species strove to lead. For ages it would serve as the storyboard for morally based tales of heroism and adventure. From season to season people found meaning in the dance of the cosmic denizens who resided in the world above. (In the Shadow of the Moon, Yale University Press, 2017, pp.4-5).

Calend. Lunar - Blanchard des Roches
Osso do Paleolítico com prováveis marcações posicionais relacionadas com a contagem do tempo recorrendo à Lua (abrigo rochoso de Blanchard des Roches, França; fotografia: Michael Rappengluck)


A contemplação do céu conduziu à verificação da existência de fenómenos que, repetindo-se com suficiente regularidade, permitiram estabelecer padrões ou ciclos naturais de tempo: sucessão dos dias e das noites, fases da Lua, estações do ano, etc. Os fenómenos atmosféricos e meteorológicos mereciam igual escrutínio, integrando o grande "desafio". É plausível imaginar como os nossos antepassados adquiriram o conhecimento de alguns ciclos fundamentais para a interpretação da realidade envolvente e dos seus ritmos. O conhecimento dos períodos em que os mesmos fenómenos se repetem é também a primeira forma de astronomia científica. A abordagem arqueoastronómica (hoje habitualmente designada Cultural Astronomy) permite inferir a apreensão de ciclos fundamentais, ainda na Pré-História. Em primeiro lugar, o movimento diurno do Sol, a alternância do dia e da noite, O Dia. A observação do Sol, em dias sucessivos, relativamente ao horizonte e a modificação da trajectória do astro, com afastamentos para norte e para sul, determinando os Solstícios (pontos extremos do trajecto) e os Equinócios (pontos intermédios do trajecto, dias nos quais a duração dos período de luz e de obscuridade são exactamente equivalentes). Daqui se infere, no retorno a um momento específico deste ciclo, uma duração determinada: 365 dias, o Ano. Do mesmo modo se percebe a concatenação das estações deste ciclo, com as profundas alterações na natureza, no clima. A relacionação dos ciclos do Sol e da Lua deve ter sido uma das prioridades para os nossos antepassados distantes, bem como o conhecimento da dinâmica do céu nas diversas épocas do ano. E este conhecimento foi transmitido de geração em geração, permanecendo na tradição popular das diversas culturas e relacionando-se com os rituais, as actividades agrárias e o calendário.

"A common place where stars were given simple names and, most importantly, showed the way to pilgrims, marked the time of night, or set the rhythms to sow seeds orharvest crops and fruits." (Piero Barale, Lost Skies of Italian Folk Astronomy, in Ruggles, (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015, p.1756).


Quanto o Sol é observado sistematicamente, percebe-se que não "nasce" nem se "põe" exactamente nos mesmos pontos do horizonte todos os dias, mas que (no hemisfério norte) o seu orto (nascimento) e o seu ocaso oscilam entre dois limites norte e sul em relação ao ponto leste geográfico e o mesmo em relação ao ponto oeste no que aos ocasos diz respeito. Somente em dois dias do ano se verifica que nasce e se põe exactamente nas direcções leste e oeste, respectivamente. São os equinócios. A dinâmica descrita determina a variação do tamanho dos dias e das noites que experimentamos ao longo das estações do ano.


Em algumas regiões é comum encontrar alinhamentos megalíticos colocados em função de um ponto no horizonte que, na época em foram erguidos, estaria relacionado com o nascimento ou do ocaso do Sol nos solstícios ou nos equinócios (Roy, Jean-René, L'Astronomie et son Histoire, Presses de l'Université du Québec/Masson, 1982)


Os pontos cardeais determinavam-se a partir do movimento dos astros na abóbada celeste. As estrelas mantinham as suas posições relativas e algumas eram circumpolares, nunca se escondendo sob o horizonte. Unindo os pontos luminosos, formaram-se padrões facilmente reconhecíveis. Na mesma época do ano, podiam observar-se as mesmas estrelas e asterismos. Não se conhecia a sua natureza. Tão tarde quanto o século XIII, ainda lemos no "Libro del Saber de Astrología" de Alfonso X (a que o editor Rico y Sinobas chamou, sem qualquer respaldo nos manuscritos, "Libros del saber de Astronomía...", vide Laura Fernández Fernández, Arte y ciencia en el scriptorium de Alfonso X el Sabio, 2013, p.214), que não tinham luz própria, recebiam-na do Sol:

"Ca las estrellas non son en sí. sinon querpos redondos, et fuertes, et llanos, et apareíados para rescebir luz del sol. assí cuemo la el sol rescibe de Dios." (M. Rico y Sinobas (ed.), Madrid, 1863; Tomo I, p.16)

O Sol tinha, em relação às estrelas, um movimento inclinado quando comparado com a direcção do seu movimento diurno (devido, como sabemos, à inclinação da eclíptica). Movimentos análogos terão sido compreendidos relativamente ao outro luminar. A Lua nascia e descia em pontos diferentes do horizonte, alterando a sua posição para norte ou para sul, e atravessava diversas fases, num ciclo que se repetia em aproximadamente 28 dias: o Mês. No nascimento e no ocaso, o valor do afastamento angular máximo (norte ou sul) assumia um ciclo de cerca de 18 anos e meio (vide Alarsa, Flávio, Faria, Romildo P., et al., Fundamentos de Astronomia, Papirus, 1982, 1º cap.). Os pontos do horizonte eram a referência para o nascimento e ocaso dos principais corpos celestes ("marcadores") e, provavelmente, pelo menos desde o Neolítico, as direcções coincidiam com as designações usadas para as estações do ano e momentos dos equinócios e solstícios. Podemos especular e inferir que os nossos antepassados remotos conheciam a sua paisagem e provavelmente nomeavam as direcções como, por exemplo, a "do Verão" ou talvez "das chuvas". Do mesmo modo, mais tarde, os antigos navegadores, nos seus rumos, recorriam a uma orientação que fazia equivaler os abstractos pontos geográficos aos ventos (i.e. os ventos eram as direcções), por exemplo (no Mediterrâneo): Tramontana, Levante, Ponente, Maestro, Libeccio, Ostro, etc. Em Português ainda chamamos "rosa-dos-ventos" à representação esquemática das direcções geográficas.

Arqueoastronomia (hoje mais conhecida como "Astronomia Cultural") é a área multidisciplinar que estuda a intencionalidade simbólica e cultural da interpretação dos fenómenos astronómicos pelos povos pré-históricos, por exemplo na construção dos seus monumentos ou na organização dos seus ciclos de contagem do tempo. Como precursores apontam-se os esforços de William Stukeley, John Aubrey, Henry Chauncy, Richard Proctor, Charles Piazzi Smyth ou Norman Lockyer. De modo mais consolidado, Alexander Thom (1894-1985) foi uma figura pivotal entre os anos 30 e 70 do séc. XX, abrindo perpectivas para as investigações actuais de Anthony Aveni. Clive Ruggles ou E. C. Krupp. Dos equívocos e especulações aos progressos conseguidos nesta área, permanece a dificuldade em estabelecer quais as orientações astronómicas previstas pelos seus antigos construtores e (supostos) intérpretes do céu. Ademais, como Jean-René Roy explica, devido à Precessão do eixo de rotação da Terra ao longo de um período de cerca de 26000 anos, o alinhamento por puro acaso de um megálito com uma das 45 estrelas mais brilhantes, em qualquer século, é de da ordem dos 10%. Por essa razão, um qualquer alinhamento relevante é "inevitável"  num período de 1000 anos. É, portanto, crucial, determinar a idade dos monumentos, pelo menos com a aproximação de alguns séculos. (L'Astronomie et son Histoire, Presses de l'Université du Québec/Masson, 1982, p.76).


Azimutes Stonehenge
Sempre que se refere a Arqueoastronomia é quase obrigatório referir Stonehenge, pelo longo percurso de investigações (e muitas especulações sem fundamento!), Aqui, um registo dos azimutes de nascimento e ocaso do Sol ao longo do ano, bem como a variação mensal dos nascimentos e ocasos da Lua ao longo do período de 18,6 anos ("ciclo metónico") que os nodos lunares demoram a percorrer o círculo da Eclíptica. Elaborado para a latitude do site em causa. (Mills, H. Robert, Practical Astronomy: A User-friendly Handbook for Skywatchers, Albion Publishing, 1994, Fig. 2.17.5.). Este tipo de esquema, com orientação cardeal, é também um exercício pedagógico interessante para qualquer "observatório" amador.


Newgrange colina
O "mound" funerário de Newgrange (c.3200 a.C.), Irlanda. Durante algumas manhãs, em pleno Inverno, o Sol ilumina a tumba central ao fundo do longo corredor da entrada (Couper, H. & Henbest, N., The History of Astronomy, Firefly Books, 2007)

Hopi-Navajo Horizonte
Os astrónomos da Meso-América observavam as posições dos astros que consideravam mais importantes visando através de dois paus cruzados em "X" para apontar as suas posições relativamente ao horizonte. Na ilustração: os Hopi-Navajo, da América do Norte, reconheciam os dias mais significativos do ano memorizando as posições do Sol relativamente a acidentes naturais proeminentes no seu horizonte, na paisagem que habitavam (A. Aveni, Old and New World Naked-Eye Astronomy, in: Brecher, K. and Feirtag, M. (eds), "Astronomy of the Ancients", The MIT Press, 1980, p.64)

"Astrólogo" Andino
"Astrólogo" nativo dos Andes: "ASTRÓLOGO, PVETA Q[VE] SAVE del r[r]uedo del sol y de la luna y [e]clip[se] y de estrellas y cometas ora, domingo y mes y año y de los quatro uientos del mundo para senbrar la comida desde antigua.". Guaman Poma de Ayala, Nueva corónica y buen gobierno, ca.1615; Det KGL. Bibliotek, GKS 22232 4º; 883 [897]. Repare-se no quipu que segura com a mão esquerda. No Peru pré-hispânico, utilizava-se um sistema de cordas e nós para registar e transmitir informação. O quipu (do Quechua khipu que significa “nó”) era um artefacto têxtil constituído por cordas e nós. Apesar da simplicidade do material, o quipu foi a base de um complexo sistema andino de arquivo e transmissão de informação


Algumas "estrelas", para além do Sol e da Lua, deslocavam-se relativamente às demais. Os Gregos distinguiram ambas as "categorias": aplane (lit. "que não se movem", sc. as chamadas "estrelas fixas") e planõmena / planètai (“que vagueiam”, sc. os planetas). Estes últimos moviam-se sempre numa faixa inclinada povoada de constelações em que predominavam representações de animais ('zōidiakòs kýklos'). Moviam-se quase sempre de oeste para leste (o que chamamos 'sentido directo'). Todavia, por vezes permaneciam praticamente estacionários (relativamente às estrelas de fundo) por uma ou mais noites e invertiam o sentido do movimento, mais tarde retomando o sentido normal (trata-se da retrogradação dos planetas e das chamadas "laçadas", que os nossos cosmógrafos do passado descreveram: curvas 'desenhadas' pelos sucessivos e caprichosos movimentos).

[Se os círculos estivessem no mesmo plano, não veríamos o "loop" ou curva a que chamamos 'laçada'. Para Ptolomeu (séc. II), e no contexto da solução geométrica entretanto adoptada, a explicação residia, como veremos adiante, na inclinação dos círculos que asseguravam as órbitas planetárias relativamente ao círculo a que chamamos Eclíptica]

Os planetas serão objecto de curiosidade e fascínio. Outros fenómenos atmosféricos ou astronómicos (distinção irrelevante no passado) decerto fascinavam e pressagiavam, e.g., relâmpagos, meteoros, halos, cometas.


Na Mesopotâmia, a invenção da Escrita permitiu registar escrupulosamente as sistemáticas observações astronómicas, efectuadas ao longo de vários séculos por "ummanu", os peritos cujo ofício era estarem atentos aos augúrios na natureza (Whitfield,
Astrology: A History, The British Library, 2001, p.9 et seq.). Ou seja, existia um todo um "mecanismo burocrático" para observar e registar informação astronómica, preservando os registos resultantes.

Excerto de um calendário estelar Babilónico:
 
On the 1st [dia] of Nisannu [nome do mês] the Hired Man [o nosso "Aries"] becomes visible [i.e. dá-se o "nascimento heliacal", primeira visibilidade imediatamente antes do nascimento do Sol].
On the 20th of Nisannu the Crook becomes visible.
On the 1st of Ajjaru the Stars [Plêiades] become visible.
On the 20th of Ajjaru the Jaw of the Bull becomes visible .
On the 10th of Simanu the True Shepard of Anu and the Great Twins become visible. 
(MUL.APIN, tablet I, col. i, lines 1-5; Hunger, H, & Pingree, D. (trans.), MUL.APIN. : An Astronomical Compendium in Cuneiform. Archiv fur Orientforschung, Beiheft 24, Ferdinand Berger, 1989, pp. 40-41)
 
Um calendário estelar (gr. parapegma) elenca e relaciona fenómenos astronómicos. Por exemplo, ortos e ocasos simultâneos das constelações ou asterismos, intervalo de dias entre visibilidades, etc. Permite conhecer a época do ano, acautelar as tarefas agrícolas, económicas, religiosas... estruturando e organizando a vida da sociedade.

O arquivo incontornável, em todos os aspectos (dele faz parte, por exemplo, a Epopeia de Gilgamesh) é a biblioteca de milhares de placas em argila contendo textos em escrita cuneiforme associada ao rei Assírio Assurbanípal (profundamente interessado na antiga cultura literária da Mesopotâmia, m. 631 a.C.), que coligiu ou mandou copiar os registos dos templos Babilónicos. O acervo (e outros ancilares) foi encontrado no sítio da antiga Ninive em meados do séc. XIX por Austen Henry Layard e Hormuzd Rassam. Processado de modo apressado e algo desorganizado, acumula material de diversas proveniências desse site arqueológico. Encontra-se, na quase totalidade, no Museu Britânico.

A utilização de um sistema sexagesimal, bastante acessível (facilmente divisível) para cálculos com fracções, poderá ter tido origem na estimativa do número de dias de um ano. É utilizado pelos povos da antiga Mesopotâmia, desde o tempo dos Sumérios. O seu uso prevalecente era científico (matemático), existindo concomitantemente outros sistemas noutras áreas de actividade. Recorria-se ao sexagesimal na divisão do tempo, bem como, antes de mais, na divisão da circunferência. Como se utilizava um sistema numérico sexagesimal, o percurso a observar foi dividido em 360º, bem como cada grau ("ush") em 60 minutos. O dia foi dividido em 12 horas diurnas e 12 nocturnas, John Steele explica que a preocupação primária da astronomia na Mesopotâmia era a ocorrência de fenómenos regulares protagonizados pela Lua e pelos planetas: a duração da visibilidade da Lua em dias específicos em torno do novilúnio e do plenilúnio, o movimento da Lua e dos planetas através de um repertório de estrelas fixas de referência hoje conhecidas [na literatura especializada] como "Normal Stars", eclipses lunares e solares, os fenómenos sinódicos dos planetas (primeira e última aparição), as suas estações [quando os planetas passam do movimento directo, na mesma direcção do Sol e da Lua, ao retrógrado ou vice-versa] e os nascimentos acrónicos [quando um astro nasce vespertinamente, em oposição ao Sol]. (The Influence of Assyriology on the Study of Chinese Astronomy in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries, in: Mak, Bill M. & Huttington, Eric (eds.), "Overlapping Cosmologies in Asia...", 2022, p.23; trad. e aditamentos entre parêntesis rectos são nossos). F. R. Stephenson (Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.118), resume o que julgamos conhecer dos métodos e medidas utilizados na Mesopotâmia: o US tinha uma duração fixa de 1/15 de hora. Dividia-se em 60 GAR (ou NINDA). US deveria traduzir-se como "grau-tempo", pois mede efectivamente uma duração, o tempo que a "abóbada" do céu demora, como sabemos, a rodar cerca de 1 grau. O beru continha 30 US, equivalendo pois a duas horas. Na Grécia, que importará estas unidades, encontramos a designação chronoi isemerinoi ("tempos equatoriais"), mas o sistema Grego repalda-se no recurso a horas (equinociais ou , alternativamente, sazonais). Convém referir que os Babilónios utilizavam unidades diferentes para as medições angulares entre dois corpos celestes: o "cúbito", KUS (equivalendo a cerca de 2 ou 2,5 graus), dividido em 24 "dedos" (SI).

Historicamente, a divisão mais natural do dia ou da noite terá sido em 2, 3 (usada na Babilónia) ou 4 intervalos iguais (no Egipto). O. Neugebauer sugeriu uma curiosa explicação para o método desenvolvido na Mesopotâmia: sabemos que desde a época Suméria existia uma medida de distância (danna), uma espécie de "milha" utilizada para medição de distâncias mais longas, gradualmente associada ao período de tempo que demoraria a percorrê-la. Esta medida, enquanto intervalo de tempo, foi "transferida" pelos babilónios para os intervalos no céu. Como havia sido subdividida em 30 US ou uS (i.e. "comprimentos", segundo O. N.), a amplitude do círculo do céu acabou dividida em 12 (12x30 = 360 partes). Aqui radicará a origem dos nossos "graus" e o procedimento astronómico de divisão do tempo em graus. (Some Fundamental Concepts in Ancient Astronomy (1941) "Studies in the History of Science", Univ. of Pennsylvania). Os povos da mesopotâmia não possuiam o conceito de "esfera celeste" (vide Rochberg, F., The Heavenly Writing:..., 2004, Cambridge University Press, pp.126-7). [D. R. Dicks (Early Greek Astronomy to Aristotle, Cornell University Press, 1970, pp.166-67) consideva provável que (apesar do afirmado por Heródoto) a origem da divisão grega do dia e da noite em doze partes (ou horas) fosse uma influência do Egipto, onde se terá desenvolvido a partir da tradição do recurso aos decanos (v. infra) enquanto "calendários" siderais (Op. cit., pp.166-67).]

A subdivisão da Hora na Antiguidade tardia e na Idade Média
Traduzindo uma base sexagésimal que já era utilizada na Mesopotâmia e que influenciou astrónomos e geómetras ao longo dos séculos (nomeadamente na subdivisão do grau em 60 partes, que Ptolomeu implementou), a palavra "minuto" deriva do Latim medieval pars minuta prima, significando "a primeira parte pequena", adequadamente a sexagésima parte do grau e depois da hora. O cosmógrafo Manoel de Figueiredo escrevia no início do séc. XVII: "E este foi o numero de 60 porque nenhum ha ate 100 que se diuida em mais inteiros que elle." (Figueiredo, Chronographia Reportorio dos Tempos..., Lisboa, Jorge Rodriguez, 1603, fól. 43v). Tornou-se pertinente na contagem do tempo com o aperfeiçoamento dos relógios mecânicos. Todavia, o adjectivo minutum, “coisa minúscula”, foi previamente usado de várias maneiras para 1/15 hora (4 min.), 1/10 hora (6 min.) e 1/60 dia (24 min.); mas nunca indicou 1/60 hora, que era um ostentum (Holford-Strevens, The History of Time: A Very Short Introduction, Oxford University Press, 2005,  p.9). Havia outras subdivisões: puncta (pontos), momenta (impulsos), etc. Na Idade Média tardia, no entanto, encontramos uma nova divisão  sexagesimal da hora em primae, secundae e tertiae minutae (partes, entenda-se). Este sistema, já utilizado para divisões angulares, deu origem aos nossos 'minutos' e 'segundos'. A última (tertia, a terceira) passou a ter uma abordagem decimal.

Os sistemas mecânicos utilizados na vida monástica a partir do séc. X, que funcionavam usando água, eram descritos como relógios mas na realidade eram simples "alarmes": não marcavam a hora, antes estavam ligados a um mecanismo simples que após determinado intervalo fazia tocar uma sineta, avisando o monge incumbente para avisar a comunidade para as orações diárias.


É pertinente referir que a astronomia na Mesopotâmia não se preocupava com as latitudes, somente com as longitudes, excepto no caso da Lua (determinação dos eclipses e do crescente lunar). Na abordagem Grega, os planetas serão corpos em órbitas, a determinar geometricamente. Jo Marchant resume de modo algo "épico" a auspiciosa combinação das abordagens: "The Babylonian arithmetic progressions yielded precise predictions but included no three-dimensional structure, while the Greeks had geometric models but no accurate numbers. Neither approach on its own could produce a complete description of the sky. When they came together, the science of astronomy was born." (The Human Cosmos: Civilization and the Stars, Dutton, 2020, p.62). Entretanto, em 2016, o historiador Mathieu Ossendrijver da Universidade Humboldt de Berlim, argumentou que sacerdotes na Mespotâmia também já utilizavam técnicas geométricas em alguns cálculos astronomicos. (“Ancient Babylonian astronomers calculated Jupiter’s position from the area under a time-velocity graph", Science 351 (2016): 482-84)


Os Egípcios utilizavam um calendário civil, agrícola, para a gestão do seu quotidiano (possuiam em paralelo um calendário lunar para as celebrações religiosas). Ao contrário dos povos da Mesopotâmia, foram condicionados pelo carácter primitivo da sua aritmética e geometria, impedindo uma interpretação precisa dos movimentos astronómicos mais complexos e subtis.


A América Pré-Colombiana

Piramide Lua - Teotihuacan
Detalhe de registo fotográfico dos trabalhos arqueológicos na plataforma adossada da "Pirámide de la Luna" e do edifício nº7 em Teotihuácan, México (“Proyecto Teotihuacán”, INAH 1962-1964, Temporada V;  acervo Román Piña Chan, nº inv. 00003740, Univ. de Campeche). Utilizava-se a arquitectura e a paisagem para seguir o percurso dos astros, particularmente dos luminares.

Encontramo-nos, neste contexto, perante culturas diversas, muitas vezes quase isoladas, tanto capazes da criação de contagens, ciclologias e efemérides (e.g., os Maias) como de observar exóticas constelações "escuras" nos "vazios" entre as estrelas (e.g., algumas tribos Peruanas). [Todavia, o calendário dos Maias, por exemplo, era, acima de tudo, uma contagem ordenada. Segundo John E. Teeple, este calendário "...made no attempt to keep itself adjusted to the seasons, as our calendar does by inserting leap-year days. It was simply an arbitrary and orderly succession of days and months in regular order, going on for ever without regard to any natural phenomena."]

Mais do que tentar explicar as complexidades calendáricas e rituais, tão diversificadas e específicas, resumiremos alguns tópicos da lúcida conclusão de Anthony Aveni em Astronomy in the Americas (in Walker, C. (ed.), Astronomy Before the Telescope, BCA, 1996, pp.301-2). Segundo Aveni, todas as observações astronómicas parecem ter recorrido a escassa (ou nenhuma) tecnologia. Estas sociedades não utilizavam a roda e poucas empregavam os metais. O arsenal teórico é também diverso do da astronomia "ocidental". Não havia fracções ou geometria euclidiana. Somente os Maias desenvolveram numeração posicional e o conceito do 'zero', e apenas eles se deram ao trabalho de calcular e registar por escrito periodicidades e previsões que se estendiam milénios no passado e séculos no futuro. Nenhuma cultura Pré-Colombiana colocou questões acerca da esfericidade da Terra ou se o Sol, ou qualquer distante corpo celeste, estaria no centro do Universo (a visão espacial do Universo e os conceitos de órbita e mapa são contributos gregos). Não teriam aqui qualquer interesse. Estas sociedades não concebiam um universo mecanicista que operasse fora das suas consciências. O credo científico (explicar matematicamente e testar empiricamente segundo leis naturais verificáveis) seria um "anátema". Não alimentavam uma ideia de progresso na compreensão da natureza. Tudo era integração, ordem e hierarquia. Todavia, decerto teorizavam e filosofavam acerca do "seu" mundo. Em vez dos sistemas de coordenadas que utilizamos, deparamo-nos com esquemas direccionais baseados no Horizonte da sua paisagem, sistemas temporais que têm em consideração o zénite e o percurso do Sol. Em vez de mapas, testemunhamos a arquitectura orientada e ritual da casa e da paisagem da cidade. Em vez de intercalações e anos bissextos, encontramos calendários ininterruptos, contínuos com largos segmentos de tempo "inactivo", não contabilizado, profundamente enraizados no folclore de sociedades em que a ordem e a renovação eram fundamentais. Estas culturas, integradas no seu âmago com a envolvente, criaram metáforas coloridas que revelavam nexos e concepções acerca do mundo, das forças da natureza, de quem as controla e do lugar do ser humano nessa realidade.

Os povos Nahua, como os Aztecas, acreditavam que quatro "mundos" haviam precedido o actual. Estes "mundos" ou "sóis" foram destruidos por cataclismos. O "Quinto Sol", o nosso, surgiu pelo esforço combinado de duas divindades antagónicas: Quetzalcoatl, a "serpente emplumada" e deus luminoso, e Tezcatlipoca, o "espelho fumoso", deus das trevas, que levantaram o céu depois do último cataclismo. O célebre monolito de basalto ("Piedra del Sol"), equivocamente chamado "calendário" (apesar de incluir informação relacionada), descoberto em Tenochtitlan em 1789 e actualmente no Museo Nacional de Antropología e Historia, é uma representação cosmogónica destes sóis ou universos sucessivos. No centro, a representação de Tonatiuh, o deus solar actual (existindo interpretações alternativas, e.g., as de Carlos Navarrete e Doris Haydn, 1974).

Piedra del Sol 
Fotografia da chamada "Piedra del Sol" em 1917, com Venustiano Carranza, político Mexicano)


Na Mesopotâmia o dia era dividido em 24 horas: a parte diurna em 10 e a noite em 12 (sobrando 2 horas crepusculares em ambas as transições). Gradualmente foi adoptado um sistema de divisão em 12 + 12 horas. É deles que nos chega o dia de 24 horas. Estas horas eram sazonais (desiguais, duração variável em função da estação do ano e da desigual duração dos dias e das noites; e.g., dividia-se a noite em 12 períodos iguais, obviamente diferentes consoante as estações, maiores no Inverno e mais pequenos no Verão, em função da latitude do lugar). Para os Gregos, "hèmera" designava (neste contexto) o intervalo diurno, do nascimento ao ocaso do Sol; "nux" era o intervalo nocturno, complementar. Somente na época helenística (e prioritariamente num contexto científico, astronómico) se passará a ponderar a utilização de horas equinociais, iguais (calculadas em função da duração da hora nos dias dos equinócios), como sugerido por Hiparco (Hipparkhos).

Hiparco verificou que as quatro Estações do Ano não tinham exactamente a mesma duração. Na sua teoria solar, preservada e adoptada por Ptolomeu, reconhece que, se o Sol parece não ter um movimento uniforme, a Terra não poderá portanto estar exactamente no centro da sua órbita: deve ser "excêntrica". Ou seja, para gerar estas anomalias (intervalos irregulares), a Terra deveria ser deslocada, segundo os cálculos do astrónomo, 1/24 do raio do círculo percorrido pelo Sol e a linha entre a Terra e esse centro deveria fazer um ângulo de 65.2º com a direcção do Equinócio Vernal. Com estes parâmetros, o modelo respondia adequadamente aos fenómenos observados (v. esquema; fonte: The Cambridge Illustrated History of Astronomy, Cambridge University Press, p.41)

Todavia, verifica-se generalizadamente a utilização das horas sazonais até muito mais tarde, mesmo depois de surgirem os relógios mecânicos na Europa do séc. XIV (o desenvolvimento de relógios e outros equipamentos mecânicos acontece precisamente quando também assistimos à utilização de algoritmos mais complexos, nomeadamente astrológicos, num "crossover" tecnológico que incrementava o detalhe e a minúcia). Segundo L. Holford-Strevens (The History of Time: A Very Short Introduction, Oxford University Press, 2005, pp.8-9), os astrónomos gregos dividiam o dia natural em 24 horas equinociais ou iguais, cada qual com 15 moîrai ou ‘partes’ (a mesma designação que utilizavam para os graus da circunferência, pois em ambos os casos o total era 360; 1º equivale a 4 minutos de tempo). No contexto latino medieval, o adjectivo minutum, ‘coisa pequena’, foi utilizado de modo variável para 1/15 hora (4 min.), 1/10 hora (6 min.) e 1/60 dia (24 min.), mas nunca significou 1/60 hora, intervalo a que se chamava ostentum. Todavia, na Idade Média tardia encontramos uma nova divisão sexagésimal da hora em primae, secundae, e tertiae minutae (partes). Este sistema, já utilizado para as medidas angulares, deu origem aos nossos ‘minutos’ e ‘segundos’ Mas na contagem do tempo, a tradição e o sistema de base 12 dos mostradores dos relógios vão perpetuar a utilização de meias, quartos, etc.

Segundo Jo Marchant, a partir do desenvolvimento dos relógios mecânicos nasceu um "novo" tempo que nos dissociou dos ritmos da natureza: "powerful enough to weaken our bond with both God and the universe, and set the foundations of a new way of life." (The Human Cosmos: Civilization and the Stars, Dutton, 2020, p.96).

"Astrolabe"
Calendário astronómico circular mesopotâmico. Este tipo de texto e de suporte, actualmente designado "Three Stars Each", é por vezes chamado, equivocamente, "astrolábio". Encontram-se exemplares a partir do primeiro milénio a.C. Grafavam as estrelas que, em cada mês, nasciam antes do orto do Sol. (Department of Western Asiatic Antiquities, The British Museum)


Paralelamente existia na Mesopotâmia uma antiga "geografia cósmica" de inspiração mitológica (os "caminhos" paralelos de Enlil, Anu e Ea). Entretanto, assiste-se à divisão do círculo percorrido por aqueles astros que deambulam (a Lua, o Sol e os planetas) em doze sectores iguais, de 30º cada. Existem evidências, na mesma região geográfica entre o Tigre eo Eufrates, de uma relação astrológica que atribui um dia a cada um dos sete planetas/deuses: a Semana. Este intervalo de sete dias também coincide aproximadamente com a duração de uma fase lunar. O Texto Sagrado dos Hebreus referiu a Criação em sete dias (heptâmeron) e a semana de sete dias será mais tarde adoptada pelos Romanos. Muitos idiomas modernos testemunham esta relação íntima entre os dias da semana e os planetas/deuses. A Astrologia Helenística utilizará as chamadas "horas planetárias", que entrarão definitivamente nessa linguagem simbólica. Na época Neo-Babilónica já se conhece o que hoje designamos como saros, um período (223 meses lunares "sinódicos", ou seja, medidos pelas fases) que permite determinar os eclipses do Sol e da Lua. Criou-se um calendário lunar que exigia a utilização periódica de um décimo terceiro mês para o acertar com o ritmo das estações (pois estas respaldam-se no ano solar). Outro ciclo de dezanove anos relacionará as lunações com a recorrência de datas das fases no contexto do calendário solar, constituíndo referência dos calendários e do futuro computus eclesiástico
[O ciclo de cerca de dezanove anos, idealizado segundo a tradição pelos gregos Meton e Euctémon mas com provável origem na Mesopotâmia, constitui um período aproximado que relaciona o mês e o ano (i.e., os ciclos aparentes da Lua e do Sol: é o chamado Ciclo Metónico, depois utilizado pelo Calendário Litúrgico para a determinação das chamadas Festas Móveis. Este ciclo recorre a anos tropicais, i.e., intervalos astronomicamente definidos. Aí se integram 235 meses lunares médios, que no final conciliam a mesma fase lunar com a mesma estação (momento relativo à estrutura de equinócios e solstícios), mas depende do calendário "local" específicamente utilizado se se sincroniza ou não também com a data]. O calendário, pela sua importância, constituiu uma motivação mas constata-se que, por exemplo entre os Gregos, os ciclos mais sofisticados e precisos eram expostos em textos científicos mas os calendários civis das diversas cidades-estado demoravam a adoptá-los, não eram articulados e estavam sujeitos a interpolações, geralmente pouco sistemáticas, ao sabor das iniciativas dos respectivos burocratas. Aristófanes, n'As Nuvens (Nephelai), 610 et seq., faz a Lua queixar-se da falta de cuidado dos atenienses em combinar os dias adequadamente com as suas fases.

O reconhecimento de recorrências nos diversos períodos planetários foi determinante e recua aos antigos astrónomos da Mesopotâmia, que assim, pelo acúmulo de observações relevantes ao longo do tempo, conseguiram antecipar as posições da Lua e dos planetas e mais tarde gizar efemérides (da palavra gr. para "diário"; hemera significa "dia"):

"The Babylonians had noticed the periodicity of the motions of the moon and the planets. For example, 71 years equals 65.01 synodic periods of Jupiter and 5.99 sidereal periods. Because these are very nearly whole numbers, the dates and longitudes of the interesting features of Jupiter’s motion (as listed above) in any one year will be repeated almost exactly 71 years later. Therefore the data for Jupiter this year can be foretold by looking at the data for 71 years ago. A compilation for a planet used for this purpose is called a 'goal-year text’ (a somewhat awkward literal translation of the German "Zieljahrtexte"). Another interval that works well for Jupiter is 83 years; 59 years serves for Saturn, 79 and 47 years for Mars, 8 years for Venus, 46 years for Mercury, and 18 years for the moon." (Thurston, Early Astronomy, Springer-Verlag, 1994, p.69)

Durante o período Babilónico tardio (c. 750 a.C - 75 AD), os astrónomos respaldaram-se nos extensos e sistemáticos registos observacionais, desenvolvendo diversas técnicas empíricas para prever as posições futuras dos corpos celestes. Há diversos tipos de textos astronómicos não matemáticos, classificados por Abraham Sachs como: 1) Astronomical Diaries, 2) Goal-Year Texts, 3) Normal Star Almanacs, 4) Almanacs e 5) Lunar or planetary texts (A. J. Sachs, 1948, A Classification of Babylonian Astronomical Tablets of the Seleucid Period. Journal of Cuneiform Studies 2, 27 1-90). Os registos provenientes do "Diário" para determinado ano permitiriam, utilizando a periodicidade conhecida dos movimentos dos planetas e da Lua, antecipar as posições no 'ano-alvo' desejado. Alguns planetas tinham dois períodos ou ciclos, para diferentes fenómenos.
 
Os chamados "goal-year texts" incluiam excertos de registos de determinados anos concretos, tendo em consideração os referidos períodos, antecipando a repetição da posição do planeta numa observação futura específica. Recorria-se a um "ano base" e ao conhecimento dos períodos planetários (um ciclo no qual o movimento de um planeta se repete aproximadamente), promovendo os ajustamentos convenientes para cada planeta (i.e. correcções específicas) e regulares para um dia concreto ou, mais genericamente, uma correcção mensal (representando a deslocação do planeta ao longo de um mês). Estes textos podem ser considerados uma antecipação dos almanaques: 
 
Various planetary periods are referred to in many Late Babylonian astronomical texts. By collecting together these periods and analysing their effectiveness, it was found that, generally, the most effective of the planetary periods were those which were used in the production of a particular type of text known as a Goal-Year Text. The Goal-Year Texts contain excerpts of astronomical observational records, with the planetary records having been taken from particular observation years with these planetary periods in mind – such that each planet‘s motion will recur during the same, specific, future year. (...) An analysis of theoretically calculated dates of planetary events showed that, if the Goal-Year Texts were to be used as a source for making empirical predictions, particular corrections (specific to each planet) would need to be applied to the dates of the planetary records found in the Goal-Year Texts. These corrections take the form of regular corrections to the day of an event (a date correction), and more irregular corrections of ±1 month (a month shift). (Gray, J. M. K., A Study of Babylonian Goal-Year Planetary Astronomy, 2009).

As tabelas de efemérides serão comuns mais tarde, na Idade Média, tanto no contexto Latino como no Islâmico (Ár. taqwīm, i.e. tabela, no sentido lato, translit. em Latim como tacuinum ou attacium). Na antiga técnica Helenística com origem na Babilónia (v. Almagesto IX,3), conhecida na literatura especializada - como vimos - como "goal-years"), baseada no uso de ciclos específicos para pada planeta, os almanaques eram perpétuos. Os ciclos continham um número inteiro de anos durante os quais um planeta cumpria um número inteiro de revoluções sinódicas e zodiacais. Ou seja, um determinado número de anos (Julianos, no contexto Latino medieval) no qual o planeta completa um número inteiro de revoluções em longitude e em anomalia ("inequalidade"). Na tabela seguinte (dados do Almagesto), verificamos, pegando por exemplo no caso de Saturno, que o planeta em 59 anos (solares, i.e. os nossos anos terrestres, como hoje sabemos) completa 57 revoluções sinódicas (i.e. mesma posição em relação ao Sol, tendo como ponto de referência o observador terrestre) e percorre 2 vezes o Zodíaco (demora, como se sabe, cerca de 30 anos a percorrer todas as constelações dessa faixa).

Planetas ciclos


NB: Era desconhecido (e parece tê-lo sido na Antiguidade) qualquer ciclo "perpétuo" deste tipo adaptado aos movimentos da Lua. Somente no século XIV seria encontrada uma solução: "...the final solution which allowed the use of almanac cycles for the computation of lunar position was reached towards the middle of the fourteenth century: both Ibn ʿAzzūz al-Qusanṭīnī (c. 1340) and Jacob b. David Yomtov (= Bonjorn) of Perpignan (c. 1361), used a new lunar cycle of 31 Egyptian years, 9 days, 23 hours, 34 minutes and 11 seconds, equivalent to 383.5 synodic months (767 consecutive syzygies), which solved the problem and was later used in Zacut’s Almanach." (Samsó, 2020, p.883)

Também eram, no contexto mesopotâmico, obviamente observadas as datas do nascimento helíaco dos planetas (quando estes começam a estar visíveis antes do orto (nascimento) do Sol), bem como, por exemplo, os ciclos dos planetas no seu percurso zodiacal, cujos valores aproximados são, na ordem ptolomaica inversa: Saturno (30 anos), Júpiter (12 anos), Marte (2 anos), Sol (365 dias), Vénus (348 dias), Mercúrio (339 dias), Lua (29 dias).


D. R. Dicks minimiza a influência astronómica Babilónica (mas não a matemática, concordando com Neugebauer) pois considera os seus pressupostos e objectivos completamente alheados da abordagem Grega, nomeadamente na sua total negligência pela geometria esférica (com todas as consequências limitadoras), ausência de qualquer esquematização matemática, holística, explicativa dos fenómenos, ausência de corpus teórico documentado (somente obtemos resultados aritmeticamente calculados ou observados), predominância no registo dos fenómenos tendo como referência o horizonte, confinamento do interesse a um limitado tipo de fenómenos, etc.:

 
"The chief aim of the Babylonian astronomers was to discover periodic relationships for the various celestial phenomena in which they were interested, to enable these to be predicted as accurately as possible (i) for the purposes of omen astrology and (ii) for the improvement of the Babylonian calendar, which remained at all periods a strictly lunar one, each month beginning with the appearance of the lunar crescent. The phenomena in question are mainly horizon phenomena (except for eclipses and the ‘stations’ of the planets) (...) There is no trace in Babylonian astronomy (as at present known) of any desire to construct a comprehensive, mathematically based scheme which would account for all astronomical phenomena, or to investigate their nature and causes, or to take a synoptic view of the universe as a whole. (...) Thus the Babylonians never developed the concept of the celestial sphere or of terrestrial latitude and longitude, and hence many of the theoretical problems of establishing the correct relationships between the basic circles of the sphere (equator, ecliptic, horizon, and colures), which form a major part of Greek astronomy, never appear in Babylonian astronomy at all." (Early Greek Astronomy to Aristotle, Cornell University Press, 1970, pp.169-70). Acrescenta (p.176) que, enquanto na astronomia Babilónica se recorria às progressões aritméticas, a abordagem dos Gregos será a do movimento circular e, a partir de Eudoxo de Cnido (Eúdoxos ho Knídios), a exploração das propriedades matemáticas do círculo e da esfera na explicação dos movimenos celestes.

Esta crítica é pertinente mas não interfere com a aquisição de um acervo observacional valioso para os efemeredistas e para a agilização da capacidade de previsão dos fenómenos, mesmo sem as ulteriores potencialidades de rigor, e também cosmológicas, da astronomia grega.


Períodos históricos da Astronomia Babilónica
Era uma astronomia que, nos seus primórdios, se preocupava mais com os pontos nos quais os astros se elevavam e desciam do que com as culminações. Os historiadores dividem por comodidade o longo persurso da astronomia da Babilónia em quatro períodos (seguimos a exposição de Jean-Pierre Verdet (Une Histoire de l'Astronomie, Éditions du Seuil, 1990)).

Do período, denominado "paleo-babilónico" (a partir de 1800 a.C.), alguns textos chegaram até nós. Em primeiro lugar, a tabuínha cuneiforme mais antiga com conteúdo distintamente astronómico: oriunda de Nippur, sugere que o céu foi dividido em três zonas e que a estas áreas estavam associadas não apenas a estrelas e constelações mas também, o que é interessante, a séries de números em progressão aritmética, primeiro traço conhecido de uma das ferramentas matemáticas que permitiu que os babilónios descrevessem fenômenos periódicos. O segundo período estende-se de 1530 a 612, data da destruição da grande biblioteca de Nínive quando a cidade caiu nas mãos dos Medos. Abrange a dinastia Cassita e depois a dominação Assíria. É em direcção ao final deste período que aparecem os primeiros registros sistemáticos de observações feitas pelos astrónomos ao serviço das cortes Assírias: o mais famoso, Enuma Anu Enlil ("Quando Anu e Enlil...", de acordo com as primeiras palavras da sua solene introdução) vem da biblioteca de Assurbanípal. Do terceiro período, denominado Neobabilónico, que vai de 611 a 540, possuímos um almanaque para o 37º ano do reinado de Nabucodonosor II (568 a.C.). Este almanaque já enfatiza os percursos da Lua e dos planetas: as conjunções com as estrelas (fixas) são cuidadosamente anotadas, bem como como as datas da primeira e última visibilidade. As zonas celestes, que anteriormente eram divididas em quatro partes nas quais o Sol viajava (três meses em cada) estão agora divididas em doze sectores convencionais de 30°. O quarto período é o da dominação Persa e continua na época Helenística. Os progressos são significativos e a tendência para a descrição matemática consolida-se. Mas temos de esperar pelos últimos três séculos antes da nossa era, nos reinados dos Selêucidas e dos Arsácidas, para que surjam os primeiros textos onde o estudo dos movimentos celestes se baseia em teorias matemáticas algebricamente elaboradas. Assim, em resumo, ao longo de milénio e meio os astrónomos da Mesopotâmia acumularam observações e desenvolveram teorias matemáticas que permitiram uma boa descrição empírica dos movimentos da Lua, do Sol e dos planetas, bem como da variação do comprimento dos dias e das noites.

Por fim, esta prestigiosa cidade, tantas vezes (com toda a justiça) associada à Astronomia, foi devorada pelos séculos:
“The temple of Jupiter Belus ["Esagila", o Templo de Bel] in Babylon is still standing — Belus was the discoverer of the science of astronomy; but in all other respects the place has gone back to a desert.” (Historia Naturalis, V1, 30, 121; trans. Rackham (1942, p.431)). Na época de Trajano, em 116 AD, a Babilónia já estava abandonada.


A Origem do Zodíaco

"The gyre of the heavens, perfectly round at every point, is bound by the line of the zodiacal circle, like the discrete settings of twelve gems adjacent to each other on a sort of girdle wrapped around a very large sphere." (Wallis, Faith (trans.), Bede: The Reckoning of Time, Liverpool University Press, 1999, p.55). Segundo Wallis, esta imagem do Venerável Beda pode basear-se nas doze jóias colocadas nos alicerces ("fundamentos dos muros") da Nova Jerusalém (Apoc. 21.19-20), relacionadas com os doze portões da cidade, voltados, três a três, para as quatro direcções cardeais (ibid. 21.13).


[Seguimos a partir daqui uma recente exposição de Gennady E. Kurtik (On the origin of the 12 zodiac constellation system in ancient Mesopotamia, Journal for the History of Astronomy. 2021, Vol. 52(1) 53–66)].

A origem do Zodíaco foi precedida pela criação de um sistema de constelações que ocupava praticamente todo o céu observável. Foi ainda precedida pela constatação da existência, para além do Sol e da Lua, de uma categoria especial de "estrelas" (que conhecemos como planetas). No período Babilónico Antigo (séculos XIX-XVI a.C.), aparentemente já existia um sistema de constelações praticamente completo. [Convém esclarecer que os povos da Mesopotâmia observavam e registavam os fenómenos mas não conceptualizavam uma "esfera celeste" com os seus grandes círculos; a ênfase "tridimensional" e geométrica será apanágio da abordagem Grega]. Há muitos textos, datando até ao 2º milénio a.C. que mencionam nomes de constelações. Todavia, nenhum apresenta qualquer vestígio de que o conceito de "zodíaco" fosse conhecido neste período. A situação muda no período Neo-Assírio (séculos X-VII a.C.). A definição de uma faixa de constelações é encontrada pela primeira vez de modo explícito no sistemático acervo MUL.APIN de listagens astronómicas. Um deste textos (I iv 31–39) descreve 18 constelações que a Lua atravessa no seu percurso mensal. Quase todas são já conhecidas de textos pretéritos. São descritas sequencialmente, i.e. de acordo com o incremento da sua longitude (regra nem sempre escrupulosamente observada). Analisando outros textos, conclui-se que os astrónomos da Mesopotâmia reconheceram pelo menos 22 constelações na faixa zodiacal no 1º milénio a.C. Depois de estabelecido o "caminho da Lua" (MUL.APIN II i 1‒8), seguem-se, separadamente, as definições dos "caminhos" do Sol e dos planetas. As fontes explicitam que esses "caminhos" relativamente ao fundo de estrelas são coincidentes, seguem o "caminho da Lua". Não restam dúvidas de que no período referido já se sabia que os todos esses percursos estavam confinados a uma estreita faixa das constelações. Contudo, não se conhecem referências explícitas em textos observacionais. No 1º milénio a.C. foi igualmente gizado um sistema de cerca de 40 estrelas (não uniformemente distribuídas) ao longo da faixa zodiacal. São hoje identificadas como "Normal Stars". Nos textos cuneiformes são designadas MUL.ŠID.MEŠ, lit. “As estrelas (para) contar”. As listas encontradas incluem um total de 17 nomes de constelações (quase todas referidas na lista dos "deuses no caminho da Lua", dos MUL.APIN), necessárias para determinar as posições relativas e identificar essas estrelas no céu. Os Babilónios conseguiam determinar longitudes zodiacais dos planetas (com uma aproximação de 1-2 graus) pela observação das distâncias angulares relativamente às referidas estrelas de referência cujas posições eram conhecidas (de Jong, T., A study of Babylonian planetary theory I. The outer planets. Arch. Hist. Exact Sci. 73, 1–37 (2019). Um sistema de 12 constelações ao longo da Eclíptica foi o que os Gregos encontraram quando adoptaram o Zodíaco da Antiga Mesopotâmia (entre finais do V e início do IV séc. a.C.). Como é que um sistema de cerca de 18 constelações se transformou no sistema de 12? A resposta, segundo Kurtik, está provavelmente disponível no texto classificado como 'WA77824', do séc. V a.C., no qual as 15 constelações situadas na faixa que será chamada "zodiacal" são divididas em 12 partes, correspondendo aos 12 meses lunares (esquemáticos, de 30 dias, não envolvendo intercalações) do calendário mesopotâmico. Foram descartadas as constelações que tinham apenas uma pequena porção da sua 'figura' na faixa relevante para o percurso da Lua e restantes "estrelas especiais" (planetas). A partir daqui há duas teorias: segundo a primeira, defendida por Kurtik, o zodíaco matemático (de 360º, dividido em sectores de 30º), associado aos meses esquemáticos, foi definido e somente depois se associaram as 12 constelações; a segunda opinião presente na literatura especializada inverte esta sequência: foi introduzido um esquema de 12 constelações e somente depois a 'equalização' matemática foi aplicada (cf. L. Brack-Bernsen, The Path of the Moon, the Rising Points of the Sun, and the Oblique Great Circle on the Celestial Sphere, Centaurus, 45 (2003), p.17, n.1). Como os nomes dos signos e das constelações, por regra, coincidem, é difícil discernir nas fontes o que é que está especificamente a ser mencionado. Em todo o caso, no IV século a.C. o perene sistema 12 constelações zodiacais estava aparentemente bastante disseminado na Mesopotâmia.

Os astrónomos babilónicos introduziram, como vimos, a conhecida divisão zodiacal em doze partes ou sectores iguais, pois sem esta seria extremamente difícil assinalar comodamente e com um mínimo de consistência as posições da Lua e dos planetas. Todavia, como Elisabeth (Elly) Dekker refere (Illustrating the Phaenomena: Celestial Cartography in Antiquity and the Middle Ages, Oxford University Press, 2013, p.14), quanto à data da introdução desta divisão babilónica na Grécia, os historiadores divergem nas opiniões. Todas as referências nos textos dos astrónomos mais antigos se baseiam nas constelações zodiacais, não nos signos. Como Bowen e Goldstein salientaram, tudo indica que o próprio Eudoxus ainda não procedesse à divisão dos signos em sectores iguais: "The ultimate source of our knowledge of Eudoxus’ Phaenomena and Enoptron , does not support the claim that Eudoxus divided the ecliptic into 12ths and each of these into 30 degrees of arc but even suggests that he did not." (Bowen and Goldstein, ‘Hipparchus’ Treatment of early Greek Astronomy: The case of Eudoxus and the Length of Daytime’, Proceedings of the American Philosophical Society, 135, 1991, p. 245). De facto, o Zodíaco descrito por Aratus é delineado pelas doze constelações (incluíndo as "pinças" do Escorpião, futura Libra). Trata-se das constelações, não são os signos! A primeira referência aos signos resultantes da divisão em doze sectores iguais parece recuar a Autólico, (Αὐτόλυκος, Autolycus) de Pitane, séc. IV a.C.,  todavia não se referindo a estes arcos como unidades de 30º. Um dos problemas recorrentes é a confusão entre constelações signos, intercambiavelmente designados pela mesma palavra Grega.

O nome do primeiro signo será, transliterado, MUL.LÚ.ḪUN.GÁ: "o trabalhador agrícola", "jornaleiro", "jeireiro". A substituição deste por Aries (Κριός) poderá ter ocorrido na tradição babilónica tardia, através da associação a Dumuzi (i.e. Tammuz), relacionado com a pastorícia (Rogers, John H. (1998). Origins of the Ancient Constellations: I. The Mesopotamian Traditions. Journal of the BAA, 108 (1). No ciclo Tammuz-Ishtar, a morte de Tammuz, a descida de Ishtar ao infra-mundo para o resgatar e o renascimento sazonal de Tammuz relacionado com o calendário pastoril e agrícola. No clássico Star Names and their Meanings (1899) R. Hickley Allen cita uma referência a "Athamas" por Columella (autor do séc. I), que Allen relaciona com o Tammuz ("The Only Sun of Life") do mito mesopotâmico (p.76). Todavia, Átamas é o nome de um rei, pai de Phrixus e Helle no mito do Velo de Ouro. Rupert Gleadow, The Origin of the Zodiac (Dover, 2001 (Jonathan Cape, London, 1968)), observa (em relação ao Carneiro) que não se tratando de constelação mesopotâmica, considerou-se que também não seria egípcia por não se encontrar uma correspondência no sistema de decanos. Contudo, este autor inclinou-se para a hipótese de uma origem egípcia, não relacionada com a sua futura posição zodiacal mas sim com a sua culminação aquando do nascimento da estrela Sirius. A partir do mapa do céu e de especulações relacionadas com a Precessão, refere uma 'Barca' ("Boat"), "um particularmente evidente emblema sagrado", e o 'Carneiro', ambos bem elevados no céu nesse importante momento do calendário. Conclui afirmando que se aceitarmos a [sua] associação da 'Barca' com a constelação Pegasus (v. p.200), então o 'Carneiro' era definitivamente uma constelação egípcia (pp.212-13). Autores mais cautelosos asseveram que, em rigor, desconhecemos a origem de Aries (e.g., Bartel van der Waerden, Sonderabdruck aus "Archiv fur Orientforschung, Band XVI, Zweiter Teil (reimpr. Archive of Oriental Studies, vol. XVI, Part II), 1952, p.226).


Gleadow plate19
As supostas constelações do Carneiro e da Barca no Ramesseum (Karl R. Lepsius, id. III, 170), segundo a interpretação de Rupert Gleadow (
Op. cit., plate 19)


O Calendário Egípcio; os Decanos

No Egipto utilizava-se um sistema numérico decimal. O ano civil era convencional, não astronómico. Tinha 360 dias, divididos em 12 meses de 30 dias cada. Considerava-se ainda 5 dias 'extraordinários', epagomenais (na designação grega), aproximando este calendário do solar 'verdadeiro'. Simples, independente dos complexos movimentos lunares, de intercalações e circunstâncias "ad hoc" locais de aplicação das mesmas. "The only intelligent calendar which ever existed in human history", segundo Neugebauer (The Exact Sciences..., p.81). Observava-se o nascimento helíaco de Sirius (personificado pela deusa Sopdet, gr. Sothis) para determinar o início do ano, concomitante com o da estação da cheia fertilizadora do rio Nilo.

Em tempos recuados verificou-se que quando o Nilo começava a incrementar o seu caudal em Mênfis (então a capital), Sirius surgia pela primeira vez de manhã no horizonte leste (nascimento helíaco). Aconteceu assim, na terceira década do mês que equivale a Junho, até cerca de 2000 a.C. Devido à precessão, em 1000 a.C. o nascimento da estrela já se verificava somente em meados de Julho, perdendo o seu carácter anunciatório (v. Pannekoek, A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961, pp.83-4). Mas o simbolismo permaneceu.

"bay" e "merkhet"
Em cima, um primitivo instrumento de visada e levantamento topográfico chamado bay pelos egípcios. Possuía uma ranhura e podia ser utilizado em conjunto com o instrumento menor em forma de "L", o merkhet, que teria um fio de prumo que marcaria a vertical (v. esquema; Magdolen, D., An Astronomical Inscription on the Berlin Merkhet, "Asian and African Studies", 10, 2001, 1, 80-87), útil na materialização do meridiano e na determinação das horas a partir das estrelas culminantes. O merkhet poderia também ser usado como gnómon para observar as sombras durante o dia. Este foi feito em osso, com um braço horizontal com apenas 11.5cm de comprimento. Ambos os instrumentos datam de c.600 a.C. (Ägyptisches Museum und Papyrussammlung, Berlim; No. 14084 e 14085). Verificou-se, todavia, alguma ambiguidade na definição deste instrumento na literatura especializada, v. excerto relevante de Zbynek Zaba (L'Orientation Astronomique dans L'Ancienne Égypte, et la Précession de l'Axe du Monde, Ceskoslovenská Akademie Vêd - Archiv Orientální - Suplementa; II (1953); em Francês)


Como não utilizaram o equivalente ao nosso ano "bissexto" (até à reforma do calendário promovida na época romana), o desfasamento de 1 dia em cada 4 anos fazia com que demorassem 1460 anos (tropicais, equivalendo a 1461 anos egípcios) para a coincidência do nascimento helíaco de Sothis com o início do ano solar. Era o "Período Sotíaco" ou Canicular, que pode ter tido relevância cronológica (sendo mais provável que nem sequer fosse considerado e que toda a sua importância tenha sido inventada muito mais tarde, ex post facto). Em paralelo, manteve-se um calendário lunar (com meses de 29 e 30 dias), mais antigo, onde se intercalava, em alguns anos, um mês (Thoth), para compensar a diferença para o calendário solar. Dividiram o círculo anual em 36 "decanos" (de 10º cada). Também encontramos a influência egípcia na divisão do Dia em 24 horas (primeiro sazonais e, na astronomia helenística, equinociais, i.e. de igual duração, utilizando o sistema numérico sexagesimal proveniente da Babilónia). Muito mais tarde, os "anos Persas" da Era de Yazdigerd (
começo em 632 AD, celebrando Yazgederg III, o último soberano independente antes da anexação pelo Islão), também baseada nos anos egípcios, será uma referência em tratados astronómicos Islâmicos e Bizantinos. No sistema de decanos egípcio, como referido, determinados asterismos ("marcadores") sucediam-se a cada 10 dias e cada dia nasciam 4 minutos mais cedo. Verificava-se qual o asterismo que nascia mais próximo da aurora. O sistema observa-se nos chamados "calendários diagonais" representados em túmulos, pois no seu desenho cada decano subia uma linha, de uma coluna para a seguinte. Balizavam as horas e revestiam-se, tradicionalmente, de atribuicões simbólicas, auspiciosas ou adversas. Terão influência na doutrina astrológica, talvez até no próprio conceito de 'hōroskopos' (em particular o conceito do "ascendente") e em geral, nos quatro chamados 'ângulos' da chamada figura.

As ilustrações astronómicas dos sarcófagos (patentes a partir do Império Médio) são representações do céu, com os nomes das constelações dos decanos (ou 'decanatos') alinhados, como referido, em intervalos de 10 dias ao longo do ano, formando assim 36 colunas de 12 linhas, uma para cada uma das 12 horas da noite. A partir de um coluna para a seguinte, o nome de cada decano sobe uma linha. O que dá uma estrutura diagonal que lhe valeu o nome (inadequado) de calendário diagonal, embora seja um relógio estelar. Essa representação diagonal permite saber a hora da noite: basta procurar o decano que sobe na coluna da década (período de dez dias) atual.

"calendário diagonal" - Asyut
Detalhe de um calendário estelar 'diagonal' na tampa de um caixão da XIª Dinastia (2134-2061 a.C.), em Asyut (commons.wikimedia.org)


Anne Sophie von Bomhard, na monografia The Naos of the Decades:  From the Observation of the Sky to Mythology and Astrology (Centre for Maritime Archaeology, Oxford, 2008), apresenta, a partir da articulação de evidèncias resultantes de investigações subaquáticas e descobertas recentes em Canopus, argumentos para a utilização um sistema de "decanos" com significações apensas que parece indiciar a presença de uma tradição mais antiga (pré-helenística) de astrologia especificamente egípcia.

A interpretação simbólica relacionada, de dias auspiciosos e nefastos, decerto antiga, vai determinar uma forma de prognosticação que mais tarde vamos encontrar nos calendários medievais: é a listagem dos nefastos ou dies Aegyptiaci (assim designados pelo menos desde o século IV). Atentar na etimologia de "aziagos", lat. aegyptiacus, gr. aiguptiakós (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]). Os dies atri romanos estavam presentes pelo menos desde a época de Augusto. Supunha-se que os "dias egípcios" (habitualmente 24, dois por cada mês), teriam sido sinalizados por veneráveis astrólogos egípcios ou então representavam os dias em que calamidades se haviam abatido sobre o país atravessado pelo Nilo, referência provável às célebres pragas bíblicas), Chamaram-lhe dies mali, maledicti, ominosi, infortunati ou tenebrosi. Evitavam-se empreendimentos e procedimentos médicos, como as purgas. Com o tempo, cada um destes dias foi associado a uma hora dita mala, timenda, aegra ou suspecta (vide Skemer, D., 'Armis Gunfe': Remember Egyptian Days, Traditio, Vol. 65, Fordham University, 2010, pp. 75-106)

Em relação às contelações indígenas da "abóbada" Egípcia, J. Lull e J.A. Belmonte (Egyptian Constellations, in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015, vol.3, Part IX, ch. 130). publicaram esta tabela (.PDF, 544KB) que resume os casos em que os autores consideram a identificação "altamente segura".


Abordagens Gregas

No resumo simplificado de Colin Ronan: "The Babylonians first made observations, next devised mathematics to describe what happened, and only then started to think about how this could be theoretically explained. (...) The Greek approach was almost completely the opposite—having recognized that planets move, they then constructed a theory; only after this did they observe the motions in detail and adjust thetheory to correspond. (Discovering the Universe, A History of Astronomy, Basic Books, Inc., Publishers, 1971, p.22)

Podemos ter uma ideia da estrutura primitiva grega do mundo seguindo Homero na sua descrição do 'Escudo de Aquiles', no oitavo livro da Ilíada (483-89; cf. viii, 13-16; Od. i, 52-4. A cultura grega acrescentará (tradicionalmente a partir de Tales de Mileto, IV séc. a.C.), uma concepção naturalista da explicação dos fenómenos e também o conceito de Kósmos organizado e interdependente, que enformará doutrinas sequentes. Preocupações filosóficas e cosmológicas e a dinâmica e natureza da matéria primordial ocuparam os chamados "Físicos Jónicos", aos quais Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) chamou physiologoi, i.e. "os que discursam sobre a natureza", que apenas conhecemos através das referências indirectas que outros fizeram das suas elucubrações.

N.B.: Utilizou-se, principalmente desde finais do séc. XIX originada na erudição Alemã, a abordagem "Quellenforschung" ("caçar a fonte" ou "detectar a origem"), pela qual se procurava reconstruir as ideias de trabalhos "perdidos" a partir de supostos vestígios residuais em obras mais recentes. Hoje tende a ser considerada "desconstrutiva" da unicidade do texto em análise e, simultaneamente, excessivamente confiante relativamente à pertinência e fiabilidade do mesmo (v. Glenn W. Most, Quellenforschung, in The Making of the Humanities, ed. Rens Bod, Jaap Maat, and Thijs Weststeijn, vol. 3, "The Modern Humanities" (Amsterdam University Press, 2014), 207–19). Quando exequível, o método genealógico da construção textual (e.g., dependência e filiação entre manuscritos) é a resposta moderna ao eterno problema textual fundamental. Todavia, como G. W. Most concede, estamos "condenados" a utilizar os resultados da Quellenforschung. O problema com os conteúdos "reconstruídos" através desta técnica é o de que apesar de muitos resultados poderem estar correctos e serem tempestivos, nunca estaremos numa posição que nos permita exactamente discernir quais, i.e. entre o que é efectivamente "sólido" e o que é "pantanoso". Mas muitas vezes é tudo o que temos à nossa disposição.

Os primeiros doxógrafos sobreestimavam o conhecimento dos primeiros "físicos". Segundo Verdet (Une Histoire de l'Astronomie): "Il faut d’abord parler des sources : toutes indirectes et toutes plus ou moins tardives, elles semblent nombreuses et viennent d’horizons différents". Teofrasto, discípulo e sucessor de Aristóteles, é considerado o primeiro a recolher sistematicamente as opiniões (doxai, placita) dos antigos filósofos. A pesquisa moderna é peremptória: jamais os escritos originais dos physiologoi serviram de fonte aos sucessivos autores; foi à intermediação de Teofrasto que recorreram.

Há, portanto, imensas complexidades e muitas incertezas quanto às doutrinas mais antigas, conhecidas através de comentários tardios e indirectos, muitas vezes conhecidas através de inúmeros intermediários. Há toda uma uma amálgama fragmentária de epitomes, excertos, compilações de manuais doxográficos e biográficos. Hermann Diels (1848–1922) assumiu a edição bilingue deste imenso corpus. São a base da monumental colectânea Die Fragmente der Vorsokratiker ("Os fragmentos dos pré-socráticos"). As fontes são muito diversas e estendem-se por um milénio e meio, do tempo de Heródoto a autores Bizantinos do séc. XII A.D.). [Diels expandiu o trabalho em novas edições; após a sua morte, outros fragmentos foram encontrados] As ramificações das fontes foram pacientemente rastreadas (na medida do possível) noutro importante trabalho do mesmo erudito: Doxographi Graeci (Berlim, 1879). Todavia, extrema cautela deve ser exercida na interpretação destas fontes tardias e indirectas e nas opiniões que se atribuem aos chamados (algo equivocamente) "Pré-Socráticos". As únicas instâncias que inspiram alguma confiança acontecem quando Aristóteles e os seus discípulos imediatos conseguem relatar a partir de fragmentos do próprio autor citado, o que é extremamente raro. E mesmo estes trabalhos foram ulteriormente resumidos, epitomizados, entrecortados sucessivamente. Nada sabemos de concreto acerca do que pensavam ou sabiam Anaximandro ou Heráclito de Éfeso (deste último, que talvez acreditasse nas ideias de "continuidade" e de "periodicidade"). O labirinto de atribuições aos quase insondáveis pré-socráticos é extensa. Plínio (Nat. Hist. ii. 8. 31) diz-nos que, na 58ª Olimpíada (no séc. VI a.C), Anaximandro compreendeu a obliquidade [da Eclíptica] e, depois dele, Cleostratus compreendeu os signos que enformam o Zodíaco. Chama-lhes "signiferi inventores". Por seu lado, Eudemus (Εὔδημος), historiador do séc. IV a.C., atribui a Oenopides (c. 450 a.C.) a "invenção" (i.e. descoberta) da Eclíptica enquanto caminho oblíquo do Sol (Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, 6ª ed., 41, 7) mas não refere qualquer valor para a obliquidade. Todavia, Eratóstenes é, segundo as evidências, o primeiro a conseguir uma medição precisa. O problema das datações recuadas é similar ao da astronomia Babilónica: não existia a concepção da "Esfera Celeste" e dos seus círculos, logo é equívoco atribuir-lhe conhecimentos que não poderia expender.

Todavia, podemos inferir que uma das principais preocupações dos chamados "Pré-Socráticos" foi a busca por uma substância fundamental, um denominador comum que pode ser compreendido como um elemento básico e primordial, regulador das manifestações do mundo físico. Pressupõe o abandono da abordagem mitológica e teísta do problema da Criação, tal como exposta por Hesíodo. (Dicks, D. R., Early Greek Astronomy to Aristotle, Cornell University Press 1970, p.40 et seq.). Apesar de todos os referidos constrangimentos no acesso às fontes, podemos afirmar que os conceitos de periodicidade, esfericidade e movimento circular do Universo, como um todo, estariam já presentes nas opiniões de Heráclides, Parménides, Empédocles ou Anaxágoras (Op. cit., p.62).


Ideias Pitagóricas e Platónicas

Os Pitagóricos deram ênfase a uma leitura qualitativa dos números e à geometria. Platão, influenciado por esse misticismo numérico, descreverá nos seus diálogos toda uma influente cosmologia e ciclologia (e.g., o 'Grande Ano' ou 'Ano Perfeito').

Os Pitagóricos parecem ter subordinado os factos e os fenómenos naturais às suas predilecções filosóficas e místicas. Um exemplo da sua mundividência é a concepção de um "fogo central", relegando surpreendentemente a Terra para um estatuto no qual simplesmente revolve em torno desse fogo, tal como as restantes estrelas errantes e fixas. Talvez as descobertas tradicionalmente atribuidas ao próprio mestre (os principais intervalos musicais: oitava, quarta, quinta, expressos através de rácios numéricos de 2:1, 4:3, 3:2, bem como o facto de os primeiros quatro somarem 10, o número místico ou "tetractys"; o célebre Teorema de Pitágoras, etc.) tenham potenciado a crença nos 'números' enquanto entidade fundamental do universo. (Dicks, p.65). As suas ideias são, portanto, fruto dessas elucubrações, baseadas no primado do número, na simetria e na harmonia. A influência em Platão é evidente mas Aristóteles será céptico e, por exemplo, considera "absurda" essa "harmonia" sonora universal:
 
"Very little astronomical sense is apparent in another feature of the Pythagorean scheme, the famous ‘harmony of the spheres’. According to Aristotle (De Caelo ii, 9, 290b 12f. = DK* 58 B35 ), an absurd and extravagant opinion (his own words) was held by the Pythagoreans, to the effect that, with so many huge celestial bodies whirling at such great speeds round the centre, it was impossible that no noise should be generated by their motions, but each body must produce a different tone according to its distance from the centre, so that the whole system created a ‘harmony’. An ingenious explanation was given of the awkward fact that no one ever hears this harmony, namely that everyone, from the moment of birth, has this sound as a constant background and therefore does not consciously hear it, since there is no absolute silence to contrast with it. This poetic fancy (presumably suggested by the discovery of the ratios governing the chief musical intervals) was taken up by Plato in the myth of Er in Republic X, and further elaborated by later writers who invented all sorts of musical schemes supposed to represent the proportionate distances of the heavenly bodies." (Dicks, D. R., Early Greek Astronomy to Aristotle, Op. cit., p.71)
 
* DK: H. Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, 6th ed., revis. W. Kranz, 1951-52.


A concepção da "música das esferas" incorporava o princípio metafísico de que as relações matemáticas exprimiam qualidades ou "tons", sons e números relacionados segundo um padrão de proporções. A existência de uma harmonia divina e matemática entre o macrocosmo e o microcosmo. A música era proporção. A Anima Mundi (psyché tou pantós) é outro conceito platónico fundamental: força regente do Universo, que o envolve, pela qual o pensamento divino se pode manisfestar em leis que afectam a matéria, ou ainda, uma força imaterial, inseparável da matéria, mas que a provê de forma e movimento. Foi exarada pelo filósofo nas obras A República, Timeu e no livro X das Leis. Considerada como o princípio do Universo e fonte de todas as almas individuais. Aquando da sua criação, a Anima começou a girar e este foi o início da "vida inextinguível e racional" (Timeu, 36-e). O Cosmos vivo e animado de Platão foi criado segundo princípios matemáticos e rácios pitagóricos (inferidos das harmonias musicais). Os arquétipos transcendentes e ideais governavam o mundo da Natureza. O Timeu refere o movimento das estrelas e planetas como "a dança dos deuses". Quanto à estrutura cosmológica do Universo, o filósofo utiliza a esfera armilar como metáfora para a Criação do Universo (34-b–36-e). Eis alguns excertos relevantes do influente tratado (trad. Rodolfo Lopes; Coimbra, 2011):
 
"...Então, [o Demiurgo] cortou toda esta composição em duas partes no sentido do comprimento e, sobrepondo-as, ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outro (semelhante a um X) dobrou-as em círculo, juntando-as uma à outra pelo ponto oposto àquele pelo qual tinham sido ligadas, e impôs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local; destes dois círculos, fez um exterior e outro interior. Então, determinou que o movimento exterior corresponderia à natureza do Mesmo, e o interior à do Outro. Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente, e deu preeminência à órbita do Mesmo e do Semelhante, pois a ela só deixou ficar indivisa. Por outro lado, a órbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete círculos desiguais, fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo, de tal forma que havia três tipos de intervalos. Definiu que os círculos andariam em sentido contrário uns aos outros, três dos quais com velocidade semelhante, e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros três, mas movendo-se uniformemente," (36-b-c-d)

"...a órbita do Outro, que, por ser oblíqua, atravessa a órbita do Mesmo e é dominada por ele. Alguns astros deslocam-se em círculos maiores, e outros em círculos mais pequenos; os que estão nos círculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estão nos círculos maiores deslocam-se mais lentamente. E por causa da órbita do Mesmo, parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcançados pelos que se deslocavam mais lentamente, quando eram aqueles que alcançavam este." (39-a)

"Em todo o caso, é pelo menos possível perceber que o número perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito órbitas, medidas pelo círculo do Mesmo em progressão uniforme, se completam e voltam ao início." (39-e)
 
Ou seja, o Demiurgo de Platão construiu duas armilas ou anéis, com um centro comum (a Terra), numa esfera em que a armila, anel ou Círculo da Igualdade (ou "do Mesmo") é associado ao Equador Celeste (sendo responsável pelo que designamos movimento primário ou diurno) e o Círculo do Diverso ("da Diferença" ou "do Outro") equivalendo à Eclíptica, que foi dividido de modo a alojar as órbitas dos planetas. A diferença entre os dois planos corresponde à obliquidade da Eclíptica. Eis o que estes círculos, entre outras coisas, representam. O Círculo da Igualdade é considerado "exterior" pois é esse que controla o outro, bem como representa a esfera exterior (onde foram fixas as estrelas). Em 39-e temos a alusão ao conceito do Ano Perfeito, quando os ciclos das órbitas se sincronizam e completam, i.e. quando os planetas voltam a um mesmo ponto do céu ao mesmo tempo. Aristóteles também ensinará que os movimentos eternos e regulares dos astros são impelidos pela 'vontade' e 'inteligência'. Antes havia formulado (De generatione et corruptione) a doutrina de que os movimentos nos céus eram a primeira causa de mudança na Natureza.

Um conhecido comentário na República (530b-c) evidencia a postura de Platão e a sua suposta escassa promoção do conhecimento astronómico e das ciências experimentais em geral. Na interpretação mais frequente, o orador Sócrates pretende que se privilegie a base teorética apriorística e que se investigue o aspecto matemático e relações subjacentes, em detrimento do acumular empírico de informação baseada nos fenómenos. Reflecte a influência pitagórica e a dicotomia platónica entre a verdade das ideias versus as aparências. O contexto em que surge é o da discussão de um "currículo" para uma educação "ideal". A mesma tendência se verifica em toda a sua metafísica: o primado do intelecto e a profunda desconfiança relativamente aos que percebemos através dos sentidos.

Quatro Elementos - Bartholomaeus Anglicus
Representação dos quatro Elementos no enciclopédico De Proprietatibus Rerum, Bartholomaeus Anglicus, 1491.
Nas Leis (x, 889b), Platão explica com brevidade como alguns autores (tendo seguramente em mente Empédocles de Agrigento) acreditavam que todo o céu e tudo debaixo deste eram produzidos pela combinação de quatro elementos, operando de modo natural e contingente e não segundo pressupostos ou um plano divino (ressalva que contrariava a mundividência platónica onde os corpos celestes eram investidos de alma e considerados divinos). No platonismo, os quatro elementos de Empédocles são associados aos cinco poliedros regulares. O quinto, o dodecaedro, simboliza o Cosmos como um todo.


O Universo de Aristóteles

A sistematização do observável conduziu ao modelo mais óbvio: o Geocêntrico, Este sobreviveu incontestado até muito tarde, tanto na Europa como em terras Islâmicas, por uma razão simples: apesar de algumas incongruências (compensadas na prática por estratagemas geométricos e de cálculo que abordaremos adiante), estava de acordo com os factos observados e com os dados disponíveis na época. Por isso durou tanto.

A abordagem prática grega, informada pela geometria e pela Teoria dos Elementos (aparentemente remontando ao siciliano Empedócles, séc. V a.C., que chamava "raízes" a cada um destes imutáveis), tornar-se-á resiliente a partir da monumental estruturação de Aristóteles. Como Dicks resume (Op. cit., p. 199), para Aristóteles o Universo é finito (De Caelo i, 5, 6 e 7), pleno, i.e. não há vazio (Phys. iv, 214a16), é único (Caelo i, 8 e 9), não foi gerado nem tem "epílogo" ou término (De Caelo i, 10, 11 e 12). Deste modo contradiz a ideia platónica da criação demiúrgica, as concepções de vazio e multiplicidade de Demócrito ou Leucipo, bem como a versão "cíclica" (criação e destruição) de Heráclito de Éfeso. Segundo Aristóteles, o aether (etim. "em perpétuo movimento"), a famosa quinta essentia da filosofia medieval, ou "o primeiro corpo" (como o estagirita mais frequentemente lhe chama), é o constituinte básico das regiões celestes.


A Esfera Celeste

O conceito de Esfera Celeste e (provavelmente) o da esfericidade da própria Terra estabeleceu-se, entre os Gregos, a partir do século V a.C. [N.B: a segunda é uma questão mais delicada. Foi atribuida a autoridades como Parménides mas trata-se de um equívoco pois é referência à esfera tão somente enquanto sólido do geómetra (Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Cambridge University Press, vol.ii, 49). A especulação que envolve os pitagóricos baseia-se numa inferência a partir do que se conhece das suas ideias. O próprio Platão é ambíguo (de facto, a forma da Terra não é mencionada, nem no Timeu nem na República). O primeiro autor que refere a esfericidade do planeta, sem qualquer ambiguidade, é Aristóteles no De Caelo. O resto são meras suposições.]

O desenvolvimento da astronomia teórica pode ser testemunhado (sempre indirectamente, acreditando na fiabilidade de compiladores e comentadores), pela criação de sucessivos modelos do Universo (alguns bastante peculiares, como o pirocêntrico do pitagórico Philolaus (Filolau), que incluia um fogo central (um "Fogo de Héstia") e uma anti-Terra, 'Antichthon', interposta, que o eclipsava (e por isso não o podíamos ver), ou o heliocêntrico, genericamente proposto por Aristarco de Samos (Αρίσταρχος ο Σάμιο), que lançou a sugestão que conhecemos através de uma referência no Αρχιμήδης Ψαµµίτης, Psammites ou 'Arenário', de Arquimedes (Lat. Archimedis Syracusani Arenarius & Dimensio Circuli) não disponibilizando um modelo funcional (vide prefácio de W. H. Stahl e pp. 136 et seq. em A History of Astronomy from Thales to Kepler, de J. L. E. Dreyer, 1905; reimpr. Dover Publications, 1953). De resto, como Dreyer salienta, nenhum sistema filosófico anterior à época de Aristarco supôs qualquer possibilidade de uma influência poderosa emanando do centro, com excepção do suposto sistema de Philolaus. (...) De acordo com Aristóteles, numa esfera ou num círculo todas as influências emanavam da circunferência exterior (periférica), prosseguindo na direcção do centro (p. 146; [trad. nossa]). As ideias de Aristarco não são mencionadas por Copernicus porque só foram divulgadas na Europa a partir de 1544.


Aristarco - da Terra à Lua

A ousadia do pensamento de Aristarchus surpreende. Procurou determinar a diferença de tamanho entre o Sol e a Lua pela trigonometria, a partir da determinação do ângulo entre ambos quando a Lua está na quadratura (i.e. num dos "quartos") e também, noutra experiência, determinar a diferença entre os raios de ambos os luminares durante um eclipse lunar. Desta segunda experiència, concluiu que o raio do Sol era 19 vezes maior do que o da Lua. O resultado estava obviamente errado mas a abordagem matemática fazia sentido.

No único tratado que dele conhecemos (translit. Megethôn kaì apostēmátōn [hēlíou kaì selénēs], i.e. "Dos tamanhos e distâncias (do Sol e da Lua)"), Aristarco explica como calcular a relação das distâncias ao Sol e à Lua: quando a Lua está em quadratura (nos chamados "quartos"), o ângulo "L" Terra-Lua-Sol mede 90º; se medirmos a amplitude do ângulo em "T" (Lua-Terra-Sol), percebemos a forma do triângulo que une os três corpos, logo o razão entre os seus lados. Aristarco considera um ângulo de 87º, determinando uma distância ao Sol de 18 a 20 vezes a distância à Lua (na verdade o que falta para 90º é apenas 1/18 dos 3º de Aristarco, o ângulo é de 89º 50' logo a distância do Sol é muito maior, cerca de 400 vezes a da Lua, como sabemos). Mas o método fazia sentido e baseava-se num processo puramente matemático. Na prática, o momento da quadratura seria muito difícil de determinar e também é muito difícil medir a pequena diferença que existe entre o ângulo Lua-Terra-Sol e um ângulo recto.

Aristarco - Terra-Lua
O ângulo medido em "T" dá-nos a forma do triângulo rectângulo. Verdet, J.-P., Op. cit., figure 30

A Latitude e os Climas

Entretanto, a partir da construção conceptual da Esfera Celeste e da esfericidade do planeta, tornou-se possível relacionar a duração do comprimento do dia mais longo do ano (ou do dia mais curto) com a posição do Equador e dos Trópicos em relação a um horizonte local específico, e que por sua vez esta relação determinava a posição (i.e. latitude) do observador na circunferência da Terra). Determinará o conceito dos "climas" (klimata), faixas de latitude nas quais a sphaera será dividida. Mas trata-se de um desenvolvimento provavelmente mais tardio do que habitualmente se supõe. A diferença em horas entre o dia maior e o menor do ano define, grosso modo, o "clima" em que a localidade se situa.


Eudoxus

Eudoxus de Cnido (c.395-390 - c.342-337 a.C.) foi quem primeiro advogou a quantificação da informação observacional e o seu tratamento matemático. O seu modelo das esferas homocêntricas prevalecerá e será mesmo ampliado e justificado pela Física de Aristóteles, configurando um sistema finito, esférico e ordenado. Os argumentos de Aristóteles sobre o modelo de Eudoxo são apresentados especificamente no livro XII (conhecido como livro Λ, letra grega que o identifica) da Metafísica. A outra fonte histórica é encontrada num comentário ao de Caelo de Simplikios (Lat. Simplicius). A matemática e, posteriormente, a trigonometria (nomeadamente as cordas), estarão no centro dos desenvolvimentos (convém referir que o desenvolvimento da trigonometria não é anterior ao segundo século a.C., justamente a época de um dos seus fundadores: Hiparco, 190-120 a.C.).

Apesar de algumas especulações quanto à tábua Babilónica "Plimpton 322" e sugestões da presença de rudimentos de Trigonometria no chamado "Papiro de Rhind" ou "Ahmès" (Egipto, 1700-1550 a.C; British Museum 10057-8), foi na Grécia do século III a.C. que a Trigonometria adquiriu sistematização a partir da Geometria. A primeira tabela, supostamente construída por Hiparco, tinha por base uma única função que relacionava cada arco da circunferência com a sua respectiva corda. É a primeira abordagem científica. E Menelau de Alexandria (c. 100 a. C.), astrónomo e geómetra, escreveu um tratado sobre cordas.

O sistema de Eudoxus, que recorria exclusivamente a movimentos de rotação, baseava-se, num “epiciclóide esférico" a que Eudoxus chama hippopede ("hipópede", a figura em "8" que pode ser gerada por duas esferas concêntricas com eixos não coincidentes, termo que Xenofonte explica pela comparação com um exemplo da equitação, por analogia com o percurso que os cavalos faziam em exercício nas pistas de treino). Uma lemniscata esférica, como hoje diríamos. Na eterna distinção entre a "esfera matemática" explicativa de um movimento e o "orbe material" (corpóreo), nada sabemos do estatuto ontológico atribuído por Eudoxus às suas esferas.

Resumidamente utilizavam-se quatro esferas concêntricas para cada planeta. O eixo da primeira unia os pólos Norte e Sul e simulava o movimento diurno do planeta; a segunda estava colocada de modo a que o seu equador (o da esfera) coincidisse com o plano da Eclíptica, revolvendo de Leste para Oeste e reproduzindo no seu período de rotação o movimento médio do planeta no seu percurso completo ao longo do Zodiaco. As duas restantes esferas (rodando com a mesma velocidade em sentidos opostos), com eixos com inclinações adequadas e específicas para cada planeta, acautelavam as estações (paragens) e retrogradações. Ler infra uma breve descrição do modelo.

- Vídeo elucidativo disponibilizado pelo Museo Galileo de Florença (narração em Inglês).

Há várias "reconstruções" matemáticas plausíveis gizadas desde o séc. XIX. Mas alguns investigadores, como A. C. Bowen, colocam em causa a perspectiva e os conhecimentos existentes no séc, VI a.C., nomeadamente no que respeita às retrogradações e, consequentemente, as reconstruções (v. Bowen, A. C., Perspectives on Science 2, 10 (2002)). A opinião mais comum é a de que o modelo explicaria razoavelmente os fenómenos como Eudoxus os conhecia. Entretanto foram sendo descobertas outras complexidades. Infelizmente, segundo Simplicius, o sistema de Eudoxus não explicava as evidentes alterações cíclicas do brilho observado nos planetas em cada período sinódico, implicando que as distâncias destes variava ao longo desse período (contudo C.C. Carman coloca em causa este antigo argumento, v. Studies in History and Philosophy of Science 54, 90 (2015)). Na ausência de fontes originais, as reconstruções, como a de Schiaparelli (Le sfere omocentriche di Eudosso, di Callippo e di Aristotele, Pubblicazioni del R. Osservatorio di Brera in Milano, No. IX. Milano, 1875), não podem ser consideradas "definitivas" (H. Mendell, Centaurus 40, 177 (1998)).


Apolónio de Perga e os Epiciclos

Na descrição dos movimentos planetários, duas enormes dificuldades se verificavam: a variável velocidade e as "paragens" e mudanças de direcção (do movimento directo para o retrógrado e vice-versa). Apolónio de Perga (Ἀπολλώνιος ὁ Περγαῖος, Apollṓnios ho Pergaîos, 262 a.C.-194 a.C.), que viveu cerca de um século depois de Eudoxus, estudou as secções cónicas e estará ligado à teorização do sistema de epiciclos e deferentes (utiliza-se habitualmente a terminologia medieval, e.g., "deferente", pois Ptolomeu (Κλαύδιος Πτολεμαῖος, translit. Ptolemaios, Lat. Claudius Ptolemaeus) não utiliza um termo específico para o "concêntrico que transporta o epiciclo"). Os epiciclos foram introduzidos para acautelar os aumentos e diminuições aparentes nas velocidades da Lua e dos planetas. Esta teoria constitui uma inovação importante, uma representação geométrica dos fenómenos observados e um sistema mais eficiente (na utilização prática) do que o das esferas de Eudoxus e Aristóteles: "The epicycle theory offered a far simpler and more accurate representation of the variable course of the planets than did the rotating spheres of Eudoxus and Aristotle. Moreover it explained their variable brightness as a result of their varying distances from the earth. These distances could be computed easily from the sizes of the circles." (Pannekoek, A., A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961, p.133)


O rigor de Hiparco; a
Sphaerica; antigas medições da circunferência do globo (Eratóstenes e Posidónio)

Hiparco utilizará métodos precisos na representação dos movimentos do Sol e da Lua e, entre muitas contribuições, descobrirá o fenómeno de Precessão dos Equinócios. Na época Helenística, Menelaus (Μενέλαος, c. 70 – 140 d.C.), será decerto autor da Sphaerica, único livro deste matemático que sobreviveu (numa tradução árabe). Tripartido, trata da geometria da esfera e da sua fundamental aplicação às medidas e cálculos astronómicos. Antes, procurou-se conhecer o tamanho da Terra. Eratóstenes de Cirene (276 a.C.-194 a.C.) calculou a circunferência da a partir de uma proporção (a célebre experiência relacionando a distância entre Alexandria e Συήνη [Siena, actual Assuão] e as sombras projectadas, sabendo, segundo se contava, que a luz do Sol incidia, ao meio dia do solstício de Verão, perpendicularmente num poço na segunda localidade, situada no sul do Egipto).

A experiência de Eratóstenes
Esquematização da experiência de Eratóstenes segundo Baker, R. H., Introduction to Astronomy (3rd ed.), D. Van Nostrand Company, 1947, p.4


As medições de Eratóstenes e Posidónio sáo descritas numa conhecida passagem do livro sobre os movimentos circulares dos corpos celestes (Kυκλικὴ Θεωρία Mετεώρων, Lat. De motu circulari coporum cealestium
(I.10)) atribuido a Cleomedes (Κλεομήδης). Aristóteles também refere "matemáticos" responsáveis por outras medições (De Cael., 298a16), bem como Arquimedes (Aren., I.8). Segundo a narrativa mais corrente, Eratóstenes de Cirene (c.276-194 a.C.) mediu a circunferência da Terra utilizando um método que considera a distância entre duas cidades no mesmo meridiano, e sabia que na localidade mais a sul o Sol culminava no zénite no dia do solstício de Verão. A diferença nas sombras medidas por um gnómon ("ponteiro"), em graus (~7º neste caso), permitiu extrapolar a medida completa da circunferência do meridiano. Segundo Martianus Capella (De nupt. Phil. et Merc., VI.59), a distância entre as localidades foi medida por bēmatistaí, profissionais que determinavam as distâncias a passo. Estimou o meridiano em 252,000 stadia (39,060 a 40,320 km), com um erro de apenas −2.4% a +0.8% (assumindo o valor do "stadion" entre 155 e 160 metros). Estas medidas não são todavia indiscutíveis ou consensuais.

O assunto, ao contrário da versão simplista geralmente divulgada, faz correr rios de tinta entre os académicos há muito tempo (e decerto ainda vai continuar). No último estudo relevante acerca deste assunto, Christopher A. Matthew (Eratosthenes and the Measurement of the Earth’s Circumference (c. 230 BC), Oxford University Press, 2023, ch.5) refere como o método terá recorrido á sombra do gnómon em Alexandria (sabendo antecipadamente que a localidade a sul se situava praticamente sob o Trópico de Câncer nessa época, em função do determinante factor da obliquidade da eclíptica, cuja inclinação determina a latitude dos dois Trópicos). Quanto às medições das distâncias, refere antecedentes (citados por Estrabão), com margens de erro que se verificam serem muito pequenas, entre localidades na Pérsia e regiões adjacentes durante as campanhas de Alexandre, das quais também infere a utilização do estádio (στάδιoν) Pan-Helénico de 180 metros), a sistemática medição dos terrenos agrícolas no Egipto e a provável informação existente resultante do trabalho dos bematistaitreinados ao serviço dos Ptolomeus (soberanos do Egipto). Havia pois capacidade e uma tradição de medições precisas. Relembra-nos que Eratóstenes trabalhou com rácios, proporções, não com medidas angulares (ao contrário do que se repete na pífia explicação popular do procedimento). A divisão em graus, minutos e segundos ainda náo era utilizada na sua época (somente um século depois). Antes da utilização de círculos graduados as medidas eram enunciadas recorrendo a proporções, por exemplo ao arco de um lado de um polígono regular.

Do exame das fontes e de toda a literatura especializada, C. A. Matthew, conclui que Eratóstenes utilizou como argumentos o referido estádio Pan-Helénico de 180 metros (havia seis stadia de diferentes comprimentos devido à antiga fragmentação geográfica e política das cidades-estado; nome "estádio" deriva da infraestrutura comunitária e desportiva das cidades gregas) e uma 'diferença latitudinal' de cerca de 4500 stadia entre Alexandria e Siena. Ou seja, privilegiou a diferença de latitude relativamente à distância concreta no terreno seguindo a margem oeste do Nilo (que todavia já conheceria de investigações pretéritas), até porque as localidades não estão, de facto, precisamente no mesmo meridiano. E isso, segundo C. A. Matthew, não interfere no procedimento estimando correctamente a distância entre os paralelos de ambas as localidades a partir da informação das sombras  em ambos os paralelos. A figura de 5000 stadia atribuida por Cleomedes a Eratóstenes seria afinal uma "correcção" feita por Hiparco (há diversas teorias para este facto, talvez Hiparco tivesse tão somente recorrido a informação na "Geografia" do próprio Eratóstenes acerca da distância medida no terreno, que inclui um desvio assinalável na região de Luxor) e os valores que surgem ulteriormente em autores romanos (e.g., 5,040 stadia, resultando nos 252,000 stadia relatados por Plínio) radicariam em ajustamentos ulteriores seguindo idealizações platónicas de perfeição numérica ou talvez para que o número de stadia fosse facilmente divisível em graus. (Ver timeline dos relatos históricos nas pp.280-81). Em resumo, a tentativa de medição da circunferência da Terra não era nova mas esta, na sua genial e inovadora metodologia obteve, segundo a interpretação de C. A. Matthew, um resultado extremamente preciso (~224,100 stadia) para o diâmetro polar. Existem erros na metodologia (elencadas nas pp. 139-141): as localidades não estáo no mesmo meridiano, a Terra não é uma esfera perfeita, o efeito da refracção da luz, etc. Mas quem pode censurar um sábio que ousou este cálculo circa 230 a.C.?.

No séc. I a.C. Posidónio (c. 135-51 a.C.) mediu a circunferência da Terra seguindo um método similar, todavia utilizando estrelas e não o Sol. Terá efectuado medições da estrela Canopus (Alpha Carinae, na posterior designação de Bayer) a partir de Rodes e de Alexandria (que na realidade também não estão exactamente no mesmo meridiano). Pelas elevações da estrela relativamente ao horizonte estimou a diferença de latitude entre ambas as localizações. O resultado habitualmente referido é 240,000 stadia ou (supõe-se) 19,200 km. Demasiado pequeno, como comentado por Estrabão. Há todavia dois valores distintos atribuidos a esta medição, como I. E. Drabkin analisou num paper (Isis, Vol. 34, No. 6, Autumn, 1943). Tudo indica que, estando Canopus rasante no horizonte de Rodes, a refracção da atmosfera tenha tido um efeito decisivo no cálculo. Terá sido uma correcção (errada) da distância entre as localidades que comprometeu a proporcionalidade? Em todo o caso, é este valor mais "curto" que será divulgado pelo influente Ptolomeu. Sendo uma estimativa com grande visibilidade em autores sucessivos, contribui (a par da especulação Clássica da proporção entre Terra e Água, da exagerada dimensão da longitude da Ásia no relato de Marco Polo e da sua consequente interpretação pelo médico, matemático e geógrafo Paolo dal Pozzo Toscanelli) na origem do ulterior equívoco de Cristóvão Colombo que, como se sabe, acreditava num valor da circunferência ainda menor e, partindo na direcção de uma mítica Antilia, rumou a oeste em busca do próspero Cipangu (i.e. Japão) de Marco Polo e das Índias quando, em Outubro de 1492, encontrou por puro acaso um dos arquipélagos de um continente "novo" que mais tarde será chamado "América". Segundo Samuel Eliot Morison (Admiral of the Ocean Sea: A Life of Christopher Columbus, Boston, Little, Brown and Co., 1954 (1942), p.65), Colombo aceitou o cálculo do geógrafo e astrónomo Alfraganus (al-Farghānī, séc. IX), assumindo que as milhas (árabes) usadas por este eram equivalentes às mais pequenas milhas "romanas" (ou "italianas") e chegando assim à conclusão que um grau mediria 45 milhas náuticas (um valor demasiado modesto, aproximadamente 75% do verdadeiro). O globo de Colombo era, deste modo, 25% mais pequeno do que o de Eratóstenes, 10% mais pequeno do que o de Ptolomeu e até mais pequeno do que o do seu próprio "mentor" Toscanelli.


A síntese: o Almagesto

Ptolomeu - grav. André Thevet
André Thevet (1502-1590), "CLAVDE PTOLOMEE PELVSIEN" (i.e. natural de Pelusium, Pelúsio), gravura, Les vrais portraits et vies des hommes illustres, Paris, 1584, f.87r.
(aqui recolhida de reprodução em "Great Astronomers", Robert S. Ball, London, Isbister and Company, 1895). O instrumento que segura parece revelar um anacronismo, assemelhando-se à balestilha (com o seu virote e soalha), referidos muito mais tarde por Jacob ibn Tibbon (Prophatius) e Gersónides (Levi ben Gerson, 1288-1344). Apesar de especulações quanto a uma "provável" anterioridade, não há evidências concretas e é somente nos mencionados autores que surgem as primeiras descrições


Mais tarde chamado "Divino", Ptolomeu (90-168 AD) será o sistematizador (com uma base filosófica aristotélica) e uma referência incontornável em diversas disciplinas por muitos séculos, em particular fundamentando matematicamente os fenómenos astronómicos (no tratado que virá a ser conhecido como Almagesto). O seu sistema traduziu os efeitos provocados pelas órbitas elípticas (que Kepler muito mais tarde determinará). No paradigma da sua época, nunca lhe ocorreria que todos estes complexos epiciclos e deferentes não fossem afinal mais do que a reprodução da órbita anual do nosso planeta transferida para cada um dos planetas exteriores, nem colocar Mercúrio e Vénus em órbita solar (como parece já ter sido sugerido na Antiguidade). Noutro tratado ponderou e resumiu as influências e juízos astrológicos (Tetrabiblos ou Apotelesmatiká).

O primeiro manuscrito completo que conhecemos deste tratado astrológico data somente do séc. XIII. Mas existem excertos mais antigos no manuscrito florentino Laur. gr. 28,34 (L) do séc. XI, cópia de uma antologia de textos astrológicos conhecida como Syntagma Laurentianum (séc. IX), vide Heilen, Ptolemy’s Doctrine of the Terms and Its Reception, p.59 (in: Jones, A., (ed.), Ptolemy in Perspective..., Springer, 2010), [N.B.: O chamado Centilóquio (ar. Kitab al-Tamara (suposta tradução do gr. καρπος), o Livro dos Frutos, "colhidos" nos ensinamentos do Tetrabiblos, constitui um acervo de cem aforismos. Outrora atribuído a Ptolomeu, é considerado apócrifo, tendo um racional diferente do encontrado no texto pretende "sumariar".]

O Almagesto de Ptolomeu (sábio que os árabes conhecerão como Batlamyus) é o verdadeiro compêndio, "obra prima da exposição técnica" e a principal referência da astronomia antiga, por isso também valiosa fonte de informação da obra de Hiparco (cujos textos originais se perderam). Tratado matemático e astronómico, "canonizou" o modelo geocêntrico. Expende as teorias dos movimentos do Sol, da Lua e dos planetas, explica a astronomia esférica e as coordenadas relevantes, a paralaxe, os eclipses, a precessão, etc. Também contém um catálogo estelar. É um dos textos científicos mais influentes de todos os tempos, autoridade até o século XVI. Segundo G. J. Toomer (trad. e ed.), somente os Elementos de Euclides revelaram maior longevidade. O seu nome era "Μαθηματικὴ Σύνταξις" (Mathēmatikē Syntaxis). Segundo uma interpretação, tornou-se conhecido pelo título (translit.) Hē Megálē Sýntaxis ("A Grande Colecção"). Os árabes passaram a designá-lo pelo superlativo daquele adjetivo (megístē), por corruptela: al-majisṭī, que gerou Almagesto:

This is undoubtedly derived (ultimately) from a Greek form μεγίστη (sc. σύνταξις), meaning ‘greatest [treatise]’, but it is only later that it was incorrectly vocalised as al-majasti, whence are derived the mediaeval Latin ‘almagesti’, ‘almagestum’, the ancestors of the modern title ‘Almagest’. (Toomer,  Ptolemy's Almagest, Duckworth Books, 1984, p.2)  

Embora se documentem algumas traduções latinas medievais, o principal canal para a redescoberta deste texto no Ocidente Latino foi a tradução de Gerardo de Cremona, feita a partir do Árabe em Toledo e completada em 1175.

Principais edições modernas
Foi editado sob o título Syntaxis mathematica por J. L. Heiberg em Claudii Ptolemaei opera quae exstant omnia, vols. 1.1 and 1.2 (1898, 1903). Em Inglês, depois da edição de R. Catesby Taliaferro (1952), existe a mais recente e excelente edição de G. J. Toomer (Ptolemy's Almagest, Duckworth Books / Spinger Verlag, 1984, com segunda edição em 1998 e uma revised edition publicada em 1998 pela Princeton University Press). Há também uma tradução parcial por Bruce M. Perry em The Almagest: Introduction to the Mathematics of the Heavens, Green Lion Press, 2014. A tradução alemã de Karl Manitius (1912, 1913) é baseada na edição padrão de Heiberg. Em Francès, foi vertido do Grego por Nicholas Halma (em dois volumes editados em 1813 e 1816).

Ptolomeu
Ptolomeu,
"Le législateur de l'astrologie grecque", segundo Bouché-Leclercq (1899, p.95), utilizando um quadrante, acompanhado pela Musa da Astronomia. Enverga uma coroa régia, vestígio da tradicional (e equívoca) associação à dinastia Lágida (de Lagos, lugar-tenente de Alexandre) ou Ptolomaica, que governou o Egipto Helenístico. Na sua famosa enciclopédia, Isidoro de Sevilha (c. 631 A.D.), designa-o "Ptolemaeus rex Alexandriae" (Lib. Etym. iii, 26). Gravura da Margarita Philosophica de Gregor Reisch, Basileia, 1508 (primeira edição é de 1503)


Depois do prefácio, Ptolomeu elenca seis proposições ou hipóteses físicas na base do seu modelo astronómico:
 
I. Os céus movem-se circularmente ("esfericamente");
II. A Terra, tomada como um todo, é razoavelmente esférica;
III. A Terra situa-se no centro dos céus, no que diz respeito aos sentidos (à observação);
IV. A Terra tem a dimensão de um ponto relativamente ao tamanho dos céus (i.e. da esfera celeste);
V. A Terra está imóvel, não executa qulquer movimento envolvendo mudança de sítio;
VI. Existem dois movimentos primários diferentes nos céus: (1) o diurno, que "arrasta" tudo de Leste para Oeste sempre da mesma maneira e à mesma velocidade e (2) o movimento dos luminares e dos planetas, seguindo (mais ou menos rigorosamente) a Eclíptica, de Oeste para Leste.
(Para uma análise aprofundada de cada uma das hipóteses, vide Taub, Lisa Chaia, Ptolemy's Universe: The Natural Philosophical and Ethical Foundations of Ptolemy's Astronomy, Chicago, Open Court, 1993, ch.3)

Os historiadores tradicionalmente associam filosoficamente Ptolomeu e Aristóteles sem qualquer dificuldade. Mas, na realidade, Ptolomeu estará em contradição com Aristóteles ao privilegiar filosoficamente a Matemática em detrimento da Teologia: "Ptolemy began the work [Syntaxis] with a philosophically oriented preface, in which he discussed the organization of knowledge, concentrating particularly on the nature of and relationships between physics, mathematics, and theology. Here, in the preface, we see the first indication that Ptolemy broke with Aristotle, for he argued that mathematics is the highest form of philosophy, rather than theology." (Taub, Op. cit., 1993, p.3).

As mais relevantes escolas filosóficas do século II a.C. incluíam a Academia (fundada por Platão), o Peripatos (por Teofrasto, romaniz. Theóphrastos, discípulo dilecto de Aristóteles), ambas datando do séc. IV a.C.; depois a Stoa (a escola Estóica, instalada por Zeno de Citium no séc. III a.C.), os Cépticos, os Neo-Pitagóricos e alguns pensadores que desafiam categorização.

Ptolomeu teve, como Neugebauer referiu de passagem, uma atitude filosoficamente "eclética". A íntima associação filosófica aristotélico-ptolomaica parece, portanto, ser uma perspectiva algo simplificadora. No livro II das suas Hipóteses Planetárias (Ὑποθέσεις τῶν πλανωμένων), que sendo menos "instrumental" do que o Almagesto privilegia questões cosmológicas, Ptolomeu (segundo a interpretação de Lisa Taub), ataca directamente a Física Aristotélica e, mais espantoso, "dilui a distinção entre as duas naturezas" (neste particular o argumento não nos parece convincente) e defende a natureza animada dos planetas (fazendo uma analogia com o vôo das aves). Refere que o mesmo se testemunha noutras obras do alexandrino. (Op. cit., p.4; 112 et seq.). Ptolomeu agilizará os seus modelos recorrendo a excêntricos e epiciclos.


Astrónomos lendários...

Na sua monumental L'Astrologie grecque (1899), Bouché Leclercq (p.576, n.1) vagueou pelo milefólio de atribuições fantasiosas do conhecimento astronómico aos deuses e heróis das lendas clássicas. O nosso resumo é incompleto e remetemos para o original, particularmente para as referências bibliográficas. Os ilustres representantes da Astronomia/Astrologia são imensos e surgem da tendência evemerista de interpretar os mitos numa óptica social e histórica. Nessa perspectiva, Atlas (condenado a suportar os céus, simultameamente Titã e montanha), torna-se um astrónomo, tal como Prometeu, Cefeu e outros (Cícero, Tusculanae Disputat. V. 3. Virgílio, Aen., I, 741. Plin., VII, 203). É filho de Lybia (personificação da África, "Lybiae filius", segundo Plínio, Nat. Hist., I, c; Eusébio, Praeparatio Evang., X). A associação das Colunas de Héracles a Atlas (Heródoto, ap. Clemente, Stromata ("Miscelânea"), I, 15) transformará (especula Leclercq) o herói musculado em aluno do gigante mitológico. Para os que seguiam Heródoto (Hist. II. 2), segundo o qual os Egípcios acreditavam que os Frígios eram a nação mais antiga, Atlas seria oriundo dessa nação. Os Cários (nas costas agrestes da Ásia Menor) e os Fenícios também concorriam para o título de nação disseminadora do conhecimento astronómico. Prometeu, que deu ao Homem o Fogo do Conhecimento, também seria astrónomo e teria o seu observatório no Cáucaso! Foi, talvez pela proximidade geográfica, hic primus astrologiam Assyriis indicavit ("o primeiro a ensiná-la aos Assírios" (aqui representando os povos da Mesopotâmia), segundo Servius, Eclog. VI, 42). Quíron, preceptor de Aquiles, e sua filha Hipe, também entram no rol dos sábios e astrónomos. O sábio Centauro também teria ensinado Medicina a Asclepius e Astronomia a Herácles. E a lira heptacorde de Orfeu também podia simbolizar os planetas  (Ps-Luciano, Astrol., 10). Tirésias, o profeta da Odisseia, "descobre" o sexo dos planetas. Atreu, Belerofonte, Dédalo, Ícaro, Endimião et al. também são astrónomos. A Pítia de Delfos representava Virgo, o Apolo de Dídimos é um dos Gémeos (Gemini), o Oráculo de Ámon em Siwa (visitado por Alexandre Magno) estaria relacionado com Aries, o adultério de Marte e Vénus (Ares e Afrodite) na Ilíada era a conjunção dos planetas correspondentes, etc. Também há o sincretismo com os deuses estrangeiros, sendo Hermes-Thot exemplo paradigmático, autor de "milhares de livros". Deuses e sábios do Egipto e Caldeia são por demais referidos (e.g., Nechepso e Petosíris). A Ishtar babilónica passa a ser a instrutora de Hermes (Hygin., Astron., II, 42) e o Bel mesopotâmico (na realidade um título de diversas divindades) é o inventor das disciplinae sideralis (Martianus Cap., VI, 701). Segundo o épico Nono (Nonnus) de Panópolis, o Herácles Tírio (i.e. de Tiro, na Fenícia) é chamado Sol, Deus Universal, etc. E Leclercq acrecenta: "Cet Hercule fait un cours d'histoire à Bacchus et lui fait cadeau de sa robe constellée, le vêtement légendaire des astrologues". Noutro contexto, será o Patriarca Abraão a transportar a Ciência da sua Caldeia natal para o Egipto, tendo os Fenícios levado para a Beócia o que aprenderam com os Hebreus. E as curiosas referências continuam, intermináveis...

Como o académico Checo Daniel Špelda refere (The Search for Antediluvian Astronomy: Sixteenth- and Seventeeth-Century Astronomers’ Conceptions of the Origin of the Science (Journal for the History of Astronomy, vol.44. Issue 3, August 2013), na Renascença, um período fascinado com as origens da História e das instituições culturais, acreditava-se na existência de um legado transmitido por Deus no início dos Tempos, e era a essa tradição perene que se deveria resgatar. Mais tarde, nos séculos XVI e XVII, acreditava-se que a Astronomia (enquanto saber prestigioso e de amplo alcance simbólico) teria existido na Mens Divina como um "Plano Eterno", de acordo com o qual os corpos celestes foram criados e os seus períodos e revoluções definidos. As ideias acerca da origem num passado áureo respaldavam-se em autores clássicos, com a habitual referência ao Antigo Egipto enquanto fonte dos saberes matemáticos (Heródoto, Historiae II, 50; II, 82; II, 143; Platão, Timaeus 22b; Plutarco, De Iside et Osiride X, 35E; Plutarco, De animae procratione in Timaeo 33, 103A–B; Diógenes Laertius, Vitae philosophorum, Proemium, VIII, 2–3; III, 6; Diodoro da Sicília (Siculus), Bibliotheca historica I, 69, 3–4;). Todavia, pelo menos desde a época Helenística, historiadores Judaicos contestaram essa versão e apresentaram a alternativa "adâmica" da origem desses saberes. Destaca-se a apologia de Flávio Josefo (Yosef ben Mattityahu) nas suas Antiquitates judaicae. Aí, fala-nos de Adão e dos seus descendentes (I, 2, 68–71; Jewish antiquities I–IV, H. St. J. Thackeray (trans.), 1961, 32) e encontramos a célebre referência a Seth, que antes do Dilúvio gravou em dois pilares, um de tijolo e outro de pedra, o conhecimentos que deveria sobreviver e ser transmitido à Humanidade futura. E teria sido o Patriarca Abraão, vindo de Ur na Caldeia, a ensinar os Egípcios que depois transmitiram aos Gregos os fundamentos da Aritmética e da Astronomia (Antiquitates judaicae I, 167–8, Jewish antiquities, 82.). Josefo terá uma recepção muito favorável por parte dos académicos Cristãos do início do período moderno. A provecta idade dos antigos patriarcas entrava na argumentação como uma vantagem na aquisição do conhecimento dos ciclos e períodos astronómicos. Neste ambiente cultural, não admira que também a astronomia tenha já surgido na segunda metade do séc. XV nas contrafacções de um impostor como o dominicano Annius de Viterbo (nascido Giovanni Nanni), no Berossi sacerdotis Chaldaici Antiquitatum libri quinque, onde falsifica uma obra que atribui ao respeitado Beroso (ou Berossus, séc. III a.C.). [Para além de criar genealogias e "registos" do passado baseado em "obras perdidas" que afirmava ter "reencontrado" em Mântua, e que influenciarão equivocamente, por exemplo, a nossa historiografia penínsular até finais do séc. XVIII.]. Entretanto, com os resumos que chegavam da China pela pluma dos Jesuítas, começamos a observar o conflito da cronologia bíblica com a presumida antiguidade das efemérides e registos orientais. Hevelius acreditava que os Chineses já usavam efemérides antes do Dilúvio Universal mas, em conformidade com a doutrina, considera que, "sem dúvida", aprenderam Astronomia com os Antigos Patriarcas (Machina coelestis (Danzig (actual Gdansk), 1673),17: “Scientiam Sideream ab Asiaticis, praesertim Chinensibus primam suam duxisse originem; sine dubio ne a se ipsis, sed a Noa, vel Primis Patriarchis eam hauserunt.”).
 
Todavia, desde Gassendi, Cellarius e Cassini que se procura racionalizar (e depois rejeitar) a interpretação exposta. Segundo Giovanni Domenico Cassini: “Les grands Ouvrages n’étant jamais parfait dès leurs commencement. (...) Ainsi l’Astronomie & la Géographie se perfectionoient peu á peu." (De l’origine et du progrès de l’astronomie (1693), in "Mémoirs de l’Academie Royale des Sciences: Depuis 1666 jusquà 1699, viii: Oeuvres diverses de M. I. D. Cassini" (Paris, 1730), 1–54. 18f.). Lenta e gradualmente, como Špelda salienta, a perspectiva "retrógrada" e embebida na Teologia de uma prisca sapientia será substituída pela abordagem "progressista" que acredita no incremento do conhecimento a partir de rudimentares alicerces e não na "recuperação" de um conhecimento divino de uma qualquer "idade edénica".


Intercâmbios: Índia, Pérsia e China. As eventuais influências recíprocas

Na Índia, um sistema de "marcadores" siderais configura uma lista de nakshatras (a que os Árabes chamarão manazil al-qamar, as "mansões lunares"), com utilização calendárica e astrológica. O "caminho da Lua" era balizado por determinados asterismos.

Os Nakshatras constituem o "backbone" da tradição indígena da Índia, recuando a um contexto ritualístico antigo de determinação do tempo específico para executar determinados rituais ou práticas espirituais. São referidos pelos nomes convencionais no Atharvaveda (Livro 19, Hino VII), que data provavelmente de 700-800 a.C. (um pouco mais antigo segundo Gavin Flood; datado c. 1200-1000 segundo Michael Witzel). Na tradição da Índia, a astrologia que "elege" um momento auspicioso sempre se baseou nos Nakshatras, i.e. nas constelações reais, siderais, do percurso da Lua, e ainda hoje o Zodíaco é preterido, podendo nem ser utilizado. A tradição astrológica Indiana (Jyotisha) mais antiga era, acima de tudo, calendárica. As técnicas especificamente horoscópicas surgem mais tarde no contacto com a tradição Helenística. De acordo com o académico Asko Parpola, a tradição Jyotisha e as descobertas relacionadas com o calendário luni-solar da Índia Antiga (bem como descobertas similares na Antiga China) são, muito provavelmente, paralelas e não oriundas de uma difusão comum a partir da Mesopotâmia, como se supunha: "...from convergent parallel development, and not from diffusion from Mesopotamia" (Beginnings of Indian Astronomy, with Reference to a Parallel Development in China, in "History of Science in South Asia", Vol. 1, 2013, pp.21–25). Mais tarde assiste-se à fusão com elementos Helenísticos (e depois Arabo-Persas) importados que serão "indianizados" e "sanscritizados", dando origem à horoscopia praticada no subcontinente.

Na cosmologia dos Puranas (literatura popular de carácter enciclopédico, com datação variável e muito debatida, sendo seguro afirmar que foram registados, a partir de tradições orais pretéritas, ao longo do primeiro milénio da nossa era), uma série de rodas carregam os céus em torno da Terra. Os seus eixos estão fixados no sagrado Monte Meru, a sua força motriz é a respiração de Brahma. Uma visão híbrida influenciada pela cosmologia Grega mas não agilizada em termos de geometria esférica. Segundo P. Whitfield (The Mapping of the Heavens, Pomegranate Artbooks, 1995, p.20), a sabedoria Hindu foca-se, acima de tudo, nos caminhos para escapar ao mecanismo do destino e ao ciclo da acção e do sofrimento, e aqui a Astrologia assumiu um papel central.

Astrónomos Indianos - BL Ms Ori5259 f.29
Astrónomos Indianos determinando coordenadas (do Sarvasiddhãntatattvacudamanii, composto por Durgãsankara Pãthaka, anos de 1830; British Library, Ms Or.5259, f.29) 


Por seu lado, a tradição Persa está associada à utilização de orbes planetários, às relações astrológicas entre seus movimentos recíprocos e, particularmente, aos grandes ciclos cronológicos, em particular os que se baseiam nas
conjunções dos planetas mais ponderosos, Júpiter e Saturno (David Pingree fez recuar a origem da "astrologia histórica" (baseada nas conjunções de Júpiter e Saturno nas diferentes Triplicidades) à Pérsia Sassânida, período entre os séculos II e VI (From Astral Omens to Astrology, 1997, pp.49 e 64)). 

O sincretismo da época Helenística recolherá muitos dos contributos referidos: gregos, mesopotâmicos, egípcios, persas, indianos... é o período fundamental. Muito mais tarde, Newton e os seus contemporâneos, introduzirão a Dinâmica na discussão dos fenómenos astronómicos. Otto Neugebauer, na perspectiva da ulterior concepção europeia do progresso da ciência, afirmou taxativamente: "Up to Newton all astronomy consists in modifications, however ingenious, of Hellenistic astronomy." (The Exact Sciences in Antiquity, (2nd edition), Dover Publications, 1969, p.4). É verdade, na perspectiva dos futuros desenvolvimentos científicos. Mas tende-se hoje a investigar e valorizar os insuspeitados intercâmbios entre diferentes tradições.


Na China Antiga o mundo habitado era chamado "tianxia". Não havia uma "Astronomia" enquanto disciplina específica ou autónoma. Por um lado, havia o estudo dos métodos calendáricos ("lifa"), cuidando das regularidades. Por outro, e de algum modo relacionado, existiam os padrões dos fenómenos celestes ("tianwen"), atentando-se nos que assumiam carácter imprevisto ou episódico, interpretando-os sempre na perspectiva do mundo, da sociedade e do Estado. (Hoskin, M. (ed.), The Cambridge Illustrated History of Astronomy, Cambridge University Press, 1997, p.48). Os métodos matemáticos, embora gradualmente mais sofisticados, eram somente aritméticos e não geométricos. Exploravam ciclos de longo prazo, não colocando qualquer ênfase na interpretação do espaço tridimensional.

Relógio astronómico - Su Song
A medição do tempo é essencial em qualquer cultura. Reconstituição da torre do relógio astronómico de Su Song em Kaifeng (c. 1090 AD). O seu ritmo regular era conseguido pela água corrente que enchia sucessivamente pequenos vasilhames ciclicamente numa roda. Os Chineses compreenderam as variações a que a água estava sujeita dependendo da temperatura (os extremos são a evaporação e o congelamento), e passaram por vezes a utilizar mercúrio nos relógios mais precisos. (desenho de John Christiansen, in: Needham, J., Science and Civilization in China, vol. IV, pt 2, 1965, fig.650)


Segundo A. Pannnekoek, "Chinese philosophy sought to find symmetry and relationship in life and world. The four directions, east, south, west and north are correlated with the four seasons, the four parts of the day, the four sections of the celestial equator. Added to the ‘middle’, they constitute a pentad correlated with other pentads in different realms; elements or basic matters, plants, colours, parts of the body, musical instruments, planets, flavours. Combined with another series of twelve differing kinds, it produces a period of 60 years for use in chronology. There is a kind of arid harmony of schematic order in this world doctrine with its associated rites." (Op. cit., p.88). "Chinese astronomy was a government service." (Thurston, H., Early Astronomy, Springer-Verlag, 1994, p.84). No Império do Meio, assistiu-se à divisão dos céus seguindo esquemas que privilegiavam as perenes estrelas circumpolares. Um dos mais antigos foi o dos "Cinco Palácios". Depois da região circumpolar havia: O Palácio do Leste (simbolizado pelo Dragão Azul), o Palácio do Sul (simbolizado pelo Pássaro Vermelho), o Palácio do Oeste (simbolizado pelo Tigre Branco) e o Palácio do Norte (simbolizado pelo Guerreiro Negro coadjuvado pela tartaruga e pela serpente). Outro esquema recorria a nove divisões. a circumpolar e oito atribuídas a cada um dos hexagramas do I Ching (ou Yi Jing), Livro das Mutações. Ainda outro, bem diferente, era baseado nas "estações" de Júpiter (quando o planeta "pára" e alterna o movimento directo com o retrógrado). Utilizava o ciclo de doze anos da órbita do planeta, dividindo a o Equador (e, por extensão, a Eclíptica) em doze sectores (em nada relacionados com a divisão zodiacal que conhecemos, em doze signos), recorrendo a um "planeta-sombra" fictício (tai sui) que imitava o movimento de Júpiter na direcção inversa (vide Ronan, C., Astronomy in China, Korea and Japan, in Walker, C. (ed.), Astronomy Before the Telescope, BCA, 1996, em especial pp.253-64). As considerações cosmológicas Chinesas (que se nutriam de um aparatoso simbolismo) parecem ter coabitado com a vertente operativa da astronomia e do calendário de modo pacífico. A ideia da esfericidade, quando equacionada, não se imiscuía na astronomia ou na geografia. As representações do mundo continuavam a ser convencionais, considerando-o plano. Seguindo um resumo de Hugh Thurston (Op. cit., pp.90-1), no que diz respeito às teorias especulativas sobre a estrutura do Universo, a primeira a ganhar coerência terá sido a Gaitan ("cobertura celeste"), na qual a a terra e o céu eram partes de duas esferas, todavia mantendo a concepção ["inexplicable", segundo Thurston] de um mundo terreno "quadrado" ou quadripartido. Uma segunda teoria, Huntian ("Esfera Celeste"), recua pelo menos a 100 a.C. Era seguida no final da disnastia Han e fazia equivaler os céus a um ovo, tendo a Terra como a gema. Metade do céu estava repleto de água, outra metade de vapor. O mundo habitado flutuava na água. Noutra cosmovisão, Xuanye ou "Escuridão Omnipresente", o Sol, a Lua e as estrelas são compostos de vapor condensado e flutuam livremente no espaço.

Os Chineses raramente se referiam em termos de um deus "para além" do mundo, que o havia criado. os céus são a divindade suprema e o Imperador o seu filho, a cabeça do Estado e da sua religião. Os augúrios eram observados e relacionados com regiões, cidades ou até com divisões do Palácio Real. O mais importante ritual relacionado com o céu acontecia no Solstício de Inverno, quando o Yang voltava a aumentar após ter atingido o meu momento mínimo. (North, J. D., The Norton History of Astronomy and Cosmology, W. W. Norton & Company, 1994, pp.137-9).


Estuda-se hoje com revigorado vigor o intercâmbio de influências, as inovações e diversificadas materializações locais. As peripécias da transmissão do conhecimento e o percurso das
traduções de suporte é interessantíssimo e surpreendente.

Transmissões culturais
Intercâmbios culturais, com particular enfoque na Ásia (Michio Yano, in Micrologus, XXVI, 2016; pp.457-74)


A contagem do tempo: os relógios da Antiguidade Clássica e Helenística

Apesar das melhores práticas que abordaremos de seguida, conhecer a hora certa era no passado tarefa difícil. Séneca revela quão complicado era saber horas exactas pois seria "...mais fácil os filósofos estarem de acordo entre si do que os relógios." (Apocolocyntosis divi Claudii, ii. 2-3)

[Segue-se resumo traduzido a partir de exposição de Robert Hannah: Oxford Classical Dictionary (em linha: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199381135.013.1683)]

Os Gregos aplicaram aos mecanismos de medição do tempo as projecções gnomónica e estereográfica e por vezes recorreram a complexos sistemas de rodas dentadas.

Para conhecer a "hora" aproximada durante o dia bastaria, de modo imediato, medir com os pés a própria sombra projectada. O método expedito já é mencionado pelo dramaturgo Aristófanes (na comédia Ecclesiazusae, 651–652). A primeira utilização documentada do gnómon (em rigor, o estilo, a parte do relógio solar que possibilita a projecção da sombra) pelos gregos está associada a Anaximandro (séc. VI a.C.). A fonte é o biógrafo e doxógrafo Diógenes Laércio (Laértios), que contudo nos informa que se destinava a conhecer o tempo no calendário e não no dia (Diog. Laert. 2.1). Deste modo, parece aqui associá-lo a uma utilização calendárica. Sabemos, todavia, como constitui o instrumento "primevo" da abordagem à estimativa do momento do percurso do Sol durante o dia. Entretanto, Heródoto refere que o conhecimento do gnómon, na utilização convencional como "relógio", teria origem na Babilónia (Hist. 2.109.3), atribuíndo a mesma origem ao conhecimento das "duodécimas partes do dia" (horas).

Sundial (R. Mayall, 1973)
Segundo Robert e Margaret Mayall, um passo fundamental terá sido a descoberta da vantagem em alinhar o gnómon com o pólo celeste, ajustando-o à latitude específica do local. (Mayall, R. Newton and Mayall, Margaret W., Sundials: How to Know, Use, and Make Them (2nd edition), Sky Publishing Corp., 1973, figure 7)


Havia dois tipos de 'horas': sazonais e equinociais. Na astronomia preferiu-se a utilização das horas equinociais (assim designadas porque eram iguais às horas sazonais nos dias dos equinócios). As primeiras possuem tamanho variável consoante as estações do ano. Os mais antigos relógios de Sol que sobrevivem da cultura grega são fragmentos de dois exemplares planos, um proveniente de Olímpia e outro do Amphiareion, um santuário em Oropos na Ática. Este tipo plano encontra-se na horizontal ou na vertical, mas também inclinado equatorialmente (em função da latitude do lugar), como o exemplar de Oropos.Sendo o mais fácil de construir, torna-se o mais difícil de desenhar (i.e. as marcações) pois o hemisfério do céu precisa ser projectado num plano. Ambos os referidos relógios são, basicamente, blocos de mármore planos com incisões de linhas horárias irradiando, numa configuração de "ventoínha", a partir do ponto "axial" do gnómon, demarcando os limites das doze horas diurnas. Assemelham-se aos (mais antigos) modelos verticais egípcios, que podem aqui ter tido uma influência directa. Todavia, ao contrário desses, os dois modelos gregos mostram horas equinociais (iguais) e não sazonais. O exemplar de Oropos acrescenta linhas de data para assinalar os equinócios e os solstícios.

Um dos tipos mais comuns de relógio era esférico: uma cavidade hemisférica removida de um bloco de pedra com um ponteiro no centro. Eram inscritos os círculos fundamentais (Equador, Trópicos e, obviamente, as linhas das horas) (Evans, in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy...", Op. cit., vol.3, ch. 141, p.1590).

Relógio de Sol Bizantino
Relógio solar plano e vertical mais tardio, Bizantino, século IX-X. As horas são numeradas, à maneira grega, com letras do alfabeto. (Museu Arqueológico de Istambul, inv. no. 905T. Crédito: R. Hannah). O sistema Grego de numerais utilizava as 27 letras do alfabeto; as primeiras nove para as unidades de 1 a 9, as seguntes para as dezenas a partir de 10, as restantes para as centenas, etc. Estes numerais podiam ser utilizados para escrever números mas eram extremamente inadequados para as contas, e.g., adicionar, subtrair, multiplicar, dividir (principalmente números grandes)


O outro sistema principal de mecanismo de medição do tempo era o relógio de água. Na Grécia, o seu nome era κλεψύδρα‎ (clepsidra: “que rouba água”). Mecanismo referido no De Caelo de Aristóteles (294b.14–30) e em muitas outras fontes. A clepsidra era de tal modo usada que, por volta do IV século a.C., o orador Demóstenes podia utilizar a palavra "água" (ὕδωρ‎) como sinónimo de "tempo" (Dem. Poly. 2; De cor. 139; De fal. leg. 57). Uma abordagem alternativa seria relacionar explicitamente a passagem do tempo com as estrelas, através do relógio a que o romano Vitrúvio chamou "anafórico" (De arch. 9.8.8–15) O termo deriva do Grego ἀναφορά (anaphora), significando o "nascimento", o elevar de uma estrela. Era um mecanismo automático que permitia conhecer a hora a partir de uma representação da sequência das constelações que se elevavam durante o dia (numa espécie de mostrador). O mecanismo, variante da clepsidra, seria alimentado por uma corrente de água constante. Entretanto, uma interessante estrutura é a chamada "Torre dos Ventos", em Atenas. Também é conhecida como Hōrológion ou Horologium em Latim, datando provavelmente do séc. I a.C.. Pelos vestígios arqueológicos, decerto integrava um sistema de relógio de água, para além de marcações das horas nas suas oito faces. Por esta altura havia diferentes tipos de relógios de Sol (Vitrúvio refere catorze, dos planos aos esféricos, cilíndricos, cónicos, etc., atribuíndo-os a diversas autoridades, a começar em Eudoxo, De arch. 9.8.1).

Um último instrumento, peculiar, é o prodigioso "Mecanismo de Antikythera" (Anticítera), resgatado no Egeu por pescadores de esponjas por volta de 1900. Tecnologia de ponta, decerto raríssimo e peculiar na sua época, combinava uma diversidade de modalidades de contagem do tempo. Muito mais tarde submetido a raio X e TC, sabemos que utilizava cerca de trinta rodas dentadas (num sistema diferencial que se julgava ter sido somente descoberto pouco antes da Renascença). Permitia correlacionar os ciclos do Sol e da Lua (o chamado "Ciclo Metónico" de 19 anos trópicos ou 235 lunações, que permite relacionar os calendários solar e lunar e saber quando uma determinada fase da Lua vai acontecer na mesma data do calendário solar; vide Derek Price: Gears from the Greeks: The Antikythera mechanism, a calendar computer from ca. 80 B.C. Transactions of the American Philosophical Society 64. Philadelphia: American Philosophical Society, 1974), e ainda, provavelmente, os movimentos dos cinco planetas conhecidos nos seus movimento epicíclicos através do Zodíaco. Segundo Cícero, Posidonius (c. 135-51 a.C.) também construiu um modelo do unverso, que exibia os movimentos diurnos dos luminares e dos cinco planetas. (De Natura Deorum, ii-34) .

Mecanismo de Antikhytera
Sistema de rodas dentadas no "Mecanismo de Antikythera" (reconstrução orignalmente feita por Derek J. de Solla Price, 1974)


Instrumentos pré-telescópicos tradicionais

Numa referência aos instrumentos pré-telescópicos (i.e. até ao séc. XVII), podemos incluir, para além do eterno gnómon (ponteiro) dos relógios de sol e das clepsidras, o astrolábio (principalmente na Idade Média e nunca um instrumento preciso e especializado), o quadrante (preferencialmente de grandes dimensões), fixado numa parede no plano do meridiano e a esfera armilar, que permitia a determinação directa das coordenadas equatoriais e eclípticas (seria o instrumento "perfeito" e um "modelo do Universo", multifuncional, todavia mais difícil de utilizar e provavelmente preterido relativamente a outros mais simples e especializados (quadrante, instrumento para medições zenitais, outro para estimar o momento do equinócio, etc.) com apenas uma funcionalidade, também descritos na época). Os Gregos Aristilus e Timocharis estão entre os primeiros astrónomos que determinam as posições das estrelas de modo preciso, utilizando coordenadas, Por essa altura, Euclides havia expendido a “doutrina das esferas”, i.e. o sistema de coordenadas usado para determinar as posições dos eixos e planos fundamentais aos quais os sistemas de coordenadas dos corpos celestes se referem (Abetti, G., History of Astronomy (Betty Burr Abetti, trans.), Abelard-Schuman, 1952, p.38). No final do séc. XIII assistimos ao aparecimento do 'novo quadrante' (combinação de quadrante e astrolábio) por Don Profeit Tibbon (conhecido como Profatius) e ao chamado "Bastão de Jacob" (Baculus Jacobi) ou Balestilha por outro Judeu Provençal: Levi ben Gerson (conhecido como "Gersónides", 1288-1344). Este instrumento era composto por um virote e uma soalha, que corria na perpendicular em relação ao virote e permitia medir o ângulo entre dois objectos no céu.

Segundo Robert Recorde, todos os instrumentos (i.e. de medição angular, subentende-se no contexto) se baseiam, de uma ou outra maneira, na representação da "esfera material": "...yet all these are but parts (at the most) diuers representations of the Sphere" (The Castle of Knowledge, 1556, 2nd Treatise). Como Jean-Pierre Verdet salienta, ao longo dos cerca de dois mil anos que separam Hiparco de Tycho Brahe, os instrumentos de observação 'profissionais', de poste fixo, serão praticamente sempre os mesmos, bem como as respectivas técnicas de construção, materiais e precisão: "D’Hipparque à Tycho Brahe, soit donc pendant près de deux mille ans, le matériel d’observation sera extrêmement réduit et restera pratiquement le même, comme resteront les mêmes les techniques de construction de ces instruments, leurs dimensions (à peu près la taille humaine) et leurs performances. Tous réalisés en bois, les instruments d’observation utilisés, disons à poste fixe, sont au nombre de trois : le quadrant statique, le triquetrum et la sphère armillaire, appelée également astrolabe sphérique, terme que nous éliminerons pour éviter la confusion avec l’astrolabe planisphérique du Moyen Age qui n’a jamais été un véritable instrument d’observation, si ce n’est pour la détermination approximative de l’heure, mais plutôt un instrument à usage pédagogique." (Une Histoire de l'Astronomie, Éditions du Seuil, 1990).

Triquetrum
Triquetrum (gravura in Verdet, J.-P., Op. cit., figure 6)

O quadrante estático era um quarto de círculo equipado com um sistema de mira ou uma simples pínula que, perpendicularmente ao referido quadrante, projetava a sua sombra. Estaria instalado numa superfície vertical orientada na exacta direcção norte-sul, apontando o meridiano. Outro instrumento para medir alturas, o triquetrum (imagem acima) era um conjunto de três réguas, uma fixa e erecta, as outras duas móveis e articuladas sobre a primeira no plano do meridiano, uma integrando uma pínula e a outra uma graduação. Foi inventado para sobrepujar a dificuldade de graduar arcos e círculos. O astrolábio esférico (ou esfera armilar) era uma tradução tridimensional da esfera celeste, reduzida aos seus maiores círculos de referência e equipado com um sistema de visada; os círculos de referência eram graduados. O astrolábio plano medieval não era um instrumento suficientemente preciso para as medições astronómicas especializadas.


Mundividências

A atitude relativamente aos fenómenos naturais ao longo da Antiguidade não era marcada pela 'causalidade' mas sim pela 'finalidade'. A ligação entre os fenómenos não era vista em termos de 'causa-efeito' mas sim enquanto 'sinal' e 'significado'. (Pannekoek, A., A History of Astronomy, Interscience Publishers & George Allen and Unwin, 1961; trad. nossa)

Os nossos ancestrais mitificavam e interpretaram o Universo seguindo referências familiares do quotidiano, das actividades sociais, cultuais e agrícolas, numa lógica de analogia e no quadro conceptual específico dessa sociedade. Os nomes dos meses hebraicos, e.g., Nisan (“Sacrifício”) ou Airu (“Florescimento”), reflectem a vida ritual e agrária desse povo no "carrossel" que é o ano. Há temas perenes, emergindo em todas as culturas devido à sua importância universal: a ordem, o ciclo da vida e a renovação, a criação, a transcendência, a oposição masculino-feminino, a complementaridade entre forças polarizadas (Krupp E. C., Beyond the Blue Horizon, Oxford University Press, 1992 (1991), 1 et seq.). Segundo Anthony Aveni, o importante a reter é que estamos perante cosmovisões racionais, em contexto ou "em situação", estruturadas na articulação entre as partes, hierarquia e alternância, relação espírito-matéria e procura de "significado" (Conversing with the Planets, Kodansha America, Inc. 1994, p.177).


Os planetas estão desde cedo ligados ao conceito de “influência” ou “influxo”. Para os antigos, não eram movidos pela gravitação mas pelo seu arbítrio. Tal como as pessoas, tinham uma “alma”. Na Idade Média, por exemplo, toda a natureza estava impregnada pelo Pneuma [conceito Estóico recebido dos clássicos], um fluído elástico e invisível que tudo permeava, atribuíndo ao Todo do Universo essa qualidade “animada”. Literalmente significava “Respiração do Universo” (Aveni, Op cit., 154). Era o medium privilegiado e necessário para preencher o vácuo.
"[O Éter] é tão essencial como o ar que respiramos”, insistia o físico J. J. Thomson (que descobriu o electrão) em 1909. A Física ainda o procurava  (na verdade vários tipos de éter: eléctrico, magnético, etc.) no limiar do séc. XX, apesar de já não considerar a vertente “divina” que antes o enformava (Schaffner, Kenneth F., Nineteenth-Century Aether Theories, Oxford: Pergamon Press, 1972).


Símbolos dos planetas num manuscrito do séc. XV (British Library MS Sloane 428): Saturno, Júpiter, Marte, Sol; Vénus, Mercúrio, Lua e Caput Draconis (nodo lunar ascendente)

Habitava-se um mundo pleno de correspondências e assinaturas simbólicas, caracterizado pela "cosmisação" do espaço e pela sacralização do tempo (vide Eliade, M., O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões, Livros do Brasil, 1975; 1959; caps. I e II). O calendário e as estações do ano serão determinantes na atribuição da natureza elementar e das qualidades de cada imagem ou signo. Prevalecia um princípio de analogia entre o Todo e as partes, materializado, por exemplo, através do paradigma da teoria elementar e humoral. A Filosofia codifica o conceito de “Alma do Mundo” (lat. Anima Mundi) que permeia o Universo. No Timeu (Timaios, o único texto platónico de grande fôlego disponível durante séculos no Ocidente latino através da tradução parcial e extenso comentário de Calcidius), é não somente a Causa Primeira e o Princípio da Vida (Kósmos enquanto ser vivo/organismo vivo) como se lhe atribui cognição (Helmig, Christoph (ed.), World Soul – Anima Mundi: On the Origins and Fortunes of a Fundamental Idea, De Gruyter, 2020. 2.: Plato's Timaeus as a likely 'story'). E neste diálogo platónico, cada "alma" voltará para a "sua estrela" Daí os versos de Dante, no Paradiso (Canto IV):

Ancor di dubitar ti dà cagione
parer tornarsi l’anime a le stelle,
secondo la sentenza di Platone.


Estas ideias alimentam doutrinas filosóficas e esoterismos, de Demócrito aos Neoplatónicos e Gnósticos. Chegam à Renascença com vitalidade.
Lembremo-nos como exemplo, que já no Livro X da Politeia (A República), na exposição do "Mito de Er" e no contexto de um Universo pitagórico, matematicamente e geometricamente ordenado, se descreve como a alma individual tem origem celeste e, guiada pelo "daimon", escolhe uma vida e desce pelas esferas planetárias para encarnar o corpo do recém-nascido. A perspectiva Gnóstica vai apresentar nuances muito interessantes e perturbadoras. Aqui, o Homem é originalmente imortal e imaterial, Divino, habitando a abóbada acima das esferas planetárias. Por uma ou outra razão, cai deste elevado estatuto, desce pelas esferas planetárias onde vai recebendo de cada planeta um pouco da sua malignidade, encarnando esta vida de tribulações. Na mundividência Estóica os planetas eram governantes divinos e benéficos. Mas para os Gnósticos, são os administradores maléficos do mundo físico, do qual o ser humano somente pela gnosis (ascese pelo conhecimento) se pode libertar e almejar a definitiva união com o Divino. (vide McMinn, J. B., A Hellenistic Legacy: The Foundation for an 'Unorthodox' World View within the Byzantine Tradition (part two)", Kernos, 1989).

Nicholas Campion avançou a hipótese, provavelmente pouco fundamentada e candidamente "difusionista", de que o conceito da eternidade da alma, que não estaria explicitamente presente ou generalizado noutras religiões da Antiguidade, é proveniente do Egipto, influenciando ulteriormente outras culturas e concepções filosóficas como as de Pitágoras e, consequentemente, de Platão, com enorme influência, também no Judaísmo mais tardio. (Was There A Ptolemaic Revolution in Ancient Egyptian Astronomy? Souls, Stars & Cosmology, Journal of Cosmology, 2011, Vol 13. 4174-418).


Na Antiguidade tardia, época de escoliastas (comentadores), epítomes e antologias (florilegia), a mescla de Aristotelismo e Neoplatonismo comum em autores como Proclus foi, segundo Jim Tester, em certa medida, historicamente tão importante como as próprias obras dos grandes filósofos, tal como o De Officiis de Cícero será um dos mais influentes contributos para a formação do alicerce científico e filosófico; e todos os Aristotélicos e Platónicos tardios denunciam influências e uma fusão com ideias Estóicas e Neo-Pitagóricas. (
A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999 (1987), p.160).


Um exemplo curioso do recurso ao simbolismo astral é o do Mitraísmo. Embora o deus Mithras ou Mitra (mas não o culto), tenha sido importado da Pérsia, o seu simbolismo astral, bastante óbvio, pertence definitivamente ao mundo da cultura e astrologia greco-romana do Império. (Roger Beck, Mithraism, in Ruggles, (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015, p.1670). O Mitraísmo foi uma religião ativa no Império Romano desde o início do segundo ao final do século IV d.C. Foi um dos chamados cultos de mistério, um termo aplicado a religiões não oficiais de iniciação (como Roger Beck explica, o termo “culto”, que significa “adoração”, não carregava as actuais conotações pejorativas). Cada culto estava focado num determinado deus ou conjunto de deuses. Assim, os iniciados de Mitra adoravam “o Deus Sol Invicto”, como foi nomeado. O Mithraeum (a caverna, espaço de culto) era, segundo Porfírio (c.234 – c.305 AD), um “Modelo do Cosmos”. Os seus “elementos” eram os signos do zodíaco e os planetas. Os adeptos compartilhavam a crença generalizada de que a alma humana descia à mortalidade terrena através de uma entrada no solstício de verão em Cancer e ascendia de volta à imortalidade através da porta diametralmente oposta, no solstício de inverno, em Capricornus. A chamada "Tauroctonia" é o principal ícone de culto. Mas o que representa o matador do touro? Vários identidades foram sugeridas e a especulação vem de longe. David Ulansey (The origins of the Mithraic mysteries: cosmology and salvation in the ancient world. Oxford University Press, 1989) identificou o deus constelação Perseus e propôs que o ícone estaria relacionado com a precessão dos equinócios e o deslocamento do Ponto Vernal, sendo a entidade (Mithras-Perseus) quem controlaria este importante processo astronómico. Beck, por sua vez, identificou o "matador" não com um determinado signo/constelação, mas com o próprio Sol num determinado signo significativo: Leo, o Leão. (Mithras in the tauroctony. In: Hinnells JR (ed) "Studies in Mithraism". Bretschneider, Rome, 1994; v. também The religion of the Mithras cult in the Roman empire: mysteries of the unconquered sun. Oxford University Press, Oxford. 2006).

Mitra - Tauroctonia
Tauroctonia com representação do Zodíaco (Museum of London; inv. no. 61349)

Tauroctonia - constelações (Roger Beck)
A iconografia é normalizada e verifica-se que os seus elementos parecem representar simbolicamente um grupo de constelações, abaixo do Zodíaco, para leste do Touro até ao Escorpiáo. Os portadores dos archotes (Cautes e Cautopates) ladeiam a composição. (Roger Beck , Mithraism,  in Ruggles, C. (ed.), Op. cit., Fig. 150.4)


Muito mais tarde, no saber medievo informado pelo aristotelismo assimilado a partir do séc. XII, os conceitos fundamentais radicavam nas simpatias, antipatias e a na apetência aristotélica pelo lugar "natural". Tudo tem esta "inclinação" para o sítio a que pertence e lhe é conveniente (Lewis, C. S., The Discarded Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature, Cambridge University Press, 1964, 92). É o que descreve Chaucer (Hous of Fame, II, 730 et seq.):

Every kindly thing that is
Hath a kindly stede ther he
May best in hit conserved be;
Unto which place every thing
Through his kindly enclyning
Moveth for to come to.


No "Livro da Montaria" de D. João I, num intervalo da caça ao javali, podemos ver exposto um enquadramento doutrinal da Teoria dos Elementos:

"Ora sabede que diz Joam Gil no seu grande liuro de estronomia, que todallas cousas que som feitas, todas som feitas per natura naturante, que he Deus, ou por natura naturada, que Deus fez , que por elle he ordenada, segundo a ordenaçom que lhe elle pos, a qual ordenaçom chamamos nos outros natureza, (...) E este Deus segundo os philosophos que nom forom hereges, derom hum arneço pollo poder deste Deus, e disserom que elle todo sabedor, e poderoso, pollo seu saber e poder fez de nouo húa matéria, a qual nos nom podemos saber que he, nem de que he, senom que lhe chamam todollos philosophos 'ille', da qual fez os quatro ellementos, e que por esta materia, a que elles disserom ille, e que por esto leuarom elles nome ellementos, destes quatro ellementos segundo os philosophos criou Deus, a que elles dizem natura naturante, todallas cousas que som, também ceeos, como as pranetas, e signos, e estrellas..." (Edição de Francisco Maria Esteves Pereira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, pp. 125-6). Adiante referem-se os signos e os "pranetas", que imprimem as qualidades nas coisas sublunares, compostas pelos quatro elementos.


Em termos abrangentes, a Idade Média é uma época livresca e de "autoridades", que se guia pelas Escrituras e pelo Livro da Natureza, com diversas camadas de significação, um universo pleno de símbolos e alegorias. Segundo Jacques Le Goff, o homem medieval habitava uma "floresta de símbolos": "Foi Santo Agostinho que o afirmou: o mundo é constituído por signa e por res, ou seja, por sinais, símbolos, e por coisas". Em resumo, "o homem medieval é um 'descodificador' contínuo". (O Homem Medieval, Editorial Presença, 1989 (L’Uomo Medievale, Gius. Laterza & Figli, 1987), p.27). No aspecto teológico assiste-se à cristianização das esferas. O pseudo-Dionysius viveu nos séculos V ou VI e acreditava-se que os seus trabalhos eram da pluma do próprio Areopagita, convertido por Paulo. Talvez aqui radique a popularidade dos seus tratados teológicos, mormente as suas Hierarquias Celestiais (com os seus Serafins, Querubins, Tronos, etc.), base de toda a ulterior angelologia.

 

O Tempo Qualificado / Os Ciclos Cronológicos

"O homem religioso vive em duas espécies de tempo, a mais importante das quais, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos." (Eliade, M., Op cit., 82). Assim se vivia o calendário e a renovação cíclica do Homem e do envolvimento, em todas as suas valências. Na Astrologia, traduzir-se-á amiudadamente na horoscopia contínua e cíclica.

O múnus do calendário é, evidentemente, qualificar o tempo. Vamos agora referir alguns ciclos ainda mais ambiciosos.

Aveni argumenta que o objectivo do "jogo" da interpretação dos ciclos cronológicos, em diversas civilizações, por exemplo na China, na Índia (Yugas, “eras”) ou entre os antigos Maias (onde o maior ciclo era o kalpa), seria vincular a duração observável e sensível ao tempo gerido ou "dominado" pelas divindades planetárias. Os astrólogos da Pérsia, por exemplo, vão encontrar um sistema (de raíz astrológica) muito cómodo, através das conjunções (com periodicidade de 20 anos) dos lentos e ponderosos planetas Júpiter e Saturno (cada qual enquanto chronocrator, "Senhor do Tempo" na expressão grega). Uma concatenação de conjunções percorre os signos de uma Triplicidade astrológica, conjunto dos signos do mesmo elemento (Fogo, Terra, Ar e Água), mudando de Triplicidade e passando para outro Elemento após 240 anos. Somente após 960 anos (48 conjunções) é que ambos os planetas se conjugam no mesmo signo da mesma triplicidade. Esta será uma ferramenta cronológica e vaticinadora de acontecimentos “globais”, alterações dinásticas, religiosas, grandes cataclismos, etc. Fascinou muitos sábios desde então. Os textos de Ja'far ibn Muhammad al-Balkhī (787-886), Abū Ma'shar (conhecido no ocidente como Albumasar), divulgaram-na na Europa. Kepler estudou-a com denodo. E assim como os astros nasciam, se levantavam no horizonte, e se punham, assim as cidades, os impérios, as igrejas, floresciam e murchavam, envelheciam e morriam, e às vezes renasciam com "vida nova" (Eugenio Garin, O Zodíaco da Vida: a polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI, Editorial Estampa, 1987 (1976), p.47). [Albumasar também se debruçou sobre a questão do aparecimento dos "profetas", articulando as conjunções (grandes) com outras variáveis astrológicas que deveriam ser concomitantes (determinados planetas em certas casas significativas, etc.)]. No que diz respeito à interpretação Renascentista, Garin salienta a tensão entre "a instância humanista (...) que opõe a obra livre do Homem" e a "concepção de um renascer inscrito num carácter cíclico que parece subordinar qualquer acontecimento da hisória humana aos movimentos celestes" (ibid., p.48).


(fonte: North, J. D., Astrology and the Fortunes of Churches, Centaurus 1980: vol. 24, pag.187)

No esquema acima, como exemplo, observamos que a série de conjunções que começa no início de Aries (sendo a primeira identificada como "0") vai percorrendo signos da mesma Triplicidade (Fogo, neste caso) até que na "13" se transita para outro 'Elemento' com a entrada em Taurus (nestas mudanças reside a ancoragem dos grandes eventos históricos). Deste modo, as "grandes conjunções" (i.e., as "normais", de 20 anos, cada qual acontecendo 117º atrás, em longitude), resultam após 240 anos numa "conjunctio major" (designação latina), que acontece quando há mudança de Triplicidade (i.e. conjunção acontece num signo de outro elemento). Todavia, os cálculos não acontecem com rigor astronómico, pois recorrem ao chamado 'movimento médio' (mean motion, que assume velocidade angular constante numa órbita circular) e não o verdadeiro (que tem velocidade angular variável). Após 960 anos teremos a chamada "conjunctio maxima", quando a série volta à Triplicidade original. A estas últimas foram associados eventos civilizacionais, políticos e religiosos muito relevantes (e.g., o Dilúvio, o advento do Islão, a Reforma, etc.). Existindo diferenças, é impossível não relacionar o 'desenho' com teorias como o Grande Ano (que referiremos de seguida), com doutrinas do movimento da 8ª Esfera (Precessão e Trepidação), com os grandes ciclos planetários ou com as cronologias Persas (Zoroastrianas, mormente da época Sassânida) e Indianas (as idades cíclicas da cosmologia Hindu, os Yugas). O sistema de conjunções sofreu adaptações ulteriores, e.g., em Pierre D'Ailly (vide Smoller, L. A., History, Prophecy, and the Stars: The Christian Astrology of Pierre d'Ailly, 1350–1420, Princeton University Press, 1994).

Uma das doutrinas cíclicas respaldadas em Albumasar é o chamado "horóscopo das religiões". As conjunções de Júpiter com cada um dos restantes planetas determinariam "Eras religiosas", e dado que são seis planetas, seis serão as Eras e as sectas principales: a conjunção com Saturno, significa livros sagrados e a religião mais antiga, o Judaísmo; com Marte, a "lei" Caldaica que ensina a adorar o fogo, com o Sol é a "lei" Egípcia e a adoração da milícia celeste conduzida pelo Sol, com Vénus é a "lei" venérea e voluptuosa dos Islamitas, com Mercúrio é a "lei" Cristã e com a Lua é a perturbadora "lei" do Anticristo. Roger Bacon, No século XIII, Roger Bacon, transcreveu este "esquema" no seu Opus maius. E o cardeal Pierre D'Ailly (1351-1420) não hesitará em admitir a dependência astrológica, até da própria 'Encarnação' do Cristo!

É na abordagem pitagórica (ou neopitagórica, pois a mitificação da figura de Pitágoras pelos seus sucessores tornou-o praticamente "insondável"), que em matéria astronómica se baseou em fontes próximas, que assistimos à especulação em torno do "Grande Ano", conceito platónico decerto remotamente originário da Babilónia, onde provavelmente se baseava nos rácios orbitais dos planetas (múltiplo desses períodos). Não se relaciona com a chamada Precessão dos Equinócios, um fenómeno diferente. Para compreender Platão, imagine-se (segundo a comparação de Godefroid de Callatay, professor da UC Louvain) a convergência dos "ponteiros" do grande relógio cósmico, quando os planetas voltam à posição inicial (é o Ano Perfeito, que o filósofo não calcula nem do qual nos dá a demora). O "Grande Ano" e o posterior "Ano Precessional" (que não está relacionado com a astronomia da Mesopotâmia) têm implicações teleológicas, i.e., relacionadas com os fins, as finalidades do Universo. São diferentes entre si mas serão amiudadamente confundidos.

Acerca do 'Grande Ano', desde Santo Agostinho que a perspectiva de um retorno cíclico das sete estrelas errantes [planetas] à mesma configuração era considerada teologicamente "perigosa". Estará mais tarde incluída nas famosas 'condenações' de 219 opiniões pelo Bispo de Paris em 1277. O carácter cíclico contrariava a mensagem Cristã de que a Redenção havia sido possível através do acontecimento histórico, único, do sacrifício de Cristo. (J. D. North, Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, p.37).


Um exemplo da complexidade dos ciclos astrológicos utilizados, e dos intercâmbios culturais em presença, encontra-se no Megillat ha-Megalleh ("O Pergaminho do Revelador") de Abraham bar Ḥiyya (ca. 1065–ca. 1145), obra onde se encontram a astrologia, a ciclologia e o messianismo, a tentativa de previsão da chegada do Messias da Nação Judaica. Segundo Samsó (On Both Sides of the Strait of Gibraltar: Studies in the history of medieval astronomy in the Iberian Peninsula and the Maghrib, Brill, 2020, pp.307-8), Bar Hiyya recorre aos seguintes ciclos:
 
- 4,320,000,000 anos, derivados do Brahmasphuta-siddhānta de Brahmagupta: no momento da Criação, todos os planetas, nos seus apogeus e nodos estavam no início (0º) de Aries, antes de começarem a rodar cada um no seu passo. No final deste período (kalpa) voltarão às posições iniciais;
– 4,320,000 anos (o mahāyuga, igualmente de origem indiana, utilizado no sistema astronómico de Āryabhaṭa, circa 499 AD). O número resulta da multiplicação de 360 por 12,000;
– 36,000 anos (33,000 anos na tradução catalã de Millàs Vallicrosa, anota Samsó);
– 360,000 anos, o "Ano do Mundo" dos persas, usado por Abū Maʿshar; equivale à duodécima parte do mahāyuga, sendo amiudadamente usado na Astrologia do Islão como um tasyir
[ver técnicas dinâmicas na Astrologia] à escala do Mundo, i.e. "Universo";
– 12,000 anos, correspondendo ao intihā' árabe, também à escala do Mundo [o intihā' "comum" era um ciclo de 12 anos no qual um determinado "indicador" progredia, segundo a técnica dinâmica astrológica denominada progressões, um signo por ano.]. Segundo Samsó, é evidente que Bar Ḥiyya confunde aqui dois sistemas (tasyīr e intihāʾ).
– 49,000 anos
– 7,000 anos.
Estes dois últimos ciclos têm provável origem judaica (relacionados com os conceitos de Ano Sabático e o de Jubileu, respectivamente). Os astrónomos de Alfonso X de Castela utilizaram-nos no modelo da Precessão (dos Equinócios) que expenderam, combinando um ciclo precessional regular de 49000 anos com um ciclo de trepidação de 7000 anos..


Astrologia

(...) esos orbes de diamantes,
esos globos cristalinos,
que las estrellas adornan
y que campean los signos,
son el estudio mayor
de mis años, son los libros
donde en papel de diamante,
en cuadernos de zafiros,
escribe con líneas de oro,
en caracteres distintos,
el Cielo nuestros sucesos
ya adversos o ya benignos...

(Pedro Calderón de la Barca, excerto de La vida es sueño, 1635)


"Les infatigables "Égyptiens" [i.e. gregos ou 'helenizados' no Egipto Helenístico] poussaient bien plus loin les spéculations sur les couleurs du Soleil et de la Lune, non seulement pendant les éclipses (e.g., Hephaest., I, 21), mais au lever, au coucher des luminaires, ou même "pendant tout un jour". Le Soleil, sans être éclipsé, peut être "terni" au point de ressembler à un miroir, ou à une Lune, et de laisser voir des « astres » en plein jour; il peut être ocreux ou rouge au point que le sol a des reflets sanguinolents; tout cela, selon le signe où il se trouve, a un sens et une adresse." (Bouché-Leclercq, L'Astrologie grecque, 1899, pp.355-56)


Para o classicista, filólogo e historiador Franz Boll (1867-1924), a Astrologia era o mais peculiar "centauro" alguma vez produzido pela Religião e pela Ciência. 

Num epítome feliz, "após seguirmos as imagens, acreditámos nas imagens" (Aveni, Op cit., 1994, ch.5). A Lua, "estrela" mais próxima e intermediária, presidia aos ritmos e "canalizava" os "influxos". Cada estrela (luminares e planetas) possuía as suas qualidades elementares, dignidades essenciais (designadas "quilates" pelos nossos tratadistas do séc. XVII) e acidentais (estas últimas em função da geometria (os "aspectos") e da presença "em corpo" em determinado Signo) e os seus "Domínios".

Luna, Selene, Cynthia, "fria e húmida", preside sobre as Águas:

...the moist star,
Upon whose influence Neptune's empire stands.

(Shakespeare, Hamlet, Act.1 Scene.1)


Numa das suas mais perenes associações, a Astrologia aplicada à Medicina (Iatromathematica, do Gr. yatrós, "médico" e mathematica; os astrólogos eram os mathematicus) articulava-se com a Teoria dos Elementos e reflectia-se nas quatro “virtudes” dos seres vivos, expressas por Galeno: a atractiva (quente e seca), a digestiva (quente e húmida), a expulsiva (fria e húmida) e a retentiva (fria e seca):

Every living being, plants as well as animals, was provided by the Creator with the four ‘natural faculties’ of attraction, assimilation, excretion and growth. Each part of the body had thus the potentiality, as a result of its elemental organisation, to feed on this nutritious blood, to assimilate whatever it needed to grow and to function, and to excrete potentially harmful residues that it no longer needed. The body was a living universe, responding to changes and actively seeking whatever it needed in order to exist and to function. (Nutton, V., Ancient Medicine (2nd ed.), Sciences of Antiquity, Routledge, 2013, p.239)

Era, tradicionalmente, através do ciclo da Lua que se fazia a análise da evolução das doenças. Os chamados Dias Críticos eram fortes indicadores para se perceber se o doente recuperava ou morria. Eram contados a partir da posição da Lua no início da doença (decumbitura). Os dias em que o médico previa o aparecimento de uma crise.

Genethlialogia - Fludd
Gravura que acompanha o capítulo "De anima vitalis cum intellectuali Scientia, hoc est, de Genethlialogia" (Tomi secundi, tractatus primi, sectio secunda de technica microcosmi historia) do monumental e eclético Utriusque cosmi, maioris scilicet et minoris... ("Dos dois Mundos, nomeadamente do Maior e do Menor..."), de Robert Fludd (Oppenheim, J. Theodor de Bry; Hieronymus Galler (impr.), 1617-21)


O historiador Kocku von Stuckrad (História da Astrologia: da Antiguidade aos nossos dias (Geschichte der Astrologie, Verlag C. H. Beck oHG, 2003); trad. Kelly Passos, São Paulo, Editora Globo S.A, 2007) procurou fazer uma leitura a partir do conceito de "tempo interpretado" e cita Anthony Grafton: "A continuidade da tradição astrológica é única na história das humanidades no mundo ocidental". Quanto ao tempo qualificado, a astrologia postula uma correspondência entre os nível celestial e o terrestre, uma correspondência que é construída basicamente sobre analogias simbólicas. Os astrólogos não foram unânimes ao julgar como essa correspondência se realiza - se existe uma sincronia misteriosa, uma interligação geral de todos os seres, ou se os astros influenciam a Terra de maneira causal. No enquadramento nas disciplinas esotéricas, e atendendo à periclitância da definição do termo, Stuckrad respalda-se na definição através da qual Antoine Faivre propôs descrever o esoterismo como uma forma de pensamento no qual a realidade é concebida de um modo específico. Essa definição heurística foi apresentada nos anos 90 do século passado. Algumas características básicas são aqui resumidas:

- Pensar em termos de correspondências (diferentes níveis de "classes" da realidade), visíveis e invisíveis estão ligadas por um elo; O Universo é visto como uma espécie de teatro de espelhos onde todas as coisas podem conter referências a outras coisas;

- A ideia de natureza viva entende o Cosmos como sistema complexo, dotado de alma e banhado por uma energia viva;

- Imaginação e mediações indicam que o conhecimento acerca das correspondências exige imaginação simbólica ou revelação por "autoridades espirituais";

- Finalmente, a experiência da transmutação cria um paralelo entre a acção exterior e a vivência interior (evoca-se o exemplo da Alquimia).

Aos traços "intrínsecos" já expostos, Faivre acrescentou mais dois elementos: a prática da concordância esforça-se em encontrar um denominador comum ou “origem primordial” e o conceito de transmissão ou iniciação.

Hermes - catedral de Siena
Hermes representado num mosaico renascentista do pavimento da Catedral de Siena (Giovanni di Stefano, 1488). O mítico sage é aqui apresentado como "Hermes Mercurius Trimegistus contemporaneus Moisy" , i.e. "contemporâneo de Moisés" e suposto profeta de Cristo, prestigiosa informação que radica numa equivocada e "forçada" interpretação que recua a Lactâncio (Lucius Lactantius, autor cristão do séc. IV), vide Roelof van den Broeck, Wasn't Hermes a prophet of Christianity who lived long before Christ?, in: Hanegraaff, W, Forshaw, P. & Pasi, M., (eds.), Hermes Explains: Thirty Questions about Western Esotericism, University of Amterdam Press, 2019, pp.54-60


É neste ponto que Stuckrad argumenta que a Astrologia é uma "disciplina-chave" dentro do conjunto de tradições esotéricas. Deve-se, sobretudo, à sua neutralidade e abstracção, já que trabalha com um número limitado de “princípios cósmicos primordiais', que são suficientemente amplos para serem aplicados em concretizações diversas, como o princípio “inibidor” ou o princípio “propulsor”, mas permitem, ao mesmo tempo, uma grande variedade de combinações. As interpretações astrológicas baseiam-se em combinações sempre novas de um número limitado de elementos. O historiador conclui o seu estudo subscrevendo o que "Girolamo Cardano já sabia no século XVI: a astrologia não é uma ciência matemática, e sim hermenêutica". Não mede o tempo, interpreta o tempo.


Percurso...

Relacionando judiciosamente a origem da horoscopia com a Filosofia e a Cosmologia, Richard Gordon resume: "Most Hellenistic philosophers allowed that Fate was inexorable and granted it some limited place in their cosmological schemes. All these sytems in turn were heavily indebted to the rationalisation of the cosmos as a (benignly ordered) geo‒centric system developed by Eudoxus of Cnidus and Callippus of Cyzicus in the mid‒fourth century BCE, and progressively refined thereafter. With the impetus provided by the Babylonian calculation of solar, lunar and planetary positions, standardised in ephemerides (handy tables), the concept of the fixed zodiac, and primitive ‘horoscopes’ based on the day, month and year of birth, all of them schemes and techniques mediated into Greek in Seleucid Babylonia, the various modes and techniques of Greek horoscopal astrology were created – that is ‘emerged’, since all relevant names are pseudonyms such as ‘Zoroaster’, ‘Hermes’, ‘Nechepso’, ‘Petosiris’, even ‘hierogrammateis’ (i.e. senior Egyptian temple‒priests) ‒ no doubt in Alexandria, during the later third and second centuries BCE. This intense pseudonymous/anonymous labour produced what is today known as the ‘Hellenistic vulgate’. The notion of an immutable futurity, what the IVp author Firmicus Maternus terms fatalis necessitatis lex, a fixed law of absolute necessity, was generally asssumed by practitioners to be basic to the entire project of using the heavenly bodies ‒ regarded as visible divinities whose predictable movements follow unchanging laws - as a reference - point for divination. This was of course to pitch the claim to have found a means of rationalising uncertainty at the highest conceivable level, above all when it was a matter of the major art, that of genethlialogical astrology, the art of casting nativities for the entire life of an individual. The result, inevitably, was not merely a flight into complexity but an assiduous lack of interest in the theoretical underpinnings – a practitioner such as Vettius Valens in the High Empire could write an entire handbook of genethliacal astrology without once mentioning the problem of mediation, that is, how the stars affect human life." (Will my Child Have a Big Nose?: Uncertainty, authority and narrative in katarchic astrology, in Rosenberger, Veit (ed.), "Divination in the Ancient World: Religious Options and the Individual", Franz Steiner Verlag, 2013,  pp.97-98)


O estatuto 'científico' da Astrologia remonta aos primeiros horóscopos babilónicos do séc. V a.C. Na Mesopotâmia, tudo aponta para uma prática astrológica através de augúrios, baseada em "sinais" e "indicadores" de origem divina, não uma dinâmica de causalidade directa. Após a definição de um sistema de "marcadores" e da invenção do zodíaco, as  passagens dos luminares e planetas de um para outro signo eram provavelmente muito relevantes astrologicamente (Neugebauer, O., HAMA, p.412). A Lua, por exemplo, era observada no seu movimento, na região do céu que atravessava, na direcção em que era observada e na fase; mas também a coloração e tonalidade, a forma dos seus "cornos", o eventual brilho da região não iluminada (se envergava um agu, "tiara" ou "manto real"), eventual coroa de luz ou halo (vide Pannekoek, p.43). O vasto acervo de antigos augúrios, muitas vezes copiado, está na origem da compilação de setenta tabuínhas conhecida como Enuma Anu Enlil (Rochberg, F. (1988), Babylonian Horoscopes, Transactions of the American Philosophical Society, 1998, x). A partir de finais do séc. V a.C. surgem na Babilónia provas arqueológicas da prática de uma "horoscopia" individual, que influencia mas é todavia diferente da helenística em muitos detalhes, e.g., ênfase na hora e não num ponto ascendente da eclíptica, diferente abordagem cosmológica/filosófica/religiosa, etc. (ibid., pp.1-2). O texto dos exempla disponíveis é lacónico.
[Os "horóscopos" mesopotâmicos não podem tecnicamente ser classificados como uma modalidade de horoscopia (ou 'astrologia horoscópica'), pois não recorrem ao Ascendente ou à domificação (divisão das 'casas').]

Na época Helenística, floresce uma literatura astrológica escrita em Grego, que aglutina elementos mesopotâmicos, egípcios e gregos. Os chamados "Livros Herméticos", que contém toda uma teologia baseada num misticismo astral vão disseminar-se pelo mundo romano (vide Lloyd-Jones, Hugh, Myths of the Zodiac, Gerald Duckworth & Co., 1978). O determinismo Estóico e a religião astral da Mesopotâmia eram "aliados naturais". A Astrologia Helenística respalda-se no conceito de um Kósmos interdependente, enformado por princípios de "simpatia" e correspondência, do qual o ser humano é parte integral. Nela encontramos um reflexo da physis grega, da Teoria dos Elementos, da geometria.


Horóscopo do Leão - Nimrud Dag
Afirmação de poder recorrendo ao simbolismo astrológico. Molde do "Horóscopo do Leão", por Karl Humann, 1883 (Staatliche Museen zu Berlin). O Horóscopo do Monte Nemrud (Nemrut Dağ, em Turco) de Comagena (pequeno reino Helenístico com capital em Samosata). Data da época de Antiochos I, séc. I a.C. Trata-se de uma estela (laje de pedra mede 2,40m por mais de 1,80m de altura) de um conjunto de cinco. O relevo, astrologicamente relevante, representa a constelação do Leão onde se sobrepõem dezanove estrelas. Assim, Regulus (gr. Βασιλίσκος "a estrela régia"), visível acima do crescente lunar, assinala apropriadamente o "coração" do poderoso animal. Em cima, à esquerda, são representados os planetas Marte, Mercúrio e Júpiter, identificados por inscrições (F. K. Dörner, J. H. Young, Sculpture and Inscription Catalogue, In: Donald H. Sanders, "The Hierothesion of Antiochos I of Commagene", Eisenbrauns, 1996, pp.252–54)


Na opinião de A. Pannekoek, a partir da abordagem grega, os planetas já não são "sinais" mas sim "causas": "(...) now that the planets had become world bodies describing their orbits in space, calculable by theory, their character had changed; their course was not a sign but a cause of the happenings on earth." (Op. cit., p.131). Como J. Tester resumiu (A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999 (1987), p.59), a Filosofia Grega incluia a ponderação racional do mundo físico. E a Astrologia somente se desenvolve plenamente a partir da racionalização de um Universo ordenado e inteligível. Os Elementos e as Qualidades serão pivotais. A doutrina dos Elementos é mais antiga do que a Filosofia. No séc VI a.C. Tales de Mileto adoptou a 'Água' como elemento primordial, Anaxímenes o 'Ar' e Heráclito o 'Fogo'. Os dois últimos pré-socráticos faziam derivar os outros elementos a partir da 'primeira matéria'. O Ar, a Terra e a Água representavam os três estados comuns testemunhados (gasoso, líquido e sólido, respectivamente). O Fogo era diferente: provenienente de matéria sólida, extinguido pela água, simulltaneamente fonte de luz e calor [As chamas que vemos provêm do fogo impuro, e é essa imperfeição que o torna visível. O fogo no estado puro, elementar, situa-se imediatamente abaixo da esfera da Lua, é não adulterado e totalmente transparente]. Um quinto elemento foi imaginado pelos Pitagóricos: o Éter, qual "fogo celeste", provavelmente porque, estando filosoficamente respaldados na Matemática, no Número, quiseram que se verificasse uma equivalência com os cinco sólidos regulares (i.e. de faces iguais), um para cada "elemento" (cubo-terra, pirâmide-fogo, octaedro-ar, icosaedro-água e dodecaedro-éter). Mais importante, os Pitagóricos "canonizaram" outra doutrina ancestral, a dos 'Opostos': um-muitos, limitado-ilimitado, ímpar-par, macho-fêmea e por diante. Estas polaridades e complementaridades percorrem a Filosofia Grega e, particularmente, a sua Medicina. Foi Zenão de Eleia que a partir de dois pares destes opostos (quente-frio e húmido-seco), criou o resto a partir deles. E Aristóteles, na sua Física, coalesceu as duas doutrinas e gizou os seus quatro "corpos simples": Fogo, Ar, Água e Terra a partir de, respectivamente: 'quente e seco', 'quente e húmido', 'frio e húmido' e 'frio e seco'. (De Gen. et Corrup., II). Alguns Estóicos interpretaram, simplificando as equivalências: fogo-quente, ar-frio, água-húmido e terra-seco. Os Elementos, as Qualidades e os Opostos passaram a fazer parte dos alicerces do pensamento Clássico tardio, especialmente da Medicina. E foram esses mesmos Estóicos que tornaram praticamente unânime outra importante doutrina: a Unicidade do Cosmos, incluindo o Homem. Todas as coisas, afirmavam, estavam ligadas pela mesma energia cósmica, ou logos, "razão" [conceito de um Cosmos interdependente]. Coube a Ptolomeu, no espírito filosófico e científico da sua época, coligir no seu influente tratado astrológico estes princípios considerados "coerentes" e racionais.


Filosoficamente, a recepção da mundividência astrológica foi multifacetada (seguimos
resumo do enquadramento filosófico e científico gizado por J. Tester):

Uma corrente estruturante com enorme 'autoridade' era, obviamente, a dos Aristotélicos (os Peripatéticos) do "Lyceum". Duas escolas ou "seitas", os Cépticos e os Cínicos, eram naturalmente adversos à Astrologia. Os seguidores de Platão, na Academia, eram muito mais abertos, tendo assimilado conceitos de outras correntes filosóficas e místicas. Entretanto, duas influentes escolas na percepção que viremos a ter do Homem e do seu lugar no Mundo serão a Epicurista e a Estóica. A primeira, cujo pensamento conhecemos principalmente a partir do De Rerum Natura, de Lucrécio (Lucretius) era ateísta e materialista (admitindo somente a existência dos "átomos" e do "vazio"), demarcando-se de intervenções divinas e "supersticiosas" e promovendo a tranquilidade através da indiferença ou ausência de medos (ataraxia) e do sofrimento físico (aponia), cultivando a serenidade e o conhecimento dos limites para os desejos. Era prática e empirista, rejeitando obviamente a Astrologia pelo seu vínculo às aspirações e emoções humanas. O Estoicismo era tecnicamente "materialista" mas com nuances. Não admitia a separação entre a matéria e o espírito. Adoptaram os quatro elementos e ainda o quinto elemento subtil ("aether", o éter), provavelmente por via aristotélica. Para os estóicos, a alma era material mas mais subtil, interpenetrando o corpo e, após a morte, voltando ao ambiente etéreo dos céus. A mundividência era fatalista, regulada pela ideia de Destino e de uma "simpatia cósmica" que era, deste modo, perfeitamente compatível com a Astrologia. Adequou-se, principalmente pelos ensinamentos de Posidonius, ao modus Romano, com o seu sentido do dever perante o Estado e da  participação política. (Op. cit., pp.51-2 e 59-60),


A Astrologia sumariza, como vimos, contributos das diversas culturas intervenientes. No princípio reside a concepção Babilónica de que a configuração dos céus e os fenómenos astronómicos (e meteorológicos) concomitantes com o nascimento do indivíduo fornecem uma base para o prognóstico da sua vida.
Do Egipto adapta o antigo conceito de "observação da hora" (que acontecia recorrendo a um sistema de decanos), segundo o qual os pontos do Zodíaco que sucessivamente atravessavam o horizonte ou o meridiano 'significavam' e qualificavam esses momentos específicos. Formatada por conceitos Gregos, continuará no período Bizantino e será extremamente apelativa para a civilização Islâmica. Chegará, através da vasta literatura dos seus tratados, ao Ocidente Latino.

[N.B.: no passado, "constelação" raramente significava uma figura ou padrão permanente, como para nós; era uma configuração transitória, temporária das posições relativas dos astros no céu, conceito intimamente relacionado com a sensibilidade astrológica.]

A origem da chamada Horoscopia Helenística (i.e. prática astrológica individualizada que valoriza o Ascendente e os restantes cardines), baseada na "tetralogia" Planetas - Signos - Lugares (as "Casas") - Aspectos, recua aos textos em Grego, redigidos no Egipto, que se reclamam da "linhagem" dos considerados "Antigos" (em rigor são autores dos séculos I e II a.C. que se ocultam sob os nomes de Hermes-Asclepius-Nechepso-Petosiris). amiudadamente citados nos textos dos séculos I e II AD. Esta modalidade combina, no mínimo, contributos Mesopotâmicos, Egípcios e Gregos. O nosso conhecimento é provisional e sempre condicionado pela leitura dos intérpretes gregos, daí se referir a "miragem" do Egipto, preteritamente estudado somente "de fora" (perspectiva actual enfatiza o "transaccional" e "dialógico", e.g., em Ian Moyer, Egypt and the Limits of Hellenism, Cambridge U. P., 2011). Ainda se discutem as contribuições específicas de cada uma destas culturas, bem como a cronologia da evolução ou do aparecimento de conceitos e técnicas fundamentais. Em todo o caso, esta "arqueologia" padece de lacunas documentais que impedem uma delineação clara das fontes e da tramitação do conhecimento. Muitos conceitos (para além dos inequivocamente documentados, como o Zodíaco esquemático) parecem possuir um precedente (ou um paralelo) mesopotâmico (e.g., as 36 estrelas de referência podem ter tido uma função análoga à dos decanos, parece existir um esboço das "triplicidades", etc. Mas o que distingue a sofisticada abordagem helenística, formalizada nos autores dos séculos I e II, é a ênfase geométrica numa estrutura esférica, tridimensional (não apenas aritmética como no Oriente Próximo), o eclético suporte filosófico grego, particularmente o Aristotélico (muito evidente em Ptolomeu), conceitos pitagóricos, platónicos e a mundividência estóica, o recurso ao conceito dos Quatro Elementos e suas Qualidades, etc. O período entre o aparecimento da astrologia natal (não horoscópica) na Mesopotâmia (durante o período da dominação Aqueménida) e esta modalidade mais "sofisticada" está pouco documentado. Antes disso, como sabemos, temos o que parece ser a origem da Astrologia: a prática da observação e dedução de augúrios patrocinada pelo poder instituído, desde os séculos VII ou VIII, profusamente documentada nas bibliotecas de tabuínhas em escrita cuneiforme.

aspectos - B Leclercq p.173
Os Aspectos, relações geométricas fundamentais na abordagem astrológica (Auguste Bouché-Leclercq, L'Astrologie Grecque, Paris, E. Lerous, 1899, p.173)


Jean-Patrice Boudet explica o ambiente medieval: "...adeptos de uma visão muito determinística, tais como Abu Ma'shar (Albumasar), séc. IX, e os seus seguidores italianos do séc. XIII, Guido Bonatti e Pietro D'Abano, podem neste contexto ser confrontados com alguns dos maiores adversários da possibilidade divinatória astral: o médico Avicena, o historiador ibn Khaldun (séc. XIV), os franceses Nicole Oresme (1322–1382) e Jean Gerson (1363-1429) ou o italiano Pico della Mirandola (1463-1494). A Astrologia Bizantina, muito dinâmica na esfera dos horóscopos políticos a partir do séc. V, beneficia dos contribulos Islâmicos a partir do séc. VIII. Floresce até à queda de Constantinopla (séc. XIV) através da escola de Johannes Abramius. No Ocidente latino, a situação é radicalmente diferente até ao começo do séc. XII, pois os trabalhos dos matemáticos gregos e árabes eram quase desconhecidos. Durante a Alta Idade Média, a astrologia não foi considerada muito diferente da adivinhação por augúrios, consequentemente patrísticamente condenada. Modalidades muito simplistas, traduzidas do grego, floresceram a partir do séc. VIII: esferas de "vita e mors" (atribuídas a Pitágoras, Petosiris ou Apuleio), prognósticos baseados num ciclo lunar imaginário de 30 dias ("lunaria") ou nas posições zodiacais do Sol e da Lua (zodiologia) [Filões de literatura técnica com origem na Antiguidade tardia, muito comuns no ocidente na Alta Idade Média, populares e assoberbados por ingenuidades numa época da qual não se conhecem horóscopos ou nomes de astrólogos] Na ausência de tabelas astronómicas e instrumentação, a horoscopia foi ignorada até à segunda metade do séc. X, com o aparecimento de um 'corpus' designado "Alchandreana", parcialmente traduzido do árabe, que permitia gizar horóscopos segundo princípios numerológicos. A disponibilidade de um 'corpus' astrológico informado, veiculando um sistema hierarquizado de conhecimento e levando em consideração um elevado número de parâmetros, aconteceu somente a partir do séc. XII com as traduções latinas de tratados que divulgaram as regras, tabelas astronómicas e instrumentos exigidos à prática da horoscopia e dos 'julgamentos'". ("Astrology", in Glick, T., Livesey, S. and Wallis, F., Medieval Science, Technology and Medicine, An Encyclopedia, Routledge, 2005, p.61 et seq. [trad. nossa]).


O poeta e filósofo platónico Bernardus Silvestris (séc. X), autor de um prosimetrum (texto em prosa e verso) sobre a criação do mundo, descreve como a figura simbólica da "Mente" ou "Inteligência" do Universo (gr. νοῦς, nous) desvela como o céu, na sua polimorfa variedade de imagens, é como um livro aberto contendo o futuro inscrito em letras crípticas, reveladas (somente) perante os olhos dos mais sábios. Os mais influentes enciclopedistas medievais (Guilherme de Conches, Hugo de São Victor, et al.) discutem a Astrologia de um modo que sugere apenas uma familiaridade sueperficial e uma ténue consciência do que esta de facto pressupõe. Preservam o claro confinamento dos "poderes" das estrelas ao "corpóreo" (saúde, meteorologia e assim por diante), não envolvendo a determinação do destino da vida. Estes relatos surgem, amiudadamente, no âmbito de considerações acerca de assuntos como o herbalismo, a geomancia ou a numerologia. O que vemos emergir no século XIII, com o advento do aristotelismo, é a perspectiva de que ciências (no sentido da época) como a Astrologia funcionam porque são mecanismos naturais concebidos por Deus para o governo da sua Criação. Um conhecimento natural independente da Revelação a partir do qual o intelecto humano pode inferir o carácter do Criador. A Astrologia será pois uma faceta da visão da Natura como entidade autónoma, criada para operar de modo racional. Poderia, deste modo, ser articulada com a doutrina Cristã. O sábio Inglês Robert Grosseteste (c. 1168-1253) declara como a Natureza precisa do apoio da Astronomia (Astrologia), pois há poucas operações no seu seio que não estejam sob a sua orientação quando transitam de potência a acto. Exemplifica com o crescimento das plantas, a transmutação dos metais e a cura das doenças.

A Astrologia assumirá as duas vertentes: "natural" e "judiciária". Uma reflecte a inquirição no âmbito da Philosophia Naturalis ou estudo do "Livro da Natureza". A segunda foi desde cedo e amiudadamente proscrita (leis e diatribes contra os mathematici, genethliaci e prognosticadores, documentados deste a época Clássica). Entretanto, o sistema é integrado na doutrina Cristã, salvaguardando o fundamental livre arbítrio (as decisões individuais que determinam beatitude ou danação ad aeternum). Assim, a "influência" dos astros restringe-se aos eventos corpóreos (na Summa Contra Gentiles, Tomás de Aquino é taxativo: "é impossível que a operação do intelecto esteja sujeita aos movimentos celestes" (III. 84)): . Serão Causas Secundas, em relação à Divina Providência, a "Causa Primeira".

Na chamada "Crónica de Portugal de 1419", um conselheiro de D. Afonso IV toma a palavra: "Senhor", disse, "os sabedores que amte nós forom, aynda que às costelações [i.e. configurações astrológicas do céu, no todo] grande poderio dessem, nom leyxarom porem de asynar livre alvidro [alvedrio, arbítrio], ho qual muitas vezes pode fazer as costolaçoes serem  verdadeyras. E, posto que elas sejam juizes de inteligemçias que naturalmente mentir não podem, o sobrenatural Regedor as priva muytas vezes de seus naturaes efeytos por responder com justiça aos mereçimentos do livre alvidro...". Um pouco adiante: "E, pois que as costelaçoes e fados sam findos e a graça de Deos he infinda, ho infindo de neçesidade vemçerá o que for findo. fazendo çesar a costelaçao de sua detreminada obra." (Crónica de Portugal de 1419, ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, pp.242-3).

A Astrologia, como um todo, fará parte do Quadrivium, o segundo patamar das Artes Liberais.

Na mundividência medieval, a alma é distinguida em três componentes ou modalidades hierarquicamente organizadas: "thre manere soulis . . . vegetabilis that geveth lif and no feling, sensibilis that geveth lif and feling and nat resoun, racionalis that geveth lif, feling, and resoun." (Bartholomaeus Anglicus, De Proprietatibus Rerum). Ou seja, a vegetativa, a sensitiva e a racional, esta última exclusiva do ser humano.

Contudo, foi sendo paralelamente sugerido que os poderes dos signos e dos planetas seriam, na realidade, "pessoais", espíritos (daemones) que podiam ser invocados (v. por exemplo o Liber Intelligentiarium de Antonius de Monte Ulmi (Montuolmo), activo em Bolonha por volta de 1380). De resto, assistimos a curiosas "acomodações" das práticas religiosas à Astrologia. Como exemplo, o astrólogo da corte de Mântua Pellegrino Prisciani (1435–c.1518) aconselha a Marquesa Isabella d’Este Gonzaga a encetar as suas orações apenas no momento da benéfica configuração da chegada da 'Cauda do Dragão' (Cauda Draconis, um dos nodos lunares) ao Meio-Céu, pois aumentará a eficácia (Graziella Federici Vescovini, The Theological Debate, p.117, in: Dooley, B. (ed.), "A Companion to Astrology in the Renaissance", Brill, 2014 ; ver também: Sophie Page, Magic in the Cloister. Pious Motives, Illicit Interests, and Occult Approaches to the Medieval Universe, University Park, Pennsylvania State University Press, 2013).
 
O desconforto da Igreja com estas elucubrações que ultrapassavam a vertente "natural" expressa-se, mais tarde, na bula papal Coeli et Terrae (expendida por Sisto V em 1586). A sua base doutrinal remete para o princípio de que somente Deus pode conhecer o futuro, assim condenando a judicatura. Em 1633, Urbano VIII emite a bula Inscrutabilis, na qual as prognosticações acerca das crises na Igreja e nos reinos são particularmente visadas. (v. Whitfield, Op. cit., 2001, p.163)


Entretanto, tudo se alterará na chamada "Idade Moderna", com o novo paradigma científico e o ideário das 'Luzes'. Pierre Gassendi (1592-1655) já manifesta a nova "atitude científica". No Livro VI do seu Syntagma philosophicum, t.I, pt. 2a, Sectio II, questiona quais os efeitos que as estrelas produzem nas "regiões inferiores" e como se produzem. É consensual que o primeiro efeito é a luz, especialmente a do Sol; o calor-secura e o frio-humidade provêm da Terra. E estes determinam os efeitos secundários do tempo e das estações. E estes são óbvios mas indiscriminados e gerais, acontecendo aqui e agora de modo puramente acidental. O futuro pode ser conhecido a partir das causas - a Primavera significa que as flores vão desabrochar - ou sinais - a aurora significa que o Sol vai nascer. Se a predição astrológica não é qualquer destas, não é praenotio (conhecimento antecipado) mas conjectio (palpite). (...) Existem, claro, causas pelas quais cada homem (indivíduo) é como é, mas estas residem nos próprios indivíduos e neste mundo, não nas estrelas. A única maneira de discernir que influências dos céus se verificam na Terra é o 'modo científico', através de Observantia nempe sive Experientia ("nomeadamente observação ou experiência"). (Tester, Op. cit., 231-32)

Como von Stuckrad explica, o lugar do Homem como centro da criação perder-se-á. Da Antiguidade até o século XVII havia, a bem da verdade, um consenso de que as Leis do Céu e da Terra seriam basicamente diferentes, como Aristóteles ensinara. Somente o mundo sublunar estaria exposto às leis da mudança e da decadência. Como consequência da nova filosofia, graças à igualdade de leis terrestres e celestes, o estudo das coisas comuns pode esclarecer as características universais do Cosmos. Desse modo, tanto a divisão aristotélica entre matéria e forma foi abalada, como também a opinião de que existiam conexões ocultas (e.g., "simpatia"). De acordo com a visão de mundo mecânica (pós-newtoniana) doravante defendida, somente explicaçòes físicas, como a gravidade das partículas, podem ser consideradas em tais ligações. Não pode haver dúvida acerca do efeito radical do novo pensamento. (Op. cit., p.279 et seq.)


Um aspecto curioso diz respeito à suposta "história milenar" da Astrologia. O problema é antigo. No De Divinatione
(tratado em dois livros sob a forma de um diálogo) de Cícero, é referida como inverdade a antiguidade da astrologia dos Babilónios, que recuaria a 470 000 anos (I. 19; Loeb) durante os quais teriam sido feitos os horóscopos de todas as crianças e testados os seus resultados (II. 46). Seriam 473 000 anos segundo Diodoro (Diodorus Siculus, II. 31). Estes valores recuam a Berossus (gr. Βηρωσσος; um acreditado "sacerdote de Bel-Marduk" helenizado que se instalou na ilha grega de Kos no séc, III a.C.) e variam segundo os autores que o citam. Simplikios (Lat. Simplicius, comentador do séc. VI) parece ter acreditado numa antiguidade ainda maior. Segundo Bouché-Leclercq, o egípcio Manéthōn e Berossus parecem "competir" entre si, afirmando a prioridade do Egipto ou da Mesopotâmia, respectivamente. No entanto, mesmo os autores menos crédulos acreditavam estar perante uma tradição antiga e os gregos assumiam tranquilamente o papel de "aprendizes": "Les Hellènes se prêtaient d'eux-mêmes à ce rôle de néophytes" (L'Astrologie grecque, p.35). Algumas "Histórias da Astrologia" não somente suportam acriticamente episódios sobre "vaticínios" que na realidade foram forjados a posteriori (logo retrospectivos ou confirmatórios) como dão eco a cronologias fantasiosas, embora não rivalizando com o oriental Berossus, com Firmicus Maternus (autor do Liber Matheseos, conhecido como Mathesis ou De Nativitatibus, séc. IV), e outros no que respeita à informação da prodigiosa "antiguidade" das "observações" Caldaicas. Há também, desde o séc. XIX, toda uma literatura com enfoque nas manifestações culturais e iconografia de diversas civilizações em resposta ao deslocamento do Ponto Vernal (Precessão dos Equinócios) e das diferentes "Eras Zodiacais", projectando no passado espantosas datações e até argumentando um (extremamente improvável) conhecimento científico arcaico desse fenómeno (é a tese de Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend em Hamlet's Mill, Boston, Gambit, 1969).

A tendência para a fantasia continua, sem os exageros pretéritos mas com a mesma falta de rigor nas inúmeras obras de divulgação contemporâneas. Joanna Woolfolk, no best seller "The Only Astrology Book You’ll Ever Need (Taylor Trade Publishing, 2008), escreve estas coisas notáveis (p. 371):

"The path of the stars was recorded 6,000 years before Christ was born. As early as 2767 b.c., a horoscope was cast in Egypt by Imhotep, the architect of the great Step pyramid in Saqqarah. That horoscope still exists! Ancient astrologers charted the movement of planets and stars, and made predictions about eclipses, upheavals, famine, and fortune. They developed calendars for marking and measuring the passage of time. You can still read star charts that were made by Egyptian astrologers in 4200 b.c. In ancient societies, astrology and religion were inextricably linked." [Na realidade, os horóscopos, ou mesmo o Zodíaco dividido em doze sectores de 30º cada, não existem antes do séc. V a.C., o horóscopo de uma natividade mais antigo que conhecemos data de 410 a.C. (Rochberg, Babylonian Horoscopes, p.3) e a horoscopia genetlíaca como a reconhecemos, de matriz greco-egípcia, surge somente no período Helenístico. A referência a Imhotep deve ter saído de um mau argumento de Hollywood!]

Convém não esquecer a chamada "Astrologia Védica" (na realidade não se encontra qualquer vestígio de horoscopia nesses antigos textos) e que por vezes se reclama de uma antiguidade assombrosa, baseada nos ciclos temporais míticos das tradições religiosas do Indostão (e.g., yugas, manvantaras) e numa interpretação literal das antigas epopeias. Impregnados de um nacionalismo pouco saudável, alguns praticantes fazem recuar a origem da sua astrologia (supostamente autóctone e independente de influências "bárbaras") tão cedo que receamos recuar ao Cretácico ou até à própria origem do Sistema Solar! Um perfeito absurdo que não faz justiça às influentes e riquíssimas culturas em causa que, não sendo estanques, tanto receberam como exportaram (o sumamente importante "zero" é conceito indiano, bem como tantas ideias e elucubrações religiosas e filosóficas, o infinito do próprio Tempo (Kãla, também associado à morte), as ideias-base teosóficas, novas sensibilidades nas cogitações científicas (por exemplo a influência no trabalho de Fritjof Capra et al.) e nas crenças do quotidiano de tantos e tantos seres humanos pelo mundo fora). Os académicos indianos são obviamente mais moderados mas não estão isentos desse complexo, dirigindo amiudadamente investigações no sentido de provar a prioridade dos textos da sua tradição.

NB: os Vedas foram registados ao longo de séculos, a partir da tradicional transmissão oral e recitatória. Os mais antigos datam c. 1500-1200 a.C. (alternativamente foi proposto o intervalo 1700-1100). A análise filológica coloca-os na segunda metade do segundo milénio (texto mais antigo disponível estimado em 1200 a.C.). [Fontes: Anthony, David W. (2007), The Horse, The Wheel And Language. How Bronze-Age Riders From the Eurasian Steppes Shaped The Modern World, Princeton University Press; Oberlies, Thomas (1998), Die Religion des Rgveda: Kompositionsanalyse der Soma-Hymnen des Rgveda, Wien: Institut für Indologie der Universität Wien; Flood, Gavin, ed. (2003), The Blackwell Companion to Hinduism, Malden, Blackwell; Witzel, Michael (2001), "Autochthonous Aryans? The Evidence from Old Indian and Iranian Texts", Electronic Journal of Vedic Studies, 7 (3): 1–115; Kumar, Jay (2014), "Ayurveda and Early Indian Medicine", in Johnston, Lucas F.; Bauman, Whitney (eds.), "Science and Religion: One Planet, Many Possibilities", Routledge]

- (mais alguns tópicos acerca da perspectiva astrológica)


Anotações de um céptico

A opinião científica actual foi resumida por Philip C. Plait (Mars Is in the Seventh House, But Venus Has Left the Building: Why Astrology Doesn’t Work, in "Bad Astronomy", John Wiley & Sons, 2002): Astrology lacks any sort of self-consistency in its history and in its implementation. There is no connection between what it predicts and why it predicts it, and, indeed, it appears to have added all sorts of random ideas to its ideology over the years without any sort of test of the accuracy of these ideas. (p.213). E completa: A specific horoscope might be wrong. A vague one never is, which is why horoscopes are generally very vague indeed. The complementary aspect is the all-too-human ability to forget bad guesses and remember accurate ones. (p.219). A crítica por parte dos cépticos de que a Astrologia não é científica é, evidentemente, acertadíssima. Não utiliza o método, não há mecanismos de controlo, não permite verificação, replicação experimental, etc. Todavia, seria mais eficaz (e revelador de algum rigor) que se evitassem alguns argumentos simplistas por vezes avançados, pois...

- Toda a gente sabe que o actual sistema cosmológico não é geocêntrico; 
- Toda a gente (ou quase) conhece o fenómeno da precessão dos equinócios (documentado por Hiparco há mais de dois mil anos), traduzido no deslizamento gradual do Ponto Vernal (que assinala o início da Primavera no Hemisfério Norte) pelas constelações. Convém, portanto, não confundir os signos 'tropicais' com as constelações que ab initio lhes emprestaram o nome; uma questão reveladora reside na ausência de princípios até neste patamar fundamental; há astrólogos que utilizam o Zodíaco Tropical, outros a versão Sideral e outros ainda uma combinação de ambos:
- Os supostos "nativos" de Ofiúco (Ophiuchus) apenas o são na perspectiva (externa, astronómica) da divisão sideral convencional das constelações (que data de 1930). O zodíaco utilizado pela esmagadora maioria dos astrólogos é 'Tropical', nocional, esquemático (independente das constelações), normalizado (sectores de 30º com início no Ponto Vernal ou Ponto Aries), basta consultar o Tetrabiblos de Ptolomeu (séc. II) para perceber que não é uma invenção recente. A divisão em doze sectores de 30º recua aos Babilónios. Será mais pertinente argumentar que a abordagem tropical deveria ser, pela sua lógica ptolomaica, invertida no Hemisfério Sul; todavia, os "adeptos" da astrologia alteraram
entretanto o discurso, seguindo a via "simbólica" e "analógica". Os adeptos do zodíaco sideral (que segue as constelações "reais") parecem também dividir o seu zodíaco em sectores de 30º, o que contradiz a dimensão real das constelações (que, de resto, são produtos culturais arbitrários: os "desenhos" dependem somente da nossa perspectiva visual, i.e., não existem).
- A astrologia "de cordel" dos jornais e revistas (confinada ao Signo Solar) é, como toda a gente sabe, somente uma parte infinitesimal do corpus disponível, uma simplificação cujo início parece recuar aos anos 30 do século XX. Não nos devemos focar exclusivamente nessa modalidade, evitando, por exemplo, questionar "se as pessoas somente se dividem em doze grupos, consoante os signos, que são doze";
- Ausência de mecanismo físico de acção: dificilmente se encontra nas últimas décadas quem defenda um qualquer 'mecanismo de acção' baseado numa causalidade física mensurável (gravitacional, electromagnética). A questão é vital. Assistimos, em termos de racional, a argumentações defensivas que basculam entre a afirmação de que as noções resultam de práticas empíricas e as que recorrem ao simbolismo ou à correlação "acausal" de inspiração jungiana; a primeira revela-se manifestamente insuficiente/insatisfatória nas suas supostas "noções" adquiridas pela "experiência", a segunda situa-se fora dos limites mais generosos do cientificamente verificável devido à evidente subjectividade e viés de confirmação nas suas "conclusões";
- No argumento clássico dos destinos "paralelos" dos irmãos gémeos, o céptico vai enfrentar "respostas" especiosas relacionadas com a "variabilidade individual da manifestação de cada característica no mapa astral" e alguma pseudo-psicologia sobre a maneira como se processa a "individuação", ou até enfrentar a noção de um criativo "ascendente invertido", Nem merece discussão.
- As tentativas "internas" de tratamento estatístico de dados (e.g., pelo astrólogo M. Gauquelin, no século passado), das quais resultaram equívocos como o célebre "Mars effect" foram já cientificamente descartadas pela enviesada metodologia (a própria "comunidade astrológica" parece concordar). Os estudos controlados (i.e. científicos) revelaram a irrelevância da abordagem astrológica. Contra estes, ouve-se agora amiudadamente o contra-argumento de que as ferramentas científicas são apenas "quantitativas", exógenas e inadequadas. A incoerência e adaptação dos argumentos dos astrólogos resulta numa discussão pouco produtiva.

Concluíndo, convém conhecer estes detalhes ou o enfoque passará a residir na relativa ignorância do céptico. Os melhores discursos adversus astrologiam continuam a ser os provenientes de autores como Santo Agostinho ou Giovanni Pico della Mirandola, obviamente contextualizados, porque conheciam os textos fundamentais e a doutrina fazia, como vimos, parte do "mapa" do conhecimento. A diversidade das actuais e sinuosas abordagens astrológicas caracteriza-se pela sua inconsistência (diríamos "pós-estruturalista", não-binária), desprezo pela coerência (e.g., afirmando-se "linguagem simbólica" mas integrando a esmo qualquer novo asteróide ou planeta anão recém-descoberto) e imenso à vontade com as contradições. O problema reside na psicologia e na mundividência do próprio sujeito que acredita nas "correlações". Pode respaldar-se em "psicologismos", reclamar-se arquetípica, teosófica, divinatória, etc. Mas não tenhamos dúvidas: o mais pequeno vestígio de "validação" científica seria considerado prioritário e faria esquecer todo o mumbo-jumbo actual.

A Astrologia é completamente irracional, i.e, tão irracional como qualquer outro 'sistema de crença'. O problema é a tendência de muitos seres humanos para gerir a contingência das suas vidas (e o "sem sentido" existencial inerente) através desses "expedientes". Problema perene e complexo. Podemos relacioná-lo com as crenças religiosas e a sua (in)fundamentada perpetuação. Qual a racionalidade em acreditar em seres imateriais e invisíveis, num 'deus' ou em deuses, em santos, nos milagres, nos anjos, no paraíso ou na vida depois da morte física do frágil suporte material?

O que fazer? Talvez advogar o combate aos apriorismos e aos determinismos, voltar ao argumento do 'livre arbítrio' (descartando a antiga envolvente religiosa) e reclamar a autonomia e liberdade que o ser humano possui e merece, e através da qual pode apreender o mundo e valorizar o Universo maravilhoso e desafiador que a Ciência gradualmente lhe desvela, acautelando evidentemente o enfoque epistemológco e a dimensão ética a que deve obedecer a utilização do "fogo prometeico", muitas vezes "redentor" mas amiudadamente perigoso, como a História nos ensina, e evitando os 'futuros' potencialmente distópicos que nos ameaçam.


 
Os sistemas de referência e a prevalência do Zodíaco

Zodíaco linear de Esna
Description de l'Égypte, A. vol. I, planche 79:
Esné (Latopolis): Zodiaque sculpté au plafond du portique. (ed. C. L. F. Panckoucke, 1820). O magnífico Zodíaco linear de Esna é um dos únicos três preservados em templos Egípcios [clicar para visualizar com maior resolução]. Ver esquema com a suposta identificação dos signos.


Na prática, foram gizados vários sistemas de referência para documentar a dinâmica observada nos céus. O "Zodíaco" na Mesopotâmia, as "Mansões Lunares" (nakshatras) na Índia e os "Decanos" no Egipto. Dignum memoria, Otto Neugebauer elencou-os:

Three different systems of astronomical reference were independently developed in early antiquity: the "zodiac" in Mesopotamia, the "lunar mansions" in India,and the "decans" in Egypt. The first system alone has survived to the present day because it was the only system which at an early date (probably in the fifth century BC) was associated with an accurate numerical scheme, the 360-division of the ecliptic. (Neugebauer, O., The Egyptian "Decans", "Vistas in Astronomy" (ed., A Beer), vol. 1, Pergamon Press, 1955; repr. in Astronomy and History: Selected Essays. Springer, 1983, 205)

Matematicamente, segundo Neugebauer, (...) a Astronomia mais primitiva concentrou-se, principalmente, no enquadramento dos fenómenos tendo como referência o Horizonte, enquanto em períodos mais tardios se respaldou em menos óbvios mas bem mais convenientes sistemas de coordenadas, nomeadamente a Eclíptica e o Equador [i.e. baseados nestes Círculos] . Todavia, tal como em muitas outras circunstâncias, é a Astrologia que vai perpetuar conceitos antiquados, determinando a sua sobrevivência até em tratados estritamente técnicos. É provavelmente por esta razão que o Almagesto [de Ptolomeu] expõe, logo após o catálogo de estrelas (VIII, 5) o problema da determinação do ponto da Eclíptica que nasce em simultâneo com determinada estrela. As estrelas que nascem simultaneamente são chamadas "paranatellonta" e a doutrina astrológica associa as suas qualidades e influências como o ponto correspondente da Eclíptica. (A History of Ancient Mathematical Astronomy, Springer-Verlag, 1975, p.39; [trad. nossa])


As Mansões Lunares (Manazil al-Qamar)
Como Petra Schmidl explica, os doze signos podem ser vistos como as doze mansões mensais do Sol. Mensalmente (aproximadamente), o Sol muda de mansão. Analogamente, as mansões lunares podem ser vistas como as vinte e oito mansões diárias da Lua, que após um mês parece retornar à mesma, Na sua função enquanto "zodíaco lunar" as mansões puderam ainda ser utilizadas, do mesmo modo que os signos, os decanos egípcios ou as estrelas ziqpu ("culminantes") babilónicas, como marcadores da passagem do tempo e referências do calendário. (Elections in Medieval Islamic Folk Astronomy in: Burnett, C. & Greenbaum, D. G. (eds.), From Masha'Allah to Kepler: Theory and Practice in Medieval and Renaissance Astrology, Sophia Centre Press. 2015). O termo Manãnzil já é citado no Kur'an (X, 5; XXXVI,39).

Num estudo com algumas décadas (Chaucer's Universe, Oxford; Clarendon Press, 1988), J. D. North comentava que o sistema possui obviamente raízes arcaicas sendo provavelmente pouco pertinente procurar um único centro de difusão ("...it is probably a mistake to look for a unique centre of diffusion.", p.246). A divisão do tempo baseado na passagem da Lua através das estrelas é [decerto] pré-histórica, e encontrada em culturas cujas competências astronómicas são, de resto, rudimentares. Uma vez que a Lua percorre a Eclíptica em aproximadamente 27 dias e meio, não surpreende que tenham sido atribuídos nomes a essas 27 ou 28 regiões entre as estrelas, cada qual ocupada supostamente pela Lua durante 1 dia. O sistema Chinês de hsiu é equatorial enquanto o Indiano se baseia na Eclíptica. Desenvolveu-se autonomamente, difere do sistema indiano (que se tornou influente na astrologia "Ocidental") na sua lógica interpretativa e nas divisões que estabelece e servia uma espécie de hemerologia de dias fastos ou nefastos, bem como os augúrios relacionados, por exemplo, com as diversas regiões do Império,

Segundo North, numa época ainda pré-Islâmica, os Árabes adoptaram da astronomia indiana um sistema sistemático e organizado ["Manazil", Nakshatras no original]. As estrelas de demarcação no esquema indiano foram escolhidas de modo a ficarem situadas a alguma distância na Eclíptica, para poderem funcionar como "marcadores" estando visíveis apesar do brilho da Lua  (a Lua afasta-se da Eclíptica até dez dos seus diâmetros, pelo que as estrelas de referência idealmente estariam afastadas em função dessa distância). Quanto à sua recepção no Ocidente Latino, por via da influência dos tratados em Árabe, North assinala, entre outros, o problema do deslocamento do posicionamento dos 'marcadores' siderais devido ao fenómeno da Precessão dos Equinócios (Op. cit., p.246).

'Cum Luna est in Alnath, id est in capite Arietis...’
(Vienna, Nat. Bibl. MS 3394, fo. 238r.)

Segundo o mesmo autor, uma vez que a Lua percorre a Eclíptica em cerca de vinte e sete dias e meio, não causa surpresa que certas culturas tenham dado nomes às regiões atravessadas pela Lua entre as estrelas, cada qual supostamente ocupada pela Lua durante um dia, enquanto outros designaram vinte e oito [mansões]. Uma vez que as luas novas e cheias não se repetem nesse período mas em cerca de vinte e nove dias e meio (o 'Mês'), a "mansão" na qual uma sucessiva lua nova (ou cheia) é observada altera-se paulatinamente, proporcionando expedientes para medir períodos de tempo mais longos. Outros são abordados observando os nascimentos e ocasos das "mansões", por exemplo qual está próxima do ocaso quando o Sol nasce (de modo estrito, uma vez que as estrelas desaparecem com a aurora ou o crepúsculo, seria observada a última "mansão" visível e inferia-se a que estaria propriamente a ascender). É evidente que se trata de uma modalidade astronómica razoavelmente precisa e de um expediente bastante cómodo e funcional. Numa data ainda pré-Islâmica, os árabes adoptaram o esquema indiano e tornaram o seu antigo sistema de marcadores (anwa’) mais sistemático. As estrelas escolhidas para assinalar os Nakshatras indianos foram escolhidas com algum distanciamento relativamente à Eclíptica para funcionarem como marcadores evitando o brilho lunar. [Também encontramos esta salvaguarda como probable ("provável") em P. Yampolski, Osiris, Vol. 9 (1950), p.63, que por sua vez cita Whitney, W. D., Oriental and Linguistic Studies, ser. 2, New York, Scribners, I874, P. 349] (...) Os árabes deram-lhes os seus nomes e estas [as "mansões lunares"] passaram para a astronomia europeia, todavia verificando-se alguma confusão no processo, nomeadamente relacionada com a Precessão, o "movimento da oitava esfera" que, por exemplo, afastou Alnath (tanto a estrela [cornua arietis] como a 'mansão') para longe da cabeça de Aries. (North, Op. cit., p.246)
 
North comentou ainda as disputas de mais de um século visando a atribuição da prioridade da implementação do sistema (com a China e a Índia na dianteira), afirmando que a verdadeira origem do debate recua à recolecção de informação por al-Biruni, académico, astrónomo e viajante na Índia do início do século XI (pp.246-47). Bouché-Leclercq (no clássico L'Astrologie grecque, p.463, n.2) refere que o autor Islâmico Haly: "...assure que les Arabes ont emprunté le système des 28 mansions aux Hindous, qui l'avaient pris "dans les livres de Dorothée [Dorotheus de Sídon]." (Haly filii Abenragel, scriptoris Arabici, de judiciis astrorum libri octo..., (cap. 100); ed. Petro Liechtenstein, 1571). Contudo, a difusão de um remoto precedente Mesopotâmico prevaleceu nas argumentações académicas, sendo referido como possibilidade na Encyclopaedia Britannica (em linha): "In India a complete list of nakshatra are found in the Atharvaveda, providing evidence that the system was organized before 800 BCE. The system of lunar mansions, however, may have a common origin even earlier in Mesopotamia". Mas uma origem paralela e independente é, porventura, muito provável. A origem Indiana da implementação prevalecente parece-nos evidente e foi também veiculada por O. Neugebauer (v. citação supra).

Disposição das Mansões da Lua
Disposição das "Mansões Lunares" (Philip Yampolsky, The Origin of the Twenty-Eight Lunar Mansions (Osiris, vol. 9 (1950))
 
Para Daniel Martin Varisco, o termo Árabe "manāzil" (habitualmente traduzido "mansions", mansões) será mais adequadamente traduzido (em Inglês) como "station" [talvez "estação" ou "paragem" em Português] (Illuminating the Lunar Mansions (manāzil al-qamar), in Šams al-maʿārif, Arabica 64 (2017), Brill, p.488, n.1) Enquanto os asterismos não definem porções iguais (pois não estão naturalmente localizados a distâncias uniformes), o modelo astronómico faz equivaler cada "mansão" a um arco com  12°51’ (i.e. 360° / 28). Uma vez que o "caminho da Lua" se situa sempre até 5º da Eclíptica, os asterismos situam-se quase todos em constelações zodiacais. (Varisco, p.492). As "mansões" foram associadas pelos antigos autores árabes às tradições relacionadas com a meteorologia das anwāʾ (sing. nawʾ) [sistema autóctone mais arcaico de marcadores] ainda na época pré-Islâmica. (ibid., p.493). O mesmo autor refere que alguns textos divinatórios em Árabe promoverão a sua associação com letras, aromas, formas geomânticas e a predição dos momentos propícios ou nefastos para determinados empreendimentos (ihtiyārāt, i.e. hemerologia ou electiones, em Latim).


O Zodíaco

O nosso conhecimento acerca da evolução do Zodíaco é provisional. Bartel van der Waerden, no clássico History of the Zodiac (Archiv für Orientforschung, 1953), explicou que a ideia de fazer corresponder os meses e as constelações recua a listagens datadas na proximidade do 1º milénio a.C., associando a cada mês as estrelas ou constelações que nele nasciam. Mas a correspondência seria imperfeita. A utilização de constelações nas imediações da Eclíptica será mais precisa, e quase perfeita com a introdução dos signos zodiacais com igual dimensão. Enquanto na astronomia geométrica grega o enfoque será nos solstícios e equinócios [que são pontos "imateriais"], os babilónios calculavam as posições dos planetas e luminares aritmeticamente, de maneira "sideral" [i.e., baseados nas estrelas reais, observáveis], sem destaque para os referidos pontos imateriais de intersecção com o Equador Celeste.

Há, de facto, uma diferença paradigmática entre as mundividências e metodologias Babilónica (anterior à Antiguidade tardia) e Grega. Pode ser entendida analogicamente como a diferença entre a aritmética e a geometria-cinemática. Como Francesca Rochberg explica em Periodicities and Periodic Relations in Babylonian Celestial Sciences ("Studies in Ancient Magic and Divination", vol.6: In the Path of the Moon Babylonian Celestial Divination and Its Legacy, Brill, 2010), a metodologia babilónica debruça-se sobre a recorrência dos fenómenos celestes num enquadramento temporal e posicional, munindo-se exclusivamente de técnicas aritméticas. O próprio conceito de sítio ou posição de um planeta no zodíaco estava relacionado com a data/hora que lhe correspondia. Cada divisão em 30º de um signo era somente uma baliza ou referência aritmética que não se respaldava numa estrutura cosmológica e geométrica como na astronomia grega, na qual as posições significavam longitudes num grande círculo que bissectava algo que concebiam como a "esfera celeste". Por outras palavras, ambas as culturas (Babilónica e Grega) concebiam um "zodíaco" (i.e. doze segmentos de 30º no percurso do Sol sobre o fundo de estrelas), mas o que este representava era diferente em cada uma dessas culturas. A analogia com o movimento de um corpo segundo um percurso circular definível relativamente a um centro (órbita) não era feita pelos astrónomos babilónicos, antes preocupados com o retorno de determinados fenómenos a certas direcções no céu, calculando a sua periodicidade. Não há uma "eclíptica" nem uma "esfera celeste" como na geometria esférica grega. Isto, como Noel Swerdlow enfatizou, torna a ideia de um movimento contínuo ao longo de um percurso circular totalmente irrelevante para a prática babilónica. Ainda segundo este autor (The Babylonian Theory of the Planets, Princeton University Press, 1998, p. 34) e também John Steele (Celestial Measurement in Babylonian Astronomy, "Annals of Science", 64 (2007), pp. 293–325), seria falacioso considerar o zodíaco babilónico equivalente ao de Ptolomeu ou ao moderno sistema de "longitudes" eclípticas. De facto, havia não só uma diferença cosmológica fundamental mas também na própria noção de "círculo" que, como Eleanor Robinson refere (Words and Pictures: New Light on Plimpton 322, "American Mathematical Monthly", 109 (2002), p. 111), era para os babilónios definido pela circunferência a partir "de fora", não a área definida pela rotação do seu raio ("de dentro para fora", por assim dizer). A astronomia babilónica determinava datas e posições dos fenómenos, a grega postulava uma cinemática de movimentos uniformes (àngulos iguais em tempos iguais) quando observados a partir do centro da esfera.


Kugler - Signos Babilónicos
"Os signos zodiacais babilónicos" segundo Franz Xaver Kugler (Sternkunde und Sterndienst in Babel (Buch I), Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1907, p.30). Colunas: signo, transcrição (que denuncia respectivos  "marcadores", e.g., "mulmullu" (sumeriano MUL.MUL, "as estrelas", designava as Plêiades; em acadiano era zappu, "a cerda", reforçando a referência ao chamado "Touro do Céu"), designação actual (i.e. latina) e os intervalos em graus com valores nivelados para precessão de 1800 A.D.


Franz Kugler (Babylonische Mondrechnung, 1900) verificou que existiam na Mesopotâmia "tardia" (da época Selêucida) dois diferentes métodos para descrição dos movimentos da Lua. Nestes esquemas, o equinócio (vernal) correspondia no "Sistema A" à posição solar 10º Aries, e no "Sistema B" a 8º Aries (sistemas têm designações convencionais criadas pela historiografia incumbente). Portanto, estes antigos astrónomos simplesmente fixavam os 'marcadores' sazonais no 10º ou no 8º grau dos signos que marcavam o início das estações (vide Neugebauer, The Alleged Babylonian Discovery of the Precession of the Equinoxes, JAOS 70 (1950), pp. 1–8). Na prática mesopotâmica, circa 700 a.C., era utilizada uma faixa zodiacal com determinado número de asterismos e constelações, de dimensão desigual, percorrida pelos luminares e pelos planetas. As primeiras evidências directas ao Zodíaco propriamente dito, como sistema de referência, recuam ao séc. V a.C.:

"The earliest direct evidence for the existence of the zodiac comes from fifth-century astronomical diary texts (e.g., No. -453 iv 2 and upper edge 2–3, No. -440 rev. 3', and No. -418:5, 10, rev. 8' and 14') and horoscopes (BH 1 and 2, both dated 410 b.c.), in which positions of the planets are cited with terminology used with respect to zodiacal signs as opposed to zodiacal constellations." (The Heavenly Writing, Cambridge University Press, 2004, p. 130. Esta fundamentação inclui dois horóscopos datados de 410 a.C. (BH 1 e BH 2, editados por Rochberg: Babylonian Horoscopes, Philadelphia, Transactions of the American Philosophical Society, Vol.88, Pt.1, 1998)


A divisão que antecede o modelo zodiacal dos signos teve decerto um enfoque lunar, através de 17 ou 18 “marcadores” do caminho da Lua, o 'viajante' mais rápido (marcadores na Eclíptica a que J. Epping chamou "Normalsterne" em Astronomisches aus Babylon, 1889). Nicholas Campion (Babylonian astrology: Its origins and legacy in Europe: In H. Selin (ed.), Astronomy across Cultures: The History of Non-Western Astronomy. Dordrecht: Kluwer Academic, 2000), refere que na lista dos grupos de estrelas (a partir de inscrições MUL.APIN, ver infra) deste autêntico "zodíaco lunar", surgem nomes equivalentes aos "nossos" Taurus, Gemini, Cancer, Leo, Libra, Scorpio e Capricornus. As estrelas “no caminho da Lua” (harrãn Sin) eram reconhecidas pelo menos desde o segundo quarto do primeiro milénio a.C. e eram definidas, numa tradução aproximada, como "os deuses que ficam no caminho da Lua, nas regiões que esta atravessa ao longo do mês..." (vide Rochberg, Op. cit., pp. 127-28).
O sistema parece análogo ao que, utilizando 27 ou 28 "balizas" (acompanhando o mês lunar) sinalizará o percurso da Lua recorrendo a estrelas e/ou asterismos ao longo desse trajecto (as Mansões Lunares árabes, Manāzil al-qamar, baseadas nos antigos nakshatras de origem indiana). O sistema zodiacal mesopotâmico parece evoluír a partir de uma estrutura pretérita desse tipo:

Before the introduction of the zodiac, the Babylonians used a number of constellations to locate bodies in the sky. For example, in MUL.APIN' the path of the moon is traced through 17 constellations. By the fifth century B.C., this had been reduced to 12 constellations. Finally, shortly before 400 B.C., these 12 constellations were replaced by the 12 equal divisions of the ecliptic into the signs of the zodiac. (Lis Brack-Bernsen e Hermann Hunger, The Babylonian Zodiac: Speculations on its invention and significance, Centaurus 1999: Vol. 41, p.280).

Certos astros, os luminares (Sol e Lua) e os planetas, "erravam" pela esfera celeste apresentando diferentes configurações entre si. O círculo foi dividido na Mesopotâmia em 360º (mais tarde estruturado em "parcelas" de 30º em consonância com o calendário solar anual composto por doze meses, como Aratus referirá), chegando até nós através da designação grega, transliterada como "Zodiakos". Este, conduzido pelo círculo da Eclíptica, será chamado Circulus signifer ou Orbis signiferus por Cícero e Vitrúvio, poeticamente Media Via Solis, o Balteus stellatus de Manilius ou o varii Mutator Circulus anni de Lucano. Ptolomeu utiliza a designação "eclipticos" somente na relacionação com os eclipses. A Eclíptica é sempre, no seu texto, "o círculo inclinado através do meio dos Signos Zodiacais" (C. J. Toomer 1984, 20 [trad. nossa]). Cleomedes designa a eclíptica heliakos kuklos, o círculo do Sol, que é "o círculo no meio da faixa do Zodíaco" (I.2.43–59). Não havendo evidências inequívocas de um conhecimento pretérito, a constatação da sua obliquidade é atribuída pelos próprios gregos a Oenopides de Quios (Chios). Na sua interpretação, Aristóteles associava a estabilidade ao ciclo diurno do Sol e a geração e corrupção ao seu movimento anual no círculo oblíquo da Eclíptica (De generatione et corruptione, 2.10).

A evolução para uma divisão em doze sectores de 30º está também relacionada com a determinação das horas (divisão de cada um dos períodos, diurno e nocturno, em 12 horas sazonais (ou desiguais, pois são variáveis ao longo do ano ao contrário das horas equinociais que hoje utilizamos), um signo zodiacal demorando aproximadamente duas destas horas a ascender). Aratus, no poema Phainomena faz eco desta utilização. Mais importante, segundo van der Waerden, documenta-se a implementação de "esquemas zodiacais" nos calendários gregos, através dos quais se dividia o ano em 12 meses artificiais ("artificiais" relativamente aos meses lunares habitualmente utilizados) durante os quais o Sol percorria sucessivamente cada um desses signos. O conceito também tem origem na Mesopotâmia. Os gregos adoptaram esta estrutura e estes signos, alterando o nome do primeiro, que se chamaram Aries, o Carneiro. Hiparco, Geminus, Ptolomeu e Teão (Θέων) utilizaram um zodíaco tropical, vinculando o início, por regra, ao Equinócio Vernal. Eudoxus e Aratus, todavia, utilizaram um zodíaco sideral (baseado nas estrelas, nas constelações reais). Este último sistema, utilizando habitualmente o 8º grau de Aries como início (tal como utilizado num dos dois sistemas babilónicos já referidos), permaneceu popular por muito tempo. Seguindo a edição de Kroll (p. 354), van der Waerden refere que Vettius Valens (astrólogo helenístico do séc. II) afirmou utilizar tabelas de Apolónio, acrescentando 8 graus aos seus valores (ou seja, sendo as tabelas calculadas tropicalmente, Valens converteu para valores siderais).

No contexto Grego, Aratus ainda se refere inequivocamente aos sidéreos e às constelações concretas, cada uma com a sua dimensão, enquanto Hiparco, no único dos seus trabalhos que sobrevive (justamente o Comentário de Aratus e Eudoxus) assume (e.g., 2.1.14) uma metodologia diferente: os signos zodiacais medem exactamente 30º cada, dividindo o Zodíaco em doze signos matemáticos e permitindo o cálculo das posições das estrelas em graus e até fracções de grau. (Kidd, D, (ed., trans,), Aratus: Phaenomena, Cambridge Classical Texts and Commentaries, Cambridge University Press, 1997, p.379). É provável que Eudoxus, relativamente ao Zodíaco, também se refira às constelações e tenha assumido, por conveniência, que cada uma ocupe 1/12 do círculo, mas é improvável que tenha utilizado um sistema de arcos de 30º, que não está documentado antes do séc. II a.C. (Dicks, D. R., Journal of Hellenic Studies 86, 1966, 27-8; Early Greek Astronomy to Aristotle (London 1970, p.157).

A divisão uniforme em sectores de 30º permitiu a utilização de um sistema de coordenadas (Kelley, D. e Milone, E., Exploring Ancient Skies - A Survey of Ancient and Cultural Astronomy, Springer, 2nd ed. 2011, 28) . As 12 constelações adoptadas formaram os Signos. A longitude passará a ser medida em graus, a partir do ponto vernal para Leste, ao longo do círculo pertinente, medindo com precisão os movimentos graduais para leste (excepto nas retrogradações) dos planetas e luminares, cada qual no seu "passo".

- Os nomes gregos e latinos dos doze signos (os dodecatemorion de Ptolomeu) são os seguintes: Κριός (Krios) - Aries, Ταύρος (Tauros) - Taurus, Δίδυμοι (Didymoi) - Gemini, Καρκίνο (Karkinos) - Cancer, Λέων (Leõn) - Leo, Παρθένος (Parthénos) - Virgo, Ζυγός (Zygos) - Libra, Σκορπιός (Skorpios) - Scorpio, Τοξότης (Toxotẽs) - Sagittarius, Αιγόκερως (Aegokerõs) - Capricornus, Υδροχόος (Hydrochoõs) - Aquarius, Ιχθύες (Ichthyes) - Pisces.

Como curiosidade, a associação de Cristo com o signo zodiacal Libra (a "Balança") era natural tendo em vista as ideias de Julgamento Divino e a pesagem dos pecados, e recua pelo menos à época Patrística. (W. Hubner, Zodiacus Christianus, Konigstein, Anton Hain, 1983, passim, em especial p.121)

Le Grand kalendrier et compost des bergiers
O Zodíaco (Le grand Kalendrier et compost des Bergiers..., impresso por Nicolas le Rouge, Troyes, 1496)


Milton (Paradise Lost, Book X) faz intervir directamente o Ser Supremo na origo da obliquidade da Eclíptica:

Some say, he bid his angels turn askance
The poles of earth twice ten degrees and more
From the sun's axle; they with labour push'd
Oblique the centre globe: some say the sun
Was bid turn reins from th'equinoctial road
Like distant breadth to Taurus with the seven
Atlantic Sisters, and the Spartan Twins,
Up to the Tropic Crab; thence down amain
By Leo, and the Virgin, and the Scales,
As deep as Capricorn, to bring in change
Of seasons to each clime; else had the spring
Perpetual smil'd on earth with vernant flowers,
Equal in days and nights...


Na China, este círculo era chamado a "Estrada Amarela" (Kelley, D. e Milone E., Op cit., 26). Segundo Aveni, num estado com uma burocracia rigorosa, os Chineses do séc. IV a.C. seguiam a Lua num sistema de 28 marcadores ou “estações” (hsiu ou xiu) análogo às “mansões lunares” para acautelarem os assuntos oficiais. Sistema privilegiado apesar de já conhecerem a divisão duodecimal do ano solar (Op cit., 151).


O Zodíaco nasce na Mesopotâmia. Os povos desta região utilizavam o Touro e as Plêiades como marcadores do Equinócio de Primavera, compatíveis com a localização vernal numa época recuada.
O seu Zodíaco seria sideral (guiando-se pelas constelações "reais"). São os Gregos que "fixam" o Zodíaco aos pontos tropicais (zodíaco tropical), implicando o "desfasamento" relacionado com o fenómeno da Precessão dos Equinócios (v. infra) descoberto por Hiparco no século II a.C. enquanto compilava o seu catálogo de estrelas, pela comparação com as coordenadas de Timocharis (Τιμόχαρις, séc. III a.C.). Os asterismos e estrelas situados nos coluros (equinocial e solsticial), circumpolares e o nascimento helíaco (que consiste no aparecimento do astro no horizonte Leste, depois de um período de ausência, pouco antes do Sol nascer) eram extremamente importantes, dependendo das diferentes geografias, épocas e culturas. Um exemplo da relevância do nascimento helíaco é o de Sopdet (Sirius), fundamental no calendário do antigo Egipto, antecipando a época das cheias do Nilo. Recordemos o versejar vitoriano de Sir Edwin Arnold (The Egyptian Princess):

And even when the Star of Kneph has brought the summer round,
And the Nile rises fast and full along the thirsty ground,...


Shu (no centro) suportando a deusa do arco celeste, Nut, com Geb, deus da terra, a seus pés. Detalhe do papiro Greenfield, décimo séc. a.C; Museu Britânico


Via Láctea - Nut
Numa interpretação fascinante, acredita-se que um dos mais relevantes aspectos do simbolismo da deusa Nut esteja relacionado com a vasta mancha da Via Láctea e o percurso do Sol como era observado do Vale do Nilo no início do Império Antigo (e desde a época Pré-Dinástica). Versão antropomórfica da Via làctea, Nut assistia a transformação do "Omnipotente" Rá (o Sol), no seu percurso através do calendário. Os Solstícios seriam pivotais, particularmento o de Inverno, quando o Sol "nasce", como que emergindo do ventre da deusa, canal representado pela região bifurcada da galáxia (em Cygnus) observável no horizonte oriental bem cedo (na época de referência, c.3500 a.C.); vide Wells, R.A., The Mythology of Nut and the Birth of Ra, Studien zur Altägyptischen Kultur, Bd. 19, pp. 305-321 (publ. Helmut Buske Verlag GmbH). Na imagem: representação moderna da Via Láctea observada de latitude norte (Ronald Wells, Astronomy in Egypt, in Walker, C. (Ed.), Astronomy Before the Telescope, BCA, 1996)

 
As constelações zodiacais equivalentes entre a Mesopotâmia e a Grécia são, segundo B. van der Waerden: o "Touro do Céu" (Taurus); os Gémeos (Gemini); o Leão/Leoa (Leo); a Espiga de uma "deusa dos grãos" ou "das colheitas" (agrária, equivalente a Virgo); o Escorpião (Scorpio), o Centauro "arqueiro" (Sagittarius), o Capricórnio (Capricornus) e os Peixes (Pisces). A constelação vernal Aries, o Carneiro, é de origem helénica, substituindo uma antiga imagem oriunda das margens do Eufrates. (Science Awakening II. The Birth of Astronomy. Leyden: Noordhoff, 1974, pp.287–288)


Shamash (o Sol) surge no Portão Oriental, entre as montanhas (em baixo ao centro), figura emanando raios a partir dos seus ombros. Ishtar (Inanna na Suméria; Vénus) recebe o Sol enquanto "estrela da manhã" (as setas atrás das asas podem representar o seu brilho). À direita, as águas com peixes, fundamentais para a vida, fluindo dos ombros de Ea (Enki na Suméria), tutelando as águas subterrâneas e a sabedoria. A figura armada com um arco, à esquerda, não foi definitivamente identificada mas pode ser Nusku. Segundo E. C. Krupp, este cilindro pode representar a celebração do novo ano, akitu, lit. "a cabeça do ano" (Período Acadiano, 2300-2200 a.C.; Museu Britânico)

 
O sistema possui desde cedo, como vimos, uma clara estrutura matemática que o tornou eficiente. Os povos da Mesopotâmia haviam adoptado um sistema numérico sexagesimal, perpetuado na divisão do círculo em 360º e nas horas e minutos que ainda hoje gerem o nosso quotidiano. O terceiro sistema de referência, oriundo do Egipto, foi a divisão em "Decanos" (associados a um período de dez dias, mais tarde plasmado na estrutura zodiacal através da divisão de cada signo em sectores de 10º). Outros contributos desta civilização decorrem da divisão (adoptada pelos Gregos) do seu calendário civil em 365 dias e ainda do dia em períodos diurno e nocturno, de 12 horas cada. [O ano egípcio de 365 dias tornou-se referência astronómica pela facilitação que proporciona em termos de cálculo. Neugebauer refere como, por exemplo, seria problemático calcular o número de dias entre o primeiro dia de dois anos gregos ou babilónicos afastados, digamos, 50 anos. No Egipto bastava multiplicar 365 por 50! (The Exact Sciences in Antiquity, Dover Publications, 1969, p.81)]

Com o passar do tempo, a Astrologia vai aglutinar os três sistemas com origem independente. Mas a "narrativa" do percurso do Sol através do Zodíaco será a mais importante.

Doze signos do céu o Sol percorre,
e, renovando o curso, nasce e morre
nos horizontes do que contemplamos
tudo em nós e o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência
fazemos o instinto e a ciência,
e o Sol, parado, nunca percorreu
os doze signos que há no céu.

(Fernando Pessoa, Glosa 8/1925)

Signos Zodiacais - símbolos
Apesar de um ou outro exemplo provavelmente mais antigo, os símbolos dos signos zodiacais surgiram na Idade Média. Na tabela, exemplos provenientes de alguns manuscritos astronómicos tardo-medievais (Evans, J., The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, p.104)


[Para uma perspectiva mais completa e multicultural, anexamos um capítulo de Star Maps History, Artistry, and Cartography de Nick Kanas (Springer - Praxis Publishing Ltd., 2007, 2009; .PDF, 795KB)]


A Precessão (ou "antecipação") dos Equinócios consiste no movimento retrógrado dos pontos equinociais por acção das forças diferenciais devidas à inclinação do eixo e pelo facto de o globo terrestre não ser absolutamente esférico. É causado pelas forças gravitacionais do Sol e da Lua, também em menor magnitude por outros planetas do sistema solar. Como a Terra gira, o eixo não se alinha com o eixo da eclíptica, mas "precessiona" em torno dele, da mesma forma que um pião a girar o faz em torno do eixo perpendicular ao solo. Consequentemente, os pólos celestes não ocupam uma posição fixa no céu: movem-se lentamente em torno do respectivo pólo da Eclíptica, descrevendo uma circunferência em torno dele e completando uma volta completa em 25772 anos (1º em 72 anos, aproximadamente). Outra consequência traduz-se na deslocação do fundamental Ponto Vernal ao longo das constelações zodiacais. Por tudo isto, constitui uma útil ferramenta cronológica da História e da chamada Arqueoastronomia, permitindo "calibrar" as representações com o timeframe histórico aproximado ou com a origem de determinada tradição ritual ou imagética.

Como A. Pannekoek explica (Op. cit., p.149), a diferença entre o retorno de uma mesma estrela (ano sideral) e o seu retorno aos equinócios (ano tropical), está intimamente relacionada com a Precessão. Ptolomeu reconheceu a importância das conclusões de Hiparco (o primeiro que, segundo as evidências, detectou este fenómeno) e confirmou esta progressão na direcção dos signos. Ptolomeu comparou as suas observações com a do notável predecessor e chegou a um valor de 2º 40' para os 265 anos que os separavam (daí o resultado: 1º = 100 anos). Depois comparou um determinado número de observações de ocultações de estrelas pela Lua feitas por Timocharis em Alexandria com observarções análogas de Menelaus (em Roma) e Agrippa (na Bitínia, região situada na actual Turquia), obtendo o mesmo resultado (incorrecto); o valor correcto é 1º em 72 anos).

O deslocamento precessional constituiu, ulteriormente, um assunto muito pertinente. O método mais comum para conhecer esse valor foi utilizar (para uma data de referência específica - 'epoch') a posição de uma estrela 'pivotal', nomeadamente da chamada prima Arietis, a primeira estrela de Aries como foi listada por Ptolomeu (correspondendo à estrela gamma do catálogo de Bayer: Uranometria, 1603). Na Renascença aceitou-se o deslocamento de 51"/ano proposto por Tycho Brahe, equivalendo a sua longitude a 27º 37' em 1600 A.D. O deslocamento anual devia ser acrescentado a qualquer estrela de um catálogo para actualização das suas posições. (vide Eade, J. C., The Forgotten Sky, Oxford, Clarendon Press, 1984, p. 13).

Covém referir que se verificaram, principalmente na segunda metade do séc. XIX e início do séc XX, muitos intrincados e infundados "excessos" historiográficos relacionados com a interpretação da génese das constelações e da mitografia supostamente relacionada, a partir da projecção de datas "fabulosas" relacionadas com este longo ciclo que faz lentamente deslizar os pontos equinociais e solsticiais através das constelações do Zodíaco (e.g., os ensaios de Emmeline Plunket (1835-1924), também algumas elucubrações dos chamados Pan-Babilonistas (H. Winckler, P. Jensen), de J. Norman Lockyer, etc,). Mais recentemente, refira-se, num contexto académico, o ensaio Hamlet's Mill (G. de Santillana e H. von Dechend, Gambit, Boston, 1969) e muita pseudo-arqueologia a evitar. É, todavia, razoável acreditar que algumas representações rituais da Antiguidade têm raízes na arcaica utilização do nascimento helíaco de certas estrelas/constelações como marcadores das mudanças sazonais (que deve anteceder em milhares de anos a criação do Zodíaco), Podemos assim interpretar a recorrência das representações de touros, leões e escorpiões celestes no Próximo Oriente, configurando os céus do 4º milénio a.C., vestígios de culturas que antecederam Sumer ou Elam. Eram culturas agrárias, do período Neolítico, que dependiam do ritmo sazonal para a sua sobrevivência. Willy Hartner (The Earliest History of the Constellations in the Near East and the Motif of the Lion-Bull Combat, JNES 24, 1–2, January–April 1965, pp. 1–17) estudou nesta perspectiva o célebre tema da Tauroctonia dos mistérios Mitraicos (Mithras, especulativamente relacionado com o persa Zervan era associado ao grego Aion, o "Tempo Eterno"). Devido ao efeito da Precessão dos Equinócios, tais marcadores tornaram-se obsoletos mas deixaram vestígios na imagética e nos rituais de épocas mais recentes. (v. Krupp, E. C., Beyond the Blue Horizon, Oxford University Press, 1992, pp. 142-8 )

Precessão dos Equinócios
Precessão dos Equinócios. O deslocamento gradual do Ponto Vernal para Oeste (de V1 para V2, na ilustração) determina que as ascensões rectas e as declinações das estrelas também se alterem. A ilustração sobrepõe os dois momentos, correspondendo à localização do ponto vernal em V1 e em V2, com os correspondentes posicionamentos do Equador Celeste e as diferentes ascensões rectas da estrela utilizada como exemplo (Baker, R. H., Introduction to Astronomy, Op. cit., p.43)

Ball, Movimento orecessional do pólo celeste
Ilustração do movimento precessional do pólo celeste (Ball, Robert Stawell, The Story of the Heavens (Second Edition), Cassell & Company, 1886, fig. 89, p.473)


N.B.: descoberta por Hiparco, a Precessão não é aludida por autores como Geminus, Cleomedes, Teão de Esmirna, Manilius, Plínio, Censorinus, Achilles, Calcídius, Macrobius ou Martianus Capella! (Dreyer, 1953, p.203).

 
"A Escrita do Céu"

Assistimos amiudadamente à crença numa relação de "simpatia" existente entre os corpos celestes e os acontecimentos 'terrestres', base da doutrina astrológica, respaldada em observações que serviam a interpretação de augúrios nas cidade da Mesopotâmia, mais tarde revestida do rigor da geometria grega, de aspectos da filosofia Estóica e de profusos refinamentos árabes. Para além da vertente electiva (katarchai, escolha do "momento propício" para determinada acção), havia assumido, no contexto Helenístico, contornos genetlíacos (referentes ao nascimento, horóscopos individualizados) plenos, vide Holden, James H., A History of Horoscopic Astrology, A.F.A., 2006.

Na antiga Mesopotâmia manifesta-se a necessidade de registar a configuração e os movimentos dos corpos celestes (traduzidos na significativa metáfora poética da "Escrita do Céu", vide Krupp, Op cit., 1992, p.127; Rochberg, F., The Heavenly Writing, Divination, Horoscopy, and Astronomy in Mesopotamian Culture, Cambridge University Press, 2004), suporte de aplicações do calendário e das prognoses divinatórias relacionadas com o Rei ou a Cidade, motivação para a elaboração de catálogos e tábuas de efemérides para os fenómenos celestes. Nesta perspectiva técnica, segundo Anton Pannekoek (A History of Astronomy, Op. cit., p.80), estamos perante um sistema único (não explicativo dos fenómenos físicos mas sistemático e formal) de representação matemática dos fenómenos: "...Its theory does not imply a new system of world structure, or a physical interpretation, but merely a formal mathematical representation of the phenomena".

Neste contexto cultural já existia um vasto e antigo compêndio de 'presságios' (Enuma Anu Enlil). Por volta do primeiro milénio século antes da nossa Era, surgem os MUL.APIN, textos cuneiformes em placas de barro com informação específica e técnica. O nome "MUL.APIN" remete para o respectivo incipit, as palavras de abertura da listagem de estrelas e asterismos, literalmente "Estrela do Arado", a primeira entrada, padrão associado ao início do ano (que incluiria estrelas da actual constelação Triangulum e ainda Gamma Andromedae). O importante catálogo foi copiado até à época Helenística e teve grande influência e disseminação. Começa com a lista de estrelas e grupos de estrelas associados aos três caminhos (faixas de latitude celestial em que dividia o céu, atribuídas, de Norte para Sul, às divindades Enlil, Anu e Ea), descreve pares de constelações em função da posição simultânea no zénite e no horizonte (entre outras correspondências), inclui considerações acerca do movimento dos planetas, elenca as constelações no "caminho" percorrido pela Lua e ainda expõe um "calendário sideral", no formato a que os Gregos chamaram parapegma [etimol. "colocar uma pega (ou estaca) ao lado de..."; plural: parapegmata], que permitia determinar/assinalar as datas no ano através da verificação do nascer helíaco (data da primeira visibilidade no horizonte leste antes do orto solar), do ocaso de determinadas estrelas, etc. (Evans, J., The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, 5 et seq.).

"Another common feature of public places was the parapegma – a sort of star calendar. A parapegma listed the heliacal risings and settings of prominent stars and constellations in the order of their occurrence during the year. Often, but not always, these were accompanied by notices of seasonal changes (beginning and end of the season for Zephyros, the west wind, or for the Etesian winds). And many parapegmata also predicted individual rainstorms. A parapegma could be a text written on papyrus, but in its original form it was a public document, engraved in stone. A small hole near each line of writing allowed the insertion of a wooden peg that could be moved along from one day to the next." (James Evans, Material Culture of Greek and Roman Astronomy, in C.L.N. Ruggles (ed.), "Handbook of Archaeoastronomy and Ethnoastronomy", Springer, 2015. vol.3, ch. 141, p.1594)

"Parapegmata are among the oldest astronomical instruments from the classical world, and are closely related to the earliest astronomical/astrological tradition in Greece, that of stellar astrometeorology." (Daryn Lehoux, Image, Text, and Pattern: Reconstructing Parapegmata, in: Jones, A. & Carman, C. (eds.) "Instruments - Observations - Theories: Studies in the History of Astronomy in Honor of James Evans", ISAW, 2020, p.109)
 
"O ciclo dos aparecimentos e desaparecimentos das estrelas fixas constituíam uma parte importante na antiga astronomia, tanto grega como babilónica. Como exemplo, tome-se o caso das Plêiades. Durante a Primavera, as Plêiades desapareciam durante um mês e meio quando o Sol, no seu percurso pela eclíptica, se aproximava delas. Depois (em finais de Maio), as Plêiades emergiam do seu intervalo de invisibilidade. Podiam ser observadas, pela primeira vez, nascendo do oriente, poucos minutos antes da aurora. Era o nascimento matinal das Plêiades. Assinalava a época da colheita do trigo e o início do tempo de Verão. Do mesmo modo, o aparecimento matinal de Arcturus era reconhecido em todo o mundo Grego como assinalando o início do Outono. Os nascimentos e ocaso das estrelas que acontecem imediatamente antes do nascimento do Sol, ou imediatamente a seguir ao seu ocaso, são chamados nascimentos e ocasos "helíacos" (porque acontecem relativamente ao Sol). São também chamadas "fases" das estrelas fixas. Por volta do século V aEC ["antes da Era Comum", BCE no orig.; na prática = a.C.], estas tradições foram sistematizadas no parapegma, ou calendário estelar. (O calendário das estrelas era um pouco mais antigo entre os Babilónios. A compilação MUL.APIN, do século sétimo, já incluia um calendário deste tipo.) Um parapegma listava os nascimentos e ocasos helíacos das estrela pela ordem cronológica. O utilizador saberia a altura do ano verificando que estrelas ascendiam ao início da manhã. Este tipo de calendário era um suplemento para os caóticos calendários civis dos Gregos. Amiudadamente, mas nem sempre, as "fases das estrelas" faziam-se acompanhar de predições metereológicas. Podia-se facilmente compilar uma lista de nascimentos e ocasos helíacos das constelações, simplesmente através de observações na alvorada e no crepúsculo, efectuadas ao longo de um ano. Não havia necessidade de qualquer tipo de 'teoria'. Neste sentido, o parapegma pode ser considerado 'pré-científico'. Todavia, compreender o ciclo anual das "fases" foi um importante desiderato da mais antiga astronomia científica grega. De facto, um dos mais antigos trabalhos que sobreviveu da sua astronomia matemática é dedicado a este assunto. Trata-se do livro (na realidade são dois) escrito por Autólico (Αὐτόλυκος) de Pitane [Πιτάνη] por volta de 320 aEC e chamado "Dos Nascentes e dos Poentes". Autólico define os vários tipos de nascimentos e ocasos heliacais, depois estabelece e prova teoremas relacionados com a sua sequência no tempo e o modo como a sequência depende da posição da estrela em relação à eclíptica. Nenhuma estrela individual é especificamente nomeada. O objectivo é disponibilizar uma teoria para o entendimento dos fenómenos." (Evans, J., The History and Practice..., Op. cit., p.190 [trad. nossa]).

Outra referência é a obra de (ou atribuída a) Ptolomeu: Phaseis ou "Fases" das Estrelas Fixas (Gr. Φάσεις ἀπλανῶν ἀστέρων καὶ συναγωγὴ ἐπισημασιῶν, "Das aparências das estrelas fixas e colecção de prognósticos"). Consiste em dois livros que estudam os nascimentos e ocasos das estrelas e a sua influência metereológica. Apenas o livro II (um parapegma precedido por uma introdução) sobrevive em Grego e foi esta versão incompleta que foi traduzida em Latim nos séculos XVI e XVII. Excertos de ambos os livros originais foram perpetuados em Árabe.

Para Geminus (Γεμῖνος, Rodes, séc I a.C.), as estrelas somente indicavam, não determinavam os fenómenos metereológicos. Em termos populares e no enquadramento astrológico seria diferente. Como não relacionar os parapegmata com os ulteriores almanaques e repertórios? Encontraremos conteúdos astro-meteorológicos em Plínio, o Velho (Naturalis Historia, lib. XVIII) ou Columella (De Re Rustica, lib. XII), sem esquecer "Os Trabalhos e os Dias" (Ἔργα καὶ Ἡμέραι, romaniz.: Érga kaì Hēmérai) do arcaico Hesíodo, remoto antecedente relacionável. Um formato que se tornará mais sofisticado e se revelará perene e popular.

Na astrologia medieval, por exemplo, o chamado 'ingresso' em Aries (Equinócio Vernal) era fundamental na antecipação do novo ano e previsão da abundância ou carência de produtos agrícolas, sua qualidade e preços, questões de "saúde pública", etc. Observava-se particularmente o horóscopo da lunação que precedia este ingresso (o mesmo, sem a mesma imporância para as restantes Estações). Mas existia uma dualidade de procedimentos entre o uso do horóscopo da lunação ou o do momento (conjunção) propriamente dito.


Após a delineação do Zodíaco (v. supra), e ampliando o escopo da vasta literatura de augúrios genéricos ou respeitando o Rei e o Estado, surge na Mesopotâmia a horoscopia individual. Segundo Francesca Rochberg (Op. cit., p.121):

"Por volta do final do século V a.C., a julgar pela aparência de horóscopos cujo desígnio seria a determinação de aspectos da vida individual a partir dos sinais celestiais, acreditou-se que os céus significavam, não somente para o rei e o país, como acontecia no tradicional corpo textual dos augúrios, mas também para qualquer indivíduo. Poucos dos horóscopos que conhecemos contém detalhes acerca da vida do nativo, todavia todos informam a data de nascimento. A intenção é, portanto, inequívoca. A horoscopia cuneiforme baseava-se, obrigatoriamente, na disponibilidade de registos planetários e lunares e não na observação, pois nem todos os planetas estariam sempre observáveis acima do horizonte no momento do nascimento, e obviamente nem todos os nascimentos acontecem à noite. Pretende-se pois (neste capítulo) demonstrar a dependência babilónica relativamente a uma variedade de textos preditivos, observacionais e astronómicos. Assim se sugere que os escribas que gizaram os horóscopos, apesar de competentes nas metodologias da ciência dos astros (ou assim podemos assumir), não calculavam as posições planetárias directamente nos horóscopos, antes recorrendo a uma ampla escolha de textos astronómicos à sua disposição enquanto materiais de referência." [trad. nossa]


WA 86378 [actual BM 86378]. MUL.APIN placa1, British Museum, London


Recapitulando, o facto de a fenomenologia do céu constituir uma "escrita" pressupõe, logicamente, a possibilidade da sua leitura e interpretação. Seguindo o útil resumo dos primeiros capítulos de Chris Brennan (Hellenistic Astrology: The Study of Fate and Fortune, Amor Fati Publications, 2017),
antes do quinto século a.C., os povos da Mesopotâmia ainda não possuiam competências matemáticas para calcular informação posicional (onde os planetas estariam no futuro ou onde haviam estado preteritamente). Todavia, séculos de observações permitirão identificar ciclos e recorrências. A partir do séc. VIII a.C., as observações das posições dos planetas serão sistemáticas e minuciosas. Os registos descobertos são hoje habitualmente chamados "Diários" na literatura especializada (é aqui que, segundo Francesca Rochberg, assistimos a uma primeira tentativa de normalização de um zodíaco de doze signos, v. The Heavenly Writing, Op. cit., p. 130). Gradualmente, desenvolver-se-ão modelos matemáticos com crescente complexidade para a determinação das posições planetárias.

A partir do séc. V a.C. o zodíaco é "normalizado", pois antes seria composto por intervalos desiguais em função do diferente tamanho das constelações situadas nesse percurso dos luminares e planetas. Doravante cada signo ocupará um arco de 30º. Tudo indica que na Mesopotâmia ainda não se implementava a associação a muitas das "qualidades" que os signos assumirão mais tarde (e.g., género, domínios planetários, elementos). Todavia, esboça-se a divisão dos planetas em dois grupos, que se supunha fornecerem augúrios ou indicações positivas ou negativas, antecipando a posterior divisão Helenística entre "benéficos" e "maléficos". Do mesmo modo, começava-se a agrupar os signos em grupos de três (como nas futuras "triplicidades"), contudo sem a associação aos quatro elementos (Fogo, Ar, Água e Terra) da teoria Grega (vide Rochberg-Halton, Elements of the Babylonian Contribution, Journal of the American Oriental Society, Vol. 108, No. 1 (Jan.-Mar., 1988, pp. 60-62).

O desenvolvimento da astrologia natal (genetlíaca) parece concomitante com a disponibilidade dos antigos equivalentes aos nossos almanaques e efemérides (i.e. diários). A Astrologia deixará de ser observacional e será doravante baseada em informação tabulada que fornece as posições dos planetas para a data pretendida (Rochberg, Heavenly Writing, op. cit., pp.153-163.). Segundo Dorian Greenbaum e Micah Ross (The Role of Egypt in the Development of the Horoscope, in: Bareš, L, Coppens, F., & Smoláriková K. (eds.), Egypt in Transition, Czech Institute of Egyptology, Charles University, 2010), os "decanos" Egípcios (designação derivada do gr. deka = dez, inicialmente prováveis marcadores da passagem do tempo e eventualmente impregnados de significado simbólico ou indicações fastas ou nefastas) constituirão a motivação para o futuro desenvolvimento da doutrina das doze "Casas". Fundindo ambos os sistemas, começam a surgir (no Egipto) representações do Zodíaco que incorporam os decanos, que com o passar do tempo deixarão de ser consideradados autonomamente. Uma das explicações antigas e tradicionais para a transmissão do conhecimento astrológico para o mundo Grego faz intervir um escritor e sacerdote oriental, Berossus (Gr. Βήρωσσος, séc. II a.C.). Assim lemos no De Architectura (9, 6: 2) de Vitruvius (escritor Romano do séc. I). Uma coisa é evidente: a Astrologia, no formato elaborado que prevalecerá, é definitivamente uma criação Helenística, resultante de uma interessante fusão de influências, nomeadamente Babilónicas e Egípcias numa estrutura conceptual, "geométrica" e filosófica Grega (na qual o Estoicismo não terá papel irrelevante), num período histórico propício após a interacção cultural que se abre com as conquistas de Alexandre Magno. O Grego passou a ser o idioma comum, a "língua franca", e será a língua dos textos científicos no Império Romano (vide Heinlen, Problems in Translating Ancient Greek Astrological Texts, in: Imhausen, A. & Pommerening, T. (eds.), Writings of Early Scholars in the Ancient Near East, Egypt, Rome, and Greece, De Gruyter, 2011" p.299). De facto, há a considerar o carácter fragmentário das interacções, o problema da comunicação e das traduções. Este complexo processo é pouco conhecido devido à escassez de fontes coevas (não somente nesta área). É apenas a partir do séc. I AD que possuimos resumos ou referências a essas fontes por parte dos autores que delas deixaram notícia.


O Modelo Geocêntrico

O modelo geocêntrico era "óbvio", respondendo a uma lógica experiencial e assimilando os conceitos filosóficos de perfeição e harmonia tão caros aos pensadores clássicos. Havia uma indiscutível beleza, mesura e hierarquia. Quanto à estrutura, escala e sentido do maravilhoso que imprime, poucos o conseguiram traduzir como C. S. Lewis, em The Discarded Image:  
 
"You must go out on a starry night and walk about for half an hour trying to see the sky in terms of the old cosmology. Remember that you now have an absolute Up and Down. The Earth is really the centre, really the lowest place; movement to it from whatever direction is downward movement. As a modern, you located the stars at a great distance. For distance you must now substitute that very special, and far less abstract, sort of distance which we call height; height, which speaks immediately to our muscles and nerves. The Medieval Model is vertiginous. And the fact that the height of the stars in the medieval astronomy is very small compared with their distance in the modern, will turn out not to have the kind of importance you anticipated. For thought and imagination, ten million miles and a thousand million are much the same. Both can be conceived (that is, we can do sums with both) and neither can be imagined; and the more imagination we have the better we shall know this. The really important difference is that the medieval universe, while unimaginably large, was also unambiguously finite. And one unexpected result of this is to make the smallness of Earth more vividly felt. In our universe she is small, no doubt; but so are the galaxies, so is everything - and so what? But in theirs there was an absolute standard of comparison. The furthest sphere, Dante's maggior corpo is, quite simply and finally, the largest object in existence. The word 'small' as applied to Earth thus takes on a far more absolute significance. Again, because the medieval universe is finite, it has a shape, the perfect spherical shape, containing within itself an ordered variety. Hence to look out on the night sky with modern eyes is like looking out over a sea that fades away into mist, or looking about one in a trackless forest-trees forever and no horizon. To look up at the towering medieval universe is much more like looking at a great building. The 'space' of modern astronomy may arouse terror, or bewilderment or vague reverie; the spheres of the old present us with an object in which the mind can rest, overwhelming in its greatness but satisfying in its harmony.  That is the sense in which our universe is romantic [i.e. ilimitado, de algum modo caótico, "convulsivo", referência ao Romantismo, movimento estético e filosófico], and theirs was classical." (The Discarded Image, Cambridge University Press, 1964, pp.98-9)

O universo fechado e sólido "estilhaçou" e, em seu lugar, surgirá o "Espaço", somente descrito de modo abstracto e matemático, escuro, sem limites, indeterminado...


Visão ptolomaica do Universo na Cosmographia de Bartolomeu Velho, 1568 (Bibliothèque Nationale de France, Paris)


Diagrama cosmológico das esferas, rodeadas por anjos. Matfré Ermengaud de Béziers, Breviari d'Amour, finais do séc. XIV; BL Ms. Yates Thompson, 31, f.66


A Astronomia desenvolveu-se, como vimos, a partir da amálgama das observações e procedimentos dos efemeridistas mesopotâmicos com o espírito da filosofia natural e geometria, apanágio da mundividência helénica. O nosso conhecimento da primitiva astronomia grega, anterior ao séc. IV a.C., resume-se a escassos fragmentos e aos comentários de Aristóteles acerca de (supostas) opiniões e concepções anteriores, que geralmente vai criticar. Mas tudo indica que se nutre uma concepção naturalista do Kósmos, explicando os fenómenos a partir das propriedades de certos elementos universais e de princípios reguladores inerentes ao mundo natural, phýsis.

Os Gregos foram dogmáticos relativamente à utilização exclusiva dos movimentos circulares. Simplicius, no seu comentário (Simplicii in Aristotelis de Caelo Commentaria) afirma que Sosígenes afirmou que esta opção se deve a Platão; Geminus (Isagoge, cap.I) afirmou que recuava aos Pitagóricos. Estes, provavelmente por razões teológicas, simbólicas e estéticas, concebem a Terra como uma esfera, em torno da qual os astros revolucionam em movimentos circulares uniformes e perfeitos. Os predicados fundamentais dessa cosmologia serão bem acolhidos. Na República de Platão encontramos, no Mito de Er (o Arménio que morreu em combate mas voltou e será "mensageiro das coisas do "Além"), incidentalmente, uma descrição da estrutura axial do universo e do "Fuso da Necessidade" (A Necessidade, personificada por Ananke, é noção pitagórica), por cuja acção giram as esferas. Na introdução de 1972 à sua tradução da obra com chancela da Gulbenkian, Maria Helena da Rocha Pereira resume (XLI-XLII):
 
A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo, com a grande luz "direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura" (616b), que segura a esfera em movimento. Das suas extremidades, pendia o fuso da Necessidade, cuja complexa estrutura é descrita quanto à forma e à cor, em termos tais que nos permitem adivinhar neles a correspondência com o Sol a Lua, os cinco planetas então conhecidos e as "estrelas fixas". O fuso repousa nos joelhos da Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus contrapesos, uma Sereia, girando com ele, emite uma nota musical. Do acorde dessas oito notas resulta a "harmonia das esferas". Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto) e o futuro (Átropos), fazendo girar o fuso. O mito, que é obviamente moral, contribuirá, segundo Rocha Pereira, para a "fixação de uma escatologia com castigos e recompensas, de acordo com o procedimento moral de cada um", é traduzido a partir da pág. 484 (9ª ed.; Fundação Calouste Gulbenkian).

Relacionada com o símbolo do "axis-mundi", é comum a comparação do movimento diurno, circular e uniforme do céu em torno do pólo ao funcionamento de um moinho. Surge em Cleomedes (séc. I a.C.) e em muitas mitologias (prioritariamente em culturas que habitavam regiões boreais, pelos exemplos aduzidos). Encontra-se, por exemplo, entre os Ostyaks da Sibéria. No Kalevala (colectânea de narrativas tradicionais finlandesas), o sampo, objecto mágico difícil de definir mas que pode ser um pilar, uma árvore ou um moinho, suporta-se em três "esteios" ou raízes, como a célebre Yggdrasill, a "Árvore (i.e. "eixo") do Mundo" da tradição nórdica: uma raíz sobe para o céu, outra finca-se na terra e uma terceira num redemoínho, provável representação do inframundo. As Eddas nórdicas também parecem comparar a rotação do eixo celeste - ou o deus incumbente - a um moinho. A dedução, segundo Krupp, respalda-se na etimologia do nome Mundilfari, o progenitor do Sol e da Lua. (vide Krupp, E. C., Beyond the Blue Horizon..., Oxford University Press, 1992, pp.297 et seq.)

Mais preocupado com a "mecânica" concreta e baseado na esferas de Eudoxus e na antiga teoria dos Elementos, Aristóteles gizará um sistema cosmológico elaborado e minucioso que se revelará duradouro. Este filósofo concebeu um universo finito e esférico, centrado numa Terra estacionária.

N'A Astronomia de Os Lusíadas (publicada em 1913-15, reeditada pela Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1972), Luciano Pereira da Silva (p. 83, n. 1) traduz um excerto de Pierre Duhem que resume o essencial da perspectiva aristotélica, começando com a axiomática distinção entre movimentos 'naturais': o circular dos corpos celestes e o rectilíneo dos terrestres (Le système du Monde, t. II, Paris, 1914, pp. 61 e 62):

O sistema do Mundo concebido por Aristóteles estabelece uma profunda distinção entre os Céus, região de ordem imutável e do movimento circular, e o espaço inferior à esfera da Lua, região da mutabilidade e do movimento rectilíneo. Esta segunda região é ocupada pelos quatro elementos, dos quais a Terra ocupa o lugar mais próximo do centro, seguindo-se a água, depois o ar e por cima o fogo, não havendo, porém, limites definidos a separar os elementos. Tudo o que fica adentro do orbe lunar está sujeito à geração e corrupção. Acima deste orbe ficam as esferas celestes, feitas de éter ou quinta-essência, substância cristalina imutável, incorruptível, distinta dos quatro elementos. Ora Aristóteles distingue três espécies de movimento: o rectilíneo, o circular e o misto, composto dos dois primeiros. A cada substância simples corresponde um só movimento natural, que deve ser também simples, portanto um movimento de pura translação, o rectilíneo, segundo a vertical, ou um puro movimento de rotação em volta da Terra, o que ele chama circular. Este último, único que pode efectuar-se eternamente no mesmo sentido, convém, por natureza, ao éter, substância celeste. O movimento rectilíneo é o natural aos corpos corruptíveis e geráveis; ele não pode prosseguir eternamente no mesmo sentido porque o Universo é finito e nenhum móvel pode ultrapassar os seus limites. As translações simples, sempre executadas na direcção vertical, são de duas espécies: centrípetas, de cima para baixo, e este é o movimento natural dos corpos graves; ou centrífugas, de baixo para cima, e este é o movimento natural dos corpos leves. O corpo mais leve, o fogo, subirá verticalmente até ao orbe etéreo da Lua, inultrapassável. O corpo mais pesado, a Terra, descerá até ao centro do Mundo, não podendo prosseguir além, pois começaria nesse ponto uma ascensão contrária à sua natureza. Se um corpo grave sobe, ou um leve desce, é porque sobre ele actua um motor estranho e o seu movimento deixa de ser natural para ser violento. Do mesmo modo, só por violência um corpo sublunar segue uma trajectória diferente da vertical. Os astros, tanto fixos como errantes, são transportados em esferas homocêntricas segundo o sistema de Eudóxio, adoptado pelo Estagirita, e assim se movem todos em esferas cujo centro é o da Terra, guardando sempre a mesma distância relativamente a ela. Não sofrem, pois, deslocamento no sentido vertical, executando um movimento circular simples, uma pura rotação, sem translação alguma, centrípeta ou centrífuga. Quando, com Hiparco e Ptolomeu, se fizeram mover os planetas em esferas excêntricas, clamaram os adeptos da Filosofia de Aristóteles que tal doutrina era contrária à teoria peripatética dos movimentos naturais. Um planeta, descrevendo um círculo excêntrico, ora se afasta da Terra até o apogeu, ora se aproxima até o perigeu. Assim, andando os astros errantes em volta da Terra a distâncias variáveis, o seu movimento não seria circular simples no sentido aristotélico, mas composto de circular e rectilíneo, ora centrífugo ora centrípeto.


As principais opiniões dissonantes relativamente a este sistema geométrico, geoestacionário e hierarquizado foram (supostamente) as de Heráclides Ponticus (i.e. do Ponto Euxino, o actual Mar Negro) e Aristarco de Samos.

Voltando ao percurso dos modelos pretéritos, o engenhoso sistema de esferas homocêntricas de Eudoxus constitui, provavelmente, a primeira tentativa de explicação mecânica do Universo. [Salvaguarda-se que seguimos uma "reconstrução" académica commumente aceite mas baseada em fontes indirectas].

Assim, cada planeta estava fixado numa esfera que tinha liberdade para girar. Cada esfera com seu planeta estava ligada pelos pólos a uma esfera secundária exterior concêntrica que girava sobre um eixo diferente. Deste modo, cada esfera planetária estava ligada a outras, digamos, "não planetárias", ou "sem estrelas" seguindo a antiga expressão de Teofrasto [romaniz. Theóphrastos] (cit. por Dreyer, 1953, p.90). As esferas possuiam movimento uniforme. Cada planeta estaria incrustado no equador da sua esfera. os pólos da esfera estaria fixados na próxima, e assim sucessivamente (sistema recorria a 3 ou 4 esferas, o menor número no caso dos luminares). J. L. E. Dreyer, no cap. IV do seu clássico reeditado como A History of Astronomy from Thales to Kepler (Dover, 1953) descreve o modelo baseado nos estudos de autores pretéritos como Ideler e, principalmente, G. Schiaparelli:
 
Every celestial body was supposed to be situated on the equator of a sphere which revolves with uniform speed round its two poles. In order to explain the stations and arcs of retrogression of the planets, as well as their motion in latitude, Eudoxus assumed that the poles of a planetary sphere are not immovable but are carried by a larger sphere, concentric with the first one, which rotates with a different speed round two poles different from those of the first one. As this was not sufficient to represent the phenomena, Eudoxus placed the poles of the second sphere on a third, concentric to and larger than the two first ones and moving round separate poles with a speed peculiar to itself. (...) The third sphere had its poles situated at two opposite points of the zodiac (on the second sphere), and rotated round them in a period equal to the synodic period of the planet, or the interval between two successive oppositions or conjunctions with the sun. These poles were different for the different planets, but Mercury and Venus had the same poles. (...) On the surface of the third sphere the poles of the fourth were fixed, the axis of the latter having a constant inclination, different for each planet, to the axis of the third sphere. Round the axis of the fourth sphere the rotation of the latter took place in the same period, but in a direction opposite to that of the third sphere. On the equator of the fourth sphere the planet is fixed, and it is thus endowed with four motions, a daily one, the orbital one along the zodiac, and two others in the synodic period.
(pp.90-6).

Como Michael Hoskin explica (The History of Astronomy (A Very Short introduction), Oxford University Press, 2003), os ângulos dos eixos e as velocidades de rotação eram escolhidos de modo a acautelar um resultado "fidedigno", sendo a esfera exterior a responsável pelo movimento diurno (a rotação aparente do céu em 24 horas). Os planetas, em que se observava retrogradação, apresentavam uma pequena diferença na inclinação dos eixos de duas das esferas, determinando um movimento numa linha que faria a figura de um "oito" (v. infra) e permitia ao conjunto das quatro esferas gerar o movimento "para trás" observável no céu (i.e., os laços da hipópede respondiam às alterações nos movimentos, às paragens e à alternância dos movimentos directos e das retrogradações).

Eudoxus - Lua
Os padrões que configuravam o movimento da Lua no sistema de Eudoxus. A Lua imaginava-se fixada no Equador da esfera interior (Hoskin, The History of Astronomy...)


O sistema era somente uma tradução aproximada, gerando movimentos rigorosamente regulares quando na realidade se observam complexidades e, ao obrigar a uma distância inalterável relativamente ao centro (Terra), não acautelando a presumida alteração das distâncias dos planetas (que as alterações do brilho denunciavam). A inflexibilidade e as diferenças entre a "simulação" e os fenómenos determinaram a optimização e, mais tarde, a criação de novos modelos. O sistema era compaginável com a descrição e princípios aristotélicos. Os movimentos são transmitidos do exterior para o interior do sistema, e são cumulativos. Para "cancelar" os movimentos combinados é necessário interpor esferas que os contraditem (que actuem no sentido oposto), expediente que Aristóteles vai utilizar. Tendo em vista acautelar os fenómenos e manter-se fiel aos pressupostos da sua Física, Aristóteles chegará, no seu próprio sistema que estende e amplia o anterior (já optimizado por Cálipo ou Callipus), a considerar, no seu máximo, a existência de 55 esferas (Metafísica XII.8). N.B. este número é sempre polémico e sujeito a revisões em cada nova tradução ou interpretação, mas serão sempre muitas esferas!

Os aristotélicos posteriores recusaram isolar a discussão do movimento dos astros da respectiva natureza física. Como Edward Grant explica, a cosmologia aristotélica, muito mais tarde reforçada pelas ideias do seu comentador Averróis (ibn Rushd, 1126-1198), exigia que qualquer orbe celeste tivesse um corpo físico situado no seu centro. Os averroístas descartaram os modelos ptolomaicos como "ficções" somente úteis nos cálculos das posições. Adoptaram um sistema alternativo que era uma modificação das esferas homocêntricas de Eudoxus (vide Katherine Tredwell: Latin Astronomy, in Glick, T., Livesey, S. and Wallis, F., Op. cit. p.68). Num sistema no qual todos os orbes físicos eram concêntricos, a Terra preenchia uma função essencial. Aristóteles afirmou a existência de esferas transparentes e invisíveis às quais os corpos celestes estavam fixados ou por elas eram "alojados". Na opinião corrente, estes corpos (e.g., estrelas, planetas) eram observáveis porque, apesar de constituídos pelo mesmo 'éter' transparente, este era aqui muito mais concentrado, capaz de receber luz e tornar-se autonomamente luminoso ou, para os autores que consideravam os corpos celestes opacos, de reflectirem a luz do Sol (o lucido Planeta de Camões). Considerava-se ser a explicação mais acertada, apesar de uma opinião alternativa que considerava os corpos celestes capazes de serem tenuamente luminosos. Todavia, no que diz respeito aos movimentos e brilho, a realidade das observações astronómicas tornou insustentável a defesa do sistema concêntrico. As irregularidades e a observação de variações na luminosidade dos planetas tornou claro que as suas distâncias à Terra sofriam variações. Daqui resultava que a Terra não poderia ser o centro físico das respectivas órbitas. A Astronomia concêntrica de Aristóteles foi substituída pelo sistema Ptolomaico dos orbes excêntricos no qual a Terra, apesar de continuar estacionária e no centro do Mundo, não é mais o centro dos movimentos planetários. (Grant, E., Cosmology, in: Lindberg, D. e Shank, M. (Eds.), The Cambridge History of Science, Vol 2, 2013, pp.442-3).


Modelo planetário, esferas de Eudoxus
Modelo explicativo do movimento de um planeta, segundo Eudoxus. A esfera 1 produz o movimento diurno para oeste; da esfera 2 resulta o movimento para leste ao longo da Eclíptica; as esferas 3 e 4 são responsáveis pelos movimentos de recuo e avanço necessários para acomodar a retrogradação do planeta (quando o astro inverte e depois retoma a direcção do seu movimento, fazendo as chamadas "laçadas" (Evans, James, The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, fig.7.11)


Segundo J. D. North, "...The collection of spheres governing a particular planet’s motion (say the four for Jupiter) will, quite apart from their own motions, be carried round inside the collection of spheres for the planet next above (in this case Saturn), and will thus share in that planet’s motions. To obviate this difficulty, and for other purposes, Aristotle added extra spheres. (Thus he needed three simply to neutralize the motion of all but the outermost sphere of Saturn, this outermost sphere being needed to account for the daily rotation of the sky.). By the time he had finished, he had a system with 55 homocentric spheres. These subtleties had been virtually forgotten (...), [because] planetary motions could be accounted for in the Ptolemaic manner in ways far superior to those devised by Eudoxus, Callippus, and Aristotle," (Chaucer's Universe, Op. cit., p.20) Os expedientes destes últimos traduziam-se numa colecção de esferas na qual o conjunto responsável pelos movimentos de um determinado planeta era, por sua vez, "arrastado" pelos aparatos dos planetas seguintes (exteriores). Para obviar este e outros problemas, Aristóteles acrescentou mais esferas (precisou, por exemplo, de três esferas suplementares somente para neutralizar a mencionada interferência ou arrastamento pelo planeta seguinte, excepto para o último, Saturno, pois era necessário acautelar o movimento diurno do conjunto). O modelo Ptolomaico será o prevalecente, pela sua (relativa) eficiência e superior precisão, através do recurso aos expedientes que abordaremos de seguida.


Excêntricos e Epiciclos

Surgiram alternativas: excêntricos e epiciclos. A combinação excêntrico-epiciclo surgiu no período que medeia entre Cálipo de Cízico (c. 330 a.C., optimizador do sistema de Eudoxus) e Apolónio de Perga (c. 200 a.C.). A formulação matemática do sistema, que substitui as simples (e insuficientes) esferas de Eudoxus e Aristóteles na representação dos movimentos dos luminares e dos planetas, recua, na opinião de Ptolomeu, ao segundo (Mourão, Ronaldo R. de Freitas, Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira S.A., 1995, 45; vide Almagesto 12.1).

Excêntricos e Epiciclos
As duas hipóteses (excêntricos e epiciclos). No modelo epicíclico, o centro C move-se uniformemente em torno do observador O, enquanto o ponto M se move na mesma medida mas na direcção contrária em torno do ponto C. Logo, CM mantém uma direcção fixa. No modelo excêntrico, M move-se uniformemente em torno de D, centro esse que está a uma determinada distância do observador O. Estabelecendo que OD equivale ao raio do epiciclo (CM), verifica-se a equivaência dos dois modelos, que decorre da comutatividade da adição dos vectores, i.e. OD + DM = OC + CM, ou da constatação de que ODMC é um paralelogramo (quadrilátero cujos lados opostos são iguais e paralelos). Ou seja, as hipóteses eram indistintas no que diz respeito à explicação dos movimentos planetários.(Goldstein, Bernard R., Theory and Observation in Medieval Astronomy, Isis 63. Washington, D.C., 1972, Fig.1)


A ordem dos planetas era convencional: "Now in ancient astronomy the order of the planets is more or less a convention, without any sure foundation upon observable facts. Thus Ptolemy reminds us that there is no perceptible parallax in any of the planets, and that one has never observed a passage of Venus or Mercury before the disc of the Sun." (Pedersen, Olaf, A Survey of the Almagest (With Annotation and New Commentary by Alexander Jones), Springer, 2011, p.295).

A ordem dos planetas na antiga Mesopotâmia não estava obviamente relacionada com as distâncias, pois não existiam os conceitos de órbita ou da geometria do sistema. Uma destas primeiras sequências (Júpiter, Vénus, Saturno, Mercúrio, Marte) perpetuou-se na astrologia Helenística e está na origem da ordem "Caldaica" de uma das chamadas dignidades: os 'Termos' (como foi inicialmente constatado por Franz Boll). As variantes gregas já presumem a espacialidade e distância, mesmo que indeterminável. Apesar de pequenas complexidades com os planetas interiores, a ordem que prevaleceu (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vénus, Mercúrio, Lua [de "fora" para "dentro"]) estava relacionada com as velocidades dos planetas em relação ao plano de fundo das estrelas. Apesar de não ser possível conhecer a distância e ordem dos planetas ainda por muito tempo, esta ordenação será tomada como definitiva, "pelo menos desde a época de Cícero" (J. D. North, Chaucer's Univerese, 1988, p.29). Encontramos um reflexo desta sequência nas horas planetárias e, a partir destas, nos nomes dos dias da semana em muitos idiomas.

Segundo Goldstein (Theory and Observation in Medieval Astronomy, Isis 63. Washington, D.C., 1972, p.41): "With rare exceptions medieval astronomers supported the nesting principle, but they considered the order of the planetary spheres to be an open question. There were three views: Mercury and Venus both lie beneath the sun; Mercury is below the sun and Venus above it; Mercury and Venus both lie above the sun.". Como Ptolomeu havia afirmado, somente observando um trânsito teríamos uma prova conclusiva. Mas nunca tinha observado e sugeriu que talvez nem fosse possível devido à pequena dimensão angular. Prevalecia uma teoria de que as órbitas se encaixavam, a partir de estimativas e conjecturas muito incertas de algumas distâncias.

A preocupação com a ordem dos planetas levou à consideração das suas distâncias. As distâncias de Ptolomeu (nas Hipóteses Planetárias) foram gizadas a partir das distâncias da Lua e do Sol que supostamente "conseguira" determinar (Almagesto), e assumindo proporções relativas para os restantes planetas (pois onde terminava o aparato geométrico de um. começava o do imediato). Na realidade, desde Hiparco que através da paralaxe se podia ter uma estimativa razoável das distâncias (maior e menor) da Lua; em relação ao Sol, não foi possível. Aristarco estava correcto em tese mas a agilização não era exequível e seu o resultado estava afastadíssimo da realidade. Somente após Edmond Halley e a observação dos trânsitos de Vénus (apesar do efeito óptico "black drop" que dificulta a medição) se conseguiu chegar a uma distância (média) minimamente fiável. Voltando ao método geométrico e apriorístico de Ptolomeu, a maior distância da Lua permitia-lhe (supostamente) conhecer as distâncias (sempre em raios terrestres) de Mercúrio e Vénus, a do Sol conhecer a dos restantes planetas e a da esfera das "estrelas fixas". Eram calculadas em raios terrestres, utilizando: o raio do deferente do planeta (R), o raio do epiciclo (r), a excentricidade (e). Assim, para Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, a maior distância relativa era D = R + (r + e); a menor d = R - (r + e). Mercúrio era um caso diferente e mais complexo (vide exposição e desenvolvimento em Goldstein, Bernard, and Swerdlow, Noel, Planetary Distances and Sizes in an Anonymous Arabic Treatise Preserved in Bodleian Ms. Marsh 621, Centaurus 15. Copenhagen, 1970-71, p.136).

Muitos astrónomos medievais viam estas distâncias como somente provisionais, e surgiram diversos cálculos alternativos. Mas os valores nesses textos mais tardios situam-se, geralmente próximos dos de Ptolomeu, colocando a esfera das estrelas fixas (o limite do Universo) a 20000 raios terrestres. Toda esta abordagem deve ser contextualizada na estrutura teórica que a determinou. A variação de tamanho dos planetas, que ficou por abordar convenientemente por Ptolomeu, também era assiduamente discutida na Idade Média. Bem como outras consequências (ou "inconsequências") das teorias planetárias. Vénus, segundo a teoria, deveria mostrar fases. Como estas não eram observadas (só após a utilização do telescópio por Galileu foi possível), Al-Bitruji (o "Alpetragius" latino) resolveu a dificuldade afirmando que os planetas teriam luz própria! (Golstein, Theory and Observation..., p.45). 


Para compreender os desenvolvimentos da astronomia Grega e os modelos geométricos definitivamente gizados, pode ser útil partir da 'Teoria Solar' de Ptolomeu, i.e. explicação dos fenómenos relacionados com os movimentos específicos do Sol. Daqui se pode extrapolar para as outras aplicações. Seguimos a exposição de James Evans (1998: pp.205 et seq.). Depois, outro exemplo ptolomaico usado para a determinação das longitudes de alguns dos planetas (ibid., pp.355-6).

Assim, todas as mudanças relevantes (estações do ano, alteração no número de horas diurnas e nocturnas, direcções do orto e do ocaso do Sol, comprimento da sombra ao meio-dia) podiam ser explicadas através de um modelo no qual o Sol percorria um círculo (a Eclíptica) inclinado em relação ao Equador. Mas havia uma anomalia: a dimensão variável das estações do ano. A medição precisa da duração do ano era relativamente fácil e precisa recorrendo aos equinócios (os solstícios são, pela sua natureza, fenómenos mais difíceis de precisar). O equinócio podia ser aproximadamente determinado medindo, para começar, a altura do Sol ao meio-dia nos dias dos solstícios. A altura do Sol no dia do equinócio deveria situar-se exactamente a meio desses valores. Media-se a altura meridiana do Sol em dias sucessivos em redor da data esperada do equinócio e interpolava-se para determinar o momento exacto. Como a declinação do Sol muda rapidamente nesta altura do ano, era possível determinar o momento do equinócio com razoável aproximação (uma modesta fracção do dia). Dos diversos instrumentos à disposição, o quadrante colocado no plano do meridiano era o mais preciso na medição das alturas. Ptolomeu descreveu no Almagesto (I, 12) duas versões do instrumento.

O fenómeno da desigualdade das estações do ano é conhecido pelo menos desde Cálipo (Κάλλιππος) e os valores de Hiparco (120 a.C.) são uma referência fiável. Demais, o tamanho das estações altera-se com a passagem dos séculos; têm actualmente (sequencialmente e começando na Primavera): 93, 93, 90 e 89 dias. Hiparco elencou (circa 130 a.C.): 94 1/2, 92 1/2, 88 1/8 e 90 1/8 dias. Descobriu-se assim uma "anomalia solar" que comprovava que o movimento (aparente) do Sol não tinha a mesma velocidade angular em todos os pontos da sua órbita. Assim, os antigos astrónomos Gregos precisaram abandonar a sua versão simplista circular e uniforme, com a Terra no exacto centro (esquema 1, infra), inventando modelos que respondessem ao desafio. [Hoje sabemos que as premissas eram falsas e que é a Terra que orbita o Sol segundo uma elipse]. Todavia, procurou-se ajustar o modelo perpetuando princípios físicos aristotélicos. Com um "pequeno" ajustamento, manteve-se o movimento circular e a velocidade uniforme.

Modelos: Excêntrico e Epiciclo
Esquemas da teoria solar recolhidos em Evans: 1998: pp.210-12. Numerados por nós e explicados no texto. Convém acrescentar a seguinte legenda;
VE (Equinócio Vernal), AE (Equinócio de Outono), SS (Solstício de Verão) , WS (Solstício de Inverno); imagine-se o observador no pólo norte da Eclíptica. No esquema 1, a Terra ("Earth") está no centro.


Hiparco assumiu (simplesmente) um centro deslocado da posição da Terra
(i.e. não coincidente com a Terra). O círculo da órbita solar passou a ser excêntrico. O esquema 2 explica a variação das dimensões sazonais para a nossa época (C é o centro do excêntrico do Sol, O é a Terra; a linha que os une permite encontrar o apogeu A e o perigeu Π (Pi), o ponto da órbita mais afastado e mais próximo da Terra, respectivamente). O segmento entre A e Π é a chamada "linha de ápsides" (que une os pontos extremos da órbita). O ângulo A é a longitude do apogeu; OC / CA = excentricidade. Neste modelo, o Sol viaja a uma velocidade constante (em relação a C) mas parece, a partir da Terra, mover-se mais rapidamente nas imediações do perigeu e mais devagar no apogeu, devido às diferente distâncias a que está do nosso planeta.

Outro modelo, gizado praticamente em paralelo, permite obter exactamente o mesmo resultado. Utiliza um deferente que "carrega" ou transporta um epiciclo (i.e. [pequeno] círculo que se move sobre outro círculo). O conceito parece recuar a Apolónio de Perga, todavia (ainda) sem a componente quantitativa exigida, apenas a explicação física. No esquema 3, o Sol (S) movimenta-se no epiciclo enquanto o centro desse epiciclo (K) orbita (no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, retrógrado, como se observado do pólo norte da Eclíptica) o círculo deferente, que por sua vez está centrado na Terra (O). O ângulo α aumenta uniformemente com o tempo. Entretanto, o Sol (S) movimenta-se (peculiarmente) no sentido dos ponteiros do relógio no seu epiciclo. Logo, o ângulo β também aumenta uniformemente com o tempo. Evoluíndo ambos os movimentos com o mesmo progresso, teremos β = α. Ambos os movimentos se completam num ano (pois trata-se do Sol) e os ângulos α e β são sempre iguais. O movimento resultante da combinação de movimentos não é nada mais do que o movimento uniforme de um círculo excêntrico, como usado no modelo anterior. Porque α = β, o raio rotativo KS (no epiciclo) permanecerá sempre paralelo ao segmento OZ. Os modelos são matematicamente equivalentes. Seguindo a (moderna) propriedade comutativa da adição (dos vectores); OS = OK + KS. Noutra ordem OS = KS + OK. É o que se representa no último esquema (4), um modelo excêntrico; o ângulo α é chamado "anomalia média" (por definição: a conversão em ângulo do tempo desde que o astro passou pelo periastro, na sua órbita).

Os dois modelos abordados (excêntricos e epiciclos) serão ulteriormente combinados e adaptados na procura de respostas fiáveis para os fenómenos observados e terão um longo percurso na História da Astronomia.

Teoria Planetária - longitudes (Ptolomeu)
Esquema da teoria definitiva das longitudes para Vénus e para os três restantes planetas superiores, segundo Ptolomeu. A Terra está representada pelo ponto O. C é o centro do círculo deferente mas o centro do epiciclo move-se com uma velocidade angular uniforme relativamente ao ponto E. (Evans: 1998, p.355)


O esquema acima descreve a teoria das longitudes que permitia determinar as posições dos planetas ao longo do círculo oblíquo (Eclíptica). Mercúrio não está incluído devido a uma complexidade extra. O círculo do deferente (A K Π) é excêntrico (por isso para Ptolomeu estas duas definições são intercambiáveis). Estrutura-se em torno do centro C. A Terra está representada em O. A linha entre O e C intesecta o deferente/excêntrico em A (apogeu do excêntrico) e Π (perigeu). É a chamada linha dos ápsides (que é também a linha de simetria das retrogradações do planeta). A linha OZ aponta para o Ponto Vernal (direcção referencial para a medição da longitude, v. símbolo à direita no esquema). O ângulo A representa a longitude do apogeu do excêntrico, que é diferente para cada planeta. O centro K do epiciclo move-se para Leste no deferente/excêntrico mas o seu movimento não é uniforme quando observado da Terra nem sequer do centro do deferente: somente é uniforme quando observado do de um 3º centro, o ponto aequans (E). Um hipotético observador aí colocado veria o planeta percorrer ângulos iguais em tempos iguais. Assim, devido a este ponto, Ptolomeu faz com o ponto K (centro do epiciclo) se movimente  mais devagar no apogeu e mais depressa no perigeu, algo que, como James Evans comenta, contorce a física de Aristóteles. EX é paralela a OZ; EX é a referência (0º) para ângulos medidos a partir do aequans.
 
A longitude (λ) incrementa de modo uniforme, determinada pelo período tropical do planeta (duração média de que o planeta precisa para dar a volta ao círculo completo da Eclíptica, e.g., Marte aproximadamente em 2 anos, Júpiter em 12 anos, etc.). O planeta P percorre o epiciclo do mesmo modo que K o faz no excêntrico, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, i.e. retrógrado (como se observado do pólo norte da Eclíptica). A posição de P no epiciclo é especificada pelo ângulo μ, a "anomalia epicíclica média". O movimento uniforme de P deve ser medido em função da revolução uniforme da linha EK. μ incrementa uniformemente, dependendo do período sinódico de P. O raio CK do excêntrico é irrelevante, excepto na medida em que deve ser muito maior do que o raio da Terra, uma vez que os planetas têm paralaxes negligenciáveis.
 
Na teoria de Ptolomeu, CE = CO, portanto o ponto aequans e Terra são equidistantes do centro do círculo deferente. O raio do epiciclo (r = KP) é fixo relativamente ao raio "R" do deferente (não designado na ilustração) e a razão r / R seria específica para cada planeta. A razão CO / R (ou CE / R) representava a excentricidade (e) do planeta, que também específica de cada um, para determinada época.

Purbáquio - Estações e Retrogradações
Esquema (anotado) da Teoria das estações e retrogradações (Purbachius. Theoricae novae planetarum (ed. Erhard Ratdolt, 1485; exemplar da bibliothèque Sainte-Geneviève (BSG), Paris)


Marte, Júpiter e Saturno moviam-se de modo a que a linha que unia o planeta ao centro do epiciclo era sempre paralela à que unia a Terra e o Sol; nos casos de Mercúrio e Vénus, os centros dos respectivos epiciclos situava na linha que unia a Terra e o Sol (estes planetas nunca se afastam angularmente muito do Sol). Repare-se que as latitudes estavam contempladas no modelo, inclinando o deferente em relação à eclíptica (valor dessa inclinação dependia do planeta em causa), contudo mantendo o epiciclo do planeta sempre paralelo à mesma eclíptica. O desenho do modelo assegurou a contiguidade dos círculos dos planetas: o ponto mais afastado de um (apogeu) era contíguo ao perigeu do seguinte. O tamanho dos deferentes e epiciclos não era relevante mas sim a razão entre os seus raios.

- Ligação para o vídeo "Epicyclical Theory" (Museo Galileo, narração em Inglês).

- Ligação para o vídeo "Ptolemaic system" (Museo Galileo, narração em Inglês).


Epiciclo
Representação do funcionamento básico do epiciclo de Marte, Júpiter ou Saturno. Representa-se a Terra (T), o deferente e o centro do epiciclo (C) que roda em torno da Terra no período que o planeta demora em torno do Zodíaco, a sua revolução sideral (e.g., Marte 687 dias, Júpiter 11.9 anos, Saturno 29.5 anos). O movimento no deferente é chamado "movimento em longitude", ao longo do epiciclo é chamado "anómalo". Quando o planeta chega ao ponto α, determinado como estando a 1/2 da distância αγ, as duas velocidades radiais equivaler-se-ão por um breve período e o planeta será visto da Terra (T) a parar, iniciando movimento retrógrado. Chegando a β, planeta volta a ficar estacionário e resume o movimento directo. A razão entre os raios dos dois círculos é ajustada de modo a fazer coincidir o modelo com a teoria, com os fenómenos. Quando o planeta está na posição p1 está mais perto da Terra e o prolongamento da linha CT, no sentido oposto (antes de T), passaria pelo Sol (não representado): planeta estaria em Oposição; quando o planeta está na posição p, mais afastado na Terra, estará em Conjunção (o Sol estaria entre T e p1). N.B. Para Mercúrio e Vénus a situação seria diferente: o deferente rodaria no período de 1 ano, a linha TC apontaria sempre na direcção do Sol, o movimento do planeta no epiciclo demoraria o período a que agora chamamos heliocêntrico, 88 dias para Mercúrio e 225 para Vénus. (fonte: Dreyer, J.L.E. Op cit., p.152)

No primeiro expediente, o planeta move-se uniformemente num círculo excêntrico (relativamente à posição da Terra). Pareceria deslocar-se mais depressa quando mais próximo e mais lentamente quando mais afastado. O segundo é, como vimos, o sistema de epiciclos e deferentes. Evidentemente, estes expedientes violavam os princípios filosóficos e cosmológicos mas respondiam ao problema posicional dos corpos celestes (aos fenómenos observados no céu). Por exemplo, o epiciclo percorrido pela Lua movia-se ao longo do deferente de maneira "uniforme", contudo uniforme em relação à Terra e não ao centro (do mencionado deferente). Trata-se portanto de um movimento que não é uniforme! Ptolomeu expandirá o modelo utilizando ainda outro expediente artificial e polémico: o aequans ("equante"). Trata-se de um ponto simétrico à posição da Terra (que é excêntrica). O planeta deveria mover-se uniformemente relativamente a este ponto mas como este não está no centro, para que isto acontecesse precisaria de verificar-se alteração de velocidade na órbita planetária (ou seja, o movimento de um planeta, cuja velocidade é variável, é aí observado como sendo aparentemente uniforme).

Tratou-se de um "truque" que simulou manter a premissa do movimento circular e uniforme. Assim era quando observado desse ponto fictício. Na realidade, os movimentos planetários observados da Terra não são uniformes (pois as órbitas são, como Kepler descobrirá, elípticas). Assim, Ptolomeu respondia aos fenómenos e o seu sistema, que era matemático, conseguia prever as posições com suficiente rigor. Isto não acontecia no modelo aristotélico que explicava o Universo na perspectiva da filosofia natural, todavia muito impreciso, mesmo "desastroso", na previsão concreta dos fenómenos. Mais tarde, o prolífico Nasir al-Din al-Tusi (séc. XIII), no seu Tahrir al-Majisti ("comentário ao Almagesto") proporá um dispositivo matemático no qual um pequeno círculo gira dentro de outro maior, permitindo evitar o recurso ao aequans.

Tal como para a teoria lunar, no caso de Mercúrio Ptolomeu utilizou o expediente cinemático de um deferente móvel, cujo centro rodava num pequeno círculo (o circulus parvus dos astrónomos medievais) concêntrico com a Eclíptica. Como Peuerbach (Purbachius, Purbáquio) clarificou nas Theoricae novae planetarum ("Novas teorias dos planetas"), isto exige outro "centro" (para além dos três já utilizados: o do "Mundo", o do deferente e o ponto aequans), em torno do qual o centro do deferente executa numa pequena revolução.

Purbáquio - Mercúrio
A "Teoria de Mecúrio" (detalhe) com o pequeno círculo percorrido pelo centro do deferente. Purbachius. Theoricae novae planetarum (ed. Erhard Ratdolt, 1485;
exemplar da bibliothèque Sainte-Geneviève (BSG), Paris). Aqui o mesmo pequeno círculo ("Parvi Cir.") em volvelle cometida à determinação das posições de Mercúrio, no Astronomicum Caesareum (Ingolstadt, 1540) de Petrus Apianus (Peter Bennewitz).


Um dos conflitos da teorização Grega acerca dos movimentos planetários decorria, como se infere, da respeitada perspectiva aristotélica das esferas providas de movimento naturalmente circular e uniforme, concêntrico com o centro da Terra, que seria o centro do Universo. Desde Apolónio e Hiparco, as anomalias observáveis nos movimentos dos planetas podiam ser quantitativamente geridas e explicadas com o recurso a círculos excêntricos e epiciclos, ou por uma combinação de ambos. O dilema que os astrónomos enfrentavam era, portando, acautelar a concentricidade sacrificando a uniformidade ou acautelar a uniformidade sacrificando a concentricidade (tanto os excêntricos como os epiciclos determinam que a distância dos planetas ao centro seja variável). Foram introduzidos para conseguir fazer corresponder as posições às longitudes correctas.

O ponto ptolomaico suplementar a que mais tarde se chamará aequans equivalia ao foco "vazio" da elipse muito mais tarde gizada por Kepler na sua explicação definitiva do movimento dos planetas. Conforme as duas primeiras Leis do astrónomo Alemão, a Terra movimenta-se mais rapidamente quando próxima do foco (ocupado pelo Sol) e mais lentamente quando na proximidade desse segundo foco, a partir do qual o movimento do planeta parece uniforme. Foi uma engenhosa aproximação ao fundamental princípio da conservação do momentum angular. Kepler publica as suas conclusões acerca das órbitas no importantíssimo Astronomia Nova (1609), culminando a sua longa investigação do movimento de Marte. Mas o Epitome astronomiae Copernicanae, de 1618, constitui a primeira exposição completa do Sistema Solar com as órbitas elípticas dos planetas correctamente descritas.

Expedientes orbitais geocentrismo (Hoskin, 2003)
Os diversos métodos utilizados para os movimentos dos planetas: Excêntrico, combinação Epiciclo-Deferente e, por fim, o ponto aequans ptolomaico.
A introdução deste ponto é atribuída ao sábio alexandrino por alguns autores e divulgadores mas não há no Almagesto qualquer reclamação da autoria (vide Alexander Jones: Greco-Roman Astrology and Astronomy, in Jones, A. and Taub, L. (eds.), The Cambridge History of Science, Vol I, 2018, p.390). Repare-se no sentido da rotação dos pontos; em baixo, a explicação "definitiva", que hoje cohecemos, para os fenómenos observados: as órbitas são, na realidade, elípticas (fonte das ilustrações: Hoskin, M., The History of Astronomy (A Very Short introduction), Oxford University Press, 2003)

Elipse - órbita

Em resumo; o modelo-padrão ptolomaico (“the ferris-wheel universe”, "o universo roda-gigante" como lhe chamou Arthur Koestler) foi estabelecido na época Helenística (séc. II a.C.). O Almagesto (Al Kitab al Mijisti, arabização de Hē Megalē Syntaxis, Magna Syntaxis em Latim) de Κλαύδιος Πτολεμαῖος (Klaúdios Ptolemaios), autoridade por pelo menos catorze séculos, incluía um catálogo de estrelas, registava a determinação da Precessão, explicava técnicas de medição angular e os movimentos dos corpos celestes na visão geocêntrica do Universo. As órbitas planetárias são nele representadas por círculos (epiciclos) cujo centro se situava num círculo maior (deferente) que era simultaneamente excêntrico. Acrescentaram-se expedientes para adaptar o modelo à realidade dos fenómenos e assim salvar ou preservar as aparências. Tratava-se, no fundo, de representar o desenho geométrico do Universo.

Proclus, filósofo neoplatónico do séc. V, censura os astrónomos que acreditam nos seus modelos, mantendo a perspectiva "instrumentalista" de que se tratam somente de expedientes de cálculo e não de realidades físicas.

A excentricidade da posição da Terra "trai" os princípios aristotélicos mas explica com aproximação os fenómenos observados. E Ptolomeu mostrou que as irregularidades ainda verificadas podiam ser reproduzidas. Como Michael H. Shank refere, "Ptolomeu, no Almagesto, utiliza excêntricos e epiciclos para dar conta das posições e velocidades dos planetas e para a criação de tabelas que, por seu lado, tornam possível prever as posições. Epiciclos transportados por deferentes orbitando centros que não são coincidentes com o centro do Universo tornaram-se característicos da astronomia matemática da tradição grega. Nestes modelos de algum modo "descarnados" (geralmente vistos como arranjos de círculos em vez de esferas), as considerações cosmológicas e os princípios físicos foram preteridos relativamente ao objectivo primeiro: a previsão das posições." (Rings in a Fluid Heaven: The Equatorium-Driven Physical Astronomy of Guido de Marchia, Centaurus 2003: Vol. 45: p.176, [trad. nossa]). A visão espacial do Universo e o conceito de órbita têm origem grega. Mas é somente com Hiparco (gr. Ἵππαρχος; c.190 - c.120 a.C.), com enorme influência sobre Ptolomeu, que a astronomia Grega passa de (apenas) descritiva a preditiva.

A informação tabulada assumiu um papel fundamental na prognose dos fenómenos. As tabelas de Ptolomeu (principalmente as tabulae manuales, as chamadas "handy tables" na literatura em Inglês, mais práticas e dotadas de comentários que vão sendo acrescentados à sucinta e insuficiente introdução disponível no original) são utilizadas pela minoria com maiores competências matemáticas. Paralelamente continuam a utilizar-se modelos aritméticos (cujas origens recuam à Mesopotâmia), e assim continuará a ser até ao final da Idade Média. O próprio Almagesto, compêndio sistemático e exigente, parece ter sido negligenciado pela maioria dos estudantes. Conheciam-no pelo nome mas cultivavam a Astronomia a partir de textos secundários e abreviados (Pedersen, O., (Jones, A., ed.), A Survey of the Almagest..., Springer, 2008 (1974)., p.19).


Escolhendo adequadamente o diâmetro dos deferentes e dos epiciclos, era possível replicar geométricamente os fenómenos observados no movimento de um planeta, incluíndo os movimentos retrógrados. No esquema ptolomaico "definitivo", observa-se que se respeitam os movimentos circulares uniformes (ângulos iguais em tempos iguais) quando e somente se observados a partir do ponto equante. Todavia, como se pode constatar na ilustração, a Terra não está efectivamente no centro. Estes expedientes matemáticos explicavam, como referido, os fenómenos e as irregularidades dos movimentos mas estarão na base de ulteriores críticas ao modelo. nomeadamente por parte dos aristotélicos medievais que "exigiam" que o sistema fosse compatível com os princípios concretos, físicos e naturais, da filosofia de Aristóteles. (Roy, Jean-René, Op. cit., fig. 3-7)


Matematicamente, o método de Ptolomeu para resolver problemas com triângulos esféricos havia sido gizado por Menelaus de Alexandria, sendo moroso. Recorria.se somente às cordas. Por volta do século IX, os equivalentes medievais das seis modernas funções trigonométricas já eram reconhecidos. O conceito de seno de um ângulo foi introduzido no Islão a partir da Índia, tal como a tangente e a co-tangente, funções importantes nos cálculos envolvendo comprimentos de sombras. Os astrónomos Islâmicos identificaram relações trigonométricas que simplificaram imenso o trabalho com triângulos da esfera celeste.


Segundo Humberto Antonio de Barros-Pereira, a caracterização de Ptolomeu como "instrumentalista", em oposição ao realismo de Aristóteles, é amplamente empregada devido a P. Duhem, um dos grandes pioneiros da Historia da Ciência que, em Sózien ta phainómena, Essai sur la notion de theorie physique de Platon à Galilée (1908) viu no slogan "salvar os fenómenos", ou "salvar as aparências" a motivação da busca por uma explicação cinemática dos fenómenos celestes. Todavia, como conclui: "Em relação às cosmologias de Aristóteles e de Ptolomeu, podemos distinguir duas maneiras de fazer astronomia no mundo grego-helénico conforme o programa de investigação: a astronomia física, ou cosmologia, de origem aristotélica, que descreve e explica o mundo tal como ele é, na qual o "Hipóteses dos Planetas" [de Ptolomeu] está inserido; e a astronomia matemática, que descreve os movimentos celestes de forma computacional, de origem platônica, na qual o Almagesto
[do mesmo Ptolomeu] está situado. Estas duas astronomias, cada qual com suas normas e métodos, são disciplinas distintas e não concorrentes." (Esferas de Aristóteles, círculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem, in História da Física e Ciências Afins, Rev. Bras. Ensino Fís. 33 (2), Jun, 2011).

Os expedientes traduzidos no texto de Ptolomeu mitigaram o problema dos movimentos anómalos observados mas serão historicamente, em todo o caso, considerados por alguns como comprometedores dos princípios associados ao movimento circular uniforme, arquetípico (e.g., Nasīr al-Dīn al-Tūsī e outros astrónomos da tradição Hay'a, i.e. "Cosmologia", nomeadamente em Maragha, séculos XIII e XIV). De facto, estes métodos fazem com que o sistema não seja, strictu sensu, "geocêntrico". É em conceito mas não "mecanicamente".

Maimónides também havia comentado (no seu "Guia dos Perplexos", finais séc. XII), utilizando argumentos aristotélicos, como seria comum:
"I have heard that Abi Bakr [Ibn Bajja, o "Avempace" dos latinos] discovered a system in which no epicycles occur, but eccentric spheres are not excluded by him. I have not heard it from his pupils; and even if it be correct that he discovered such a system, he has not gained much by it, for eccentricity is likewise contrary to the principles laid down by Aristotle... I have explained to you that these difficulties do not concern the astronomer, for he does not profess to tell us the existing properties of the spheres, but to suggest, whether correctly or not, a theory in which the motion of the stars and planets is uniform and circular, and in agreement with observation. (The Guide for the Perplexed, II, 24, trans. M. Friedlander (New York: Dover, 1956), p. 196.).

Repudia os expedientes que considera não compagináveis com os princípios aristotélicos e afirma que os modelos astronómicos deverão ser formulados geometricamente, todavia sem relação com a realidade física e as propriedades das esferas, que não eram, para o grande sábio Judeu, o múnus do trabalho dos astrónomos.


No Ocidente latino assiste-se à reconciliação dos dois sistemas (Aristotélico e Ptolomaico). A Filosofia Natural medieval adoptou um compromisso (que de facto havia já sido sugerido por Ptolomeu), distinguindo entre orbis totalis e orbis partialis. Na perspectiva mais abrangente, totalis, o "orbe" ou "céu" do planeta (que pode ser visualizado como o espaço entre duas esferas contendo o aparato de círculos excêntricos necessários à explicação dos seus movimentos), tinha a Terra como centro, centrum mundi (Grant, Op. cit., 445; vide Pierre d’Ailly, XIV Quaestiones..., Quaestio XIII (Veneza, 1531), fol. 163v.).

Quanto às dimensões do Universo, Ptolomeu acreditava que qualquer altura acima da Terra podia ser e era eventualmente ocupada por um, e apenas um planeta. Estimou a distância Terra-Lua equivalendo a 64 raios terrestres. O modelo geométrico para Mercúrio especificava a razão entre a sua altura mínima e máxima e multiplicava-a por 64, e assim sucessivamente. A distância Terra-Lua calibrava as dimensões do espaço das órbitas dos planetas e a distância ao firmamento (no limite máximo de Saturno), v. Hoskin, Michael, The History of Astronomy, Op. cit., 2003. O método clássico de determinação das distâncias de Aristarco, que segundo Ptolomeu foi seguido por Hiparco, baseava-se na observação da amplitude da sombra (da Terra) projectada na Lua durante os eclipses lunares, medindo o tempo decorrido e verificando as paralaxes do Sol e da Lua. O sistema de epiciclos não dava qualquer contributo para a determinação das distâncias dos planetas, somente fornecendo (para cada planeta) o rácio entre os raios do deferente e do epiciclo, em função do comprimento do arco de retrogradação observado. Ptolomeu (nas suas Hypotheseis ton planomenon), expende as distâncias calculadas em raios terrestres, e.g., as estrelas "fixas" estavariam a 19,865 raios terrestres). Com este valor, e não se observando paralaxe, nem se questionava a imobilidade do nosso planeta. A distância maior de um planeta era equivalente à menor do seguinte. As distâncias estão obviamente erradas. Quanto à ordem dos planetas (tirando o caso evidente da Lua), seria algo "incerta" pois as paralaxes eram demasiado pequenas para serem medidas com a tecnologia da época.


Realismo vs. Instrumentalismo na Astronomia Grega
 
Como James Evans refere (Op. cit., 1998, p.217), na sequência do estudo dos modelos inventados pela astronomia grega a partir de Eudoxus, consolidou-se na História da Ciência uma interpretação segunda a qual os Gregos teriam voltado costas à investigação física e estrutural do Universo, em detrimento da agilização de expedientes que acautelassem os fenómenos observados, que aparentemente reproduzissem os movimentos irregulares dos corpos celestes. Esta interpretação "instrumentalista" foi populatizada por P. Duhem (Sauver les apparences, 1908), J. L. E. Dreyer ou A. Koestler, que escreveu:
 
"The astronomer "saved" the phenomena if he succeeded in inventing a hypothesis which resolved the irregular motions of the planets along irregularly shaped orbits into regular motions along circular orbits — regardless whether the hypothesis was true or not, i.e., whether it was physically possible or not. Astronomy, after Aristotle, becomes an abstract sky-geometry, divorced from physical reality... It serves a practical purpose as a method for computing tables of the motions of the sun, moon, and planets ; but as to the real nature of the universe, it has nothing to say." ( Koestler, A., The Sleepwalkers, The Macmillan Company, New York, 1959, pp.73-4)
 
Assim se procurou também explicar como é que essa civilização se manteve agarrada a um modelo geostático que se veio a revelar errado. Todavia, a realidade é mais complexa. A astronomia grega primitiva estava muito mais preocupada com a uma ampla explicação natural do que com os detalhes da explicação rigorosa dos fenómenos que, de facto, não conseguia proporcionar. A abordagem preditiva rigorosa é relativamente tardia, desenvolvendo-se somente na época de Hiparco. Mesmo então, as discussões acerca da preferência pelo uso de deferentes ou de epiciclos não estavam evidentemente isentas de considerações acerca da sua realidade concreta. Os progressos de Hiparco, os cálculos de distâncias e diâmetros, até o da própria circunferência da Terra, o Ptolomeu das "Hipóteses Planetárias"... todos demonstram que os modelos seriam potencialmente tomados como realidades concretas. Havia instrumentalismo mas almejava-se o realismo.


A Idade Média (percurso dos saberes após o declínio das instituições de suporte do saber clássico no Ocidente Latino)

A Idade Média legou-nos, entre outros contributos, duas instituições fundamentais: a Universidade (com origem europeia, quando a erudição escolástica se consolida) e o, no contexto Islâmico, o Observatório (todavia, sondar os segredos dos céus era visto com desconfiança pelas autoridades religiosas e os observatórios foram geralmente efémeros). Mas esta época não foi decerto uma "Idade das Trevas" (conceito de Petrarca e, mais especificamente, baseada em saeculum obscurus, expressão utilizada pelo Cardeal Caesar Baronius no início do séc. XVII para referir a ausência de fontes documentais nos sécs. X e XI, sem intenção pejorativa).

Historicamente, os textos mais influentes (início da Idade Média) são provavelmente o longo comentário neoplatónico de Calcidius ao Timaios ("Timeu", diálogo cosmológico de Platão) e as De nuptiis Philologiae et Mercurii de Martianus Capella, fonte inestimável de informação sobre o elenco disciplinar no contexto das Artes Liberais (onde, acolitando a philologia, cada uma das artes se apresenta, personificada, explicando a sua incumbência), influenciando a estrutura do ulterior ensino académico europeu: o trivium e o quadrivium. Aristóteles e Ptolomeu somente estarão acessíveis no século XII através de uma vaga de traduções.


O Ensino (resumo baseado em Tester, Op. cit., pp.101-3)

De consolatione philosophiae
A Filosofia apresenta a Boécio as Sete Artes Liberais; De consolatione philosophiae, de Boécio (Boethius, c.480–524); Francês, c.1460-70 (The J. Paul Getty Museum, Ms. 42 [81.MS.11], f.2v)


O ensino na Antiguidade tardia e na Idade Média consistia, em teoria, nas "Sete Artes Liberais. Antes, já Varrão (Varro), século I a.C., havia identificado um cânone de nove artes liberais consideradas essenciais para a educação romana. O nome latino Artes Liberales, refere-se às artes ou competências adequadas ao "homem livre", em oposição ao escravo.

A palavra "liberal" não está aqui relacionada com "liberalidade" ou "liberalismo": significa aqueles saberes adequados ao homem livre. Ora, os homens livres não precisavam trabalhar, pelo menos manualmente. O único autor antigo que confessou tal "degradação" foi São Paulo. O que eles utilizavam acima de tudo eram as palavras - nos tribunais, na política, em polémicas e argumentações a propósito de tudo e nada. Consequentemente, a sua educação devia ser praticamente "inútil" excepto para fazerem discursos ou escreverem livros [todavia gozando de um prestígio incomparavelmente superior ao das artes 'mecânicas']. Portanto a Educação Grega, e depois a Romana, era fundamentalmente retórica. Houve tentativas para integrar disciplinas práticas como a Arquitectura ou a Medicina (ambas respeitáveis), sem sucesso duradouro. É desta tradição Greco-Romana que emana o preconceito que favorece as artes intelectuais e predominantemente verbais em detrimento das manuais. Esta era uma tradição que servia adequadamente [a burocracia] da Igreja.

As Artes Liberais foram, por volta do século VI, divididas em dois grupos: o [mais elementar] Trivium (Gramática, Retórica e Lógica); e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). A divisão traduzia a separação dos graus de dificuldade e as etapas da instrução: um conhecimento da Gramática, Retórica e Dialética era necessário para o estudo das restantes quatro. Portanto, o Trivium constituia o estágio elementar, daí o termo "trivial". A Gramática era aquilo que o nome indica, sendo sinónomo de 'Gramática Latina'. (...) Na maior parte dos casos, pelo menos até à adopção do tratado de Prisciano (Institutiones Grammaticae) se tornar comum, no séc. XI, os manuais eram trabalhos muito breves de Donatus, autor do séc. IV. Quando os rudimentos eram assimilados, liam-se os Clássicos: primeiro e em particular a Eneida de Virgílio e depois extractos de autores como Terêncio, Horácio, Ovídio ou Estácio, todos incluidos em antologias escolares. A Retórica eram as figuras de estilo, modalidades oratórias, métricas e artifícios literários. A combinação da Gramática e da Retórica permitia um treino linguístico suficiente, e muitos estudantes, mesmo na Antiguidade, não íam mais além. Por 'Dialética' entendia-se a lógica Aristotélica, que não era tão acessível e parecia menos relevante. Todavia, foi a partir da Dialética [i.e. da Lógica, cujo foco era a contraposição e contradição de ideias que levavam a outras ideias] que se propiciou o aparecimento da filosofia Escolástica, pois levantava muitas questões pertinentes enquanto disponibilizava parcas sugestões de respostas.

O Quadrivium era pouco estudado, tanto na Antiguidade como no início da Idade Média, mas era, em tese, considerado necessário para o cabal entendimento das Escrituras. A Aritmética não era o que hoje assim designamos: a isso chamava-se "Algorismo" na Idade Média, somente introduzido no séc. XII. Os cálculos eram efectuados com o recurso a ábacos e a Aritmética não se preocupava com os cálculos  mas sim com os Números, incluindo, entre outras coisas, as suas 'formas' (por isso continuamos a utilizar termos como "quadrado", e.g., 8; ou "cubo", e.g., 9). A Geometria incluia tanto a geometria elementar como a 'geografia', a descrição do Mundo e das suas regiões; ambas podiam ser chamadas "medição da terra", o significado literal da palavra "geometria". A Música, como a Aritmética, estava muito pouco relacionada com o exercício instrumental concreto, mas muito com as teorias da Harmonia [das Proporções], seus modos e efeitos na alma humana. Finalmente a Astronomia era a 'Astrologia' (Astronomia e Astrologia), incluida desde o início nos estudos avançados. Ambos os nomes latinos são utilizados de modo diverso ou intercambiável, mas até ao séc. XII o seu conteúdo é quase inteiramente do jaez a que hoje chamaríamos "astronómico".

A Música - Como Joscelyn Godwin explica, os antigos conheciam a Musica mundana, a música do cosmos; Musica humana, a da entidade humana; e a Musica instrumentalis, cantada e interpretada. A Musica Humana analisa o Homem como microcosmos, reflectindo a ordem cósmica. As partes do seu corpo são governadas pelos signos, os seus sete órgãos internos pelos sete planetas e os seus quatro humores correspondem aos elementos. Ele também aloja um elemento subtil ou espírito vital, e uma alma que, como os platonistas asseveram, é composta 'harmoniosamente'. A Musica Humana procura colocar este conceito em prática. Foram os Pitagóricos quem primeiro formulou a ideia de que diferentes modos musicais tinham efeitos específicos no corpo e na alma (Music? What does that have to do with esotericism?, in: Hanegraaff, W, Forshaw, P. & Pasi, M., (eds.), "Hermes Explains: Thirty Questions about Western Esotericism", University of Amterdam Press, 2019, p.115). Hildegarda de Bingen (a "Sibila do Reno"), abadessa do mosteiro beneditino de Rupertsberg, mística e polímata do século XII, descreveu nas suas "Harmonias Divinas" a música (teológica) como um meio para recapturar a pureza original do Paraíso, pois antes da "Queda", a voz de Adão juntava-se à dos Anjos em louvor a Deus. Depois, tornou-se necessário inventar a música e os seus instrumentos. Também foi, de acordo, prolífica compositora (Symphonia armonie celestium revelationum).

Todavia, o esquema das sete artes liberais não era um currículo estudado como um todo, nem era rígido ou incapaz de evolução. Uma perspectiva da expansão do antigo esquema pode ser vislumbrada nos séculos XII e XIII, comparando os esboços de três curricula. O primeiro é de Cassiodorus (
que relaciona Liberales com liber, "livro"), que no início do séc. VI sucedeu a Boécio (Boetius, autor da célebre De consolatione philosophiae) como secretário de Teodorico, o rei Ostrogodo da Itália, e que, aposentado, redigiu dois trabalhos de índole pedagógica para a instrução monástica, conhecidos como Institutiones. Lista os manuais adoptados na vertente secular, com destaque para Boetius e Martianus Capella [no De nuptiis Mercurii et Philologiae deste último são elencadas as sete disciplinas liberais, divididas num grupo dedicado à palavra e noutro cometido à ciência dos números e medições], São os únicos autores atribuídos ao estudo da 'Astrologia'. Em 1142, Thierry de Chartres redigiu um silabário enciclopédico, para utilização na sua escola. Continua a ser oficialmente enquadrado nas sete artes mas agora prevalece a "nova lógica" (fruto das traduções recentes dos principais trabalhos de Aristóteles, recém-chegados às escolas), bem como se elencam quatro autoridades para a Geometria (incluindo Gerbert d’Aurillac, finais do séc. X, Bispo de Rheims, actual Reims, e futuro Papa), o livro de Garlandus "Compotista" sobre a utilização do ábaco (De abaco) e, na Astronomia, Hyginus, Ptolomeu (Ptolemaeus) e al-Khwarizmi (de cujo nome a nossa palavra "algarismo" é uma corrupção). Outro currículo de uma Faculdade de Artes medieval é proveniente de um manuscrito catalão de Ripoll (c. 1230-1240). Aqui, as antigas "artes" (na componente mais "básica") desapareceram. A philosophia é dividida em três partes: 'Natural', que inclui a Metafísica, a Física e a Matemática (sendo que a última equivale ao antigo Quadrivium, onde surgem Euclides na Geometria e Ptolomeu - o Almagesto - na Astronomia). Na segunda divisão, a 'Filosofia Moral', as autoridades incluem a Ética de Aristóteles. A 'Filosofia Racional' (que equivaleria ao Trivium) consistia quase inteiramente na Dialética. Neste tipo de currículo, as ciências desenvolveram-se, evidentemente, a partir da 'Filosofia Natural'."

Artes - Margarita_Philosophica
Uma gravura de 1504 da Margarita Philosophica, texto tardo-medieval de Georg Reisch, representa a organização dos estudos de Artes, muito depois da assimilação dos textos traduzidos. A partir da base, a Gramática e a Retórica são representadas por Donatus, Prisciano e "Tullius" (Cícero), Boécio representa a Aritmética, Aristóteles a Lógica, Pitágoras a Música, Euclides a Geometria e Ptolomeu a Astronomia, culminando com a Teologia (Lombardo, i.e. Petrus Lombardus, autor das "Sentenças", em quatro livros: Libri Quattuor Sententiarum)


Em resumo, as fontes principais foram Martianus Capella (De nuptiis Philologiae et Mercurii) e Macrobius (no seu comentário ao Somnium Scipionis de Cícero). Ambos do início do século V, escreveram em Latim, num estilo enciclopédico. A recolecção de materiais de Martianus, articulada com Macrobius é geralmente considerada importante por ter tornado canónicas as sete Artes Liberais. No Livro VIII das "núpcias", a nossa 'Astronomia' inicia a sua prelecção explicando como o Universo é uma esfera composta por quatro elementos, e como os "físicos" declaram que existe um quinto aglomerado de matéria, no qual os corpos celestes se movem. Explica como tudo isto foi aprendido ao longo de quarenta mil anos (!) em contacto com os conhecimentos secretos do Egipto antigo. A sua dívida de gratidão vai para o "Cilénio" [i.e. Hermes/Mercúrio, que o mito fez nascer no monte Cilene], que a adoptou e educou. Refere também a disseminação desse conhecimento (os gregos Eratóstenes, Ptolomeu e Hiparco são aqui mencionados). O terceiro autor a considerar é outro enciclopedista: Isidoro de Sevilha. No currículo (mais básico) das Artes, para além do conhecimento do computus, as prelecções obrigatórias versavam o De sphera de Sacrobosco, do qual havia diversos comentários. Segundo J. D. North, existia, no séc. XIV, uma ambição académica em articular uma representação do Mundo ordenada, de modo compreensivo mas particularmente num sentido teológico. A alegoria da passagem da alma humana da terra ao paraíso, de Dante, é um excelente exemplo que revela algumas das dificuldades de reconciliação de um Universo geocêntrico com um tipo de discurso religioso teocêntrico. Já na "Consolação da Filosofia" (De consolatione philosophiae) de Boécio, esta visão procurou gerir a inconsistência de um mundo evidentemente desorganizado através de um engenhoso expediente: a mutabilidade é entendida como parte da mais abrangente estabilidade imposta por Deus (Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988, p.10).


Na Alta Idade Média assiste-se a uma necessidade premente de coligir informação calendárica com propósitos litúrgicos, nomeadamente a determinação da data da Páscoa. O célebre computus é finalmente "normalizado" por Beda, o "Venerável". Desde a época Carolíngia (c. 800 AD) que as escolas monásticas são acompanhadas por escolas de burgo, nas catedrais. Prestava-se particular importância aos fenómenos elementares de astronomia esférica.

O mito das "trevas" medievais europeias já foi dissipado há muito tempo. Bruce Eastwood e Gerd Graßhoff referem-no claramente, particularmente tendo em consideração a riqueza do legado Carolíngio:

"From the sixth to the twelfth centuries in western Europe, it has long been assumed that there was no scientific development of any significance." (...) "Studies in recent years, especially from the 1970s forward, have begun to change our view of Carolingian sciences. In his lengthy directions  to the clergy in 789, the Admonitio generalis (General Directives), Charlemagne required the study not only of grammar, writing, and chant, but also of computus. Is possible to categorize computus as the arithmetical computation of the date of Easter and all the other feast days of the Christian calendar that depend on it. However, this definition presumes much and omits more. It presumes the basic luni-solar astronomy behind the determination of the equinoxes, basic to any Easter dating, and it omits a body of knowledge about the twelve signs of the zodiac that came to be part of computistical competency in the Carolingian era, if not earlier." (Eastwood & Graßhoff, Planetary Diagrams for Roman Astronomy in Medieval Europe, ca. 800-1500, American Philosophical Society, Transactions of the American Philosophical Society, Philadelphia, vol. 94, Part 3, 2004).

Acrescentam que desde a época do Imperador (Carlos Magno), se encontram evidências inequívocas de um estudo sério e investigação de matérias astronómicas tanto na corte como em ambientes clericais. Como já abordamos em parte, as fontes romanas essenciais na época foram Plinius "o Velho" (Nat. Hist.), Marcianus Capella (De Nuptiis Philologiae et Mercurii), o comentário de Macrobius ao Somnium Scipionis de Cicero (onde Macrobius descreve uma cosmovisão que erradamente atribui a Platão) e o comentário de Calcidius ao Timaios.

Nesta época ganha visibilidade um "sistema" geo-heliocêntrico patente em Martianus Capella (séc. V) e divulgado numa tradução do neoplatonista Johannes Scotus Eriugena (séc. IX) onde Mercúrio e Vénus orbitam o Sol e este último (bem como os planetas mais distantes) orbitam a Terra estacionária (voltaremos a encontrar este sistema adiante). Mais tarde Copernicus chamou a atenção para esta peculiaridade que ele, e outros, consideravam interessante no sistema de Martianus (acerca desta e outras interpretações heliocentristas, todavia consideradas textualmente ténues, vide O. Neugebauer (1975), HAMA, vol.III, section IV C 2, 2).

Sistema de Martianus Capella (Ms. Laur. San Marco 190, f. 102r)
Diagrama compósito com aspectos da teoria planetária de Martianus Capella, datado do séc. IX. Acima da Terra (desenhada de modo peculiar, em forma de "gota") e da Lua (representada pelo crescente), representa-se o Sol (Phoebus) com os circuli dos planetas Stilbon (Mercúrio) e Phosphorus (Vénus). O desenho quase sugere um heliocentrimo aparente. Contudo, o Sol é desenhado no "centro" mas é a Terra excêntrica que ocupa o centro da órbita anual do Sol e dos planetas exteriores. (Biblioteca Medicea Laurenziana (Ms. Laur. San Marco 190, f. 102r; uma cópia do séc. XV encontra-se no Ms. Urb. lat. 329 (f.139v), da Biblioteca Apostolica Vaticana, ver). Em baixo, um detalhe de diagrama num tratado anónimo (Ms GKS 277 2º, f.49r, Det Kongelige Bibliotek [Biblioteca Real], Copenhaga)

Ms_GKS 277 2º - Copenhaga


Uma força (vis) associada aos raios do Sol seria, para Plinius e Martianus Capella, responsável pelos movimentos planetários, suas 'estações' (paragens) e retrogradações. Martianus considera que os dois planetas mais próximos do Sol, estando mais "subjugados", orbitam segundo círculos com dimensões impostas pelos mencionados raios. Apenas ele expende este interessante e influente conceito de órbitas circum-solares: "It was solar radial force, not epicycles, that explained the bounded elongations for Martianus. He seems to have imagined that the solar force transformed the Plinian oscillating motions of the inner planets into closed circles around the Sun, binding them within the visual angles of 22º (or 23º) and 46º from the Sun, assigned respectively to Mercury and Venus by both Pliny and Martianus. The outer planets could not be bound inthis way because of their greater distances from the Sun, thus limiting the effects of its radial force on them." (Eastwood,
Ordering the Heavens, Roman Astronomy and Cosmology in the Carolingian Renaissance, Leiden; Brill, 2007, p.292). O tópico da ordem (sequência) dos planetas era fundamental: "The topic of the order of the planets from the earth to the stellar sphere could be called one of the astronomical questions of the day in the first half of the ninth century, because Macrobius simply presented two fixed orders and chose what he took to be Plato’s order in preference to that of the Chaldeans. Pliny, while agreeing with the Chaldeans and being supported by early medieval authors like Isidore and Bede, gave no argument to prove the superiority of his order. Only with the spread of Martianus Capella’s doctrine of circumsolar Mercury and Venus was there the beginning of a reconciliation between the two opposed views on the sub-solar versus the supra-solar locations of Mercury and Venus." (ibid, p.317). E será em Calcidius que na época Carolíngia se encontrará a primeira explicação do funcionamento de um epiciclo simples, algo que Martianus Capella não abordou.

Depois existia o firmamento com as estrelas fixas. Devido ao relato bíblico, acreditava-se comummente nas "águas superiores" através de um cristalino de águas congeladas acima do firmamento. Acima destes, mais distante, o céu Empíreo dos bem-aventurados. Sendo invisíveis, estas duas últimas esferas "teológicas" não eram do âmbito astronómico. Assistimos a retrocessos. No limite, autores como Lactâncio (Lactantius, c. 250 - c. 325, conselheiro de Constantino I) que ridicularizou a esfericidade da Terra, ou o monge Cosmas Indicopleustes (i.e. "viajante das Índias"), representando na sua "Topografia Cristã", séc. VI, o Universo baseado num paralelogramo que imitava o Tabernáculo vetero-testamentário, assumiam uma agressiva interpretação teológica e literalista, todavia com limitada influência. O próprio Isidoro de Sevilha, séc. VII, na época celebrado pelo seu saber, refere que a luz das estrelas é recebida do Sol e acumula dislates quanto aos períodos de revolução da Lua e dos planetas.
Numa perspectiva geográfica mais evoluída, tal como Martianus Capella, Macrobius expendia a teoria de Crates de Malos (século II a.C.), segundo a qual a Terra estava dividida pelos oceanos em quatro massas "quartos", todos habitados e um dos quais era a nossa ecúmena.

As fontes medievas anteriores às traduções a partir do Árabe eram, principalmente, Plínio, Calcidius, Macrobius, Martianus Capella e Isidoro de Sevilha. Mas nenhum destes autores ensinou como localizar os planetas (as suas longitudes) nos signos zodiacais. O material relevante para esse cálculo, habitualmente disponível em tabelas, apenas se tornou acessível com a tradução de al-Khwarizmi e com as chamadas Tabelas Toledanas. [O estudo dos exempla históricos recorre, na literatura actual, à comparação com as efemérides de referência de B. Tuckerman: Planetary, Lunar and Solar Positions A.D. 2 to A.D. 1649 at Five-Days and Ten-Days Intervals, Philadelphia, 1964]. Antes das traduções, das suas tabelas e das suas metodologias mais sofisticadas, os ciclos do Sol da Lua eram privilegiados devido à sua importância no 'Computus' (que servia o Calendário Eclesiástico), estando acautelados nos seus textos de suporte, por exemplo no de Rabanus Maurus (baseado na obra de Beda e redigido no ano de 820). Alguns outros fenómenos astronómicos (e.g., eclipses, conjunções) são referidos por autores desses séculos como simplesmente observados ("visa est"). Segundo David Juste, Whatever the case, the examples of Rabanus Maurus and the Annales regni Francorum show that it was possible both to obtain precise positions of the luminaries by means of elementary rules of computus and to observe the position of the planets (at least Saturn, Jupiter and Mars) in the correct signs. (Juste, D., Neither Observation nor Astronomical Tables: An Alternative Way of Computing the Planetary Longitudes in the Early Western Middle Ages, in, Burnett, C., Hojendijk, J. & Yano, M., (eds.), "Studies in the History of Sciences in Honour of David Pingree", Brill, 2004, p.189). Outro método elementar utilizava (ibid., pp.189 et seq.): (1) as posições dos planetas no thema mundi ou genitura mundi de Macrobius e Firmicus Maternus (2) os períodos zodiacais dos planetas e (3) o tempo decorrido desde a Criação (Bíblica, vetero-testamentária) do Mundo: 5199 anos de acordo com a versão Septuaginta Grega ou 3952 anos de acordo com a tradição Hebraica. Uma variante desta metodologia surge no Liber Alchandrei (e em outras duas fontes estudadas por Juste). Segundo este académico, a colectânea de textos conhecida como Alchandreana constitui a mais antiga manifestação no Ocidente Latino de um conjunto de teorias (e.g., movimentos planetários, mansões lunares, casas mundanas, nodos lunares) a partir de fontes árabes e hebraicas (v. Les 'Alchandreana' primitifs: Étude sur les plus anciens traités astrologiques latins d'origine arabe (Xe siècle), 2007). O Liber Alchandrei pertence a essa colecção primitiva que deu entrada no mundo Latino a partir da Espanha, coligido na Catalunha na segunda metade do séc. X (Juste, D., Neither Observation nor Astronomical Tables..., Op. cit., p.200). Antecedentes dos curiosos (e imprecisos) métodos elementares já se encontram em Vettius Valens (Anthologiae, 1.18, ed. D. Pingree, Leipzig, 1986, pp. 32-6), [vide Cristian Tolsa (Vettius Valens’ Longitudes (1.18), Balbillus, and the Illusion of Astrology’s Self-sufficiency, Universität Osnabrück, 2019] e em fontes Bizantinas. Nas fontes Gregas o referente inicial é a Era de Augustus (=29 de Agosto de 31 a.C.), com excepção para a posição do Sol, calculada para o annus mundi 6414.


Cosmologicamente, permanecia a questão da misteriosa "força" que moveria as esferas descritas na Antiguidade. Deus era a Causa Primeira e talvez a hierarquia teológica dos angelicais seres intermediários
estivesse encarregada das esferas interiores, cada uma com a sua entidade incumbente (e.g., Serafins, Querubins, Tronos), seguindo o Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V ou início do VI), que procurou transportar o neoplatonismo, principalmente o de Proclus e o da Academia de Atenas, para o contexto Cristão. Buridanus, (Jean Buridan, séc. XIV) procurou uma explicação mais mecânica e retomou o conceito do Impetus (força motivadora, precursora do moderno conceito de 'inércia'). Assim, numa envolvente matérica quintessencial, não sujeita ao atrito, o impulso inicial de Deus no momento da Criação seria suficiente para perpetuar o movimento. O seu aluno Nicolas Oresme (1323-1382) defenderá este princípio, bem como a ideia de espaço infinito. A própria tendência aristotélica dos corpos para o "lugar natural" será gradualmente entendida como tendência para se juntar ao semelhante e não tendência para o centro, descartando a noção de "leveza" que se contrapunha ao comportamento dos "graves". E Nicolau de Cusa (Nikolaus von Kues, 1401-1464) descreverá um Universo infinito, mostrando como uma vanguarda de novas perspectivas fervilhava em certos ambientes tardo-medievos e renascentistas.

No Docta Ignorantia de Nicolau de Cusa lê-se:

"Life, as it exists here on earth in the form of men, animais and plants, is to be found, let us suppose, in a higher form in the solar and stellar regions. Rather than think that so many stars and parts of the heavens are uninhabited and that this earth of ours alone is peopled - and that with beings perhaps of an inferior type - we will suppose that in every region there are inhabitants, differing in nature by rank and all owing their origin to God, who is the centre and circumference of all stellar regions." (trad. Inglesa de Steven J. Dick, Plurality of Worlds: The Extraterrestrial Life Debate from Democritus to Kant. Cambridge University Press, 1984, p.41; orig. em Latim editado por Hoffman & Klibansky, Lipsiae, 1932, p.107).

Em breve se colocarão outras hipóteses arrojadas, com mundividências admitindo um Universo infinito ou a pluralidade dos mundos (e.g., as de Giordano Bruno e Thomas Digges). A visão do primeiro é muito ampla e até relativista (muito para além de simplesmente "heliocêntrica", como é amiudadamente referido), advogando a pluralidade dos mundos, a relatividade do centro (i.e. a ilusão de estar no centro do Universo, comum aos hipotéticos habitantes de qualquer corpo celeste) e a infinitude espacial. Segundo Garin (p.131), no De immenso, Bruno, em nome da imanência da unidade divina da natureza, condena o céu dividido das esferas e vê Copernicus como um libertador, não tanto porque colocou o Sol no lugar da Terra, mas porque destruiu a esfera celeste dos "estultos matemáticos". Mais tarde, na nova astronomia e no pensamento pós-aristotélico, abre-se a oportunidade para novas especulações. Como Alexandre Koyré referiu, os "mundos" já não eram "universos" plenos, no sentido aristotélico. E Kant, em 1755, concluia que quase todos os planetas devem ser habitados; os que não são, virão decerto a sê-lo noutra altura. O espírito da época concebia com naturalidade esta possibilidade.  

Expulsão do Paraíso - Giovanni di Paolo
N'A Criação do Mundo e Expulsão do Paraíso de Giovanni di Paolo, 1445, Deus parece imprimir o ímpeto inicial ao Cosmos
(Metropolitan Museum of Art, New York)


Voltando ao percurso histórico, como Olaf Pedersen resumiu (European Astronomy in the Middle Ages, in: Walker, C. (ed.), "Astronomy Before the Telescope", British Museum Press, 1996), a "explosão" do conhecimento no século XII determinará a emergência de escolas especializadas (sob orientação de diversos mestres e vocacionadas para uma área específica, e.g., Bolonha surge associada às Leis, Montpellier à Medicina, Paris à Teologia, Chartres à Filosofia Natural, etc.). Deste contexto vai surgir a agregação multidisciplinar, gerando o chamado studium generale ou "universidade", numa estrutura comum com diversos tipos de organização corporativa. Exigia-se a frequência pretérita da formação básica da "Faculdade de Artes". Desta formação elementar fazia parte o estudo da astronomia (Astrologia) como parte integrante da Filosofia Natural, bem como da Filosofia Moral e da Metafísica. O currículo generalizava o acesso aos rudimentos da astronomia e cosmologia mas não se encontram estes saberes trabalhados a um nível mais elevado, ao contrário da Lei, da Medicina ou da Teologia. A basicidade reflectiu-se na utilizaçao de exposições simplificadas do Almagesto e no recurso ainda mais comum a manuais acessíveis como o Tratactus de Sphera (elementos de astronomia esférica), o Compotus (calendário e as datas litúrgicas) e o Algorismus (explicando como efectuar operações com os novos numerais árabes). As parcas informaçoes de Sacrobosco acerca dos modelos cinemáticos planetários ptolomaicos eram complementadas com o anónimo Theorica planetarum (estando disponíveis diversos textos análogos de diferentes autores). Muitas vezes todos ou boa parte destes textos descritos eram coligidos (com tabelas associadas) num Corpus astronomicum, a melhor ferramenta de trabalho até ao século XVI, tendo avançado para versões impressas. Com a disseminação da cosmologia aristotélica (harmonizada com a teologia Cristã pelo influente Tomás de Aquino, 1225-1274), a motivação fundamental passou a ser o estudo das causas dos fenómenos (em detrimento da concomitante tradição antiga da descoberta de relações matemáticas entre os fenómenos naturais). Cosmologicamente, o texto fundamental é o Meteorologica ou Meteora. O aristotelismo estrito perfila o seu comentador Averróis (ibn Rushd) e sente-se desconfortável com os expedientes anómalos (e.g., epiciclos) que compromentem a pureza do sistema homocêntrico. Outra atitude procura a explicação matemática dos fenómenos em detrimento da explicação estrutural. As Hipóteses Planetárias de Ptolomeu (não integradas no Almagesto) serão utilizadas e adaptadas com sucesso, por exemplo na Theorica de Campanus de Novara.

Entretanto, assiste-se ao retorno da prática astrológica, em maior ou menor grau, através da "ressurreição" de Platão (a relação Macrocosmo-Microcosmo), da tradução de autores Islâmicos (Abu Ma'shar, conhecido como Albumasar, al-Qabisi, o conhecido Alcabitius, etc.) e, claro, do Tetrabiblos de Ptolomeu. A própria noção aristotélica do Primum Mobile e das suas influências "causais" contribuiu para a relevância da doutrina das influências (e.g., na Medicina), mas sempre com desconforto eclesiástico, particularmente devido à questão livre arbítrio versus determinismo.


A compabilização da Filosofia Aristotélica

A síntese do dominicano Tomás de Aquino, inicialmente contestado mas ulteriormente canonizado, permitirá consolidar o papel da Filosofia Natural e da Razão na abordagem ao divino. Uma "ousadia", atendendo à pretérita predominância do pensamento de Santo Agostinho, que filosoficamente se respaldava em conceitos do platonismo (no qual os arquétipos ou ideias é que são verdadeiros, "reais" e pertinentes). Aquino abraçou as ideias de Aristóteles - a que se referia como "O Filósofo" - e sintetizou a filosofia aristotélica (onde prevalecem a  lógica dedutiva e método analítico indutivo no estudo da natureza e leis naturais, bem como as conhecidas categorias que classificam e analisam os dez tipos de predicados ou géneros do ser (κατηγορία significa justamente "predicado"), i.e. as dez categorias segundo as quais qualquer objecto no mundo poderia ser classificado) com os princípios do Cristianismo. Aceitou o uso da razão na especulação teológica. A almejada harmonia entre Teologia e Filosofia (prevalecendo hierarquicamente a primeira), entre fé e razão, encontra paralelos em outros âmbitos, como entre Igreja e Estado, e, em última análise, entre Deus e o homem. 
 
Todavia, havia dificuldades. Por exemplo, para Aristóteles o Mundo sempre existira, o Universo era eterno. Isto está em contradição com as Escrituras, com o relato bíblico. Também há desacordo com Santo Agostinho nas concepções sobre a alma humana e, de modo abrangente, no plano epistemológico. Em 1270 o bispo de Paris, Étienne Tempier, publicou um édito condenando treze proposições aristotélicas e averroístas como heréticas e excomungou os que continuavam a defendê-las. Enquadravam-se em quatro rubricas: eternidade do Mundo, negação da Providência Universal, unicidade da alma intelectiva ("monopsiquismo" ou partilha de uma mesma alma eterna) e determinismo. De resto, muitos eclesiásticos "agostinianos" temiam que a introdução do aristotelismo e da sua versão mais extrema, o averroísmo, pudesse de alguma forma contaminar a pureza da fé cristã. (Aquino é influenciado pelo averroísmo mas distancia-se, particularmente da já mencionada ideia da unicidade da alma ou da mente, também da negação da imortalidade da alma como um todo.) Em Março de 1277, o mesmo bispo publicou outro édito, mais amplo. Um dos objectivos desta vez era clarificar que o poder absoluto de Deus transcendia quaisquer princípios da lógica de Aristóteles ou de Averróis. Continha uma lista de 219 proposições que, segundo o bispo, violavam a omnipotência de Deus. Entre estas, duas dezenas de proposições de Tomás de Aquino.
 
O pensamento de Aquino afirma-se com unanimidade somente a partir do Concílio de Trento (1545-1563), no contexto da Contra-Reforma, sendo aí assumido como a base para a explicação da doutrina da Igreja Católica.


A perspectiva Islâmica

No Islão surgiram traduções e comentários, também inovações e refinamentos matemáticos nascidos do estro dos seus autores, "aqueles para quem o céu é o tecto" (Al-Biruni, apud R. Hinckley Allen, Star Names..., 1899).

Quadrante astrolábico por Zayn al-Din
Quadrante astrolábico por Zayn al-Dīn (Shams al-­Dīn) Muḥammad ibn Aḥmad al-­Mizzī (m. 750 A.H./1349 A.D.), feito para Sulaymān ibn Muḥammad ibn Sulaymān em Damasco (The David Collection, Copenhagen, inv. no. 16/1988; fotógrafo: Pernille Klemp, in Sonja Brentjes (ed.), Routledge Handbook on the Sciences in Islamicate Societies Practices from the 2nd/8th to the 13th/19th Centuries, Routledge, 2023, p.600)


David A. King deu ênfase ao que chamou "...the Islamic aspects of Islamic science": "No Islão, como em nenhuma outra religião na história humana, o desempenho dos vários aspectos do ritual religioso tem sido auxiliado por procedimentos científicos. A organização do calendário, a regulação astronomicamene definida dos tempos das orações e a determinação da direcção sagrada da Kaaba em Meca - todos estes tópicos da ciência Islâmica tradicional continuam relevantes para os actuais crentes, e cada um deles tem uma história que recua a quase catorze séculos." (Science in the service of religion: the case of Islam, in Impact of Science on Society, 159. Paris: U.N.E.S.C.O., 1990, p.245 [trad. nossa])

Islão - orações principais
As cinco orações convencionais. As três nocturnas são reguladas por fenómenos do horizonte e do crepúsculo; as duas diurnas através dos comprimentos de sombras (King, 1990, Figure 3, p.250)


O Corão explicita na 10ª Surata: "Ele foi Quem originou o sol iluminador e a lua refletidora, e determinou as estações do ano, para que saibais o número dos anos e seus cômputos. Deus não criou isto senão com prudência; Ele elucida os versículos aos sensatos." (10:5, trad. Samir El Hayek). Na tradução de Helmi Nasr: "Ele é Quem fez do sol luminosidade, e da lua, luz, e determinou-lhe fases, para que saibais o número dos anos e o cômputo do tempo. Allah não criou isso senão com a verdade. Ele aclara os sinais a um povo que sabe."

O advento do Islão propiciou o desenvolvimento de uma astronomia "especializada" (mīqāt) aplicada às necessidades rituais (determinação da qibla, a direcção de Meca, determinação da primeira visibilidade do crescente lunar para conhecer o início dos meses do calendário, determinação das horas das orações diárias, etc.), agilizada por muwaqqits (os que "guardavam o tempo"), astrónomos ao serviço das mesquitas. O calendário, todavia, passou a ser exclusivamente lunar e observacional, proibindo-se as intecalações e assim nunca sincronizado com as estações do ano. As interpretações mais tradicionalistas, que amiudadamente se impunham, somente aceitavam as tradições consideradas nativas (anwāʾ e manāzil), i.e. o sistema baseado nos nascimentos helíacos das estrelas como marcadores sazonais (que para além de calendárico era um um sistema de astrometeorologia) e o das mansões lunares, repudiando, oficialmente, qualquer veleidade astrológica (sendo que sempre existiram augúrios e práticas divinatórias populares paralelas).

Julio Samsó (Islamic Astronomy, in Glick, T., Livesey, S. and Wallis, F., Op. cit. p.64), explica que os árabes pré-Islâmicos utilizavam um calendário luni-solar e praticavam uma astronomia muito elementar, baseada nas fases lunares, no Sol, nascimentos helíacos de estrelas, etc. Em On both Sides of the Strait of Gibraltar..., Op. cit., 2020, pp.49-50, o mesmo autor salienta que os árabes pré-Islâmicos estavam conscientes do calendário solar, observando a última estrela (raqīb) que se elevava no horizonte oriental antes do nascer do sol no ponto em que este se elevaria; também observavam o ocaso acrónico (v. pág, Esfera) da estrela (naw'), que tinha o seu ocaso a 180º. Estes pares de estrelas (raqīb e nawʾ) alteravam-se ao longo do ano enquanto os sítios do orto e do ocaso solares também se alteravam. O sistema dividia o ano em 27 períodos de 13 dias mais 1 de 13 dias (equivalendo a 365 dias, 1 ano, no total). Acertava-se o calendário lunar e o solar intercalando um décimo terceiro mês. Com a implantação do Islão, a intercalação foi suprimida pelo Profeta, que considerava que a tradição popular de relacionar as naw' com ciclos meteorógicos de chuvas e secas tinha conotações astrológicas ou facilmente se prestava a essas elucubrações. O novo mês começava obrigatoriamente com a primeira observação do crescente lunar, na sequência da chamada laylat al-shakk ("noite da dúvida"), na transição para o novo mês. Entretanto, diversos expedientes matemáticos foram gizados para antecipar esse momento e conhecer a direcção do horizonte no qual a visibilidade aconteceria. O meio do mês é logicamente assinalado pelo plenilúnio, al-badr.

A abordagem tradicional adaptada da época pré-Islâmica continuou a ser a mais comum:  Adapted primarily from pre-Islamic Arabia, folk astronomy flourished alongside mathematical astronomy over the centuries, but was far more widely known and practised. Even the legal scholars accepted it because of Kur’an, XVI, 16, ‘‘...and by the star[s] [men] shall be guided’’. There were four main applications of this traditional astronomical folklore: (1) the regulation of the Muslim lunar calendar; (2) the determination of the times of the five daily prayers, which are astronomically defined; (3) finding the kibla by non-mathematical procedures; and (4) the organisation of agricultural activities in the solar calendar. (King, David A., Makka: as the centre of the world, in "The Encyclopaedia of Islam", 6, fac. 101-102, [pp. 180-187], Leiden: E.J. Brill, 1987; repr. in "Astronomy in the Service of Islam", Variorum Collected Studies Series; CS416, ch. X, p.7). A tradição original, não-matemática, baseava-se, portanto, apenas nos fenómenos observáveis, tais como os nascimentos (na tradição nativa, al-matla' era o ponto do horizonte onde se elevava um astro, geralmente uma estrela, importante na Anwa' e no sistema de mansões lunares), ocasos e as passagens dos corpos celestes através da abóbada celeste, envolvendo também a associação destes a fenómenos meteorológicos. Com raízes pré-Islâmicas, assumiu como objectivos primordiais a regulação do Calendário Muçulmano e do timing das orações, a determinação da kibla (ou qibla, a direcção de Meca) através de métodos expeditos não matemáticos e ainda a organização das actividades económicas, nomeadamente a agricultura e a pastorícia, em função do ano solar (das estações).

As direcções da kibla (palavra que, segundo King, parece estar relacionada com "kabul", o vento de Leste) eram expressas através dos nomes dos ventos, das regiões envolventes (Síria, Iémen, etc.) e das direcções cardeais. Antecedendo o próprio Islão, a Ka'ba assumirá um papel fulcral na nova religião, enquanto "centro do mundo" e imago mundi. Segundo a lenda, foi construída por Abraão (Ibrahim) e o filho Ismael (Ismāʻīl) segundo um paradigma celeste: al-bayt al-ma'mur (protótipo da Ka'ba situado acima desta, no "Sétimo Céu", "continuamente visitada pelos anjos", como mencionado na Surata 52:4). Estamos perante um modelo cosmológico com origem pré-Islâmica.

Faces, ângulos e até diferentes segmentos da Ka'ba foram pois associados às direcções, ao ventos, às diferentes regiões do Mundo Islâmico, etc. O jurista (faqīh) Muhammad b. Ibn Surāqa al-‘Amiri (de origem iemenita, m. 1019 AD) está ligado ao desenvolvimento desta "geografia sagrada". Um esquema por si gizado, de oito sectores (definidos pelas direcções cardeais e pelos pontos do horizonte tocados pelo sol nos dois dias dos solstícios), foi divulgado por Ibn Rahik e refinado por Ibn al-Adjdabi. Outro esquema similar encontra-se, por exemplo, em escritos do egípcio al-Dimyati (séc. XII) ou em al-Fārisī (Adém, circa 1275). Os sectores estavam associados às faces e aos ângulos da Ka'ba. Outros esquemas incluíam onze ou doze sectores. Alguns esquemas mais tardios apenas grafavam os nomes das localidades em torno a Ka'ba, sem incluir qualquer informação explicativa acerca das respectivas qiblas. São exemplos os de autores como Yāqūt al-Rūmī (ca. 1225), al-Qazwīnī (circa 1250), bem como al-Ṣafāqusī (circa 1550), num belo esquema colorido incluído no seu atlas de navegação. Os esquemas foram copiados e utilizados até ao séc. XIX.

Ka'ba - orientação, direcções     Qibla - direccoes, ms_S. A. Pasa_2776
A orientação da base rectangular da Ka'ba na direcção do nascimento da estrela Canopus (designação indígena: Suhel ou Suhail, estrela associada à direcção sul, janūb; α Carinae na designação de Bayer) e do orto e ocaso do Sol no solstício de Verão, segundo diversas fontes medievais (King, Science in the service of religion: the case of Islam, in: Impact of Science on Society, Op. cit., p.254, Fig. 6). "Shamal" e "Janub" referem-se comummente ao norte e ao sul, respectivamente (todavia, a orientação do edifício está afastada 30º desse eixo) ; à direita: ilustração de esquema de 8 direcções, identificando diferentes regiões geográficas em redor da Ka'ba (MS Şehit Ali Paşa 2776,2, fol. 56v, Biblioteca Süleymaniye, Istambul)

Para compreeendermos quão integradora era esta geografia sagrada, na qual uma direcção, uma das faces ou um ângulo da Ka'ba, um vento, uma época do ano ou uma região geográfica eram sinónimos, (e.g., o horizonte sul, janūb, al-Yaman [o Iémen], nome da sudeste face da Ka'ba, etc.), atentemos neste excerto de Ibn al-Ajdābī, circa 1225 (in King, Sacred Geography & Qibla Sources, J. W. Goethe Univ., Frankfurt, 2019, p.21):

“In the Eastern sector to the South of the parallel of Mecca the qibla is towards summer sunset and what is close to this, which is (the direction) facing the wall of the Kaʿba going from the Yemeni Corner to the Black Corner (that is, the Eastern corner with the Black Stone). The localities in this sector are the Eastern parts of the Yemen, al-Shiḥr, India, and the parts of Southern China beyond.”

Vários métodos matemáticos aproximados (um dos quais atribuído, erradamente, a al-Battani) foram entretanto utilizados. As mesquitas eram tradicionalmente orientadas para Meca, segundo as técnicas disponíveis nessa época.

Os estudos de mesquitas históricas que têm em consideração a moderna tecnologia disponível (e.g., Gibson, Early Islamic Qiblas: A Survey of mosques built between 1AH/622 C.E. and 263 AH/876 C.E., Independent Scholars Press, 2017 ou Deus, A.J., Monuments of Jihad - The Thought Process of Determining Qibla Orientations by Turks, 2018) radicam num erro basilar: utilizam a direcção geográfica MODERNA de Meca e não a que podia ser determinada no passado, há 8, 9, 10 ou 11 séculos (vide D. A. King, Islamic sacred geography for finding the qibla by the sun and stars, 2019, Appendix)

A abordagem científica, respaldada nos contributos estrangeiros, na Matemática e na Geometria, levantava eventuais desconfianças. Segundo o legalista Iemenita al-Asbahi (séc. XIII): "Os astrónomos retiraram o seu conhecimento de Euclides, [dos autores do] Sindhind, Aristóteles e outros filósofos, e todos eles eram infiéis." (MS. Cairo Dar al-Kutub, mikat 984, 1, fol. 6a-b). Mas nem por isso se deixou de verificar um notável florescimento científico em determinadas épocas e contextos.


- A vertente científica

A ciência Islâmica é multicultural e desenvolve-se em contextos étnicos, culturais e até linguísticos diversificados (daí a actual utilização académica do termo "Islamicate" para acentuar toda a diversidade que se abriga na umbrela da influência religiosa prevalecente). Revela influências gregas, persas, e indianas (neste último caso particularmente na tradição das tabelas astronómicas (zij, pl. zijes ou zĩjãt) e na utilização dos numerais depois chamados "indo-arábicos", num cómodo sistema posicional: a posição do algarismo no número modifica o seu valor). A Astronomia distingue-se, antes de mais, por uma preocupação com a consistência física dos modelos e com a relação entre estes modelos e a observação (Morrison, R., Islamic Astronomy, in Lindberg, D. and Shank, M., Op. cit., p.109 et seq.).

A tradição indo-iraniana, com origem grega pré-ptolomaica (nomes de diversos tratados Indianos denunciam a influência mediterrânica) começou a penetrar terras Islâmicas no período Omíada (a partir de c. 679), com grande desenvolvimento durante o califado de al-Mansur (754–775). Durante o califado de al-Ma‘mun (813–833) dá-se um ponto de viragem com a introdução da astronomia ptolomaica e a tradução do respectivo 'corpus'. A civilização Islâmica produziu traduções, comentários, astrolábios, zijes, i.e. tabelas com os respectivos cânones explicativos e desenvolvimentos matemáticos, nomeadamente o aperfeiçoamento dos métodos numéricos, um antigo e difícil desafio. Alguns dos nomes das estrelas que hoje utilizamos estavam gravados nos astrolábios, designações provenientes da tradição erudita (que por norma prevaleceu sobre a autóctone nomenclatura beduína), traduzidos do catálogo (ou melhor: compilação de catálogos anteriores) de Ptolomeu. É da tradução dos textos clássicos pela intermediação árabe e dos contributos dos autores Islâmicos coevos, inicialmente a partir da Península Ibérica, que o conhecimento alimentará a Europa, por exemplo através da influente tradução do Almagesto por Gerardo de Cremona em 1175.

Segundo P. Kunitzsch, quase todas as zijes (tabelas que incluíam os cânones ou regras) usavam coordenadas eclípticas (mormente a longitude), extraídas do Almagesto, e acrescentavam uma correcção (uma constante de precessão) às longitudes das estrelas, dependendo da sua data ("epoch", como actualmente dizemos). Para além da precessão, alguns astrónomos levaram em consideração a chamada trepidação (v. infra). O valor da precessão "original" (i.e. a que Ptolomeu convencionou no Almagesto) era de 1º = 100 anos. Al-Biruni, por exemplo, usou a correcção [valor de Ptolomeu] + 11° e 10', para o ano equivalente a 880 AD (utilizando um valor constante de precessão corrigido pelos astrónomos Islâmicos: 1º = 66 anos). Ou seja, acrescentou 11º e 10' à longitude "ptolomaica" de cada estrela. Raramente se construíam novas tabelas pela observação independente, tanto no Oriente como na Europa medieval. Como exemplos excepcionais, observações concretas estão na base da Zij al-Mumtahan (Lat. Tabulae Probatae, i.e. "tabelas testadas"), sob o patrocínio do califa Al-Maʾmūn, também o influente catálogo de Abd al-Raḥmān al-Sūfī. Mas geralmente corrigiam-se as longitudes numa tabela pretérita, sendo o catálogo de Ptolomeu (que no contexto Latino é o da tradução de Gerardo de Cremona) "matriz" privilegiada. Qualquer tabela que resultasse da observação seria mais tarde base privilegiada para a construção de novas tabelas. (vide Kunitzsch, Paul, Star Catalogues and Star Tables in Mediaeval Oriental and European Astronomy, "Indian Journal of History of Science" 21, New Delhi, 1986, pp.113-22; repr. in: The Arabs and the Stars : Texts and Traditions on the Fixed Stars, and their Influence in Medieval Europe (Variorum Collected Studies), Routledge, 2016 (orig. publ. 1989, Ashgate Publishing).

Os exemplares deste tipo complexo que maior circulação tiveram na Europa foram as Tábuas Afonsinas ( i.e. "Alfonsinas", de Alfonso X, el Sabio), gizadas por astrónomos judeus e árabes. Na realidade desconhece-se actualmente qualquer versão Castelhana. Somente uma introdução que não estava originalmente incluída mas foi apensa na edição de Rico y Sinobas, Tomo IV (Madrid, 1866). III-83: "Libro que a por nombre el de las taulas Alfonsies". Na forma que podemos documentar actualmente, trata-se de uma colecção de tabelas planetárias e outras, em Latim, compiladas (em circunstâncias que não são bem conhecidas) em Paris nos anos de 1320. O valor da correcção das longitudes (devido à precessão) adoptado foi: Ptolomeu + 17º e 8', Os cânones explicativos de João de Saxónia (Jean de Saxe), da Universidade de Paris, foram compostos em 1327 e servirão de base à primeira edição impressa. As Tábuas Afonsinas, nesta versão "Parisiense", usavam o dia como base para as suas tabelas do motus médio dos planetas, facilmente adaptadas aos calendários (Juliano, Islâmico e Hebraico) usados em diferentes contextos culturais. Em resumo, quando falamos destas tabelas referimo-nos às declarações, regras ou cânones (originalmente Castelhanos) e às numerosas e sucessivas edições acrescentadas das tabelas numéricas Latinas de Paris.

Todavia, sucintas tabelas com listas de estrelas para utilização no astrolábio (e também úteis para outros instrumentos, e.g., quadrantes, globos celestes), introduzidas na Europa a partir de traduções de exemplares árabes são as mais comuns. Segundo Kunitzsch (ibid., p.119), a mais antiga tabela do contexto Latino foi uma destas listas, com 27 estrelas, datável de finais do séc. X.  Uma das suas coordenadas era a mediatio coeli (i.e., o grau da Eclíptica que culminava simultaneamente com a respectiva estrela).

Para os astrónomos Islâmicos, Arin era o meridiano de referência: "Arin, de uma distorção no Árabe ('ryn, em vez de 'zyn = Uzayn), do nome da cidade indiana de Ujjayini. Parte da astronomia Árabe-Islâmica foi inspirada por textos indianos bem cedo traduzidos na corte dos califas em Baghdad. Daí Ujjayini enquanto lugar no centro do mundo, no meridiano zero e no equador, penetrou nos textos astronómicos e geográficos árabes, sendo ulteriormente transmitida ao ocidente medieval." (Kunitzch, P., On the Authenticity of the Treatise on the Composition and Use of the Astrolabe Ascribed to Messahalla, Archives Internationales d'Histoire des Sciences 31. Wiesbaden, 1981, p.58, n.70 [trad. nossa]). Ou seja, era o primeiro meridiano dos astrónomos indianos. Segundo North (Op. cit., 1988, p.160), algumas listas geográficas no ocidente referiram Arin [ou Aryn] como tendo latitude nula e longitude a 90º 'do Oeste'. Nas tribulações das traduções, o lugar também foi mesmo pontualmente confundido com o próprio "centro da Terra", ou seja, do Universo (enquanto referência idealizada, convencional).

Al-Tusi - modelo planetário com orbes
Ilustração do modelo planetário ptolomaico utilizando orbes (Nasir al-Din al-Tusi’s al-Tadhkira fi ‘ilm al-hay’a. - Staatsbibliothek, Berlin, MS. Or. oct. 3568, detalhe fol. 17a - CC BY‑SA 4.0)


Em questões cronológicas, Samsó sublinha (bid., p.54) que a utilização de determinadas eras cronológicas se revestia de uma lógica astronómica. A Era de Nabonassar era a mais citada no Almagesto de Ptolomeu, onde também se encontram as de Filipe (i.e., Phillipus III Arrhideus, meio-irmão de Alexandre Magno, aparentemente usada apenas para fins astronómicos e com uma variante na historiografia árabe [vide Hallo, William W. 1984. The Concept of Eras from Nabonassar to Seleucus, "Journal of the Ancient Near Eastern Society", 16 (1)] e as dos imperadores Augusto, Adriano e Antonino. Nas "tabelas manuais" de Teão (Θέων, Theon) encontra-se principalmente a de Filipe (e o Calendário Egípcio), mas a Era de Diocleciano também é mencionada. Al-Battānī, na sua zīj (manual de tabelas e cânones) utiliza as de Filipe, Alexandre, a Hijra (Hégira) Islâmica e a de Yazdijird (de origem persa). A Era do Dilúvio é curiosamente justificada no contexto Indo-Iraniano das tabelas de al-Khwārizmī pois corresponde, por coincidência, com o início de um ciclo Hindu (o Kaliyuga, no ano -3101), v., por exemplo, D. Pingree, History of Mathematical Astronomy in India, in "Dictionary of Scientific Biography", XV, New York, 1978, p.555.


Embora actualmente "politicamente incorrecta", a opinião de A. Pannekoek tem, no longo prazo, fundamento: a Astronomia no contexto Islâmico almejou somente a verificação e optimização do trabalho dos seus predecessores; teoricamente não foi além dos veteres antiqui e, quando divergiu de Ptolomeu, foi quase sempre para retornar a Aristóteles. (A History of Astronomy, Dover Publications, 1989 (1961), pp. 169-170). Sendo matemáticos extremamente dotados (promoveram importantes contributos, e.g., substituindo o cálculo das cordas de Ptolomeu pelo dos senos da Trigonometria (Lat. Tabulae Sinuum, tabelas de cordas e arcos, utilizadas desde então), os interesses e contributos foram principalmente observacionais e descritivos, a especulação cosmológica ocupava um lugar menos conspícuo. Houve, todavia, elucubrações no âmbito da chamada "hayʾa" (num dos sentidos em que a palavra foi utilizada, e.g., pelos aristotélicos do Islão quando se referiam a um eventual universo físico não-ptolomaico, v. Samsó, Op. cit., 2020, p.499).

Como exemplo, os equívocos "woke" repetidos nas actuais "Histórias" do Método Científico, apontados por Thony Christie (The Renaissance Mathematicus), na sua "review" de um título de David B. Teplow. Este último descreve a suposta origem do 'método experimental' em Roger Bacon, afirmando que Bacon aprendeu tudo com os alunos de "Spanish Moors" e que o método experimental não começou na Europa:

"It is absolutely wrong to assume that experimental method was formulated in Europe. Roger Bacon, who, in the west is known as the originator of experimental method, had himself received his training from the pupils of Spanish Moors, and had learnt everything from Muslim sources. The influence of Ibn al-Haitham on Roger Bacon is clearly visible in his works."

T. Christie comenta este dislate: "To find this ahistorical garbage in a serious book is to say the least stunning. That Roger Bacon was the first European to write about and propagate the optics of al-Haytham is true but that he had received his training from the pupils of Spanish Moors, and had learnt everything from Muslim sources, is total cobblers."

Em todo o caso, os ecléticos textos em Árabe foram traduzidos e recebidos com fervor no ocidente Latino, sugerindo um léxico e práticas estimulantes, também no que diz respeito à Astrologia:

"The system of Abu Ma‘shar and other Arabic astrologers seems to be an amalgam of older traditions, and this it was that passed into Latin astrology. It was really late Greek astrology, from the first four or five centuries of our era, coloured by its passage through Persian and, to a lesser extent, Indian hands, which most filled the minds of the medieval astrologers, and only rather less the restrained art of Ptolemy’s Tetrabiblos. Not only were they attracted by all the new and strange Arabic terms — they revelled in hylegs rather than ‘prorogators’ and so forth — and also by the fashionable names, but the differences in emphasis may have made the Arabs’ astrology more exciting." (Tester. p.168).

Iskandar Horoscope - WMS Persian 474
O refinadíssimo horóscopo da natividade do sultão Iskandar, datável de 1384 e elaborado no início do séc. XV (Kitab-i viladat-i Iskandar. The Wellcome Institute, Wellcome Collection - WMS Persian 474)


O notável florescimento da Astrologia no Islão é uma questão curiosa. Como Peter Whitfield alvitra, talvez a doutrina da 'Unicidade de Deus' (tawhid), da qual se deduz a da unicidade da sabedoria, explique porque é que uma religião "revelada", ainda mais severa e avessa a "compromissos" do que o Cristianismo, pode aceitar uma filosofia "pagã" da Natureza, como era a Astrologia. (Astrology: a History, Op. cit., 2001, p.81). Esta floresceu sob a dinastia Abássida, pois o espírito da época, através do movimento "Mu’tazilah" estava aberto a uma interpretação do mundo que defendia o primado da 'razão'. E chegou também ao ocidente do império. Ulteriormente, manifestar-se-á uma resistência e mesmo uma declarada oposição à intromissão na religião do racionalismo pagão. A partir do século XIII, a astrologia no Islão estará moribunda, declinando consideravelmente sob o impacto de restrições de origem religiosa e filosófica. (ibid., p.94). Os mais influentes autores e respectivos tratados são anteriores. Curiosamente, é a partir desta mesma época que as suas traduções influenciarão consideravelmente as práticas no ocidente Latino.


Em conclusão, a tradição astronómica Islâmica (‛ilm al-nujum) revelou-se riquíssima nos intercâmbios, refinamentos e contributos mas foi efémera. Por diversos motivos (sociais e religiosos) estiolou após o magnífico período entre os séculos IX-XIII, aproximadamente. Também os seus importantes observatórios (sendo o de Ulugh Beg, em Samarcanda, um exemplo paradigmático) tiveram escassa longevidade. Como se pode constatar pelas datas, as grandes referências são antigas. Todavia, ainda encontramos alguns notáveis astrónomos depois da época de al-Tusi (1201-1274), como Sadr al-Sharia al-Bukhari (c. 1347) ou Ibn al-Shatir (c. 1375). No séc. XV destaca-se Ulugh Beg. Também sábios Judeus Sefarditas perpetuaram a tradição das tabelas e dos almanaques, sendo o Almanach Perpetuum de Zacuto (Tabulae tabularum coelestium motuum sive Almanach Perpetuum, nome completo da tradução em Latim) exemplo da transição do manuscrito para a imprensa.(v. Chabás, J. & Goldstein, B. R., Astronomy in the Iberian peninsula: Abraham Zacut and the transition from manuscript to print, Transactions of the American Philosophical Society. Philadelphia, 2000.). Os cânones foram pubicados em Castelhano, curiosamente por um judeu português: José Vizinho. Em Árabe documentam-se pelo menos três traduções do Almanach, popular do Magrebe (Maghrib) ao Iémen (al-Yaman) entre os séculos XVI e XIX (!), o que é revelador de um contexto que não evoluiu.


A síntese
tardo-medieval e renascentista

Entretanto, o sincrético "modelo" ptolomaico-aristotélico que temos acompanhado é enquadrado através da interpretação escolástica na mundividência Cristã, consequentemente na sua explicação da "Máquina do Mundo", como mais tarde exposta pelo génio de Camões, quando Tétis a descreve ao Gama:

 

"Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança."

(X, Est.81)

 


Vasco da Gama, acompanhado da deusa Tétis, que lhe apresenta a "Máquina do Mundo" (Almada Negreiros, incisão, átrio do edifício da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).

Disponibilizamos o incontornável A Astronomia de Os Lusíadas (1915), de Luciano Pereira da Silva (reedição da Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 1972; .PDF 5.95MB)

 

Cosmographia_Apianus
Representação do Universo Geocêntrico, com os pequenos círculos previstos pela Trepidação (adjacentes a Aries e Libra) que encontraremos adiante. Petrus Apianus (Peter Bienewitz), Cosmographicum liber, 1533


O modelo Heliocêntrico. f, De revolutionibus orbium coelestium (Nürnberg, 1543)

A observação era sempre preterida relativamente à inferência e razão da lógica aristotélica. A Esfera Universal dividia-se num coração central constituído pelos quatro elementos e pelas esferas etéreas dos corpos celestes. O mundo sub-lunar assiste à corrupção e ao devir. As esferas planetárias são constituídas por um "Éter" incorruptível e eterno, invariáveis na sua substância. O conjunto traduz-se numa organização hierarquizada, completa, imponente e inteligível. C. S. Lewis faz-nos experienciar o "modelo" pretérito, em contraste com o contemporâneo:

...Hence to look out on the night sky with modern eyes is like looking out over a sea that fades away into mist, or looking about one in a trackless forest-trees forever and no horizon. To look up at the towering medieval universe is much more like looking at a great building. The 'space' of modem astronomy may arouse terror, or bewilderment or vague reverie; the spheres of the old present us with an object in which the mind can rest, overwhelming in its greatness but satisfying in its harmony (Lewis, C.S., The Discarded Image, Op cit, p.99).
 
Para desfrutar do sistema na sua maturidade tardo-medieval e renascentista, guiamo-nos pelo clássico de Luciano Pereira da Silva (A Astronomia de Os Lusíadas; páginas assinaladas são da edição de 1972):

[Agilizou-se] a sobreposição de movimentos periódicos da forma mais simples, isto é, de movimentos circulares e uniformes. Os mais complicados movimentos celestes foram, dentro dos limites de precisão que permitiam atingir os instrumentos de observação à vista desarmada, representados com grande felicidade e sucesso pela aplicação daquele pensamento matemático. Os planetas movem-se em círculos (epiciclos) cujos centros se deslocam sobre outros círculos (deferentes) excêntricos em relação à Terra, colocada no centro do Mundo, resultando da combinação daqueles movimentos as suas estações e retrogradações. (p.71) (...) O sistema satisfaz os votos dos astrónomos ansiosos de cânones para o cálculo de tábuas de posições exactas dos planetas, tábuas que a observação confirme dentro dos limites dos erros dos instrumentos. Mas descontenta os adeptos intransigentes da Física peripatética [de Aristóteles], cujos princípios julgam ameaçados pelo autor da Magna Sintaxe [Ptolomeu]. (...) [Todavia] as várias rotações sobre epiciclos e deferentes são, segundo ele [Ptolomeu], puros artifícios de cálculo, e o único princípio que deve guiar o astrónomo na escolha das hipóteses é o da maior simplicidade. Mas não deve hesitar-se em juntar combinações mais complexas sempre que seja preciso para salvar as aparências, isto é, para levar a coincidirem as posições calculadas dos astros com as posições observadas com os instrumentos. (p.73)

Purbáquio [Peuerbach], nas suas Teóricas, adoptou as esferas sólidas dos árabes [a pretérita teoria da solidez das esferas, preferida pelos mais influentes autores Islâmicos, compartimentando o espaço], feitas de quinta-essência, [justamente e rigorosamente] com as dimensões suficientes para, dentro delas, terem livre jogo os deferentes e epiciclos de cada planeta. O modelo criado para a concepção do Universo deixa, pois, de ser puramente geométrico; é um modelo físico-mecânico. É a máquina do Mundo, que ao Gama e companheiros é dado ver com os olhos corporais. (p.79). [Peuerbach foi o primeiro, no Ocidente, a expender de modo completo a teoria dos epiciclos, inserindo-a nas esferas aristotélicas e separando a região de cada planeta recorrendo a esferas sólidas.]

Ou seja, gizou um célebre epítome, publicado em 1454, com as teorias planetárias apresentadas de modo coerente e integrado, que combinavam habilmente a exposição básica dos excêntricos e epiciclos de Ptolomeu com as "esferas cristalinas" e sólidas de Aristóteles, contíguas entre si.

Orbes do Sol
A "Esfera do Sol" [i.e. o aparato dos componentes da órbita do Sol] nas Theoricae de Georg von Peuerbach. Constituída por três "orbes" ou "céus" (o deferente do Sol e dois deferentes dos auges do Sol), é um dos exemplos mais simples. O círculo menor (interior) é o lugar dos planetas interiores. Aqui se situam o centro da Terra, ie, do Mundo (A) e o centro dos excêntricos e, consequentemente, da órbita do deferente do Sol (B). A negro, os dois deferentes do auge do Sol (E e F); o anel branco é o deferente do Sol (como se confinado entre duas "paredes", uma côncava e outra convexa), por onde corre o círculo CGD, com centro em B, obviamente excêntrico em relação ao centro do Mundo, percorrido pelo centro do Sol (G) no seu percurso anual pela Eclíptica. O ponto C assinala o auge (o ponto da órbita mais próximo da 8ª Esfera), D assinala o oppositum augis, ponto mais próximo da Terra, onde a velocidade é maior. São, respectivamente, o apogeu e o perigeu (Theoricae nouæ planetarum : id est, septem errantium syderum, id est, septem..., 1534)

 
O célebre Tratado da Esfera de Sacrobosco foi traduzido "em lingoagem" (i.e., no vernacular) e anotado por Pedro Nunes (1502-1578), resumindo a perspectiva geocêntrica e fazendo algumas adendas. Ou seja, resumiu a versão definitiva do sistema (que contempla 10 Esferas, sem contar com o supremo Caelum Empyreum, o undécimo céu). No que diz respeito às chamadas estrelas fixas (Oitava Esfera):

"Chamãsse fixas porque estão sempre em hũa mesma distancia de nos por estarẽ todas ẽ hũ soo ceo q he o oytauo: o qual per razam dellas se chama firmamento & amostrãsenos estas estrellas sempre per hũas mesmas figuras & guardã o mesmo sitio as quaes cousas nã ha nos planetas. E segũdo a comũ escola dos astrologos a nona esphera não he primeiro mobile mas segundo & ho decimo he ho primeiro: & nestes dous ceos de cima nã ha estrellas & por tanto não se comprehende pello sentido [i.e., não se vê directamente] se não per razã porque experimentamos os seus mouimentos na .8. que não sam proprios a ella." [Ou seja, infere-se a realidade das referidas esferas pelo efeitos indirectamente percebidos nas esferas inferiores, nomeadamente na 8ª]

Quanto à cinemática deste complexo modelo, reza o texto de Sacrobosco:

"Mas o primeiro mouimento moue & leua com seu ympeto todallas outras Spheras & em hũ dia cõ sua noite fazẽ per derredor da terra hũa reuolução [o movimento diurno, d'o ceo volubil com perpetua roda, "Os Lusíadas", VII, 60]. E porem ellas sem embargo deste mouimento: andão em contrayro. A oytaua Sphera em cem annos hum grao [a Precessão, valor anual segundo Ptolomeu]: & a este segundo mouimento parte per meo ho zodiaco, debaixo do qual cada hũ dos pranetas [planetas] tem propria sphera: em a qual anda per proprio mouimento: contra o mouimento do derradeyro ceo [i.e., do Primum Mobile]: & em diuersos espaços de tempos fazem suas reuoluções. Saturno em .30. annos: Jupiter em .12. Mars em dous. Sol em .365. dias: & quasi seys oras. Venus & Mercurio quasi em outro tanto tempo, a Lua em vinte & sete dias & oyto oras."

Ou seja, o céu das estrelas fixas possui dois movimentos (o Diurno e o de Precessão), que lhe são transmitidos respectivamente pela 10ª (Primum Mobile) e 9ª (Coelum Aqueum ou Cristalino). Seguidamente, Nunes faz uma adenda, acrescentando um terceiro movimento que é próprio da 8ª Esfera, de inspiração árabe e comummente aceite na sua época: a trepidação ou titubatio:

"Isto segundo a opinião de ptolomeu porque os astrologos que depoys forã [i.e., mais recentes] acharam que este mouimẽto de occidẽte pera oriẽte pella ordẽ dos signos pertence a nona esphera: & que nã he em cem ãnos hũ grao mas em 200. hũ grao & .28. minutos de sorte que ẽ 49. mil ãnos falando naturalmẽte se cõprira sua reuolução. E o mouimento proprio a oitaua he o da trepidação que se faz em .7000. annos."

Paulus Ricius, no séc. XVI, terá relacionado estes períodos com números bíblicos, nomeadamente com o ano sabático, aqui "amplificado" (7000x7000=49000). Em resumo, Pedro Nunes adopta esta "novidade" e o valor precessional de 1º e 28' em 200 anos. Anteriormente, Sacrobosco ou Dante limitaram-se a seguir Ptolomeu (1º = 100 anos), enquanto al-Battani (conhecido entre nós como Albaténio, c. 858–929), suficientemente lúcido para renunciar à Trepidação, chegou, por suposta comparação com valores atribuídos às observações de Menelaus de Alexandria, a um valor de 1º em 66 anos, muito próximo da realidade do fenómeno. Copernicus levou a trepidação muito a sério no De Revolutionibus.


Accessus et Recessus - A Trepidação

Relacionada com a precessão, como surgiu a teoria da trepidação? James Evans explica:
"The ninth-century Arabs could not determine the precession rate with any exactness from their own measurements alone. The only hope lay in a comparison with the data handed down by Ptolemy. The straight line connecting Ptolemy's observation of A.D. 139 with the cluster of Arabic observations has a slope of 1° in 65 years. But the slope of the line connecting Ptolemy' s observation with Hipparchus's is 1° in 100 years. It therefore looked as if the precession rate had increased since the days of the Greeks. Actually, the rate had been constant at 1° in 72 years during the whole period, and the apparent variation was due solely to errors of observation. If the Arabs had ignored Ptolemy and simply calculated the precession between Hipparchus's time and their own, they would have obtained a rate very close to the true one. But of course they had no way of knowing this." (The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, p.275)

Precession is a term used to describe a constant rate of increase in the tropical positions of the fixed stars, and trepidation refers to models according to which precession varies (and can even be negative for certain periods of time) (José Chabás and Bernard R. Goldstein, The Alfonsine Tables of Toledo, Springer Science+Business Media Dordrecht, 2003, p.256). O termo "trepidação" não surge nos textos medievais; encontramos accesus et recessus [Ár. al-iqbāl wa l-idbā] (Chabás and Goldstein, Op, cit., p.217). O objectivo era determinar uma "precessão total", combinada. Para uma abordagem da teoria como emerge em textos Indianos, v. David Pingree, “Precession and trepidation in Indian astronomy before A.D. 1200”. JHA 3, 1972, pp.27–35.

Uma passagem do Pequeno Comentário às "Handy Tables" (Procheiroi kanones ou "tabelas manuais" de Ptolomeu) por Theon (Teão) de Alexandria, 12º capítulo, refere uma lenta "oscilação" nas posições dos equinócios e dos solstícios. A única outra referência antiga surge em Proclus, Hypotyposis 3.54 (v. Manitius 1909, 66–68). É muitas vezes considerada uma primeira referência à célebre "trepidação" medieval. O que se pode afirmar é que é legítimo interpretar a fórmula de Theon como sendo uma conversão da estrutura de referência tropical de Ptolomeu numa estrutura de referência sideral, cogitação fortemente suportada pela predominância de longitudes siderais na astronomia dos papiros e textos astrológicos antigos, pelo menos até ao séc. III (Jones, A. (ed.), Ptolemy in Perspective: Use and Criticism of his Work from Antiquity to the Nineteenth Century, Springer, 2010, pp. 15-17). A ligação da teoria (que assumiu vários modelos geométricos) a Thābit ibn Qurra foi rejeitada definitivamente por F. J. Ragep (vide Naṣīr al-Dīn al-Ṭūsī’s memoire on astronomy (al-Tadhkira fī ʿilm al-hayʾa), 2 vols., 1993, pp.400-408) com argumentos aceites por N. Swerdlow ou O. Neugebauer (1984, I, p.43)..

Como Elly Dekker refere, no século X alguns modelos de trepidação foram expendidos no Kitāb Ḥarakāt al-Shams por Ibrāhīm ibn Sinān (908–46), neto do célebre matemático e astrónomo Thābit ibn Qurra. (Illustrating the Phaenomena: Celestial Cartography in Antiquity and the Middle Ages, Oxford University Press, 2013, p.281). A teoria da trepidação foi particularmente bem recebida no al-Andaluz. Todavia, como J. Samsó e M. Comes demonstraram, havia pouca uniformidade nas opiniões, proliferando diferentes modelos. Até ao séc. XV, o método mais utilizado, pela sua visibilidade, foi aquele incluído nas Tabelas Alfonsinas.

O movimento de Trepidação seria próprio da '8ª Esfera'. Com origem na revitalização Islâmica do séc. IX, a teoria (re)nasce na sequência da tentativa de determinação do valor exacto do lento movimento de Precessão. Este somente podia ser compreendido na comparação com valores documentados numa época distanciada. Recorreu-se às informações de Ptolomeu (que por seu lado se baseavam na comparação com as observações de Hiparco). Os astrónomos Islâmicos calcularam assim o valor de 1º = 65 anos em relação aos dados de Ptolomeu (AD 139). Foram ludibriados pela estimativa exagerada do astrónomo alexandrino (1º=100 anos), pois se tivessem comparado directamente com o valor da época de Hiparco teriam chegado a um resultado muito próximo do real. Assim não aconteceu e gerou-se o equívoco de que a Precessão estaria a acelerar. Apesar da cautela de astrónomos como Al-Battani perante esta difícil questão escassamente provida de dados observacionais fiáveis, surge esta resposta atribuída (de modo espúrio, tudo indica) a Thābit, a partir de um tratado que subsiste apenas na sua tradução latina: De motu octave spere (v. Thomas Hockey et al. (eds.). The Biographical Encyclopedia of Astronomers, Springer Reference. 2007, pp. 1129-1130). Estava "destinado" que a Astronomia, através dos seus melhores praticantes, mergulharia por séculos nestas investigações que radicavam em imprecisões observacionais e equívocos, todavia dificilmente evitáveis nesses tempos. Como J. L. E. Dreyer explicou, na versão tradicionalmente associada a ibn Qurra (grafa "ben Korra"; "ben Chorath" em Delambre), imaginou-se uma nova esfera (a oitava) para se articular com a eclíptica "fixa" da nona esfera. A "fixa" intersectava o equador em dois pontos segundo um ângulo de 23º 33'; a eclíptica "móvel" (que é a observável), na oitava esfera, estava ligada a dois pequenos círculos diametralmente opostos (amiudadamente representados em gravuras do modelo geocêntrico), os centros das quais coincidiam com os equinócios médios e cujos raios mediam 4º 18' 43". Os pontos tropicais móveis de Cancer e Capricornus nunca abandonavam a eclípica "fixa" mas avançavam e recuavam a extensão de 8º 37' 26"; os dois pontos que se situam a 90º destes percorriam os pequenos círculos mencionados. Assim, a eclíptica móvel alternadamente elevava-se e descia relativamente à posição da eclíptica "fixa", enquanto os pontos de intersecção do equador e da "móvel" (pontos equinociais) avançavam e recediam 10º 45', em ambas as  direcções. (A History of Astronomy..., 1953 (1906), p.276). Apesar de ibn Qurra (ou do pseudo-ibn Qurra) não o referir, a variação da obliquidade da eclíptica seria necessariamente afectada. O lugar da maior declinação do Sol altera-se continuamente, pois situa-se sempre a 90º das instersecções do equador com a eclíptica fixa. A maior decinação tanto acontece em Gemini como em Cancer. (Delambre, M., Histoire de L'Astronomy du Moyen Age, Paris, M.me V.e Courcier, 1819, p.74). Interpretando toda esta teoria como uma enorme e desnecessária confusão, Delambre humorizou (p.73):

"Tout ce qu’on sait et ce qu'on peut dire de cet arabe [referindo-se ao autor tradicionalmente associado à teoria], c’est qu’il a été le Ronsard de l’Astronomie."
Réglant tout, brouilla tout, fit un art à sa mode;
Et toutefois long-temps eut un heureux destin.

Foi uma teoria muito fluida e repleta de variantes. Combinava-se frequentemente a precessão de 1º em 100 anos (valor de Ptolomeu) com a "oscilação". Segundo Dreyer, na época de Alfonso X, percebeu-se que os equinócio haviam recedido muito para além do que a teoria permitia. Doravante, acreditava-se que os equinócios percorrian todo o círculo em 49000 anos, sendo o período de inequalidade da trepidação de 7000 anos, "so that in a sort of Great Jubilee year everything was again as it had been in the beginning". (p.278).


[Resume-se seguidamente o essencial da excelente explicação passo a passo de James Evans, The History and Practice of Ancient Astronomy, Oxford University Press, 1998, pp. 274 et seq.]

Com a ajuda do esquema anterior (Evans: 1998, p.277), verificamos que neste sistema o Equador Celeste (AJ) é intersectado em A pela Eclíptica Fixa ("Fixed Ecliptic", que não é a real, observável, mas uma referência fictícia inscrita na 9ª Esfera). Esta referência é "fixa" em relação ao Equador, com o qual faz um ângulo de 23º33', de acordo com a estimativa da época. O pólo do Equador é o ponto P. O coluro solsticial (PIJ), que não é o real, observável, intersecta a Eclíptica Fixa e o Equador perpendicularmente. Ademais, com centro em A (e no ponto diametralmente oposto, não mostrado no esquema) há pequenos círculos cujo raio é de cerca de 4º (4º18'). Tudo isto são estruturas de referência fixas, coerentes entre si, situadas na 9ª Esfera [vide estes pequenos círculos no penúltimo anel do esquema do Cosmographicum liber de Apianus reproduzido mais acima nesta página].

Percorrendo este pequeno círculo com centro em A está o ponto C (o princípio de Aries), movendo-se uniformemente, pelo que a amplitude do ângulo assinalado pela letra Beta aumenta gradualmente também de modo uniforme (segundo o (pseudo-)Thabit, percorria os 360º em 4182 do Calendário Islâmico, 4057 anos no Calendário Juliano). Do outro lado acontece algo semelhante com o princípio de Libra. Mas estes dois pontos (Aries e Libra) estão sempre opostos em relação ao Equador, quando um está a Norte o outro está a Sul e vice-versa (como o sistema mecânico das rodas de uma antiga locomotiva a vapor).

A Eclíptica real, verdadeira ou observável (chamada Móvel, "Moveable" no esquema) movimenta-se em relação ao Equador. Passa pelo ponto C (princípio de Aries) e pelo ponto oposto que assinala o início de Libra (não mostrado no esquema). O verdadeiro Ponto Aries Equinocial, observável, é a intersecção desta Eclíptica Móvel com o Equador.

O ponto D (início de Cancer) fica sempre a 90º de C e permanece sempre na Eclíptica Fixa (que sabemos ser nocional), tendo aí um movimento de avanço e recuo. Também é fictício! O verdadeiro ponto solstícial observável em Cancer está representado no esquema pelo símbolo que tradicionalmente identifica o signo e fica, naturalmente, na Eclíptica Móvel (a observável).

- Ver segundo esquema (Evans, ibid.) com exposição diacrónica do funcionamento (nomeadamente o accessus et recessus da estrela "S") preconizado por esta "criativa" teoria.

Nesta teoria, o primeiro ponto de Aries mudaria de posição, por vezes na sequência dos signos, outras vezes contra esta sequência, com um desvio máximo de 9 graus. Para terminar, convém referir que todas as estrelas e também os "auges " (apogeus) dos planetas estão plasmados na esfera da Eclíptica Móvel e sujeitos à sua movimentação, [NB: A linha que une o apogeu e o seu oposto (perigeu) é a chamada linha dos ápsides. Era, no passado medievo chamada linha do aux (pl. auges), a palavra 'aux' vem do Árabe 'awj' ("apogeu"). Em Latim habitualmente sofre a inflexão (gen. augis, pl. auges)]

Todos os modelos foram finalmente rejeitados devido aos esforços de Tycho Brahe em finais do séc. XVI, sendo a precessão fixada bem perto do valor actualmente aceite de 1º em 72 years. A fórmula actual é: p = 50".2564 + 0".000222 t, onde "t" é o nº de anos desde o referencial 1900 (avançando ou recuando nos séculos, + ou -).

 

Desenvolvimentos...

Os principais contributos da Idade Média para a Astronomia foram o desenvolvimento dos relógios mecânicos e a adopção do sistema numérico conhecido como indo-arábico (notação decimal inventada na Índia, talvez em torno de 500 AD, na qual a posição do número mostrava que potência de 10 representava, enquanto para as posições vazias se utilizava o zero).

Os relógios mecânicos são a mais importante contribuição tecnológica medieval. Os primeiros horológios (como se dizia entre nós) funcionais surgem no século XIII. Não eram ainda servidos por molas mas sim por sistemas de pesos que desciam suspensos em cordas, e não eram precisos (David Bergamini, The Universe, "LIFE Nature Library", Time Inc., 1962, p.14). Eram comummente acertados com a ajuda de relógios de Sol. Shakespeare humorizou com a sua imprecisão na comédia Love’s Labour’s Lost, quando Lord Berowne (ou Biron) diz (cena I, 3º acto):
 
"What, I! I love! I sue! I seek a wife!
A woman, that is like a German clock,
Still a-repairing, ever out of frame,
And never going aright, being a watch,
But being watch'd that it may still go right!"

Tornar-se-ão, todavia, gradualmente mais sofisticados. No século seguinte, alguns complexos relógios astronómicos mecânicos vão conseguir "capturar", emular e traduzir o grande fenómeno do Universo, abrindo o percurso para os magníficos e muito refinados mecanismos que vão ser construídos ao longo dos séculos seguintes. Como exemplos de vanguarda, ainda no século XIV, o instrumento concebido por Richard de Wallingford, descrito no Tractatus Horologii Astronomici, de 1327 [vide monografia de referência de J. D. North, implementada a partir do estudo do MS Ashmole 1796: "God’s Clockmaker: Richard of Wallingford and the Invention of Time" (London: Hambledon, 2005)] ou o Astrarium de Giovanni de' Dondi (1318-1389).

Este último, terminado em 1362, demorou dezasseis anos a construír. O seu complexo mecanismo de rodas dentadas traduzia os movimentos astronómicos, nomeadamente os planetários. Nesta reconstituição (Smithsonian Institution), os mostradores que vemos em  cima representam, respectivamente, os movimentos de Marte, Sol e Vénus; o mostrador central mais abaixo é um relógio de 24 horas.

Com a imprensa de tipos móveis de Gutenberg (c. 1440), a disseminação da informação incrementa a discussão de novas ideias. Como J. Pacheco resumiu, conjuga-se a universalidade consubstanciada na invenção da tipografia [depois da mais limitada xilogravula, gravação em madeira] com o uso do Latim como língua internacional. Concluíndo que: "a inovação de Gutemberg vai alterar a estrutura das relações culturais, políticas e económicas na Europa." (A Divina Arte Negra e o Livro Português: Séculos XV e XVI, Vega, s/d (1988), p.35).

No século XV, muitos textos clássicos voltaram a estar disponíveis nos originais e muita produção contemporânea ganha visibilidade. Incidentalmente, a estética renascentista procurava debalde nos modelos ptolomaicos a "harmonia" que o redescoberto Platão afirmava ser apanágio do Kósmos. Filosoficamente, as qualidades literárias dos seus diálogos e o seu elegante desenho matemático começavam a suplantar o naturalismo aristotélico.

Seguindo de perto a síntese de Noel Swerdlow (Astronomy in the Renaissance, in: "Astronomy Before the Telescope", Op. cit., 187 et seq.), as peripécias que conduzem a uma nova astronomia começam a esboçar-se com a recuperação e exposição, por Johannes Muller de Königsberg (i.e. "Monte Régio", latiniz. Regiomontanus), 1436-1476, dos métodos matemáticos e observacionais de Ptolomeu (bem como de alguns acréscimos feitos por autores Islâmicos), ainda no quadro da física da revolução das esferas como causa dos movimentos celestes. Esse génio do cálculo procurou incrementar a precisão, denunciando as anomalias e disparidades observáveis nos fenómenos, mormente os desfasamentos entre o calculado e o efectivamente observado. O próprio nunca imaginaria a enorme mudança que precisaria acontecer. Os erros por si apontados revelaram-se tão sérios que as soluções vão precisar de Tycho, Kepler, do telescópio de Galileu e da total reformulação da Astronomia nos finais do séc. XVI e início do seguinte.

Transversais - instrumentos
Brahe usou o sistema de pontos transversais (em ziguezague) nas graduações dos instrumentos introduzido por Johann Hommel (Homilius) ou por um tal Scultetus, mas B. R. Goldstein afirma que esta
escala oblíqua recua a Levi ben Gerson, o inventor do chamado "Báculo de Jacob". Permitia leituras com maior precisão. Na ilustração, valor seria 2.4 (Thurston, Op. cit., fig. 10.7). Ver ilustração numa edição de 1598 da Astronomiae Instauratae Mechanica de Tycho Brahe


Os métodos antigos serão ainda, como veremos, fielmente aplicados pelo célebre Copernicus, que os estendeu à teoria heliocêntrica. Para ele (ao contrário da opinião comum), nunca esteve em causa a negação da dualidade aristotélica das "naturezas": a etérea do movimento circular e a sublunar do movimento rectilíneo, corruptível. Uma mudança mais radical virá com Tyge (latiniz. Tycho) Brahe (1546-1601), cuja instrumentação melhorada e vasto acervo de observações de precisão inaudita optimizarão os métodos existentes, enquanto a sua argumentação provará a inexistência das esferas sólidas, nas quais a Astronomia se respaldava desde a Antiguidade.

"He observed and measured and did both more patiently and more accurately than any man before him. As regards specific points, he proved that a bright comet was several times as far away from the earth as the moon is, hence that comets were astronomical and not meteorological phenomena. He proved that the star of 1572 was a fixed star, hence that changes go on in the far-away “sphere” of the fixed stars. He determined the precession of the equinoxes to be 51 seconds of arc per year and showed it to be continuous; in short, he killed the “trepidation of the equinoxes.” He produced perfect positions for 777 stars, but he did not finish his catalogue." (Willy Ley, Watchers of the Sky: An Informal History of Astronomy From Babylon to the Space Age, Viking Press, 1964 (1963), p.92).


A necessidade de encontrar um novo enquadramento físico e o resultado das observações de Tycho levarão Kepler a ir muito além de Ptolomeu ao descobrir novos princípios para a descrição precisa dos movimentos dos corpos celestes, baseados em premissas completamente diferentes.


Regiomontanus escrevera um Epitome do Almagesto, que fora muito mais do que uma simples descrição resumida da metodologia do alexandrino, antes uma espécie de "recensão crítica". Depois elucida, optimiza e publica textos acerca das ferramentas essenciais. Primeiro vem a Trigonometria, alicerce de toda a computação, no seu De triangulis omnimodis ("Dos triângulos de todos os tipos"). Também calculou enormes tabelas de senos para cada minuto de arco. A disponibilização destas tabelas rigorosas será muito importante. Cálculos precisos não são possíveis sem tabelas trigonométricas precisas. E, com a precisão, as anomalias tornam-se mais óbvias. Depois vem a Astronomia Esférica, geometria e trigonometria dos círculos da Esfera Celeste, essenciais para a determinação das horas dos nascimentos, culminações e ocasos, conversão de coordenadas, resolução de componentes de paralaxe, etc. Enfim, não menos importante, para todas as aplicações astrológicas (limites das casas, direcções dos significadores, projecções, etc.). Assim sendo, calculou as Tabulae directionum. Ainda as Tabulae primi mobilis com soluções para triângulos esféricos rectângulo com intervalos de 1 grau, bem como problemas demonstrativos da sua utilização. Seguem-se mais ferramentas, como o seu Kalendarium ou as ambiciosas Ephemerides para 32 anos, com as posições diárias dos luminares e dos planetas, bem como os aspectos astrológicos (Colombo, na sua viajem histórica, fez-se acompanhar pelas Ephemerides, bem como pelo Almanach Perpetuum de Zacuto.). Entretanto, Bernhard Walther (1430-1504) foi um dos primeiros a fazer observações sistemáticas e precisas, continuadas pelo seu colaborador Johannes Schoner que as publicou e que serão depois usadas por astrónomos como Tycho.

Nicolaus Copernicus (Mikołaj Kopernik em Polaco; Niklas Koppernigk em Alemão, 1473-1543) propôs, como sabemos, um modelo heliocêntrico (ou melhor helioestático) que baniu a Terra do centro do Universo, todavia continuando a acreditar firmemente na circularidade dos movimentos e nas esferas "sólidas" do passado, deste modo recorrendo obrigatoriamente a epiciclos. A teoria não resultou de novas observações, foi antes o resultado intelectual de uma demanda por uma mais bela e harmoniosa (no sentido pitagórico e platónico) estruturação do sistema planetário. A extensa pesquisa de Owen Gingerich demonstrou que para a maioria dos astrónomos da época, o maior conseguimento da teoria de Copérnico foi a eliminação do punctum aequans, satisfazendo o antigo princípio estético de que os movimentos celestiais deveriam ser uniformes e circulares, ou explicados por componentes uniformes e circulares (The Book Nobody Read..., Walker & Company, 2004). O Ad lectorem (não autorizado) adicionado por Andreas Osiander (que acompanhou a impressão do De Revolutionibus...), declara que "o dever do astrónomo é registar, através de competentes e diligentes observações, os movimentos celestes, tendo depois que propor as suas causas, ou melhor, hipóteses, pois não se pode almejar conhecer as verdadeiras razões..." [trad. nossa]. Assim defendia a teoria enquanto modelo matemático, amenizando a profunda implicação filosófica que de facto representava. A intenção de Copernicus, que o próprio enfatizou, era preservar o movimento circular uniforme adulterado nos modelos ptolomaicos. Nesse desiderato técnico foi, segundo algumas opiniões, provavelmente influenciado (por vias sinuosas e ainda pouco conhecidas) pela chamada "Escola de Maragha", estabelecida na Pérsia do séc. XIII (vide Swerdlow, N., Copernicus and Astrology, with an Appendix of Translations of Primary Sources, Perspectives on Science, vol. 20, no. 3, MIT, 2012, p.372).

Todavia, o cenário coperniciano parece, apesar das consequências, ser pouco inovador ou eficiente. Convém relembrar que Copernicus não colocou o Sol no centro mas perto do centro e que, no seu sistema, a Terra não se movimenta como os restantes planetas (é o único que não tem epiciclo). Otto Neugebauer (On the Planetary Theory of Copernicus, 1968; .PDF, 665KB), sempre acutilante e matematicamente muito competente, desconfia da interpretação contemporânea prevalecente: "the ever increasing modern tendency toward hero worship on the basis of "ideas" and disrespect for technicalities". Para ele, "...the Copernican theory is only a formal transformation of the Ptolemaic theory." (p.103), pois todos os procedimentos adoptados têm a sua réplica no Almagesto. Acrescenta que o objectivo não foi abolir o aequans mas, tal como os antecessores Islâmicos (e.g., Ibn ash-Shatir, al-Tusi), demonstrar que um epiciclo secundário seria capaz de produzir o mesmo efeito da utilização do famigerado punctum. E o modelo tornou-se, na realidade, ainda mais complicado. Comenta, como alguns antigos matemáticos de vanguarda como Vieta (François Viète, 1540-1603) o haviam feito, que os procedimentos adoptados são arcaizantes, sempre procurando emular Ptolomeu. Como em todos os modelos "circulares", a determinação dos parâmetros planetários exigia 3 posições médias e 3 verdadeiras, necessárias para caracterizar o círculo ou órbita. Foi assim desde Apolónio até Kepler. Osiander (no já mencionado prefácio) acaba, segundo Neugebauer, por ter razão ao considerar estarmos somente perante um modelo cinemático e não uma explicação dos fenómenos. A matemática de Copernicus não é brilhante, há muitos erros, metodologias incoerentes e utilização de dados datados e imprecisos. Vale a pena seguir a detalhada exegese técnica de Neugebauer (todavia demasiado complexa para o típico historiador contemporâneo). Como maior contribuição de Copernicus, o grande historiador da Brown University assinalou a abertura do caminho para a determinação das dimensões absolutas do sistema planetário. Em síntese, sem Tycho Brahe e Kepler, nada de matematicamente relevante se teria extraído da teoria:

Modern historians, making ample use of the advantage of hindsight, stress the revolutionary significance of the heliocentric system and the simplifications it had introduced. In fact, the actual computation of planetary positions follows exactly the ancient pattern and the results are the same. The Copernican solar theory is definitely a step in the wrong direction for the actual computation as well as for the underlying cinematic concepts. The cinematically elegant idea of secondary epicycles for the lunar theory and as substitute for the equant - as we now know, methods familiar to a school of Islamic astronomers - does not contribute to make the planetary phenomena easier to visualize. Had it not been for Tycho Brahe and Kepler, the Copernican system would have contributed to the perpetuation of the Ptolemaic system in a slightly more complicated form but more pleasing to philosophical minds. (p.103)


Copernicus inseriu a seguinte nota de Plutarco (em grego no original)
na carta ao Papa Paulo III (prefácio do De Rev.):

"Outros pensam que a Terra está fixa. Mas o pitagórico Filolau diz que ela gira em órbita à volta do fogo, num círculo oblíquo à semelhança do Sol e da Lua. Heraclides do Ponto e o pitagórico Ecfanto atribuem movimento à Terra, não de maneira a sair da sua posição mas girando como uma roda do Ocidente para Oriente, à volta do seu centro" (As Revoluções dos Orbes Celestes, A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (trad.), Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª Edição, 2014).

O movimento axial era anteriormente visto como implausível (habitava-se "terra firma") e supostamente contrariado pelo movimento dos projécteis, como as setas. Não  prioritariamente por argumentos astronómicos. Celio Calcagnini, que conheceu Copernicus em Ferrara, sugere (de modo todavia vago) a rotação da Terra: "Quod Caelum Stet, Terra Moveatur". Na Índia, por exemplo, Brahmagupta (no tratado Brāhmasphuṭasiddhānta, 628 A.D.) declara que Aryabhatta defendia que a Terra executava um movimento de rotação axial, opinião que refuta. Segundo Giorgio Abettio, Schiaparelli acreditava que esta ideia era proveniente de fontes Gregas (History of Astronomy (trad, de Betty Burr Abetti), Abelard-Schuman, 1952, p.25). Como se sabe, a demonstração definitiva da rotação da Terra acontecerá somente em 1851, através da célebre experiência do Pêndulo de Foucault (Jean-Bernard Léon Foucault, 1819-1868), cuja alteração gradual no alinhamento determina que o planeta se desloca sob o plano de oscilação livre desse pêndulo. A experiência aconteceu no Panteão de Paris e utilizou um pêndulo com 67 metros de altura e, como peso, uma esfera de 28 kg.

Ecfanto, bem como o discreto Hicetas (que talvez seja o Nicetus Syracusanus também referido no livro de Copernicus), podem ter sido somente personagens dos diálogos de Heraclides. Mas há referências que parecem recuar a Theophrastus, ainda contemporâneo de Heraclides (v. Pythagoreanism, in: Stanford Encyclopedia of Philosophy), tratados como históricos na posterior doxografia. Heraclides do Ponto (Ponticus), c.390-c.310 a.C., colocou a hipótese da rotação diária da Terra sobre o seu eixo e, em muitas resenhas históricas, surge amiudadamente referido como proponente de soluções heliocêntricas. Segundo Bruce Eastwood (Heraclides and Heliocentrism: Texts, Diagrams, and Interpretations, 1992), não existe qualquer fonte documental que o corrobore: "Nowhere in the ancient literature mentioning Heraclides of Pontus is there a clear reference for his support for any kind of heliocentrical planetary position" (p.256). Ou seja, estamos perante mais um exemplo de repetição acrítica.

Copérnico manteve-se sempre "próximo" de Ptolomeu e da tradição geral. "A renovação da teoria cósmica consistia numa transcrição do sistema ptolomaico, copiando os dados e observações e atribuíndo-lhes outros nomes: aquilo a que se chamava "deferente de Marte" era agora chamada a sua 'órbita real'". (Pannekoek, Op. cit., p.193; trad. nossa). Manifesta excessiva confiança nos autores pretéritos e, por isso mesmo, propenso a aduzir complicações como a trepidatio (precessão alternadamente lenta e rápida, um equívoco da astronomia medieval), a que vai procurar responder complicando ainda mais o que já o era sem essa inexistência. A "renovação" e "simplicidade" do sistema eram fictícias. O seu livro revela um astrónomo tradicional, com ideias que acreditava já terem sido propostas, nada ousado. Mesmo tendo retirado a Terra da sua posição central, sentiu-se compelido a dar-lhe um paradoxal papel fundamental no seu novo sistema. Para este "funcionar" sem o punctum aequans ptolomaico, e em resposta ao problema da diferença de distâncias dos planetas no afélio e no periélio (posições 1 e 3 no esquema seguinte, respectivamente a posição mais afastada e a mais próxima do Sol), não é o luminar que está, na realidade, no centro do sistema e os planetas são ainda obrigados a percorrer um pequeno epiciclo cujo raio está relacionado com a distância do Sol ao ponto S. O centro é, entretanto, ocupado por esse ponto (S, no esquema seguinte), que é, pasme-se, o centro da órbita da Terra. Este estranho "Centro do Mundo" é, consequentemente, o centro das órbitas dos restantes planetas. Demais, o ano terrestre (o período de revolução da Terra) estava, no sistema, intimamente ligado com os movimentos dos dois planetas doravante inferiores (Mercúrio e Vénus). [i.e. Copérnico (Copernicus), não tirando todas as conclusões da sua escolha heliocêntrica, continuará a fazer passar todos os planos orbitais pela Terra, e consequentemente as linhas dos nodos (o que perpetuou as consideráveis dificuldades na comparação com as observações, por exemplo, das latitudes dos planetas interiores)].

Em resumo, os planetas orbitam o centro da órbita da Terra e não o Sol. Esta circunstância arrevesada compromete o que Copernicus afirma, no início do De Revolutionibus, quando argumenta que o lugar de tão proeminente astro (o Sol) deveria ser o centro do Universo. O sistema não é, efectivamente, heliocêntrico, apenas heliostático. (vide e.g., Pannekoek, Op. cit., pp.193 et seq.).

Centro do Sistema de Copérnico
O ponto S, e não o Sol, assinala o centro do Universo coperniciano; fonte: Pannekoek, A.,
A History of Astronomy, Op. cit., p.194


Copernicus fez uma síntese do sistema heliocêntrico de Aristarco com o aparato geométrico da astronomia de Ptolomeu, do qual nunca se afastou. No seu Comentariolus (1514), concorda com "os Antigos", quando estes afirmavam como seria absurdo se os corpos celestes não se movessem uniformemente em círculos perfeitos. Segundo Zdenek Kopal, Copernicus foi o último desses grandes 'antigos' - um companheiro espiritual de Hiparco ou Ptolomeu (Widening Horizons, Man's Quest to Understand the Structure of the Universe, Taplinger Publishing Co., 1971, p.52). Kopal acrescenta que algumas das ideias inovadoras dos ulteriores auto-denominados "copernicianos" deixariam Copernicus horrorizado! Mas, apesar de conservador, foi o primeiro a tentar essa síntese. Aí reside a sua estatura na História da Astronomia.

Kepler terá afirmado que Copernicus "nem sabia quão rico era", e que "mais tentou interpretar Ptolomeu do que a Natureza". De facto, esteve longe de desenvolver aquilo a que hoje habitualmente chamamos "Sistema Coperniciano" (o "sistema coperniciano" não era, de facto, exactamente aquilo que actualmente assim nomeamos) mas, em todo o caso, foi pretexto para uma alternativa que após desenvolvida viria a alterar a nossa imagem do Universo (vide Dreyer, J. L. E., Op. cit., 342 et seq.). Como A. Pannekoek reconhece (Op. cit., p.193), significou uma perturbação da mundividência que, com o disseminar da ideia, acabou por influenciar o pensamento moderno desde então, Entretanto, as tabelas Pruténicas (i.e. "Prussianas", em honra do duque da Prússia, protector do seu autor, Erasmus Reinhold), Tabulae prutenicae em Latim, publicadas em 1551 (reimpr. em 1562, 1571 e 1585) basearam-se nos métodos do De revolutionibus.

Sistema de Copérnico - Cellarius
O sistema de Copérnico (detalhe) na Harmonia Macrocosmica (lâmina 5), de A. Cellarius (1660)


O sistema foi defendido por Michael Maestlin (1550-1631), Thomas Hood (1556-1620) e Galileu Galilei (1564-1642), entre outros. Galileu será importante em diversas abordagens. Antes do italiano, um objecto em repouso era considerado como estando na sua situação normal na natureza. Surge então o conceito de 'Força' e de movimento uniforme. Contra os argumentos dos detractores da rotação da Terra, o sábio constatou que as aves e a própria atmosfera partilhavam a rotação e assim acompanhavam por inércia.
No Saggiatore ("Ensaiador"), Galileu declara que o "Livro da Natureza" se escreve em linguagem matemática. Mais tarde Newton estabelecerá as Leis do Movimento (v. infra).


Entretanto, em 1587, Tycho Brahe (1546-1601, metódico observador e catalogador) criou
uma interessante alternativa geo-heliocêntrica de "compromisso "entre os sistemas ptolomaico e coperniciano. A hipótese cosmológica de Tycho procurou concitar as vantagens da abordagem heliocêntrica, mantendo todavia a Terra fisicamente colocada no centro do Universo, apesar da desvantagem de a órbita de Marte ser obrigada a intersectar a do Sol. Como Brahe havia provado à saciedade, não havia qualquer impedimento físico pois a observação dos cometas e da nova de 1572 (Theodorus Beza, 1519-1605, teólogo Protestante e sucessor de Calvino, supôs que era uma nova "Estrela de Belém", anunciando a segunda vinda de Cristo) comprovavam que não existiam "barreiras" ou esferas sólidas que transportassem os planetas nas suas órbitas. Tycho conceptualizou um medium mais fluído do que as esferas. Galileu, adepto do heliocentrismo, ficará exasperado quando, ajudando a provar empiricamente a obsolescência do sistema ptolomaico (pois observou com o seu telescópio fenómenos que antes ninguém havia observado), não conseguirá todavia desacreditar o de Tycho (e suas imitações e derivados, como o de Nicolaus Reimers, conhecido como "Ursus", ou o de G. Battista Riccioli). [O sistema de Ursus (que Tycho acusou de plágio) deixava as estrelas fixas imóveis e fazia a Terra rodar no seu eixo, ao contrário do do Dinamarquês; outras diferenças: as estrelas fixas estariam a diversas distâncias e a esfera do Sol estava encapsulada na de Marte, não a intersectando, como acontecia no modelo de Tycho. O Fundamentum astronomicum de Reimers foi publicado em Estrasburgo em 1588]. As fases de Vénus, por exemplo, impossíveis no antigo modelo ptolomaico, estavam doravante naturalmente explicadas pois ambos os planetas a que agora chamamos "interiores" giravam em torno do Sol. Nas regiões Católicas, muitos astrónomos, nomeadamente jesuítas, adoptaram confortavelmente uma ou outra variante do sistema de Tycho.

No que diz respeito ao papel da Igreja enquanto suposto "entrave" à teoria heliocêntrica, Thony Christie (no texto previamente mencionado) esclareceu com propriedade:
"The Catholic Church only got sensitive about heliocentricity when in 1615, Galileo and Paolo Antonio Foscarini started telling it how to interpret the Bible, not a wise thing to do in the middle of the Reformation/Counter Reformation. Scholars were free to discuss or publish these models as long as they treated them hypothetically their actually scientific status at the time, and not as established fact. The suggestion of heliocentricity was never formally declared heretical, to claim otherwise is a myth. Galileo was not charged with heresy but with breaching a Church injunction not to hold or teach the theory of heliocentricity (as fact). He was found guilty of grave suspicion of heresy and not heresy, a completely different offense. Galileo in no way confirmed Copernicus’ result, he wasn’t able to. What results? Copernicus published a hypothesis, which was unsupported by the available empirical facts at the time."
 
Denuncia, adiante, o "modo hagiográfico" (the hagiography mode) e mitificador que assumem todos os comentários acerca de Galileu e da sua defesa do sistema de Copérnico:
"In the Dialogo [i.e. "Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo"] Galileo produces a lot of polemic and hot air but very few real arguments supporting the Copernican model, because he doesn’t really have any.". No referido Dialogo, Salviati (alter-ego do autor), argumenta em favor do sistema heliocêntrico.


ms. VOSS Q79 93v (Leiden)
Detalhe de ilustração do ms. Vossianus. Aratea (compêndio de conteúdos astronómicos, principalmente baseados do poema de Aratus) Carolíngia (séc. IX) que inclui textos e diagramas respaldados na astronomia de Martianus Capella e Plinius (o Velho)
[clicar na imagem para aceder a versão mais ampla]. A Terra está no centro, com a Lua um pouco abaixo à sua direita; note-se que Mercúrio e Vénus orbitam o Sol (à esquerda). A ilustração apresenta, através das órbitas excêntricas, os ápsides (pontos mais próximo e mais afastado da órbita) dos planetas, segundo Plínio. No caso de Mercúrio e Vénus, desenham-se esses círculos bem como os círculos heliocêntricos. (Leiden Universiteitsbibliotheek, Special Collections, ms. Voss. lat. Q.79, f. 93v). Esta cosmovisão será mais tarde equivocamente associada ao nome de Aratus, sendo assim identificada, por exemplo, no célebre atlas Harmonia Macrocosmica de 1660 (lâmina 8: "PLANISPHÆRIVM ARATEVM Sive Compages ORBIVM MVNDANORVM EX HYPOTHESI ARATEA IN PLANO EXPRESSA")


É verdade. Galileu não conseguiu avançar qualquer evidência tangível. As fases de Vénus, podiam ser facilmente explicadas. Por exemplo, recuando ao velho sistema expendido por Martianus Capella através do argumento teorético avançado no lib. VIII do célebre De nuptiis: “...eorum circuli terras omnino non ambiunt, sed circa solem laxiore ambitu circulantur” (“os seus [de Mercúrio e Vénus] círculos, de modo algum envolvem a Terra, mas circulam em torno do Sol num caminho mais amplo"), amiudadamente referido em inúmeras glosas (que criaram variantes) e representado em muitos diagramas na época Carolíngia, bem antes do "retorno" de Aristóteles e Ptolomeu. Capella não revela a origem do importante enunciado (vide Eastwood, Bruce S., Ordering the Heavens, Roman Astronomy and Cosmology in the Carolingian Renaissance, Leiden; Brill, 2007, pp.238-9; 288 et seq.). Riccioli, no séc. XVII, dizia que se tratava do "Sistema dos Egípcios" (atribuição foi academicamente relacionada com Macrobius no âmbito do seu comentário ao Somnium Scipionis), também o associando a Vitruvius, Beda, etc. Andreas Argolus, astrólogo e professor em Pádua publicou um tratado
(Pandosion sphaericum, 1644) e adoptou esse sistema. A atribuição a Heráclides do Ponto (Ἡρακλείδης ὁ Ποντικός), particularmente seguida pelos académicos no séc. XIX (e.g., T. L. Heath, Pierre Duhem) carece de evidências. Plínio, quando discutiu Vénus e Mercúrio (Nat. hist., II, 72–73) havia descrito ambos os planetas (de modo algo estranho) como estando "debaixo do Sol", oscilando relativamente a este mas "nunca o cruzando". Muito mais tarde teremos os já mencionados e apelativos sistemas cosmológicos coevos, de Tycho et al. Explicavam perfeitamente os fenómenos empiricamente observados.

A a teoria de Copernicus levantava novos problemas. Um destes era o da dimensão do Universo. Se a Terra orbitava em torno do Sol, a deslocação deveria, independentemente da estimativa do diâmetro da órbita, determinar um efeito de paralaxe nas estrelas observadas (devido às alterações da perspectiva nas diferentes posições da órbita). Este efeito não era observado (porque, como sabemos, as estrelas estão muitíssimo mais longe do que era concebível). Tal como o sistema ptolomaico, o novo sistema também não explicava as desiguais velocidades observadas nas diversas fases do percurso de cada um dos planetas (pois ainda não se imaginavam órbitas elípticas).

Sistema de Tycho Brahe
Diagrama do sistema de Tycho Brahe (Riccioli, Almagestum novum, Bolonha, 1651)


Brahe promoverá observações sistemáticas e precisas nos seus excelentes observatórios. Os seus antecessores contentavam-se em trabalhar com os dados das observações disponíveis, que chegavam do passado, fazendo observações somente quando inevitável e com instrumentos pouco precisos. Tycho alterou tudo isto. Construiu equipamentos de primeira qualidade, recorreu a metodologias rigorosas na observação, comparação e registo dos dados. Coligindo preciosa informação, desvelará as insuficiências do modelo prevalecente esbatendo a distinção entre as duas naturezas (sublunar e celestial), demonstrando que os cometas "atravessam" as supostas esferas (observou em particular o grande cometa de 1577) e determinando a ausência de paralaxe da "Nova Estrela" (Nova Stella) de 1572 em Cassiopeia, hoje chamada "Supernova de Tycho" (SN 1572). Este fenómeno extraordinário contradizia a imutabilidade aristotélica dos céus etéreos e incorruptíveis. Os fenómenos prodigiosos (cometas, etc.) eram até então explicados recorrendo a supostas "exalações" da atmosfera, coisas que aconteciam no contexto sub-lunar. Obviamente era um explicação errada. Todavia, excepto para os "resistentes" mais ardilosos, que recorreram a argumentos pseudo-teológicos de intervenções ad hoc da divindade (discussão de
Fr. António Teixeira  no seu Epitome das noticias astrologicas para a medicina, 1670, pp. 41-4; .PDF 498KB), nada podia escamotear as evidências: os céus também são palco de mudança e alterações. Não há duas naturezas distintas.


Johannes Kepler (1571-1630), com uma relação complexa com argumentos religiosos, astrológicos e, por vezes, com uma apetência matemática "neo-pitagórica", estudou as órbitas planetárias (baseado nos extensos dados observacionais de Tycho Brahe) e concluiu, a partir do esforçado estudo da órbita e Marte, leis que definitivamente as explicam, provando serem elípticas. Uma genial e absolutamente fundamental mudança de paradigma que ratificou o novo sistema heliocêntrico (mudança tão radical que Galileu nunca conseguiu acreditar nessas elipses, mantendo-se fiel à confusão dos desnecessários epiciclos, ver por exemplo a resposta que endossou a uma missiva de Federico Cesi em Junho de 1612). Segundo Z. Kopal: Most biographers of Kepler have been irritated by Galileo’s obtuseness in matters of cosmology, while the admirers of Galileo find it difficult to conceal their embarrassment. For although Astronomia Nova was on Galileo’s desk from 1609 (he received a ‘complimentary copy’ from Kepler), its contents seem to have been completely ignored by Galileo, for whom planetary orbits remained circles until the end of his life. (p.82). Galileu não foi capaz de abandonar um "cripto-copernicianismo" nem conseguiu aduzir argumentos relevantes e definitivos em favor de algumas ideias correctas que expendeu, por exemplo aquelas relacionadas com os movimentos da Terra. Apesar da sua descoberta do isocronismo do movimento de um pêndulo (1589), a simples e famosa experiência do Pêndulo de Foucault (que provou a realidade da rotação do nosso planeta) ainda demoraria quase três séculos.


A Órbita de Marte

O movimento de Marte no céu acontece do modo seguinte: quando a Terra e o planeta se aproximam num mesmo sector das suas órbitas, em função da posição do Sol, Marte é observado da Terra num movimento cada vez mais lento até parecer parar no céu (contra o fundo de estrelas). Após este momento estacionário, recomeça o seu movimento na direcção oposta (retrogradação), mas retorna ao seu movimento "normal" algum tempo passado após a oposição. Esta "laçada" é aparente é somente um efeito de perspectiva: a Terra é mais rápida e apanha e ultrapassa o planeta mais afastado do Sol. Uma dificuldade consiste no facto de que o intervalo entre duas oposições é variável (Ley, Op. cit., p.100 [trad. nossa])

O astrónomo Christen Sørensen (dito Longomontanus) tentou enfrentar, a pedido de Tycho, as complexidades matemáticas do cálculo desta órbita. Mas Kepler foi mais competente e persistente, tendo também a sorte de estarem reunidas duas condições: por um lado, a excentricidade relativamente forte da órbita de Marte (cujo comportamento praticamente irreconciliável com a antiga teoria determinou o enorme empenho no seu estudo), que colocou o matemático na trilha da utilização da oval e depois da elipse; por outro lado, a comparativamente fraca excentricidade da órbita terrestre. Como Z. Kopal resume, foi Kepler - não Copernicus - quem colocou o Sol no centro do Sistema Solar e descreveu as órbitas planetárias através de um modelo simples e exacto, com enorme alcance (Op. cit., p.66).

A Nova Astronomia (uma das mais extraordinárias obras científicas de todos os tempos, que expende duas das três Leis dos Movimentos Planetários; a terceira surge no Harmonices Mundi de 1618) é, como qualquer trabalho de Kepler, um exercício honesto e transparente, quase um diário científico das suas investigações nesses anos de 1602-1604. Ao contrário de Newton, explicou o processo, a metodologia, os erros e os recomeços, e reconhecia generosamente os contributos (algo em que Newton ou Copernicus foram sempre relutantes). E o que dizer de Galileu, sempre atento a honrarias e lucros?

Órbita elíptica
Como Kepler concluiu, um planeta move-se mais depressa na sua órbita quando mais perto do Sol e mais lentamente quando mais afastado. Na ilustração (com a excentricidade exagerada), planeta demora o mesmo tempo a percorrer as distâncias A-B e C-D. (Ridpath, I., Skywatching (Go series), Hamlyn, 1987, p.13)

As Leis de Kepler
- A 1ª Lei descreve as órbitas dos planetas em torno do Sol, numa órbita elíptica, com o Sol num dos focos;
- A 2ª Lei assegura que o segmento de recta que une o Sol a um planeta varre áreas iguais em intervalos de tempo iguais;
- A 3ª Lei indica que o quadrado do período de revolução de cada planeta é proporcional ao cubo do raio médio da respectiva órbita. Portanto, quanto mais distante o planeta estiver do Sol, mais tempo levará para completar a translação.

- Vídeo elucidativo das Leis de Kepler disponibilizado pelo Museo Galileo de Florença (narração em Inglês).


A velha cosmologia baseada nas esferas e em modelos geométricos vinculados à necessidade do movimento circular será descartada em detrimento de uma visão física, dinâmica. É o grande salto qualitativo! Na batalha contra os equívocos epistemológicos do passado (os "axiomas" do movimento circular e do movimento uniforme), Kepler revela-se a grande figura da Nova Astronomia. Não existindo esferas nem "compartimentos", o amplo espaço vai acomodar as órbitas elípticas explicadas nas suas três Leis. A segunda destas conhecerá diversas formulações, sendo que Newton utilizará mais tarde aquela que doravante prevalecerá (conhecida como "lei das áreas"): "Num referencial fixo no Sol, a recta que une o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais".

É curioso verificar a complexidade de uma época na qual um matemático tão influente como Kepler é também, numa das suas facetas, "not a mathematician of the modern, Leibniz-Newton kind, but a Ficino-mathematician, of the Neo-Platonist, Cabalistic type." (Tester, Op. cit., p.233).

 Kepler - Mysterium Cosmographicum              Kepler - harmonias
No Mysterium Cosmographicum (1596, adenda em 1621), num rasgo quase místico, Kepler procurou respostas integradoras relacionando os poliedros regulares teorizados no Timaios (os chamados cinco sólidos platónicos: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro) associados pela Física Aristotélica aos quatro elementos e ao quinto elemento incorruptível) com as órbitas planetárias, em busca do "Divino Plano". Encaixados e inscritos em orbes esféricos revelariam a base geométrica do Universo heliocêntrico. Há uma ressonância pitagórica mas Kepler estava a fazer algo mais: a articular a sua geometria com quantidades mensuráveis. Prezava ainda, talvez acima de tudo, as supostas Harmonias Musicais dos planetas, essência da "Divina Harmonia do Universo" (Harmonices Mundi, Linz, 1619). Uma música contínua "a várias vozes", perceptível pelo intelecto, não pela audição. Para Kepler e seus contemporâneos, o mundo, como as Sagradas Escrituras, é um livro que canta a glória de Deus. Estas consonâncias e proporçóes harmónicas inseriam-se, ao contrário das da tradição pitagórica, todavia em Kepler numa framework heliocêntrica.


Como Pannekoek resumiu, assiste-se, doravante, a uma nova metodologia científica (i.e. à verdadeira metodologia científica!) que se estende à generalidade das disciplinas:

"In Tycho Brahe’s and Kepler’s work the new method of scientific research is embodied — the method of collecting data from experimentand observation, and from them deriving rules and laws which form the body of science. They were not the only ones; at the turn of the century, in every field of knowledge, investigators appeared: Simon Stevin and Galileo studied mechanics, the laws of equilibrium and motion, Gilbert studied magnetism, Vesalius studied anatomy, Van Helmont studied chemistry, and Clusius studied botany." (Op. cit., p.242).

Com a Terra remetida para a sua nova e mais humilde condição, o edifício teórico aristotélico deixou de explicar fisicamente os fenómenos. Antes, os elementos procuravam o seu "lugar natural". Agora as teorias prevalecentes do peso e movimento eram insuficientes, precisava-se de uma nova Física que explicasse os movimentos da Terra e porque é que os seus habitantes não sentem a "estonteante" sensação da velocidade. O De Revolutionibus de Copernicus não apresentava respostas. Seria necessário percorrer todo um percurso até Newton (passando por Kepler) para responder a muitas questões e transformar a Astronomia de uma ciência de Geometria numa ciência da Física.

Aristóteles acreditava que qualquer corpo exigia uma força actuante contínua para perpetuar o seu movimento, e que somente poderia efectuar um único tipo de movimento de cada vez. A teoria é contestada por autores medievais. No início do século XIV, Jean Buridan afirmou que um corpo (e.g., um projéctil) não exigia a acção contínua e ininterrupta de uma força mas apenas um ímpeto ("impetus") inicial. Mais tarde, Galileu mostrou que, ao contrário do afirmado na doutrina aristotélica, os corpos de peso diferente caem à mesma velocidade. Também demonstrou que os corpos podem executar mais do que um movimento em simultâneo, e comprovou que o trajecto de um projéctil é uma curva (parábola) e não dois movimentos rectilíneos sucessivos. Mais tarde Newton estabelecerá as suas três Leis do Movimento, sendo as duas primeiras extensões das conclusões de Galileu. A primeira (a da inércia), também confirmada por Descartes, estabelece que um corpo perpetua o movimento ou a quietude a não ser que uma qualquer força actue sobre ele. Segundo Newton, dois corpos atraem-se com uma força cuja intensidade é inversamente proporcional ao quadrado da sua distância e directamente proporcional ao produto das suas massas. Foi o colapso da explicação aristotélica e a abertura de uma nova Física abrangente.

Brahe - noua stella
A "Nova Estrela" de 1572 em Cassiopeia, assinalada pela letra "I" (Brahe Tychonis [1573] Tychonis Brahe, Dani De noua et nullius aeui memoria prius visa stella, iam pridem anno à nato Christo 1572Hafniae, Impressit Laurentius Benedict)


Quem criou, ou capitalizou, o telescópio foram os ópticos holandeses Hans Lipperhey (c.1570-c.1619) e Sacharias Janssen (1588-ca. 1630). Também o praticamente desconheciso Jacob Metius. Em 1608, Lippershey (a grafia correcta é Lipperhey) regista a patente de um instrumento "para ver coisas longe como se estivessem perto". A técnica de polir lentes para óculos (os chamados "occhiali") já se praticava em Itália em finais do séc. XIII No séc. XV já se banalizara a utilização dos vidros colocados numa estrutura e pousados no nariz, com ainda usamos. Todavia, uma lente deste tipo não é um telescópio, que exige no mínimo duas lentes. A lente afastada deve ser convexa, como era a dos ochialli; a lente ocular, próxima do olho, pode também ser convexa (inverte a imagem) ou pode ser côncava. Há poucas referências fiáveis anteriores a Lippershey, que chamou kijker (observador) ou kijkglas ao novo equipamento, publicitando as suas vantagens no uso militar e naval, por exemplo.
A sua disseminação foi célere. Galileo Galilei (1564-1642) chamou à sua invenção (i.e. adaptação) perspicullum (um neologismo latino). Em Italiano é chamado cannocchiale. Em França também foi chamado "La Lunette de Hollande".

A designação óbvia ("telescópio") foi criada três anos depois por Giovanni Demisiani. O esboço telescópico da Lua feito por Thomas Harriot e datado de 26 de Julho de 1609 é, provavelmente, o primeiro desenho de um corpo telescópico, precedendo Galileu quase quatro meses (Kanas, Nick, Solar System Maps: From Antiquity to the Space Age, Springer/Praxis Publishing, 2024, p.146). Mas é Galileu quem inaugura a observação telescópica sistemática do céu. Descobre, em paralelo com Simon Mayr, lat. Marius (1573-1625), os quatro principais satélites de Júpiter (Medicea Sidera, como lhes chamará, os "Circulatores Jovis" de Hevelius; prevalecerão os nomes mitológicos escolhidos por Marius). Observa ainda as fases de Vénus e outros fenómenos (que, à maneira da época, vai divulgando em missivas "puzzle" com linguagem codificada, de modo a mais tarde defender a prioridade das suas descobertas; recorria-se à publicação de logogrifos e anagramas para salvaguardar a descoberta enquanto se investigava e confirmava). Galileu foi useiro e vezeiro neste método.

Um exemplo de Christiaan Huygens (1629-1695) é sobejamente conhecido. O planeta Saturno, na época o mais longínquo, era caracterizado como monosphaericus ou trisphaericus, pelo seu aspecto no telescópio. Huygens descobriu a natureza da sua verdadeira morfologia e utilizou um criptograma para divulgar a sua descoberta: "aaaaaaacccccdeeeeeghiiiiiiillllmmnnnnnnnnnooooppqrrstttttuuuuu". Era usual, como vimos, após descobrir algo que exigisse sequente prova e investigação, recorrer-se a um anagrama (transposição de letras), evitando que alguém "roubasse" a primazia da descoberta. O cientista anunciaria-a laconicamente sob a forma de anagrama cujo significado só ele conhecia. Quando fosse conveniente, desvelaria o segredo. Três anos depois, seguro da sua conclusão, Huygens o seu segredo: Annulo cingitur, tenui, piano, nusquam cohaerente, ad eclipticam inclinato ("É rodeado por um anel, fino, plano, que não o toca em qualquer sítio, inclinado com a eclíptica"). O seu tratado (Systema Saturnium) foi publicado em Julho de 1659 mas Huygens não manteve completamente em segredo a grande novidade, confidenciando e permitindo a revelação no ano anterior, num encontro da Académie de Montmor (Paris), v. Van Helden, A., "Annulo Cingitur": The Solution of the Problem of Saturn, JHA v (1974), 155-174.

Contudo, a "carreira" observacional de Galileu foi, como verificaram historiadores como Z. Kopal, de uma duração (surpreendentemente) curta: basicamente entre 1609 e 1611. Um trabalho breve, todavia muito importante (desaprovando a natureza etérea e incorruptível da natureza do 'éter' aristotélico). Galileu abraça a visão heliocêntrica, que não conseguirá vindicar, mas contribui com as suas observações para a pulverização da crença num universo imutável.

Cynthiae figuras aemulatur mater amorum ("A mãe dos amores [Vénus] imita as figuras [fases] de Cynthia (Artemisa, Diana, i.e. da Lua). Foi assim que Galileu, resolvido o anagrama, divulgou a sua descoberta telescópica, que provava que Vénus orbitava em torno do Sol. Os herméticos anagramas publicados nessa época eram a salvaguarda da prioridade de uma descoberta que entretanto se verificasse e confirmasse.

Também Giovanni Borelli (1608-1679) continuará a desenvolver princípios de observação e testagem das hipóteses científicas (vide Koyré, Alexandre: The Astronomical Revolution: Copernicus-Kepler-Borelli, Cornell University Press, 1973). A médio prazo, a utilização de telescópios apontadores, com tubos longos e pequenas aberturas (pouco brilho mas razoável ampliação), como instrumentos de medida, será importantíssima para a precisão das observações. O Italiano Francesco Generini (1630) teve a ideia de utilizar um fio de mira no plano focal, consequentemente o Inglês Gascoigne (c. 1640), e ainda Montanari (de Bolonha) introduzem a utilização do micrómetro (para aferir com rigor distâncias entre duas estrelas). Os Franceses Auzout e Picard, incorporam a utilização de círculos graduados nos telescópios. Deste modo, as medições das coordenadas tornam-se muito mais precisas (v. Abetti, Op. cit., p.126).


No século XVII, René Descartes procura dar resposta aos novos problemas cosmológicos que se apresentam. Concebe a primeira formulação moderna das Leis da Natureza e de um princípio da conservação do movimento. A cosmologia de Descartes, inovadora, é descrita de um modo mais burilado nos seus Principia Philosophiae (1644). A teoria pressupõe um universo repleto, um plenum de matéria. A matéria e o espaço estão interligados (são essencialmente a mesma coisa) e obedecem a um conjunto de leis de movimento. O Universo é constituído por vórtices contíguos, gigantescos redemoinhos. As particulas movimentam-se, quando uma se desloca outra ocupará o seu lugar. Tudo está ligado, o Sol, menos denso, ocupa o centro de um vórtice, os planetas são mais pesados e perpetuam um movimento circular em torno do Sol. O plenum de matéria líquida de Descartes é que determina o movimento dos corpos, que de outro modo seria rectilíneo (e.g., os cometas movimentam.se em linha recta entre dois vórtices, sendo a órbita somente inclinada se entrarem num destes turbilhões). Abre-se a inovadora possibilidade de outras estrelas serem sóis e também centro de outros sistemas. Se o vórtice de uma estrela definhar (letra "N" na gravura seguinte), o astro pode caír num vórtice vizinho. Se aí permanecer torna-se um planeta. Caso se movimente para outro, passa a ser um cometa. Esta teoria engenhosa fascinou e contribuiu para abrir perspectivas cosmológicas futuras. Mas não prevaleceu.

Descartes considera três substâncias: a divina (eterna, perfeita e infinita. i.e. Deus), a substância pensante finita e dependente (res cogitans) e, finalmente, a matéria (res extensa). A Extensão é a característica essencial da matéria. A característica essencial ou atributo dos corpos é a extensão, quer dizer, o estar no espaço, com suas modificações ou modos: a quantidade, a forma e o movimento. Como consequência disso, os corpos submetem-se à quantidade e podem ser explicados em termos mecanicistas e a filosofia que os explica possui carácter obviamente matemático. Num argumento de tipo escolástico, o filósofo concluiu que uma vez que um 'atributo' somente existe como atributo de uma qualquer substância, não pode existir 'extensão sem matéria', ou seja, não pode haver vácuo. Em resumo, só havia um tipo de espaço e um tipo de matéria. O espaço não é variável em densidade, nem o é a matéria. Conclui que espaço sem matéria - um vácuo - seria conceptualmente absurdo. Contudo, os cartesianos podiam explicavam o estado presente mas somente muito raramente podiam antecipar ou prever o posicionamento futuro dos corpos celestes, algo que a Física Newtoniana permitirá.

Descartes - Principiorum...
Na explicação cartesiana, cada estrela estava rodeada por um vórtice no éter. Na gravura, o percurso de um cometa de um vórtice para o seguinte, enquanto viaja pelo Universo (Principiorum Philosophiae, Pr. III)

 Tourbillons
Os vórtices ou "tourbillons": o sistema Solar está representado no centro e inclui os orbes dos planetas. Os restantes rodeiam outras estrelas "fixas": ilustração representa ainda dois cometas. (Nicolas Bion, L'usage des globes celestes et terrestres, et des spheres, suivant les differens systemes du monde; précedé d'un Traité de cosmographie, 1700). [Clicar para versão completa c/ maior definição].


Mas como Sir Edmund Whittaker explicou (From Euclid to Eddington: a Study of the External World, Dover, 1958, pp.11-2), existia uma teoria contemporânea rival, inspirada por Pierre Gassendi, religioso que leccionava no Collége de France. Gassendi devotou imensos esforços a tentar provar que a fé Católica não era incompatível com a filosofia Epicurista. Em oposição ao plenum cartesiano, defendeu a teoria de átomos movimentando-se no vazio, que Epicuro (c. 300 a.C.) havia (supostamente) adoptado de Leucipo e Demócrates (c. 400 a.C.). De acordo com a teoria, os elementos últimos da matéria são pequenos corpúsculos indivisíveis, variáveis no tamanho e na forma, mas não na sua constituição. A importância da perspectiva de Gassendi reside, em grande parte, no facto de ter sido adoptada por Newton. Uma perspectiva "atomista" e um espaço absoluto. Curiosamente, no século XIX, com a constatação do movimento ondulatório da luz, os físicos reabilitarão uma espécie de "plenum" na substância do éter. Como o estro de Lord Balfour referiu: "they invented the aether in order to provide a nominative for the verb ‘to undulate’" (Whittaker, Op. cit., pp.13-4)


Por volta de 1660, assistimos à fundação de diversas sociedades científicas. Nestas, ideias eram debatidas, novas experiências propostas e organizadas expedições. Duas das novas sociedades, a Royal Society, fundada em 1660, e l'Académie royale des sciences, fundada em 1666, dominaram o panorama europeu. Entre nós, a Academia Real das Ciências de Lisboa, a primeira com enfoque decisivamente científico, foi fundada em 24 de dezembro de 1779 com beneplácito da rainha D. Maria I. Teve como principal mentor o 2º Duque de Lafões e como primeiro secretário o Abade Correia da Serra. A sua génese aconteceu no Palácio do Grilo, em Lisboa. Com o lema Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria ("Se não for útil o que fazemos, vã é a glória.") continua a funcionar enquanto Academia das Ciências de Lisboa.

Academie Royale
Colbert, o fundador, apresenta ao rei Luís XIV (o "Rei-Sol") os elementos da Academia (pintura de Henri Testelin, c.1667, Versailles)

Creti - La Luna
La Luna (Donato Creti, 1711), A série "Osservazioni Astronomiche" foi comissionada pelo conde Luigi Marsili para oferecer ao Sumo Pontífice e estimular a instalação de um observatório pela Igreja, que em breve Clemente XI fará inaugurar em Bolonha. As oito telas de pequeno formato representam os corpos celestes como observados por telescópio; a série percorre os planetas então conhecidos e ainda inclui uma tela representando um  cometa (Mvsei Vaticani; inv. 40433)


Em pleno século XVII permanecia a dúvida acerca da natureza da força que impulsionava o movimento dos corpos celestes. Seriam turbilhões matéricos colidindo, análogos aos de Descartes? Kepler acreditava numa energia 'magnética' que emanava do Sol. Foi influenciado por uma teoria publicada no De magnete (1600) por William Gilbert, que especulava que a Terra se comportaria como um gigantesco íman esférico, explicando assim a queda dos corpos e o comportamento da bússola. Em 1674 o prolífico Robert Hooke, ligado à Royal Society, publicou as suas influentes "suposições". A primeira propunha que os corpos celestes possuiam uma força atractiva que actuava não somente nas suas diferentes partes mas também sobre os outros corpos celestes. A correspondência entre Hooke e Newton demonstra que, em 1679, o primeiro compreendia melhor e estava mais receptivo à ideia abrangente da 'gravidade'. Essa "força atractiva", extensão da "filosofia magnética" de Gilbert e Kepler torna-se influente. E Hooke argumentou, numa palestra em 1674, que todos os corpos celestes possuem um poder de atracção ou "gravitação" na direcção do próprio centro, que lhes garante a morfologia e estrutura e também actua sobre os outros corpos que caem within the sphere of their activity ("na sua esfera de influência"). Uma sugestão auspiciosa. Mas será
Newton (1642-1727), entretanto motivado, a conseguir resolver matematicamente, em três ou quatro anos, o problema das órbitas elípticas e a codificar matematicamente o importante avanço. Investigará as propostas de Hooke e ratificará a conclusão sugerida de que toda a matéria, desde uma pedra a um planeta, exerce esta misteriosa força, tudo dependendo do tamanho dos corpos e do quadrado inverso da distância, concluíndo que a Lei das Áreas de Kepler (a segunda) era uma consequência da acção de forças centrípetas.

Voltaire, nas suas "cartas escritas de Londres" (Lettres philosophiques ou Lettres anglaises, publ. 1734), comparou, com a sua habitual argúcia, as explicações cartesianas (ainda comuns em França) com as newtonianas, já aceites na Inglaterra, que serão vindicadas (v. Quatorzième Lettre, da edição de F. A. Taylor (Basil Blackwell, 1965), .PDF, 279KB)..

Em plena revolta das colónias americanas, Thomas Paine (no seu "incendiário" panfleto Common Sense, de 1776), utilizou ideias e metáforas de inspiração newtoniana, prática comum nos precursores modernos da Democracia ("democrata", no contexto, tinha conotação pejorativa) e do Liberalismo (um anacronismo pois termo somente se começa a usar no século XIX). defendeu a Revolução Americana (que no início era mais um protesto do que uma manobra independentista) num discurso repleto de referências newtonianas, e.g., “In no instance hath nature made the satellite larger than its primary planet.”. Paine defendia a igualdade de todos os homens (ao contrário dos que defendiam que a representatividade dependia da propriedade e dos bens; Kant, por exemplo, chegou a sustentar que empregados e mulheres, por dependerem de outrém, careciam de personalidade civil), e era obviamente contra a monarquia (ao contrário de Hobbes que, apesar do pensamento de vanguarda, acreditava na necessidade de uma garantia de "coesão" contra a anarquia, na figura de um soberano; ou de Locke que somente salvaguardava que os poderes de um monarca deviam ser limitados). Paine foi uma figura interessantíssima e "inclassificável". Os princípios newtonianos terão uma influência decisiva tanto no Iluminismo como na posterior filosofia Positivista, no desdém pelas metafísicas e no primado da articulação entre observação e razão. As "ondas de choque" newtonianas estenderam-se a outras áreas, por exemplo às supostas "leis" da Psicologia (respaldadas em estatísticas) ou à Economia (Adam Smyth no seu The Wealth of Nations (1776) defende a não intervenção nos mercados, de modo a que os preços se acomodem "naturalmente").


Neste resumo incompleto, abordámos momentos fundamentais do percurso:
o De Revolutionibus de Copernicus e os seus defensores, e.g., Rheticus, Regiomontanus, as observações mais precisas de Tycho (compiladas nas Tabulae Rudolphinae, as novas tabelas de Kepler dedicadas ao Imperador Rudolfo II), as Leis de Kepler que definem órbitas elípticas e não circulares, o desenvolvimento da observação equipada, bem como o desenvolvimento das leis do movimento e da inércia por Galileu e, culminante, a Gravitação Universal de Newton. A admiração pelo génio ficou grafada no "couplet" de Alexander Pope:

Nature and nature’s laws lay hid in night.
God said, Let Newton be!, and all was light.

De facto, as Leis do Movimento de Newton constituem os axiomas fundamentais da Mecânica:
1. Uma partícula move-se em linha recta com velocidade constante, a menos que compelida a alterar esse movimento por forças que actuem sobre ele.
2. Quando uma força actua sobre uma partícula, o movimento dessa partícula muda na direcção em que a força actua, e a aceleração da partícula é proporcional à força.
3. Toda e qualquer acção determina uma reacção igual e oposta, i.e. as forças mútuas de quaisquer duas partículas uma sobre a outra são iguais e opostas ao longo de uma mesma linha recta.

Órbita - forças
Um planeta em dois pontos da órbita. O vector "v" da velocidade é constante mas altera sistematicamente a direcção devido à aceleração "a" na direcção do Sol, no centro (Wyatt, Stanley P., Principles of Astronomy, Boston, Allyn and Bacon, 1964, fig. 7.7:1)

Não menos importante foi a evolução da tecnologia e a precisão incrementada nas observações. No início do séc. XVII surgem as tabelas de logaritmos, que muito facilitavam os cálculos (John Napier em 1514, Henry Briggs, que as adaptou ao sistema decimal e Adriaan Vlacq, que as completou e publicou em 1628 com a assistência de Ezekiel de Decker).

Numa interessante aplicação da nova dinâmica, o Dinamarquês Ole Rømer (1644-1710), trabalhando no Observatório de Paris, verificou um desfasamento na observação dos eclipses das principais luas de Júpiter (particularmente nos da mais próxima do planeta, Io), relativamente às rigorosas previsões de G. D. Cassini, o director do observatório. Mostrou que a velocidade da luz, sendo enorme, era finita (a velocidade era tradicionalmente considerada infinita, algo "instantâneo", e nem sequer ponderada até essa época). O método: os eclipses dos satélites de Júpiter eram observados a partir da Terra adiante do timing previsto matematicamente quando o planeta (e os seu cortejo de "luas") estava mais próximo mas mais tarde do que o timing computado quando Júpiter se encontrava mais distante. Rømer concluiu logicamente que a luz demorava mais a chegar quando o planeta se encontrava no ponto mais afastado da sua órbita e o inverso quando estava mais próximo. Em 1676 extrapolou a velocidade utilizando o valor da Unidade Astronómica aceite na época (a média entre o afélio e periélio da Terra, ou seja, entre o ponto mais afastado e o mais próximo da órbita em torno do Sol). Chegou a um valor equivalente a cerca de 200,000 km/seg. (2/3 do real). Provou assim que esta velocidade era finita. (Segundo alguns especialistas, e.g., Jan Teuber, Ole Rømer og den bevægede Jord – en dansk førsteplads? (2004), o próprio Rømer nunca publicou os resultados e a extrapolação foi feita por outros autores, nomeadamente por C. Huygens, a partir dos dados coligidos por Rømer)

Bibliograficamente, a "trilogia" fundamental da chamada Revolução Científica é constituída pelo De revolutionibus orbium coelestium de Copernicus (1543), pela Astronomia Nova ΑΙΤΙΟΛΟΓΗΤΟΣ seu physica coelestis, tradita commentariis de motibus stellae Martis ex observationibus G.V. Tychonis Brahe de Kepler (Heidelberg, 1609) e pelos Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica de Newton (1687).

Sir Isaac Newton - Principia
Página de título da primeira edição (1687) dos Principia (Philosophiae naturalis principia mathematica; fonte: St Andrews University Library; For QA35.P8)
.

O enorme Newton era extremamente complexo. Segundo John Maynard Keynes (o célebre filósofo e economista), que teve acesso ao seu espólio, foi "O Ultimo dos Mágicos" (tradução do manuscrito, base do texto utilizado nas conferências do Trinity College e Royal Society Club, 1936; trad. João Zanetic, .PDF, 1.91MB). "Obcecado" por assuntos místicos, alquímicos e de cronologia bíblica. Acreditava também que Pitágoras já detinha um conhecimento abrangente da mecânica do Universo, que transmitiu de modo encriptado. Newton personifica uma época de transição, paralelamente apto a descodificar as "verdades ocultas" na Natureza e nas Escrituras. Vide, por exemplo, Karin Figala, Newton's Alchemy, in The Cambridge Companion to Newton, ed. I. Bernard Cohen and George Edwin Smith, Cambridge University Press, 2004, 37; Josephson-Storm, J., The Myth of Disenchantment: Magic, Modernity, and the Birth of the Human Sciences. University of Chicago Press, 2017, pp. 43 et seq., Ch. 2, passim). Não esqueçamos que o próprio Robert Boyle (1627-1691), um dos fundadores da Química, também foi um alquimista. [A Alquimia tradicional, com o seu labiríntico simbolismo e literatura repleta de metáforas e complexas imagens, era a demanda da chamada Pedra Filosofal (para almejar a Crisopeia, a transformação dos metais vis em metais nobres, e da Panaceia ou "elixir da vida", promotor da saúde). Uma prática do âmbito da Filosofia Natural que estabelecia uma hierarquia da matéria e se fundamentava na ideia de "gestação" (análoga à dos seres vivos) dos minerais e metais, que aconteceria no seio da Natureza e os faria evoluir no caminho da perfeição plena (e.g., os metais plenamente maturados seriam sempre metais nobres), bem como na correspondência Macroscosmo-Microcosmo (Quod est inferius est sicut quod est superius). As operações alquímicas (que em conjunto constituiam a Magnum Opus) eram faseadas e enalteciam processos como a destilação e o isolamento de uma substância primordial ou "quitessencial", a da Criação. Respaldava-se nas polaridades (ou complementaridades) e na ideia de aperfeiçoamento que o alquimista, emulando a divindade, precipitava ou acelerava, ajudando a Natureza no seu trabalho e aperfeiçoando-se espiritualmente em simultâneo. De resto, os elementos e os princípios dicotómicos e complementares do Mercúrio e do Enxofre (Sulfur) (interpretados simbolicamente) estão na sua base, bem como a cristalização no "corpo" (o Sal). A tria prima referida por Paracelsus. Encontra-se na Meteorologica (lib. III) de Aristóteles referência à origem dos minerais a partir de um "vapor aquoso" (da Água) e de um "fumo terroso" (da Terra), que foram ulteriormente associados nos textos da tradição hermética, nomeadamente os atribuídos a Geber (Jābir ibn Ḥayyān, suposto autor do séc. VIII), aos dois princípios "consagrados", já referidos. Acresce que já em Aristóteles, expurgada da 'forma' a matéria-base é sempre a mesma, uma matéria primeva. O filósofo postulava a já mencionada ideia de maturação e aperfeiçoamento operada no seio da natureza.]


No século XVII, novos princípios filosóficos substituirão a tradicional doutrina aristotélica. Dois nomes se destacam na proclamação dos novos métodos da Ciência: Francis Bacon e René Descartes. O primeiro publicará em 1620 (com o eloquente e revelador título de Novum Organon, que evoca e afirma renovar o ponderoso conjunto das obras da lógica aristotélica), uma resoluta defesa da experimentação e pesquisa como alicerces únicos da Ciência e da Filosofia. O segundo destacará o princípio crítico e a dúvida metódica (avançando através de um processo que tem como regras: evidência, análise, síntese, enumeração).

Em Portugal...

Como o Prof. Henrique Leitão explicou nos ensaios Sphaera Mundi e O debate cosmológico na "Aula de Esfera" do Colégio de Santo Antão (in: "Sphaera Mundi: A Ciência na Aula de Esfera...", Biblioteca Nacional de Portugal, 2008), a célebre "Aula de Esfera" foi o ponto de entrada em Portugal de muitas novidades, constituíndo exemplo singular no panorama da história da Ciência portuguesa, pois nenhuma outra instituição de ensino era, nessa época, tão internacional. Especifica: "assuntos tão importantes como o telescópio e as extraordinárias observações que o seu uso permitiu, os debates acerca do ordenamento cosmológico do mundo, as ideias de Galileu, novas técnicas matemáticas, como por exemplo o uso de logaritmos, etc., tiveram no Colégio de Santo Antão a sua porta de entrada em Portugal. Outros assuntos — a Estática e a Mecânica teórica, a física de algumas máquinas simples, a Óptica geométrica — parecem ter tido na «Aula da Esfera» o seu local mais importante de ensino e de aplicação em Portugal — se não mesmo o único — pelo menos até meados do século XVIII (p.20). Consequentemente, será por aí que o debate cosmológico do século XVII entrará no discurso científico entre nós (p.27 et seq.).

O paradigma do século XVII será "mecanicista". Existiam mecanismos cada vez mais complexos e a "filosofia mecanicista", também conhecida como "corpuscular" ganhava adeptos (e.g., Gassendi, Boyle, Huygens, Newton). Concebe-se a constituição da matéria (em oposição às teorías físicas aristotélicas) segundo uma inspiração atomista, adaptada às leis deterministas da mecânica de Galileu e Newton. Sustenta-se que as características dos corpos e seus fenómenos se explicam pelos movimentos de partículas (indivisíveis ou não, segundo os autores): os corpúsculos ou átomos.

Newton ficará fascinado pela cosmologia cartesiana e será somente através dos estímulos das inovadoras sugestões de Hooke e da verificação das já conhecidas Leis de Kepler que avançará do equivoco do plenum cartesiano para a concepção de um Universo "espaçoso" que obedece à gravitação (a mútua atracção entre os corpos celestiais, como Hooke supunha), doravante com carácter universal. As Três Leis de Newton (base para o entendimento do comportamento estático e dinâmico dos corpos) permitirão explicar os fenómenos do Sistema Solar, as marés, até prever o retorno de um cometa que celebrizará o influente Edmond Halley, que "decifrou" a sua periodicidade (Halley fez observações meteorológicas e magnéticas, mapeou marés e procurou explicar a direcção dos ventos e as monções como consequências da rotação terrestre, publicando as suas conclusões em 1686). A aberração da luz (provocada pelo movimento orbital da Terra, de que constitui prova ou evidência) e a nutação (que se deve a uma pequena oscilação periódica do eixo de rotação da Terra) devem ser tidas em conta para obter medições astronómicas correctas e efectivamente precisas: estas duas descobertas fundamentais devem-se a James Bradley (1692–1762), que foi Astronomer Royal a partir de 1742). Assim, tornou-se possível medir com aproximação na ordem dos segundos de arco (1" é uma quantidade muito pequena, representando 1/100mm num círculo com 2 metros de diâmetro).

A Mecânica é a ciência das forças e movimentos. Newton publicou os seus Principia e compatibilizou a Mecânica Terrestre e a Mecânica Celeste, na sua Teoria da Gravitação Universal. Pressupunha assim a falência definitiva do modelo aristotélico das duas naturezas distintas (a dos céus incorruptíveis e a do mundo sublunar, dos quatro elementos, da geração e corrupção). Quando publicado, o trabalho de Newton foi recebido com hostilidade no meio filosófico. A ideia de uma espaço e tempo absolutos e a "acção à distância" era entendida como uma "qualidade oculta", bem como a acção da gravitação no espaço vazio, algo que se antagonizava com o plenum cartesiano ainda em voga. Mas gradualmente será aceite.

Newton começou por adoptar, no que diz respeito à dinâmica planetária, a perspectiva cartesiana. Em relação às 'estrelas fixas', manteve uma postura "teologicamente correcta" e inflexível, deixando-as de fora das suas investigações. Deus criou-as como um cenário ideal, de simetria, eventualmente intervindo para as manter assim. Newton tinha estas complexidades. Mas tarde, em 1802, Herschel, ao verificou que componentes de estrelas duplas previamente observadas por si, tinham entretanto alterado as suas posições. Seria a gravidade a força actuante? Somente em 1827 é que o Francês Félix Savary conseguiu confirmar que as duas estrelas do sistema Xi Ursae Majoris se moviam em órbitas elípticas em torno do centro comum de massa. Entretanto, a observação dos enxames ou aglomerados também conduzia à conclusão lógica do processo pelos quais estes se formavam, a saber: a força gravitacional. (v. The Cambridge Illustrated History of Astronomy, Op. cit., p.235).


Orrery - G. Adams

Modelo mecânico do Sistema Solar ("Orrery"). O primeiro destes 'planetários' foi, provavelmente, inventado sob o patronato de Charles Boyle ("4th Earl of Orrery"), daí o nome em Inglês. Demonstravam, de uma perspectiva externa, as revoluções dos planetas e, por vezes, dos seus satélites. Um Tellurium era um modelo "abreviado" que incluia somente o sistema Sol-Terra-Lua. De um modo interessante, estes mecanismos traduzem a percepção setecentista de um Universo enquanto mecanismo racionalmente concebido. (Detalhe do "Grand orrery" (Wh.1275), construído por George Adams, c.1750; Whipple Museum of the History of Science, Cambridge)


O matemático francês Pierre-Simon, Marquês de Laplace (1749-1827) foi quem deu o nome de Mecânica Celeste ao conjunto das aplicações da teoria da gravidade. Mas como funciona realmente esta força no espaço? Será necessário esperar por Einstein. Contudo, trata-se de uma época de progressos incomparáveis. O génio matemático de Johann Carl Friedrich Gauss (1777-1855), o mathematicorum princeps que abriu tantos novos campos de investigação matemática (contribuindo especificamente para a Astronomia com importantes trabalhos de mecânica celeste e teoria da determinação de órbitas). Também as observações e descobertas de William Herschel (o ocasional descobridor de Úrano que fundou a astronomia sideral, catalogando os objectos do céu profundo e prescrutando a estrutura da Galáxia em termos de distribuição das estrelas), o contributo importantíssimo dos notáveis trabalhos de, por exemplo, Euler, Bessel, Lagrange e F. G. W. Struve.

William Heschel foi um dos mais notáveis e incansáveis observadores de sempre. Foi acompanhado pela sua irmã Caroline e seguido pelo seu filho John Herschel. E sabemos como este trabalho podia significar "immensi labores et graves vigilie", como já se queixava Paolo Toscanelli no século XV.

Leonhard Euler (1707-1783) parece ter sido o primeiro a concluir que, como consequência da Lei da Gravitação Universal, um planeta não descreve "rigorosamente" uma elipse em torno do Sol mas ambos descrevem elipses em torno do centro de massa comum, o mesmo acontecendo com os planetas e seus satélites.

Friedrich Wilhelm Bessel mediu a primeira medida da paralaxe trigonométrica de uma estrela, 61 Cygni, efectuada entre 1836 e 1838), chegando ao resultado de que a estrela estaria a 10,3 anos-luz do Sol.

Joseph-Louis Lagrange estudou o "problema dos três corpos", envolvendo a interacção Terra-Lua-Sol, os movimentos dos satélites de Júpiter e é conhecido pelos chamados "Pontos de Lagrange" (ou "pontos de libração", que são pontos de equilíbrio para objectos de pequena massa sob a influência gravitacional de dois corpos massivos em órbita).

A presença de matéria cósmica foi pressentida por Halley por volta de 1720 mas a primeira formulação científica de uma teoria de absorção interestelar deve-se a F. G. W. Struve em 1847. Struve baseou-se no mapeamento das estrelas em diferentes partes do céu levada a cabo por W. Herschel. O padre Angelo Secchi fez comentários tempestivos acerca da existência destas "massas", que interpretou correctamente como "nebulosidades escuras", em 1877 (v. Abetti, pp.292-93). Edward Barnard confirmará fotograficamente estas presenças e, em 1919, publicará o artigo "On the Dark Markings of the Sky".

Wright - An Original Theory or New Hypothesis of the Universe
Demócrito de Abdera (456-370 a.C.), em consonância com as suas ideias filosóficas, considerava a Via Láctea um conjunto de estrelas ténues e não uma nuvem ou um reflexo (antecipando-se dois milénios a uma explicação da sua natureza). Thomas Wright (1711-1785), que influenciará Kant e Lambert, foi um dos primeiros a sugerir um Universo hierarquicamente estruturado. Nesta ilustração, descreveu a Via Láctea como um de infinitos "sistemas estelares". (An Original Theory or New Hypothesis of the Universe, London, H. Chapelle, 1750)


Assim que se compreendeu que o Sol era uma estrela como tantas outras, astrónomos e filósofos começaram a procurar explicar a origem ou formação dos planetas como algo intimamente relacionado com essa estrela. Laplace, na sua
Exposition Du Systeme Du Monde (1796) contemplou uma hipótese visionária para a origem do Sistema Solar; na chamada Hipótese Nebular (já sugerida pelo filósofo Immanuel Kant), o sistema evoluíra a partir de uma massa globular de gás incandescente revolvendo em torno de um eixo de rotação atravessando o seu centro de massa. Esfriando, contraiu-se. Anéis sucessivos saíram de sua periferia e, finalmente, condensaram-se para formar os planetas, enquanto o Sol representava o núcleo central remanescente. A hipótese constituía uma explicação racional para os movimentos planetários, que se situam aproximadamente num mesmo plano e se desenvolvem na mesma direcção. Segundo W. Ley (Watchers of the Sky: An Informal History of Astronomy From Babylon to the Space Age, Viking Press, 1964 (1963), p.461), as duas propostas eram, em rigor, diferentes: Kant postulava uma matéria original informe e caótica; a hipótese de Laplace começava com uma nebulosa primordial com uma concentração, um "sol", no seu centro. Todavia, os autores do séc. XIX associaram ambas as teorias: "Kant-Laplace".

Mais tarde, já no séc. XX, James Jeans (1877-1946) elaborou uma teoria (que já tinha antecedentes) muito dinâmica, na qual um encontro entre o Sol e uma estrela "intrusa" que passava nas imediações resultou, devido à perturbação gravitacional, na libertação de uma "língua" de matéria que se estendeu do Sol. Após o afastamento da estrela, essa matéria fluida separou-se e cada uma das porções tornou-se gradualmente num planeta. A teoria revelou debilidades e foi sendo abandonada.

Swedenborg - Prodromus Principiorum...
A origem do Sistema Solar (através da explosão de um proto-Sol), em diferentes etapas, segundo
Emanuel Swedenborg. Conhecido e assumindo-se como místico dialogante com anjos e demónios, a sua obra Prodromus Principiorum Rerum Naturalium... (Leipzig & Dresden, F. Hekelium, 1734) é, todavia, totalmente baseada nos princípios científicos rigorosos do empirismo


A hipótese prevalecente de Laplace foi mais tarde adaptada às "nebulosas espirais" (os objectos a que hoje chamamos "galáxias") entretanto observadas com maior detalhe estrutural através de telescópios cada vez mais potentes e que se acreditava serem sistemas planetários em potência, numa fase da sua formação. Outras teorias surgiram entretanto mas tornava-se evidente que nas "nebulosas espirais" se enfrentava uma escala muito maior, mesmo não se sabendo ainda quão vasta. Surgiram opiniões no sentido de considerar estas espirais (particularmente a "nebulosa" de Andrómeda) como verdadeiros "universos" independentes.

 O telescópio de Lord Rosse    M51 - desenho de Lord Ross
Conhecida gravura do "Leviatã" de Parsonstown (Birr Castle, Irlanda), enorme reflector construído por William Parsons ou Lord Rosse (3rd Earl of Rosse) em 1845 (aqui retirada de The Story of the Heavens (Second Edition), Cassell & Company, 1886) de Sir Robert Stawell Ball). No desenho da direita, Lord Rosse representou a morfologia espiral da "nebulosa" M51, em Canes Venatici
(Phil. Trans., vol 160, 1850). Foi a primeira "nebulosa espiral" identificada e ainda não se sabia que se tratava de um "universo-ilha", um longínquo objecto extra-galáctico. A partir do desenho passou a ser informalmente conhecida como Whirlpool ("Redemoinho"), M51 no Catálogo de Messier


Observatórios institucionais - o exemplo do Real Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada): o serviço público e a Hora Official

Observatório da Tapada da Ajuda
A fachada neoclássica do edifício central do então Real Observatório Astronómico de Lisboa (fotografia retirada do artigo mencionado no parágrafo seguinte). Em 1857, D. Pedro V concedeu um generoso donativo de 30 contos de réis da sua dotação pessoal para que se edificasse um observatório a par dos melhores que então existiam na Europa. A torre central Foi concluída apenas em meados da década de 1870, para instalação do grande telescópio refractor equatorial (c/ 38 cm de abertura e distância focal de 7 metros) fabricado pela firma alemã A. & G. Repsold, de Hamburgo.


O século XIX assiste à criação ou ao apogeu de alguns dos mais emblemáticos observatórios. No nosso caso, o Real Observatório Astronómico de Lisboa (na Tapada da Ajuda) foi criado pela Carta de Leide 6 de Maio de 1878. Antes, o rei D. João V havia patrocinado a criação de um observatório junto do Paço, havendo outros em Coimbra, no Brasil, no castelo de S. Jorge, e, entretanto, foi criado o Real Observatório da Marinha, por alvará de 18 de Março de 1798. Mas o Observatório da Tapada pertence a outra categoria, com outra ambição e propósito, em sintonia com os grandes observatórios internacionais (o Observatório da Marinha estava modestamente instalado e precariamente equipado). No friso do seu pórtico lê-se, em letras de bronze, a data em que principiou a construção: MDCCCLXI, já no reinado de D. Luís. Para a construção do Observatório, foi criada uma Comissão presidida por José Feliciano da Silva Costa (1797-1866) e principalmente impulsionada por Filipe Folque (1800-1874), director dos Trabalhos Geodésicos do Reino e do Observatório da Marinha. A sua implementação operacional respaldou-se imenso nos conhecimentos do conhecido astrónomo e geodeta Friedrich Georg Wilhelm Struve (1793-1864), fundador e primeiro director do Observatório Imperial de Pulkovo (próximo de São Petersburgo, Rússia), cuja traça o Real Observatório emulará. Ficou encarregado da parte arquitectónica Costa Sequeira, professor da 'Academia das Bellas Artes'. Os desenhos foram executados pelo arquitecto Jean-François Colson, tendo por base, como referido, os do célebre observatório russo, bem como indicações da comissão nomeada pelo governo. Os equipamentos foram quase exclusivamente encomendados nas prestigiadas casas Repsold e Merz. O Contra-Almirante Frederico Augusto Oom foi o seu primeiro director. Dos trabalhos sequentes, destaca-se o louvor recebido pela precisão das observações implementadas e a colaboração internacional na determinação da paralaxe solar do "planeta" (i.e. asteróide) Eros. Foi visitado por ilustres cientistas estrangeiros aquando do eclipse solar de 1900. (vide A. Ramos da Costa, artigo na revista Serões - Série II, Vol.I, Nº4, Outubro de 1905, pp.323-31; aceder .PDF, ~6MB). Previsivelmente, mais do que assumir um lugar enquanto centro de investigação pura, assumir-se-á essencialmente como uma instituição de serviço público (dedicada aos trabalhos geodésicos, hora oficial, etc.), à semelhança de observatórios como o de Greenwich ou o Observatório Naval dos Estados Unidos (U.S.N.O.).
O modelo foi, como mencionado, Pulkovo 1834-39). Este foi o primeiro dos grandes observatórios institucionais do século XIX e o seu plano amplia o anterior "modelo-tipo" de Gottingen (Marian C. Donnelly, A Short History of Observatories, Oregon University Books, 1973, p.72). O seu arquitecto foi o russo Alexander P. Bruloff (também grafado Brullov). M. Thibaud, desenhador ligado ao teatro, foi responsável pela construção da torre. Donnely colocou a possibilidade de, uma vez que Bruloff havia retornado recentemente de Roma, talvez tivesse procurado no sector central do complexo arquitectónico um efeito estético análogo ao do clássico Panteão (ibid.). O observatório alojava então o maior refractor Fraunhofer do mundo.

Os editores de The Heavens on Earth: Observatories and Astronomy in Nineteenth-Century Science and Culture (Duke University Press, 2010) referem a justaposição de disciplinas, técnicas comuns e actividades no observatório do século XIX: "But astronomy belonged to a larger group of sciences that we refer to as “observatory sciences.” (...) emerging family of nineteenth-century sciences that besides astronomy includes cartography, geodesy, meteorology, and to an extent physics and statistics. While universities and academies tended to split science along disciplinary lines, a number of pursuits coexisted at the observatory, and we make a first attempt to investigate them as a coherent whole." (Aubin, Bigg and Sibum, Introduction: Observatory Techniques in Nineteenth-Century Science and Society, Op. cit., 2010, p.3). Acresce a função de divulgação pública do saber científico e da observação exacta, para além do prestígio traduzido por estas instituições enquanto paradigmas de racionalidade, que amiudadamente colaboravam em rede. Actividades em rede que também assumiam, de um ou outro modo, dimensão política e diplomática (ibid., p.18).
Outro aspecto interessantíssimo: "A true “laboratory of visuality,” the observatory was a favorite site for reconfiguring the visual experience in the nineteenth century charted by cultural historians." (vide pp.20-21). Em resumo: "The observatory was a theater in which the state, science, and empire were displayed." (p.22). A partir de meados do século XIX, as tecnologias ópticas (em particular a fotografia) tornaram-se ubíquas nas sociedades ocidentais, transformando a natureza e prática da representação e gerando novos 'modos de ver', constatando-se que os observatórios foram pioneiros de muitas tecnologias ópticas que fizeram um percurso ulterior nas feiras, exposições e teatros.

Balão da Hora no Arsenal
O Balão do Arsenal

Os observatórios cumpriam tradicionalmente objectivos práticos muito concretos, relacionados com a geodesia (determinação rigorosa de latitudes e longitudes) e com a regulação da hora. O serviço da Hora Official em Portugal foi iniciado, com recurso à electricidade*, em 1884 ou 1885. Também na revista Serões (artigo A Hora Official em Lisboa, do mesmo Ramos da Costa, incluído no nº28 de Outubro de 1907, pp.278-82), encontramos o cliché acima reproduzido: o "Balão do Arsenal", com uma descrição detalhada do equipamento e seu funcionamento. O balão "...de um metro de diametro, formado de vinte crescentes de folha de ferro galvanizado, com a espessura de um milimetro e colocados verticalmente em torno d'um cilindro de cobre batido de 0m.20 de diametro e de 1 metro d'altura. Os crescentes são internamente ligados por duas tiras metallicas as quaes, occupando uma posição diversa em cada um d'elles, servem para interceptar a luz, offerecer a menor resistencia possivel ao vento e, por fim, permitir que o balão a uma certa distancia exhiba a configuração d'uma esfera." (Serões, nº28, p.279).

Este equipamento estava instalado no lugar da antiga "Ribeira das Naus", entretanto ocupado pelo Arsenal Real da Marinha**, e assinalava, uma vez por dia, à 1 da tarde, a hora certa (fundamental para acertar os cronómetros marítimos dos navios e para as comunicações). O mesmo acontecia em muitos locais no estrangeiro, sendo a famosa "Time Ball" de Greenwich apenas um exemplo. Este "signal horario" foi instalado "a juzante do dique do Arsenal da Marinha e no cunhal SE do extremo Oeste, avançado d'este estabelecimento..." (ibid.). Funcionará até 1915. O balão era içado até meio do mastro 5 minutos antes da "hora certa"; depois subia e ficava 3 minutos no topo ("a topetar", como se dizia) e, por fim - através de um corte de corrente eléctrica controlado a partir do Real Observatório Astronómico - descia no mastro. O início dessa descida (que começava em queda livre) assinalava a hora certa (segundo o Tempo Médio de Lisboa, i.e. o do meridiano da Tapada). O instante do "corte" era registado no Observatório e o momento da queda pelo Posto Chronometrico (antigo Observatório da Marinha), para se aferir a precisão (almejava-se obviamente a sincronicidade). A hora dada pelo balão era expedida, pelo próprio aparelho eléctrico, para a Estação Central dos Telegraphos (e daí para outras estações dessa rede, no continente). O mastro tinha 7 metros de comprimento e o percurso da queda era de de 4.88m. Na posição inferior, o balão estava a 28.17m de altitude (e a 24.54m do solo). O autor do mencionado artigo salientava alguns inconvenientes (para além de eventuais falhas no sistema ou das contrariedades metereológicas): a má localização do balão impedia uma visibilidade adequada a partir dos navios (sendo relativamente pequeno, projectava-se sobre um confuso fundo de edifícios), a "hora certa" era disponibilizada apenas uma vez por dia (ao contrário do que acontecia noutros locais, dando o exemplo de Port Said) e o facto de não se utilizar a Hora de Greenwich, que já detinha estatuto de referência internacional (isto acontecerá mais tarde através do Decreto com força de lei de 24 de Maio de 1911).

* Existiu previamente um sistema "manual": o marinheiro de serviço, recebendo as indicações da pêndula do Observatório da Marinha, içava um balão a meio mastro ao meio dia e 45; levava-o até ao topo ao meio dia e 55, arriando-o de uma só vez no momento em que era 1 hora da tarde.
**
As instalações da Marinha, incluindo a Escola Naval, passarão para a margem sul (Alfeite), sendo formalmente inauguradas em 1939.

Encontramos outra descrição, mais sucinta, no texto da nota biográfica sobre Frederico Augusto Oom, por Pedro Raposo: "A partir de 1885, a hora oficial determinada pelos astrónomos do OAL passou a ser transmitida telegraficamente para uma estação horária no Arsenal da Marinha, onde um “balão horário” (mais propriamente, uma esfera metálica oca) era içado ao topo de um mastro e largado à 1:00 da tarde local, em sincronia com o sinal enviado do OAL. Assim se dava a hora oficial à navegação e à cidade. Os erros da queda do balão, que raramente iam além de escassos décimos de segundo, eram publicados quinzenalmente no Diário do Governo. Este sistema, que fora desenvolvido por Oom e Campos Rodrigues, substituiu um velho balão já bastante descredibilizado, que era operado manualmente por pessoal do Observatório da Marinha." (CIUHCT, Cientistas, Engenheiros e Médicos em Portugal: "Oom, Frederico Augusto" (entrada adaptada por Ana Simões), DOI: https://doi.org/10.58277/TZBP3617.

O sistema original foi concebido em 1818 por Robert Wauchope, capitão da Royal Navy e instalado em Portsmouth, assento da Academia Naval Inglesa:
"In 1818 the Royal Navy captain Robert Wauchope drew a “Plan for Ascertaining the Rates of Chronometers by an Instantaneous Signal,” by which a ball sliding along a long mast atop an observatory fell at a given speed and at a fixed time (noon in Britain, 1:00 p.m. in the United States). This visual signal enabled naval officers to synchronize their timekeepers without leaving the ship. In England the first operational time ball was put in service in 1829 in Portsmouth, where the Naval Academy was located. A second one was built on top of the Greenwich Observatory in 1833. Liverpool and Edinburgh were equipped in 1836. Wauchope submitted his scheme to the French and American ambassadors when they visited London and Liverpool in 1830. Three months later the U.S. Naval Repository and the U.S. Naval Observatory were established in Washington; the first American time ball went into service in 1845." (Boistel, Guy, Training Seafarers in Astronomy: Methods, Naval Schools, and Naval Observatories in Eighteenth- and Nineteenth-Century France, in: Aubin, D., Bigg, C., and Sibum, O. (eds.), "The Heavens on Earth,,,, Op. cit., 2010, p.164); vide também Bartky, Ian R. & Dick, Steven J., “The first time balls”, JHA, xii (1981), 155–64.

Instrumento de Trânsito
Um instrumento de trânsito, equipamento obrigatório em qualquer observatório, era alinhado com o meridiano local que podia percorrer para efectuar medições precisas. Este tipo de instrumento, inventado por Ole Rømer, desloca-se apenas no plano vertical norte-sul, apontando as passagens meridianas. Possui círculos graduados para medição da altura. Anotava-se a hora. A luneta meridiana combinada com o pêndulo sideral permitia obter visualmente as coordenadas celestes de um astro. (gravura do Webster’s International Dictionary, 1890)


Assitiremos aos ulteriores avanços da instrumentação nos anos de oitocentos. Convém, antes de mais, recordar que na última década do século XIX se assiste a uma verdadeira "explosão" na Física: Raios-X, o átomo, a radioactividade. Novas tecnologias (e.g., fotografia, espectroescopia/espectrografia) e novas metodologias para a determinação das distâncias cósmicas, culminando no início do séc. XX nas perspectivas cosmológicas abertas por Albert Einstein, com o estudo acerca da natureza do átomo, do nascimento, vida e morte das estrelas, com a consciência de que a Galáxia não é a única (algo pressentido por pensadores pretéritos como Kant no séc. XVIII e finalmente comprovado pelas pesquisas de Edwin Hubble em 1924). Quanto à fonte da energia do Sol e das restantes estrelas, a pista fundamental foi descoberta independentemente em 1938 por dois astrofísicos: Hans Bethe e Carl von Weizsacker. Resumidamente, o hidrogénio é transformado em hélio e energia é libertada nesse processo. É a origem da radiação do Sol. Como sabemos, o hidrogénio é a substância mais leve e abundante do Universo.

Se a energia do Sol tivesse origem na combustão química, não poderia ser mantida por mais do que alguns milénios. No século XIX, Lord Kelvin (William Thomson) e Hermann von Helmholtz sugeriram que o astro gradualmente se comprimia, libertando energia nesse processo e assim explicando a energia expelida ao longo de milhões de anos. Daqui se inferia que o diâmetro deveria diminuir ao longo desse período. Somente mais tarde, após a descoberta da radioactividade (por Henri Becquerel em 1896), se abria o caminho para a posterior descoberta da verdadeira natureza do que acontece no Sol (e nas outras estrelas).

Enfim, a Astronomia tornar-se-á definitivamente Astrofísica.

Francisco da Costa Lobo (1864-1945), do Observatório a Universidade de Coimbra será entre nós pioneiro e terá um papel fundamental na internacionalização da nossa astronomia, na abertura à Astrofísica e às novas tecnologias entretanto utilizadas (Vitor Bonifácio, “Costa Lobo (1864-1945), the Coimbra Spectroheliograph and the Internationalisation of Portuguese Astronomy”, Cahiers François Viète [Online], III-3 | 20; aceder),


O estudo do Sol, a estrela mais proxima, será, sem surpresa, a motivação para o aparecimentto da Astrofísica. Joseph von Fraunhofer (1787-1826) concebeu um instrumento composto por vários prismas, óptica de colimação e uma fenda fina e alongada, através da qual podia passar a luz. Com este, estudou o Sol. A par do químico William Hyde Wollaston (1766-1828), será pioneiro na revelação do espectro e dos chamados raios de absorção. Fraunhofer foi o primeiro a obter e medir comprimentos de onda das linhas do espectro solar. O estudo da composiçao da luz havia começado, em termos científicos, com Newton. Na imagem, um desenho do próprio Fraunhofer representando linhas do espectro solar e assinalando, em cima, curva de intensidade em diferentes zonas (H. Roscoe, Spectrum Analysis, London, 1870). Um princípio fundamental é o da uniformidade da natureza: tal como as leis de Newton se aplicam universalmente, também as leis que determinam o comportamento do Hidrogénio, do Cálcio e dos restantes elementos. O espectroscópio pode pois, como diz Allan Chapman, "trazer as estrelas distantes para serem estudadas no laboratório". Dezenas de milhares de spectra estelares estarão disponíveis por volta de 1910 e serão pacientemente analisados e elucidados por técnicas altamente qualificadas como Williamina Fleming, Antonia Maury ou Annie Jump Cannon


espectroscopio - G. Kirchoff
Esquema dos componentes principais de um espectroscópio, por Gustav Kirchoff: o tubo "A" é um colimador óptico que tem no foco uma ranhura cuja largura é ajustada por meio de um parafuso; esta pode ser iluminada por uma fonte de luz (e.g., a imagem de uma estrela). O feixe de luz paralelo passa através dos sucessivos prismas (no exemplo vemos quatro prismas, que habitualmente eram de vidro espesso ou quartzo; cada um dispersava mais a luz recolhida, resultando num espectro maior com linhas de Fraunhofer mais conspícuas e fáceis de medir). Os raios são tanto mais desviados quanto mais elevada é a sua frequência. A luneta ("B"), que se move ao longo de um disco, permite observar os diferentes comprimentos de onda da luz dispersada. (Untersuchungen über das Sonnenspectrum und die Spectren der chemischen Elemente, 1, Berlin, 1862). A ilustação seguinte, um desenho de Allan Chapman, explica o funcionamento básico do espectroscópio (Comets, Cosmology and the Big Bang - A History of Astronomy from Edmond Halley to Edwin Hubble, Lion Hudson, 2018, fig. 17.1). Quando, ainda no séc. XIX, se acoplou uma câmara ao espectroscópio surgiu o espectrógrafo, capaz de captar a imagem do espectro analisado)

Espectroscópio - desenho de A. Chapman


Henry Draper
Henry Draper (1837-1882), pioneiro da astrofotografia, junto de um refractor equipado para fotografia astronómica nos anos de 1860 ou no início da década seguinte (Hastings Historical Society)


Henrietta Swan Leavitt    Diagrama H. Leavitt
Henrietta Leavitt (1868-1921) verificou que determinadas estrelas variáveis com o mesmo período que estudou na região da chamada Pequena Nuvem de Magalhães tinham a mesma magnitude aparente. Assim, sabendo que estas estavam todas praticamente à mesma distância do Sol, extrapolou que todas as estrelas desse tipo, com o mesmo período de variação, deveriam ter a mesma magnitude intrínseca. Descobriu pois a importante relação luminosidade-período de variação destas estrelas pulsantes. Harlow Shapley demonstrou que esta relação era típica de um determinado tipo de variáveis de curto período, cujo modelo mais conspícuo era a estrela Delta da constelação Cepheus (δ Cephei), cuja regular variabilidade havia sido documentada pelo Inglês John Goodricke em 1784. As variáveis Cefeidas, pela sua previsibilidade, tornar-se-ão um cómodo e eficiente método para a medição de longas distâncias, autênticas "velas-padrão", pois quando detectadas em objectos distantes, a relação do seu brilho aparente e periodicidade permite calcular a sua luminosidade absoluta
(Emilio Segrè Visual Archives, Shapley Collection, Physics Today Collection, Niels Bohr Library & Archives, AIP; photograph, Margaret Harwood). O diagrama à direita foi apresentado por Leavitt no seu importante paper (Harvard Circular, no. 173, 1912). Em 1952, Walter Baade (1893-1960) descobriu que existiam, na verdade, duas populações de Cefeidas (as "clássicas" e as de tipo II). Isto redundará na correcção dos resultados anteriormente obtidos.


Uma classificação abrangente das estrelas da Galáxia em "populações" (Population I, II e uma hipotética III, mais antiga e que já não podemos observar) foi gizada pelo mencionado e influente W. Baade em 1944, desenvolvendo uma ideia já avançada anteriormente por Jan Oort. Esta classificação das estrelas baseia-se em características como a sua localização, tipo de órbita no sistema galáctico e elementos pesados presentes na sua constituição ("metalicidade"). Estas características dependem da idade da Galáxia quando as estrelas se formaram, pelo que as "Populations" I, II e III contém estrelas que se formaram em épocas progressivamente mais recuadas.


O Universo expande-se e ganha tridimensionalidade quando analisado em etapas sucessivas, da Geometria à Física, como J.-P Verdet explica
[resumo traduzido]:

O ponto de partida é o Sistema Solar; o método é geométrico e a base é a órbita da Terra: em intervalos de seis meses, a Terra ocupa duas posições separadas por 300 milhões de quilómetros. Permite medições de paralaxe. Na etapa seguinte, a base utilizada é o deslocamento aparente do Sol em relação a certas estrelas, determinando a velocidade aparente na esfera celeste (de afastamento ou aproximação), usando o efeito Fizeau-Doppler, percebendo as direcções nas quais as estrelas aparentam mover-se (o movimento próprio das estrelas havia sido descoberto em 1718 por Edmond Halley). A terceira etapa utilizou a física das estrelas: o brilho aparente, ou magnitude m, de uma estrela é uma função do seu brilho absoluto, ou magnitude absoluta M, e da sua distância. Surgem catálogos baseados na análises do espectro das estrelas (coligidos no Harvard College Observatory), bem como a esquematização desenvolvida independentemente por Hertzsprung e Russell, patente no diagrama hoje identificado pelos seus nomes. Em 1912, Henrietta Leavitt publicou um artigo onde apresentou a relação matemática relacionando o período e a magnitude aparente de um determinado tipo de estrelas variáveis (as Cefeidas, nomeadas segundo o exemplar "típico" originalmente estudado: a estrela Delta Cephei). Tinha acabado de descobrir uma nova maneira de relacionar a magnitude aparente com a absoluta e, portanto, conhecer a distância. Tornou-se possível determinar a distância de um objecto onde se encontre uma cefeida. Posteriormente, E. Hertzprung estudou as distâncias destas variáveis estatisticamente, a partir dos seus movimentos próprios. No passo seguinte, verificou-se que o espectro luminoso de um astro nos dá a sua velocidade radial. Move-se para o violeta se a estrela se aproxima, para o vermelho se ela se afasta. Este fenómeno de grande escala (teoréticamente interpretado como um efeito Doppler) permitiu retirar ilacções quanto ás distâncias e, consequentemente, quanto à expansão do Universo. É ao trabalho de V. Slipher, E. Hubble e M. Humason que devemos a determinação das maiores distâncias acessíveis. (Une Histoire de l'Astronomie, op. cit., Troisième partie 3, 4).

Refira-se também, na estimativa de distâncias, a relação entre o período de pulsação e a magnitude absoluta das estrelas do tipo RR Lyrae (a "estrela modelo" situa-se na constelação boreal de Lyra), que as transforma em excelentes velas padrão, particularmente no interior da Via Láctea.

Paralaxe estatística

Efeito Doppler-Fizeau
Na imagem superior, o chamado método das Paralaxes Estatísticas observa a convergência aparente, num ponto do céu, das estrelas de um mesmo enxame estelar que se afastam de nós (reparar na analogia com o efeito de perspectiva); em baixo, o efeito Doppler-Fizeau descreve a alteração no comprimento da onda emitida por uma fonte em movimento ou medida por um observador em movimento, em função da velocidade relativa fonte-observador. (ilustr. retiradas de: Roy, Jean-René, L'Astronomie et son Histoire, Presses de l'Université du Québec/Masson, 1982)


Este entendimento do Universo é relativamente recente. Em 1914, Arthur Stanley Eddington, que virá a ser um dos mais importantes astrónomos da primeira metade do séc. XX, ainda era obrigado a reconhecer: "Direct evidence on whether the spiral nebulae are within or without our stellar system is completely lacking." (Stellar Movements and the Structure of the Universe). Até 1915, o sistema da Galáxia estava ainda em conformidade com o chamado modelo "Herschel-Kapteyn", com cerca de 1000 a.l. de diâmetro e cerca de 3000 a.l. de espessura, com concentração num plano e na direcção do centro. As primeiras indicações quanto à rotação deste sistema datam já de 1922 (por E. F. Freundlich e E. von den Pahlen) mas foi somente comprovado através do trabalho de Lindblad e Oort estudando os diferenciais nos movimentos de estrelas próximas. O Alemão Carl Wirtz (1876-1939) foi o primeiro a sugerir (em 1924) que os redshifts medidos no espectro das "nebulosas extra-galácticas" (como então se designavam as galáxias) seriam deslocamentos 'Doppler' indicativos de movimentos radiais (Kopal, Op. cit., p.148)

Hoje sabemos que as galáxias são as unidades organizacionais básicas do Universo. Supõe-se que as nuvens de hidrogénio e hélio (os elementos químicos leves, produzidos no Big Bang) se condensaram para formar as primeiras gerações de estrelas que, agregando-se, criaram estruturas comparáveis ou mesmo similares aos enxames globulares. Estas coalesceram em galáxias. Nestas, a fusão nuclear em estrelas maciças deu origem a elementos químicos mais pesados, libertados através da explosão de supernovas no medium interestelar. Nas nuvens de gás e poeiras assim formadas, nasceram e nascem as novas gerações de estrelas.

Demais, o Universo surge em expansão e ganha dimensões avassaladoras. A recessão é mais evidente quanto mais distantes estão as galáxias observadas. Os estudos pioneiros  são publicados por Vester Slipher no Lowell Observatory e Edwin Hubble, cujo primeiro paper descrevendo a relação entre redshift (desvio para o vermelho no espectro electromagnético) e distância (comprimento de onda proporcional) data de 1929. Também uma referência a Ernst Öpik (1893-1985), que publicou, antes de Hubble, um paper com uma estimativa da distância da galáxia de Andrómeda (com maior aproximação do que a do astrónomo americano) e também demonstrando a sua exterioridade relativamente à Via Láctea (entre outras descobertas relevantes, e.g., a chamada Nuvem de Öpik-Oort, hipotética região esférica de planetesimais voláteis na periferia do Sistema Solar, onde se acredita estar a origem dos cometas).

Um notável precursor da teoria de suporte ao modelo cosmológico prevalecente foi Georges Lemaître (1894-1966). Este sacerdote e astrónomo havia sugerido, em 1927, ainda antes da constatação da expansão do Universo por Edwin Hubble, a possibilidade teórica de compreender retrospectivamente um Universo em expansão, recuando no tempo até ao ponto a que chamou "Átomo Primevo".

As conhecidas teorias de Einstein (1879-1955) têm como antecedente (por analogia) as elucubrações de Michael Faraday (1791-1867) e James C. Maxwell (1831-1879), que relacionaram a electricidade, o magnetismo e a luz num mesmo fenómeno, o campo electromagnético. Einstein, por seu lado, estuda o campo gravitacional e publica a sua Teoria Geral da Relatividade em 1915.

Einstein com colegas americanos
Albert Einstein (1879-1955) com alguns cientistas americanos (o segundo é Edwin Hubble; seguem-se St. John, Albert Michelson, o próprio, William Campbell e Walter Adams). Crédito: Carnegie Institution of Washington, Pasadena (in: Sugimoto, Kenji, Albert Einstein: A Photographic Biography, Schocken Books, 1989)


Numa proposta absolutamente genial, Einstein afirma que o campo gravitacional não é uma característica do espaço, é o próprio "espaço-tempo", um "material" em si mesmo, um "tecido" que nos rodeia e que é deformado pela massa dos corpos.
O espaço-tempo associa o conceito do espaço geométrico de três dimensões com o contínuo temporal unidimensional. Substitui as pretéritas noções autónomas, sendo doravante o cenário comum dos fenómenos físicos. A Teoria da Relatividade Restrita de Einstein estabelece o carácter "não absoluto" do Tempo (dilatação: os intervalos de tempo marcados por um observador em repouso são sempre maiores que os intervalos de tempo marcados por um observador em movimento com velocidade aproximada à da luz) e a sua associação com o movimento, portanto com o Espaço. Na Relatividade Geral, a gravitação surge como propriedade geométrica do espaço-tempo. Explica ainda como a matéria e a energia deformam o espaço-tempo e como os objectos se movem segundo essa nova geometria.

O espaço-tempo deforma-se quando existe matéria. Como exemplo, o Sol deforma o espaço em seu redor e assim determina o movimento dos planetas. A luz também é afectada, permitindo estudar a magnitude do efeito lenticular que é a curva provocada pela gravidade quando a luz de um objecto distante é desviada por outro mais próximo, como foi comprovado pela primeira vez no célebre eclipse total de 1919, e desde então inúmeras vezes.

Perspectivas contemporâneas...
 


Em 1936, Karl Jansky (1905-50) descobre de modo fortuito a radiação rádio proveniente da Via Láctea (especificamente da região de Sagittarius) e abre o caminho para o desenvolvimento da Radioastronomia (imagem da antena direccional e rotativa utilizada; fonte: Bell Telephone Laboratories). Em 1944, o engenheiro Grote Reber (1911-2002) escreveu um artigo científico que expunha a detecção de radiação rádio no Sol. Localizou, ulteriormente, intensas fontes de rádio em Cassiopeia e em Cygnus (a poderosíssima galáxia Cygnus A é uma das mais fortes fontes rádio que conhecemos). Se no 'visível' detectamos facilmente as fontes mais poderosas, convém não esquecer que o mapa do céu é muito diferente noutras frequências do espectro electromagnético.

 

[voltar]