A S T R O N O M I A |
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"Die Astrologie will Religion und Wissenschaft zugleich sein: das bezeichnet ihr Wesen."
introdução | a doutrina no "mapa do conhecimento" | filosofia | as duas naturezas | causalidade | iatromathematica | magia e afins... | o epílogo | east and west | os aspectos | um horóscopo do séc. XVI | tropical versus sideral | técnicas dinâmicas | o thema mundi | decanos no palazzo schifanoia | portentos e fenómenos extraordinários | psicologia e astrologia | o discurso/ historiografia Astrologia? Num ensaio célebre, The Study of Wretched Subjects (Isis, vol.43, June 1951. repr. in Astronomy and History. Selected Essays,
1983, p.3; .PDF, 117KB), Otto Neugebauer explica como a História da
Ciência e da transmissão das ideias se faz através da recuperação e do
estudo dos textos como eles são, independentemente das nossas
apetências e preconceitos. A abordagem personificada, na época, pelo insigne George Sarton
(1884-1956) era directamente visada. Este último considerava saberes
como o da
astrologia irrelevantes para compreender a Ciência e o seu principal
argumento residia no antagonismo radical entre a ciência e as
práticas dogmáticas. Entretanto, Lynn Thorndike escreveu o artigo The True Place of Astrology in the History of Science
(Isis, vol.46, No.3 (Sep. 1955), no qual se afasta do paradigma
"comtiano", Positivista, inserindo esses saberes "proscritos" na base da construção
da ciência moderna, através do incessante diálogo de concepções e
procedimentos. Também Frances Yates (Giordano Bruno and the Hermetic Tradition,
1964), abordou de modo pioneiro a questão de como eram incertas e
movediças as fronteiras entre ciência genuína e hermetismo na
Renascença. O termo scientia
incluia muitos ramos do conhecimento que a concepção moderna de
'Ciência' descartou.
Torna-se, por isso, distinção anacrónica quando projectada no passado.
Segundo Franz Boll (v. citação supra), a essência da Astrologia era querer ser Religião e Ciência ao mesmo tempo. Eugenio Garin (no prefácio de O Zodíaco da Vida: a polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI, Editorial Estampa, 1987; orig.: Lo zodiaco della vita..., G. Laterza & Figli, 1976) referia como Franz Cumont, em 1898, ao apresentar o primeiro volume do Catalogus codicum astrologorum Graecorum (CCAG, compilação de 12 volumes de textos astrológicos em Grego, editados entre 1898 e 1953 em Bruxelas) nos recordava a importância destes materiais "descurados e desprezados" e a necessidade de ter em conta "erros", não menos que "clarissima inventa", quando se procuram compreender as vicissitudes da pesquisa humana da "verdade" [terminologia reflecte obviamente o contexto]. Cumont referia o inextricável enredo que é a literatura astrológica e os imensos ecos que acolheu (temas religiosos e "científicos", motivos míticos e racionais, reflexos de acontecimentos e transfigurações fantásticas). Para ele não seria possível indagar as origens das crenças e das ciências sem interrogar cuidadosamente os astrólogos, que, como Garin constata, frequentemente não faziam mais do que projectar nos céus e nas imagens astrais os acontecimentos terrestres. É necessário compreender a complexidade destes processos interligados e suas inúmeras cambiantes. Como Francesca Rochberg explica no prefácio de Periodicities and Periodic Relations in Babylonian Celestial Sciences ("Studies in Ancient Magic and Divination", vol.6: In the Path of the Moon: Babylonian Celestial Divination and Its Legacy, Brill, 2010), nos textos cuneiformes babilónicos não havia linguagem que diferenciasse aquilo a que do ponto de vista moderno designamos por Astronomia e Astrologia (previsão dos fenómenos vs. prognosticação dos acontecimentos mundanos). A diferenciação surge apenas na Antiguidade tardia e nem sempre de acordo com a distinção que hoje fazemos. Separar epistemologicamente entre uma (empírica, quantitativa e preditiva) e outra (prognosticadora), não tem paralelo no passado [i.e. nos períodos históricos estudados por Rochberg]. Abordar o seu estudo utilizando o nosso actual critério de demarcação geraria equívocos e anacronismos. De resto, acrescenta, será sempre problemático comprovar, para qualquer época (incluindo a nossa) uma mundividência que suporte, em exclusivo, um suposto modo de pensamento único e endémico à Ciência. Por seu lado, Newman e Grafton, na Introdução de Secrets of Nature: Astrology and Alchemy in Early Modern Europe (Massachusetts Institute of Technology, 2001), evocam um princípio amiudadamente ignorado: "the past is another country". Referem como a Astrologia funcionava como um conjunto abstracto de teorias e crenças, mas também como um corpo coerente de práticas, solidamente suportado pelas instituições (p.5). Leon Battista Alberti (1404-1472) descreveu-a como modelo para a rigorosa arte das relações sociais no ideal Renascentista (p.8). Embebida na dinâmica cultural, estética, social e política, confundia-se com a ordem geral das coisas nos seus princípios fundamentais. Para o cortesão informado, dominar a temática não significava superstição ou falta de objectividade. Pelo contrário: Astrology did not represent a failure of objectivity but exemplified it in action (ibid., p.9). Prevalecia uma mundividência claramente estruturada. A "ameaça" era, no plano astronómico (dos fenómenos), traduzida pelas anomalias e disfunções celestiais que violavam a elegante disposição deste Cosmos organizado: o movimento retrógrado ou "tardo" dos planetas, as "estrelas novas" [as novae, que hoje sabemos serem manifestações extremas de estrelas eruptivas, aumentando em 10 ou mais níveis a sua magnitude em poucos dias], os eclipses, os cometas... Mas convém não esquecer: "Those who wrote about celestial action were rather like those who wrote about the unicorn - that is to say, they were more concerned with its behaviour than with its existence." (North, J. D., Celestial Influence - The Major Premiss of Astrology, in: Zambelli, P. (ed.), Astrologi hallucinati, Walter de Gruyter, 1986, p.45). Num estudo da utilização literária de conteúdos do âmbito da Astrologia, J. C. Eade (The Forgotten Sky..., Oxford, Clarendon Press, 1984), avisa-nos na introdução: "(1) that the basic tenets of astrology are entirely arbitrary and wholly irrational, but that the system built upon them is often elegant and rich in suggestion; (2) that its constituent elements interlock with each other, often providing a complex of checks and balances that leads to reasonable certainty in one’s findings; and that (3) the system is schematic, so that unorthodoxy or an insecure grasp of the subject can often be readily detected". Cada época tem as suas "versões" da astrologia. Historicamente, debateu-se se as estrelas eram sinais ou causas, ou se operavam segundo as chamadas virtudes ocultas. "Influência", "simpatia universal", "correspondência", as "assinaturas"... Segundo Louis MacNeice, algumas interpretações recentes [a partir da segunda metade do século XIX] abandonaram os critérios empíricos e assumiram que se operava na mesma categoria da mística ou da arte. Acredita-se, então, que a astrologia é divinatória ou argumenta-se que o modo estético deve sobrepujar o ético. Outra via procurou entender a astrologia como um substituto ou uma culminação da religião. (Astrology, Doubleday & Company Inc., 1964. pp. 26-7). Da tentativa de validação estatística à assimilação de leituras da psicanálise (do psiquismo individual aos "arquétipos"), passando por todas as extravagâncias ocultistas, de tudo já se viu nesta "disciplina" repetitiva mas versátil.
Na Antiga Mesopotâmia consegue-se, a partir de uma longa e sistemática prática observacional com motivação divinatória (augúrios "mundanos", relacionados com a cidade, a região, o rei) interpretar matematicamente, num sistema progressivamente mais coerente, os fenómenos relacionados com o percurso da Lua. O céu da Mesopotâmia já era "habitado" por constelações. Entre os séculos X e VII a.C. serão privilegiadas as que povoavam a faixa relevante do "caminho da Lua" e onde os restantes planetas (incluíndo o Sol) também deambulavam. Os astros errantes eram "os carneiros (ou ovelhas) selvagens" (v. referências em Kurtik, On the origin of the 12 zodiac constellation system in ancient Mesopotamia, JHA, 2021, Vol. 52(1); p.63, n.4). A
definição de uma faixa de constelações no "caminho da Lua" encontra-se
explicitamente, pela primeira vez, no acervo astronómico MUL.APIN (I iv
31–39), e inclui dezoito constelações:
A lista começava em MUL.MUL ("as estrelas"), as nossas Plêiades. Mais tarde, provavelmente pela influência do
calendário de doze meses esquemáticos (de trinta dias cada), o número de constelações foi reduzido
para apenas doze. Estas, naturalmente
díspares nas suas dimensões, serão (séculos V-IV) "niveladas", a partir
da divisão do "percurso" total de 360º (segundo o sistema sexagésimal
inerente a esta civilização e comprovadamente usado) em sectores de
exactamente 30º cada: os signos
que os Gregos irão conhecer e adoptar. Os cálculos são de carácter
aritmético, não revelando a preocupação explicativa do "sistema
cosmológico" que caracterizará a abordagem Grega (perspectiva
geométrica, noção da "esfera celeste" tridimensional, etc.).
Procurava-se apenas, com denodo, determinar (prever) as posiçõesem
longitude recorrendo a um sistema paralelo de estrelas de referência
que balizavam o caminho ("Normal Stars", na nossa literatura académica)
e cujas posições 'fixas' eram conhecidas. As distâncias angulares
permitiam determinar a posição "actual" de determinado planeta. Estavam
criadas as ferramentas para a criação de efemérides descrevendo com
relativa precisão as deambulações dos luminares e dos planetas. O zodíaco utilizado era evidentemente
sideral. O texto grego mais antigo que se conhece que refere a divisão igual dos signos é o Anaphoricus ("Das Ascensões") de Hypsicles de Alexandria, c. 190 a.C. (Montelle, C. (2016), The Anaphoricus of Hypsicles of Alexandria,
in Steele, J. M. (ed.), "The Circulation of Astronomical Knowledge in
the Ancient World, Time, Astronomy, and Calendars", Texts and Studies,
vol.6, Brill, pp. 287–315). O sistema é autóctone e embora conheçamos os seus nomes, a correspondência exacta com as estrelas que hoje identificamos não é conhecida (Symons, S. L., A Star's Year: The Annual Cycle in the Ancient Egyptian Sky (2007), In: Steele, J. M. (ed.), "Calendars and Years: Astronomy and Time in the Ancient World". Oxbow Books). A adopção de horas equinociais (ou iguais, as que hoje em dia utilizamos) será uma evolução natural do sistema. Os decanos foram, no sincretismo da época Helenística e ao longo dos séculos (e.g., Aristobulus, F. Maternus), interpretados, revestidos de significações herméticas ou estudados, muito mais tarde, por eruditos dos séculos XVI e XVII como Joseph Scaliger (pioneiro da Cronologia) ou Athanasius Kircher (cuja "criatividade" hermenêutica atribuiu aos decanos designações espaventosas de diferentes culturas, muito ao gosto sincretista do seu tempo). Para
os antigos Egípcios, o Sol e as estrelas são fortes e jovens no leste,
ascendem ao seu maior poder no meio-dia, declinam pela idade e fraqueza
a caminho do oeste. (Tester, J., A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999
(1987), p.25 [trad. nossa]). Os decanos foram plasmados na estrutura zodiacal astrológica (vide representações da época ptolomaica, e.g., o chamado Zodíaco de Denderah).
O que releva do sistema decanal na perspectiva astrológica é a sua
ênfase no movimento diurno, antecipando os sistemas de domificação e
estando, provavelmente, na origem de conceitos tão decisivos como o
"Ascendente", a culminação meridiana, o declinar (gr. Apoklinos) a caminho do ocaso, o Amentet egípcio (que será o Descendente), e a travessia sub terram pelo hemiciclo subterrâneo, que passa pelo (mais tarde chamado) Imum caeli. [Ilustração seguinte descreve esta dinâmica; baseada na combinação de dois esquemas recolhidos em On The Heavenly Spheres de H. Avelar e L. Ribeiro; A.F.A., 2010]
Bouché-Leclercq (no seu importante clássico de 1899; L'Astrologie grecque, p.102, n.2) refere a alegria e a tristeza "poeticamente" aduzidas por Manéthōn (Μανέθων, que se crê ter sido um sacerdote egípcio helenizado do séc III a.C.): "Raisonnable et poétique. Manéthon (II, 403 sqq.) nous montre les planètes se levant pleines d'allégresse, puis s'inclinant, lassées et attristées, vers l'Occident. [B.L. seguiu ed. Axt & Riegler: Manethonis Apoteleimaticorum libri sex, Coloniae ad Rhenum, 1832]. Nos textos mais antigos verifica-se particular ênfase nos decanos que ascendem; nos mais recentes, assinala-se preferencialmente a hora culminante. É legítimo ponderar a influência deste sistema nos ulteriores conceitos de 'angularidade', com todo o simbolismo inerente, bem como na divisão dos chamados "lugares" ou "casas", tão importantes na Astrologia nos dois milénios seguintes. O papel dos decanos enquanto motivação para o desenvolvimentos da doutrina dos doze "lugares", especificamente dos 'cardines',' é argumentado por Dorian Gieseler Greenbaum e Micah Ross, The Role of Egypt in the Development of the Horoscope, in: "Egypt in Transition: Social and Religious Development of Egypt in the First Millennium BCE", eds. Ladislav Bareg, Filip Coppens, and Kveta Smolarikova, Czech Institute of Egyptology, Prague, 2010, pp. 146-182. Encontramos argumentações anteriores apontando no mesmo sentido, e.g., David Pingree (ed./trans,), The Yavanajatãka, Harvard Oriental Series 48, vol.2, p. 219; Jim Tester, A History of Western Astrology, Boydell Press, 1987, p.25; Robert Schmidt no prefácio da sua tradução do Tetrabiblos (Book III), pp. viii—ix. "L'Egypte est la véritable patrie de tous les systèmes de chronocratories." (L'Astrologie grecque, p.478). O paper
de Greenbaum e Ross expende uma argumentação muito convincente e há
muito pressentida, Parte da verificação, já conhecida, de que nenhum
"ascendente" aparece
representado nos horóscopos Babilónicos que conhecemos. Esta lacuna não
contradiz os "mapas" das natividades em escrita cuneiforme enquanto
exemplos de astrologia natal. Todavia, os "horóscopos" mesopotâmicos
não podem tecnicamente ser classificados como uma modalidade de horoscopia
(ou 'astrologia horoscópica'), pois aparentemente não recorrem ao
Ascendente ou à domificação ('casas'). Os astrólogos babilónicos
criavam
'cartas' individuais de nascimento com as posições dos planetas, ciclos
das estrelas ou planetas e, ocasionalmente, a hora do dia ou da noite
baseada nos relógios então disponíveis [o que só por si, com a
tecnologia da época, terá sido um processo periclitante, como Ptolomeu
referirá no séc. II (Tetr. III.2, "Of the Degree of the Horoscopic Point")]. A utilização dos decanos para precisar a região do signo que ascendia, depois refinada até ao grau específico que assinala o momento do nascimento, está em conformidade e, de facto, optimiza a prática babilónica. (Op. cit., p.161). Isto acontecerá na época helenística. A primeira evidência que relaciona o Egipto com a introdução do 'ascendente' na prática astrológica recua ao astrólogo Balbillus (com prováveis antepassados egípcios) e aos exempla literários não babilónicos que pela primeira vez incluem 'cardines' em Grego [os 'cardines' são os pontos fundamentais a que chamamos ascendente, meio-céu [intersecção, no hemisfério supra terram, da Eclíptica com o Meridiano; não confundir com o Zénite, como fazem alguns académicos], descendente e fundo-céu]. No papiro Oxyrhynchus 235 (P. Oxy. 235) o diagrama (configuração datada entre 15 e 25 AD) já desenha duas linhas perpendiculares (representativas do Meridiano e do Horizonte) que definem os quadrantes. (p.153) Diagrama grafado no P. Oxy. 235
"And one must
also examine the decans, since the first decan of the Hour-Marker deals
with birth; the 28th from the Hour-Marker, which culminate early,
deals with livelihood; the 25th, which culminates at noon, deals with
sickness; the [19th, which rises late in the east, deals with injury;
the 17th, which rises in the west, deals with marriage and wives; the
8th, door of Hades, deals with children, the one in the subterraneous
[angle] deals with death. These are the places that the ancient
Egyptians used in every nativity" (Hephaestio [séc. V], Apotelesmatika, 2, 18: 75-6, trad. Robert Schmidt, p.66, adapt. C. Brennan)
A partir do conceito de explicação "racionalizada e racionalizadora" do conhecimento-prática desenvolvido por Max Weber entre 1011-13 na sua "Introdução à Ética Económica das Religiões Mundiais" (Einleitung in die Wirtschaftsethik der Welt-religionen), Richard Gordon (Will my Child Have a Big Nose?: Uncertainty, authority and narrative in katarchic astrology, in Rosenberger, V. (ed.), "Divination in the Ancient World.."., Franz Steiner Verlag, 2013, 93-137) considera que, apesar da sua actual reputação de irracionalidade, a Astrologia representava uma aplicação sistemática de ideias explícitas, baseada numa explicação racionalizada do Cosmos e dando respostas menos arbitrárias (do que as alternativas) às incertezas da vida humana (p.95). Funcionava bem no confinamento do seu próprio "jogo", aquilo a que Pierre Bourdieu chamou "champ": “Chaque champ, comme l’ordre pascalien, enferme ainsi les agents dans ses enjeux propres qui, à partir d’un autre point de vue, c’est‒à‒dire du point de vue d’un autre jeu, deviennent invisibles ou du moins insignifiants ou même illusoires”. (Méditations pascaliennes, 2003 (1997), p.140) Na perspectiva de Gordon (ibid.), as modalidades divinatórias clássicas e oraculares não respondiam às três maneiras fundamentais de 'controlo racionalizado' da incerteza: organização da estrutura do discurso; mecanismo claro de ponderação das variáveis; justaposição do elemento de alieatoriedade quando confrontado com uma matriz formalizada de possibilidades: "an ordering in the form of narrative or story‒telling; an explicit mechanism for weighing instabilities against desired outcomes; the juxtaposition of an element of chance against a matrix of recognised and formalised possibilities.". Quanto à pertinência da prática, evita os equívocos e judiciosamente conclui (p.120), referindo-se às katarchai, "escolhas" entre alternativas específicas: "To my mind, it did not matter that many – most, all even ‒ such prognoses were ‘objectively’ disconfirmed. The point lay in the production of usable stories." Wolfgang Hubner (The Culture of Astrology from Ancient to Renaissance, in: Dooley, B., A Companion to Astrology in the Renaissance, Brill, 2014, ch.1) refere de modo sucinto algumas etapas do percurso desta longa tradição [trad. nossa]: Nascida na Babilónia, a Astrologia floresceu no Egipto Helenístico e no Império Romano [aqui principalmente no séc. II, em língua Grega, vide Frederick H. Cramer: Astrology in Roman Law and Politics, The American Phil. Soc., 37, Philadelphia, 1954)], atravessando a Idade Média e vivendo o que Hubner considera "o apogeu" na Renascença. Os interregnos (enquanto tradição erudita e informada) acontecem, no ocidente europeu, num primeiro período medieval, da queda do Império Romano do Ocidente até à revitalização promovida pela tradução latina de textos relevantes no séc. XII (a partir de fontes árabes) e, mais tarde, no séc. XVII, com o repúdio pelas fontes textuais da tradição. Esta doutrina, transmitida ao longo dos séculos, foi uma elaboração Helenística (com centros na ilha de Rodes, central no mapa de Eratóstenes, e Alexandria, onde Demetrius de Phaleron instituiu, com o patrocínio de Ptolomeu I, a célebre Biblioteca, de índole peripatética, numa cidade cosmopolita onde o koinê, o dialecto Grego comum, era língua franca). Para oriente, uma via de transmissão seguiu pela Pérsia Sassânida (227-651) até à Índia, onde a Astrologia se assumiu como uma importante disciplina que virá a influenciar (acompanhando os contributos directamente Helenísticos) uma rica literatura em Árabe (a partir do séc. VIII). Outra via será directamente absorvida na chamada 'Renascença Bizantina' do séc. XII. As tradições orientais foram ininterruptas mas no ocidente medieval a Astrologia foi condenada e por vezes proibída. Foram feitas algumas tentativas para a adaptar ao corpus Cristão pela técnica bem estabelecida da "tipologia" (tal como o Antigo Testamento era validado enquanto 'figura' do Novo Testamento, agora ambos poderiam ser relacionados com o zodíaco pagão). Mas a vertente 'judicial' não sobreviveu, apenas os vaticinia populares. No séc. XII, com o recrudescimento do interesse nas ciências, retornou na "leitura" Islâmica enformada pelo aristotelismo, disponível principalmente a partir da Sicília e do al-Andaluz, Toledo em particular. Da fonte clássica, há a considerar a grande influência de Firmicus Maternus. Uma terceira vaga, cerca de duzentos anos depois (no séc. XIV tardio), acompanha o neoplatonismo Bizantino (e.g., Georgio Gemistos, mais tarde conhecido como Plethon, erudito que preconizou o fim "imposturas religiosas" vigentes e a restauração da religião dos Clássicos... de Zeus, de Apolo e dos astros). E volvido outro século, outros académicos chegaram a Itália devido à pressão Turca. Como Hubner judiciosamente destaca, desde tempos imemoriais que os seres humanos conheciam melhor o Céu (na vastidão visível) do que a Terra, ou seja, conheciam melhor o globo côncavo dos céus dos que a convexidade do nosso planeta. (Refere, neste contexto, que desde o séc. V a.C. se conhecia a esfericidade da Terra, sendo que a 'Ecúmena' habitada ocupava somente uma pequena parte desta). De facto, constata-se que na Antiguidade havia globos celestes mas não globos terrestres. Na Renascença, a moda de atribuição de títulos bibliográficos em termos metonímicos determinará que um volume de mapas geográficos se intitule "Atlas", de acordo com o mítico personagem que suportava os céus. Quanto à "justificação" do lugar pivotal da Astrologia, o mesmo autor afirma (ibid., p.38): "O complemento do individualismo é o universalismo, onde o microcosmos e o macrocosmos se relacionam. A esta mundividência corresponde o universalismo astrológico com a sua combinação de religião e ciência, penetrando todos os aspectos do mundo e da vida humana, integrando deste modo o ser individual no todo do Universo." [trad. nossa]. Uma mundividência primeiramente baseada na cosmologia panteísta e no cosmopolitismo da filosofia Estóica (cf. Franz Boll, Die Entwicklung des astronomischen Weltbildes im Zusammenhang mit Religion und Philosophie, in: Kultur und Gegenwart iii.3: Astronomie, Leipzig, 1913)
Conhecemos a troca de argumentos do Imperador Manuel I Komnenos (lat. Comnenus) com o monge M. Glycas, através dos extractos editados por F. Cumont, CCAG, I.106 et seq.). No século XII Bizantino, Comnenus, defensor da Astrologia, afirmava que as estrelas... "São significadores e não 'causas, e ter recebido de Deus estes sinais e não os usar é que é a verdadeira impiedade". E acrescenta: "...mas
as estrelas são obra sem vida, criadas por Deus, sem percepção ou
raciocínio, e como tal não são contra Deus, e mantêm sempre os seus
lugares naturais, comportando-se de acordo com as leis naturais da sua
criação, sempre da mesma maneira. Na verdade, se fossem actores
conscientes, o astrólogo não as conseguiria compreender, pois os seus
significados ficariam escondidos nos mistérios das suas volições." (vide Tester, J., A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999
(1987), p.96). Para Dooley, Astrology and Science, Op. cit., p. 233, "Na
Renascença, a Astrologia encompassava um corpo de conhecimentos que
respondia aos critérios de verificação aceites para confirmação da
informação e estabelecimento de certezas acerca do mundo natural. (...)
os seus métodos eram os métodos da prática da aquisição de
conhecimento; pode afirmar-se que correspondia ao "estilo" cognitivo da
época. Recorria a uma abordagem 'experiencial' e não 'experimental'; e
como tal fazia parte da ciência renascentista e, parcialmente, da
nossa. Portanto, o percurso da astrologia e da ciência na Renascença é
em grande parte a história da ciência em geral."
[trad. nossa]. Como Garin referiu, o "progresso" científico foi
"longamente mesclado (,,,) de temas mágicos, herméticos e místicos" (Op. cit., p.24)] O tema é complexo na perpectiva do historiador. Com refere Vanden Broecke relativamente ao pretérito contexto medieval, na fluidez das separações epistemológicas a "instabilidade" da definição da palavra “astrologia” promove o abandono da abordagem semântica [o que é afinal "astrologia"?], favorecendo a semiótica e implicando maior atenção às ideias, às coisas concretas e dados ("data", no orig.) que povoam as práticas concretas. (The Limit of Influence, Brill, 2003, p.9).
A Astrologia enquanto parte do 'mapa legítimo' do conhecimento, tipologia, mundividência Quaestio I - Agantne corpora coelestia in sublunarem mundum, an non. Lemos acima as primeiras perguntas, no âmbito do Curso Conímbricense,
relacionadas com a influência astral e os seus limites. Este Cursus é constituído por oito títulos de comentários à filosofia de Aristóteles saídos dos
prelos entre 1592 e 1606), influente obra colegial dos mestres jesuítas
de Coimbra, concebida como suporte ao ensino da Cosmologia no Colégio
das Artes mas com influência abrangente e internacional. Nestas quaestiones (De Coelo, Lib.2, cap.3) pergunta-se (numa tradução aproximada) se: 1) Os corpos celestes actuam, ou não, no mundo sublunar?; 2) O o céu Empíreo influi ou não nos corpos inferiores?; 3) Os corpos celestes infuenciam pelo movimento e luz, ou ainda pelas suas qualidades ocultas?; 4) Acaso cessando os movimentos dos céus, cessaria a actividade das coisas inferiores?
N.B.: Os Mestres na universidade medieval deviam (ocasionalmente estava estatuído) "disputar" questões perante os seus pares e alunos. As questões que propunha eram chamadas quaestiones disputatae. Noutros dias, deveria estar aberto e argumentar toda e qualquer questão que lhe fosse proposta (quaestio quodlibetalis).
O
Aristotelismo escolástico explicava os efeitos celestes no mundo
sub-lunar attravés de três categorias teoréticas: influência (influentia), movimento dos corpos celestes (responsável pela geração e corrupção das coisas terrestres) e luz visível, que produzia calor. A
Apotelesmática (Ἀποτελεσματικά, i.e. "efeitos") fez seguramente parte do mapa legítimo do conhecimento a partir do
século XII. A sua importância era evidente. Como afirma Brendan Dooley,
na abertura do ensaio "Astrology and Science" (A Companion to Astrology in the Renaissance, Op. cit., p.233): "From the standpoint of many thinkers in the Renaissance, astrology was not just ideology: it was science". Para Thorndike (The True Place of Astrology in the History of Science, Isis 46, 1955, pp.273-8), durante o longo percurso do avanço científico até Newton, aceitava-se uma outra lei natural universal, "e essa lei universal era astrológica". Darrel Rutkin resume: "(...) a astrologia, pelo menos desde os
primórdios do século XIV, constituiu componente regular do ensino do
currículo de “artes e ciências” das melhores universidades medievais e
renascentistas, incluindo Pádua, Bolonha e Paris. Efectivamente, os
seus fundamentos matemáticos e os do âmbito da filosofia natural eram
ensinados em diferentes instâncias no contexto de três disciplinas
científicas: (1) nas matemáticas (quadrivium) enquanto “ciência das
estrelas", “irmã” prática da astronomia; (2) no curso de filosofia
natural, relacionada com os textos aristotélicos basilares; e (3) no
curso de medicina, em primeiro lugar em relação ao “De diebus
decretoriis” ("Dos Dias Críticos") de Galeno. Demais, a astrologia
agilizava a integração das elaboradas ciências matemáticas da
antiguidade – astronomia matemática e geografia, também da óptica
geométrica (“perspectiva”) - com a Filosofia Natural. Respalda-se, no
século XIII, no De radiis stellarum de Al-Kindi, em Robertus
Grossetestus, Albertus Magnus e Rogerius Baconus. Integrava estas
disciplinas matemáticas com a Filosofia Natural de Aristóteles através
de um modelo geométrico-óptico das influências celestiais na ampla, e
essencialmente ptolomaica, estrutura cosmográfica disponibilizada pela
astronomia matemática e geografia. Esta filosofia natural, fortemente
matematicizada, disponibilizava os modelos fundamentais de
interpretação e análise no contexto científico pré-moderno (i.e.
pré-Newtoniano)." (Sapientia Astrologica: Astrology, Magic and Natural Knowledge, ca. 1250–1800, I. Medieval Structures (1250-1500): Conceptual, Institutional, Socio-Political, Theologico-Religious and Cultural, Springer Nature Switzerland AG, 2019, xvii [trad. nossa]). No séc. XIII, Roger Bacon (Baconus ou Baconis), o Doctor Mirabilis escolástico, explicou a astronomia como astrologia prática e referiu que os mathematici são chamados, de modo indiferenciado, astronomi e astrologi, porque já assim o faziam Ptolomeu e Avicena. Também refere, por exemplo, a ambiguidade da terminologia "domus", diferencia o zodíaco fixo (que começa no primeiro ponto de Aries) do movente, bem como expende uma útil definição de 'mansão lunar': "o espaço do zodíaco que a Lua atravessa num dia". Na introdução ao seu Secretum Secretorum, deambula por questões de Geomancia (essa "combinaison d'astrologie, d'arithmétique et de loterie", Bouché-Leclercq, p.470, n.1) e inclui uma nota interessante sobre a natureza e efeitos dos planetas: "Deve saber-se, dos signos e dos planetas, que não são substancialmente quentes ou frios, secos ou húmidos; tal como o vinho não é naturalmente quente e seco, contudo aquece e desseca, e embebeda mas não é ébrio em si mesmo; e assim acontece com inúmeras outras coisas" (cit. por Tester, pp.180-81; trad. nossa). O Dominicano Alberto Magno (Albertus Magnus, o Doctor universalis ou Doctor expertus), mestre de Tomás de Aquino, aceitou com naturalidade (como o seu contemporâneo Bacon) a Astrologia na sua visão do mundo. Entre os textos que 'prescreveu', incluem-se o Quadripartitum (nome lat. do 'Tetrabiblos'), traduções latinas de Albumasar, Masha'allah e e de outros autores em Árabe. Também os exclusivamente "astronómicos" Almagesto (com a tradução do comentário de Geber, i.e. Jabir ibn Aflah, por Gerardo de Cremona), e tratados sobre o astrolábio.
Detractores Evidentemente, aquela vertente a que se chamou judicatura teve, em todas as épocas, detractores argutos. Desde Carnéades (Karneádēs), Cícero, Ennius e Sextus Empiricus a Santo Agostinho, das condenações promovidas na Universidade de Paris em 1277 (entre outras nos séculos XIII e XIV) a Maimónides ou Langenstein, Oresme ou Selder (ver paper de C. P. E. Nothaft acerca deste antagonista menos conhecido), de Pico della Mirandola aos satíricos denunciando os prognostica inconsequentes, particularmente comuns na Renascença (vide Grafton, A., Cardano's Cosmos, Harvard University Press, 1999, 50 et seq.). Também algumas condenações papais (e.g., Bula Cœli et terræ Creator, Sisto V, em 5 de Janeiro de 1586, deliberações tridentinas, etc.). De Carnéades aos Padres da Igreja, vide a útil "filiação" dos cépticos organizada por Franz Boll, onde encontramos, entre outros, Clitómaco, Favorinus, Sextus Empiricus, Panaetius (Panaítios) de Rodes, Cícero, Santo Agostinho, Fílon (Phílōn) de Alexandria, Orígenes, S. Ambrósio, S. Gregório de Nissa (v. F. Boll, Studien über Claudius Ptolemaeus: Ein Beitrag zur Geschichte der griechischen Philosophie und Astrologie, in: Neue Jahrbücher für Philologie und Pädagogik, Supplementband 21,2 (1894). Gregório, bispo de Tours (séc. VI) repudiou a astronomia pagã e as suas constelações, procurando reduzir a sua utilização ao estritamente necessário na vida monástica, nomeadamente ao cômputo do tempo. Mas, no geral, não foi seguido. Até ao século XII, quase tudo o se refere à "astrologia" respalda-se em Macrobius, Isidoro de Sevilha e de Beda, o Venerável. O paradigma era livresco, baseado nas "autoridades", priscorum dicta, os saberes e ditames dos "Antigos". A distinção entre Astronomia e Astrologia, desenhada em termos Cristãos, não foi feita com argumentos teoréticos, científicos, mas apenas contra a superstição, contra tudo o que derrogasse a omnipotència de Deus e a liberdade do homem. Para Isidoro de Sevilha, a prognosticação só foi permitida até à chegada do Evangelho, à Encarnação de Cristo: usque ad evangelium fuit concessa. (Tester, p.125) Ao referir os que ousaram "espreitar" o futuro, que somente Deus conhece, Dante (Canto XX.118) castiga-os no seu Inferno,
virando as suas cabeças nos seus ombros de modo a que só possam olhar
para trás. Entre estes coloca o célebre astrólogo Guido Bonatti de
Forli: Vedi Guido Bonatti, vedi Asdente,
"Vi Guido Bonatti, vi Asdente". Este último foi um conhecido vidente em
Parma, Bonatti é uma entre muitas figuras revestidas pelo manto da
lenda e do prestígio de prodigiosas prognosticações. Tal como em tantos
outros casos encontrados em "histórias da astrologia", não há qualquer
evidência documental. Até a célebre resposta de Isaac Newton a Halley (‘Sir, I have studied these things — you have not.’) já foi exposta como "rumor infundado" por I. Bernard Cohen (Isis, XXXIII (1941) 60-61. Query No. 99: Isaac Newton — an advocate of astrology?) Gli Indovini ("Os Adivinhos"), MS Egerton 943, f.35v (British Library), Norte de Itália (Emilia ou Pádua), primeira metade do séc. XIV Se, como o céptico Cícero constatava, a configuração do céu tinha, segundo os mathematici (astrólogos), tamanha influência na nascença de todas as coisas vivas, essa influência exercia-se não apenas nos homens mas também nos animais. Recorrendo com ironia ao conceito de "simpatia universal", Favorinus (c.80–c.160 AD), sofista e céptico romano que viveu na época do Imperador Adriano, não hesitou em "solicitar" os horóscopos de sapos e mosquitos! (ap. A. Gellius, XIV, l, 31). E na prosa de Santo Agostinho (Civ. Dei, V, 7): "Solent tamen homines ad temptandam peritiam mathematicorum adferre ad eos constellationes mutorum animalium, quorum ortus propter hanc exploralionem domi siiae diligenter observant, eosque mathemalicos praeferunl ceteris qui constellationibus inspectis dicunt non esse hominem natum, sed pecus. Audent etiam dicere quale pecus, utrum aptum lanitio, an vectationi, an aratro, an custodiae domus. Namet ad canina fata temptantur, et cum magnis admiranlium clamoribus ista respondent." ["Todavia, homens há que, para provarem o talento dos astrólogos, lhes costumam apresentar as constelações de animais mudos cujo nascimento observaram cuidadosamente em casa na mira de esta consulta - e preferem aos demais os astrólogos que, pelo exame das suas constelações, declaram que não foi um homem mas um animal que acabou de nascer. Atrevem-se mesmo a afirmar de que espécie de animal se trata - se de um animal de tiro ou lanígero, apto para o arado ou para guardar a casa. Consultam-nos até acerca do destino dos cães e as suas respostas levantam grandes aclamações dos seus admiradores." (trad. J. Dias Pereira; A Cidade de Deus, vol.1, (2ª ed.), Fundação Calouste Gulbenkian, 1996) No Contra divinatores horoscopios (1370), Nicole Oresme havia salientado erros e contradições da Astrologia, judiciosamente aduzindo argumentos filosóficos (como podiam as causas gerais e distantes prevalecer sobre as próximas e imediatas?). Segundo C. Jourdain: "Afin de mettre pleinement en évidence les conclusions qu’il a posées, il [Oresme] discute quelques-unes des propositions qui servent de fondement aux spéculations astrologiques, par exemple, que la durée de l’existence, le bonheur et le malheur dépendent de l’astre sous lequel chacun de nous a été conçu. Doctrine chimérique, répète Oresme pour ainsi dire à chaque page; doctrine qui mène à la destruction de toute philosophie; car en expliquant toutes choses par l’influence des corps célestes, par le pouvoir de Mars ou de Saturne, c’est-à-dire par des causes générales et éloignées, elle détourne de la recherche des causes prochaines et immédiates, de ces causes que cherchait Aristote, et qui sont l’objet propre de la science" (Nicole Oresme et les astrologues de la cour de Charles V., Paris, 1875, pp. 16-17). Oresme cedo avisava para o perigo que a Astrologia constituía para a verdadeira Filosofia ao tudo explicar pelas influências astrais, afastando da discussão as causas próximas e imediatas, as mesmas que Aristóteles equacionava e que são objecto próprio da busca do conhecimento. Sebastian
Brant (1457-1521) foi um humanista e satirista germânico, nascido na
Alsácia, principalmente conhecido pelo seu poema satírico e moralista A Nau dos Loucos (ou dos Insensatos): Das Narrenschiff
(orig. Daß Narrenschyff ad Narragoniam; Stultifera navis na tradução latina de Jakob Locher, chamado Philomusus, 1497),
publicado em 1494. Já se encontra uma alegoria de um navio mal
governado, com uma tripulação disfuncional em Platão ("República", lib.
VI). A obra de Brant inspirará uma pintura de Hieronymus Bosch. As
gravuras (atribuídas a Albrecht Durer) potenciaram o sucesso da obra de
Brant também junto de
uma audiência iliterata. Acerca da adivinhação pelas estrelas, o autor
escreve: "O palerma é quem promete mais do que tem conhecimento ou capacidade para fazer. Prometer cabe bem aos médicos, mas um néscio promete em um dia mais do que o mundo inteiro conseguiria fazer. As cabeças de todos estão agora cheias de futuro, tentando ver o que nos dizem as estrelas no firmamento e a trajectória dos planetas, ou qual o desígnio de Deus. Todos acham que devemos saber o que Deus planeja fazer connosco, como se as estrelas determinassem algo iniludível a que tudo obedecesse, e Deus não fosse Senhor e Mestre..." (trad. Karin Volobuef, Octavo Edit., São Paulo, 2010)
O referido ataque do prodígio italiano afinal parece, incidentalmente,
ter contribuído para o ulterior retorno a Aristóteles e a Ptolomeu. De resto, "apenas o Tetrabiblos
de Ptolomeu fornecia um esquema conceptual que relacionava as práticas preditivas
com a Filosofia Natural de Aristóteles" (Vanden Broecke, S., The Limits of Influence,
Brill, 2003, p.14). A estreita relação entre o conjuncionismo e a
história religiosa será uma evidente fonte de atritos entre a
Astrologia e a Teologia.Entretanto, a Teologia ganhará
terreno com a aproximação do final do séc. XVI e muitos astrólogos reconhecem-no, enfatizando a
impossibilidade do julgamento distinguir se a Causa reside na acção directa de Deus ou na acção dos corpos celestes ("causas secundas").
Também em Portugal a ameaça reverberou, e curiosamente está relacionada com o nosso maior épico: Luís de Camões. Teófilo Braga acreditava que "para em tudo ser verdadeiro, o poema liga-se na sua estructura intima ás fases da vida do poeta" (Camões e o Sentimento Nacional, Porto, 1891, p.65). Segundo uma hipótese nascida desse inflexível biografismo, Teófilo acreditou que Camões, nascido por volta da "fatídica" data. pode ter-se referido retrospectivamente a essa comoção "universal" numa passagem da famosa canção "Vinde cá, meu tão certo secretário": Quando vim da materna sepultura
Mário
Saa (1893-1971) aprofundará o argumento astrológico,
nunca valorizado pelos camonistas, num ensaio dado à estampa pela primeira vez em livro em 1940.
A enorme comoção obrigou a incisivas refutações. Seguindo o exemplo do De falsa diluvii prognosticatione do italiano Agostino Nifo (Firenze: eredi Filippo Giunta, 1520). O Pe. Cristóbal de Arcos intitulou a sua tradução em Castelhano, dedicada a Carlos V: Reprobación nuevamente ordenada contra la falsa prognosticación del diluvio que dizen que será el año de MDXXIIII. No nosso país, Frei António de Beja publica em Lisboa (por German Galharde, em 1523) o seu Contra os juízos dos Astrologos. Breve tratado contra a opinião de alguns ousados Astrologos que por regras de astrologia, non bem entendidas ousam em publico dizer que a quatro ou cinco dias de Fevereiro de 1524 por ajuntamento de alguns planetas em o signo de Pisces sera gram diluvio na Terra (v. Mário Saa, Memórias Astrológicas de Luís de Camões, Edições do Templo, Lisboa, 1978 (1940), pp.22-23; Joaquim de Carvalho. O livro “Contra o Juízo dos Astrólogos” de Frei António de Beja e suas fontes italianas. in: "Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI", vol I. Coimbra: Coimbra Editora, 1947. pp. 385 e 386; José V. Pina Martins, Fr. António de Beja contra a Astrologia Judiciária. in: "As Grandes Polémicas Portuguesas". Lisboa: Editorial Verbo, 1964. pp.88-89). Passado o período da expectativa, o dilúvio não ocorrera! Garcia de Resende, contemporâneo da catastrófica previsão, faz um comentário nas redondilhas da sua Miscelânea:
Curiosamente,
Ptolomeu não menciona as conjunções dos planetas lentos
(Júpiter e Saturno) na discussão doutrinária da previsão colectiva ou
da meteorologia, antes se baseando na interpretação dos eclipses e das
lunações regulares. Esta perspectiva prevalecerá depois da Renscença,
acompanhando a tendência que pretendeu o "retorno a Ptolomeu"
desprezando as nugae arabum e advogando o repúdio pelas supostas "superstições dos árabes" (v. Ornella Faracovi, The Return to Ptolemy, in: A Companion to Astrology in the Renaissance, Brill, 2014, p.87 et seq.), que, na realidade, também recuam, essencialmente, à origem Helenística.
“(...) Seth, as we have read, was the first to use this art. The Chaldaeans received it from him; then it went from them to the Persians, and from them to the Greeks, from whom it was transferred to the Egyptians, from whom the Romans were also initiated. Then finally the Arabs got it. And all the nations that have been mentioned had nearly cosmocratic and victorious dynasties as long as they used it. Therefore I thought it necessary to renew this useful science among the Romans and to implant it among the Christians so that they might be deprived of it nevermore." (Excerto de um tratado bizantino de Στέφανος, romaniz. Stephanos, chamado "O Filósofo", tentando enquadrar a Astrologia na prestigiosa tradição vetero-testamentária que recuaria a Seth (ou Set), filho de Adão e associando-a ao sucesso dos antigos impérios; (David Pingree, Classical and Byzantine Astrology in Sassanian Persia, Dumbarton Oaks Papers, 43, 1989, p.239)
Numa perspectiva antropológica estamos na presença de 'sistemas de crença e representações'. A Astrologia não se resumia a uma explicação "física" do Universo. Nascida de uma fusão entre ciência e religião, constituía uma "Lei Universal da Natureza" (Thorndike, 1955, p.273), promovendo uma integração plena que estendia a todo o Universo os comportamentos humanos. Segundo Paolo Rossi, tratava-se de uma "coerente e orgânica visão do mundo" (Sobre o declínio da Astrologia no início da Idade Moderna, 1966), baseada em conceitos de distinção, hierarquia e influência, com os quais toda a sociedade se identificava.
Convém compreender que Ptolomeu não representava, em muitos aspectos, a tendência mainstream da Astrologia da sua época. Na introdução de Ptolemy in Perspective: Use and Criticism of his Work from Antiquity to the Nineteenth Century, Springer, 2010, editado por Alexander Jones, lemos que os astrólogos do tempo de Ptolomeu não distinguiam entre ano tropical e ano sideral, utilizando uma estrutura de referência que sendo Tropical,
era aproximadamente "Sideral". Ptolomeu assevera que a referência
tropical (i.e. com os limites dos signos alinhados com os pontos equinociais
e solsticiais) corresponde à realidade física. Todavia,
contraditoriamente, caracteriza de quando em vez os signos com
atributos ("quadrúpede", "aquático", etc.) que obviamente derivam das
constelações zodiacais "reais" que aproximadamente coincidiam com os signos
tropicalmente definidos na sua época. Como Jones refere (Ancient Rejection and Adoption of Ptolemy’s Frame of Reference for Longitudes, Op. cit.
p.38), a tomada em consideração da Precessão (que é característica da
astrologia "reformista" de Ptolomeu) não concitou a aprovação da
generalidade dos seus contemporâneos, satisfeitos com a bem sucedida e
antiga prática que já existia. Na mesma colectânea de ensaios, Stephan
Heilen (Ptolemy’s Doctrine of the Terms and Its Reception. in: Jones, A. (eds) "Ptolemy in Perspective". Archimedes, vol 23. Springer, 2010),
p.52), refere que praticamente todos os contemporâneos de Ptolomeu
utilizavam uma estrutura sideral, e aí reside o enorme contributo de
Ptolomeu para a história da astrologia: na altura em que escreve a sua Apotelesmatika (Tetrabiblos),
o diferencial entre os zodíacos sideral e tropical era de cerca de
3.5°. Em resumo, segundo Heilen, Ptolomeu não representa rigorosamente a
"típica" prática helenística ou clássica, antes assumindo uma tentativa híbrida
e fascinante de incremento da lógica dos princípios tradicionais
(ibid., p.77).
Referências paralelas e intertextualidades: neoplatonismo, hermetismo, etc. O subtítulo é redundante. Tudo aqui é intertextual. Na doutrina Neoplatónica (síntese helenística de muitas ideias filosóficas), traduzida (em termos astrológicos) nos argumentos de Porphirius, os astros são "signos" e não causa eficiente do destino. Significa que as 'almas' são livres, não obedecendo a uma 'necessidade' mecânica mas sim a uma predestinação. Assim sendo, a Astrologia não será o estudo das causas, antes, uma vez mais, decifração de uma "escrita divina". Quod est superius est sicut quod inferius, et quod inferius est sicut quod est superius (excerto Lat. do segundo verso da Tabula Smaragdina da tradição hermética. Alegadamente "descoberta" numa cave sob uma estátua de Hermes por Apollonius de Tiana (séc. I A.D.), é na realidade uma "falsificação" datável no intervalo entre o séc. VI e meados do VIII; Burnett “The Establishment of Medieval Hermeticism”, 2001, p.118) [Na
Alta
Idade Média, durante um "intervalo" da prática astrológica informada
pela escassez das fontes literárias, permaneceram exclusivamente os
'eternos' procedimentos (sortilégios) simplistas e populares. Entre os
estratagemas estavam os ‘livros do
destino’, Sortes,
disponibilizando conjuntos de respostas para determinadas questões,
sendo a "correcta" seleccionada de um qualquer maneira aleatória
(dados, volvelles, geomância... qualquer método que encontrasse o
número da resposta), vide
Tester, p.144. A Geomancia disponibilizava padrões de números para os
planetas, que surgem muitas vezes apensos nas ilustrações dos
textos medievais.]
Referido-se ao ambiente cultural na época de Chaucer (séc. XIV), J. D. North refere: "Most educated writers (...) were aware that Plato and the neo-Platonists, inspired by Pythagoras before them, had believed that number was the key to an understanding of the universe. To those familiar with Augustine, the world was God’s poem. Writers who had this in mind, and who conceived their purpose to be the imitation of nature, tried inevitably to introduce nature’s numerical forms into the patterns of their own creation, and they were encouraged by their awareness of an ancient numerological tradition in Hebrew writing that had later made its mark on certain strands in Latin biblical scholarship. In the fifteenth century they were to be explicitly enjoined by Pico della Mirandola—in the Heptaplus of 1489—to write with symbolic numerical structures in view, but of course Dante and Boccaccio had already shown Chaucer the way," (Chaucer's Universe, Op. cit. p.342). Para determinadas sensibilidades da Renascença (Garin, Op. cit., p.126), os céus constituiram a nascente arquetípica de tudo, da qual brotava o mundo sensível. O poema Zodiacus vitae do autor apresentado como Marcellus Palingenius Stellatus (oriundo da região de Ferrara, séc. XVI), foi escrito em hexâmeros latinos e está dividido em doze livros, cada um titulado por um signo zodiacal. O seu autor foi, tal como Erasmus. um crítico da Igreja Romana. O livro foi colocado no primeiro Index Librorum Prohibitorum pela Inquisição. Nesta obra peculiar assiste-se a uma tendência para desvalorizar cada vez mais o mundo sublunar, e escreve-se: "O éter tem os seus cidadãos, e os astros são as cidades do céu e a morada dos deuses. Em cima os reis e os povos; e é lá que habitam os verdadeiros reis; lá moram todas as coisas verdadeiras. Em baixo, pelo contrário, vivem apenas as sombras das coisas [umbra simulacraque rerum], e os vãos simulacros que o tempo destrói, corrompe e dissolve, e a morte, por fim, aniquila. É nos céus que habitam os bem-aventurados, os imortais e os sábios. Os infelizes, os mortais e os insensatos povoam a Terra. Em cima moram a paz,a luz, a alegria suprema. A Terra é devastada por uma guerra contínua, coberta de trevas e atormentada por sofrimentos de toda a espécie". (Zodiacus vitae, XI). Trata-se do céu como região sumamente platónica, não confinada por "esferas", poética e de superior beleza.
O "pequeno mundo" que é o Homem subordina-se às influências do Macrocosmos.
O ensino da Filosofia de Aristóteles nas universidades medievais
encorajou ou contribuiu para a racionalização dos textos astrológicos. Deus é a Causa Primeira de todas as coisas. Mas no âmbito da Philosophia Naturalis,
é o poder do céu imutável e dos movimentos celestiais que produzem a
mudança nas coisas terrenas, que, porque compostas a partir dos quatro
elementos mutáveis (terra, água, ar e fogo), estão sujeitas à geração e
corrupção, fortuna e infortuna. Trata-se de uma resiliente síntese da Teoria dos Elementos com a Cosmologia Aristotélica, articulada no De generatione et corruptione. Confirma-se no Commentarium medium & epitome in libros de generatione et corruptione de Averróis, no anónimo Auctoritates Aristotelis ou na famosa citação na De spera de Sacrobosco, quando se refere o movimento de 'acesso e recesso' do Sol no 'círculo oblíquo' [a Eclíptica], do qual decorre a geração e a corrupção das coisas inferiores (Thorndike, L., The Sphere of Sacrobosco and its Commentators,
University of Chicago Press, 1949, p. 124). "Os
académicos discutiam sobre meteorologia, incluíndo, por exemplo, as
causas dos terramotos ou das auroras boreais, apesar de nunca terem
experimentado um ou visto a outra. Estava tudo nos livros, escritos por
e para académicos" (Tester, p.179). O mesmo podemos afirmar da
excessiva importância
atribuída aos cometas, suas designações, tipologias, correspondências
com as naturezas dos planetas e características minuciosamente
descritas. (Como sabemos, são raramente
observáveis a olho nu; o único não telescópico que o autor destas páginas viu em décadas foi o memorável Hale-Bopp em 1997) Segundo J. D. North, a aceitação desta cosmologia implicava a aceitação concomitante da Astrologia (Richard of Wallingford, Clarendon Press, 1976, II, p.84). A síntese definitiva será conseguida por Albumasar (Abu Ma'Shar), vide Richard Lemay: Abu Ma'Shar and Latin Aristotelianism in the Twelfth Century, American Univ. of Beirut, Oriental Ser. 88, 1962, pp. 55-85). Com adaptações e subtilezas provenientes da inerente complexidade do contexto, a vertente natural insinua-se ainda na physis dilucidada no Curso Conimbricence, cujos textos "chamavam à colação toda uma longa tradição peripatética para a fazerem dialogar criticamente com os problemas e as soluções do novo e difícil tempo que foi o século XVI" (Carvalho, M. S., O Curso Filosófico Jesuíta Conimbricense, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018. p.9). A aceitação geral da vertente 'natural' - o recurso às influências planetárias na medicina, alquimia e meteorologia - respaldou-se nessa generalização da Física Aristotélica. As antigas doutrinas dos elementos também faziam parte desta. Na distinção entre o prognóstico dos tempos (Astrologia natural) e prognóstico dos destinos (a judicatura), a primeira era consensual enquanto a segunda levantava sérios problemas relacionados com a importante questão teológica do livre-arbítrio ou livre-alvedrio. Entre nós, o Rei D. Duarte parece escandalizar-se com a abrangência da doutrina: “Que as pranetas nos outorguem grande parte das condiçoões, preguntemse os estrollegos; os quaaes nom sollamente parte destas, mas todas, querem afirmar que nos som dadas" (Leal Conselheiro, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p.151). Em "Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology" (University of Chicago Press, 2008), North faz uma resenha das circunstâncias da aceitação da Astrologia, referindo como foi considerada parte de uma explicação racional do mundo fisico. Entretanto articulada com práticas mágicas semi-racionalizadas, foi vista (na vertente natural) como ciência empírica, o que se pode comprovar na sua aplicação meteorológica ou na medicina (iatromathematica, do Gr. yatrós, "médico") (pp.287 et seq.). [Para uma 'arqueologia' do conceito médico de melothesia, traduzido no célebre Homo signorum, vide John Z. Wee, Discovery of the Zodiac Man in Cuneiform, Journal of Cuneiform Studies 67 (1 Jan. 2015): 217). O
argumento filosófico crucial, o dos limites do controlo dos astros
sobre o ser humano, não foi curiosamente adiantado por um teólogo
Cristão mas por Plotino, o fundador da escola Neoplatónica: "Plotinus (205-270 AD) accepted
the principles of astrology as a physical system in the Ptolemaic
sense, but he set a crucial limit to the power of the heavenly bodies
over human life. The soul in Plotinus’s thought was a purely spiritual
entity, and could not therefore be subject to physical influences,
including that of the stars." ((Whitfield, P., Op. cit., p.80). A alma, pura entidade espiritual, estaria salvaguardada da influência astral. São
Tomás de Aquino vai estabelecer definitivamente os limites,
considerando que os astros dominam somente os corpos, sendo possível
resistir às suas inclinações através do entendimento e, justamente, do livre-arbítrio (Summa Theologica, 1, Q 115, 4). Adversário da astrologia judiciária, António de Sousa de Macedo (Eva e Ave, ou Maria triunfante: theatro da erudiçam, e Filosofia Christã..., ed. de 1734, P.I, cap. XXVIII, p.120), resume: "...porque
os astros contèm só disposição, & inclinação no appetite sensitivo,
que he potencia corporal em orgaõ corporeo; mas sempre sugeyto ao livre
alvedrio, que pòde frustar aquelas disposiçõens. Daí a expressão amiudadamente encontrada nos autores latinos medievos (mas que não se deve a Ptolomeu): "Vir sapiens dominabitur astris [sua rationabilitate]" ("O homem sábio dominará as estrelas (pela sua racionalidade)", uma de entre as diversas traduções similares propostas, vide Kieckhefer, R., Magic in the Middle Ages, Cambridge University Press, 2000, p.129; Tester, S. J., A History of Western Astrology,
p.177). Da Astrologia seria tudo o que se move para além da vontade
consciente. Mas foi sempre difícil gerir a indeterminação em que a vontade livre opera, na complexidade de mediações através da qual se explica variadamente a unidade do Todo. A formulação aristotélico-tomista será a mais resiliente, agilizando as noções de "influência" e "causa universal",
explicando a presença de outras qualidades não constatáveis
'naturalmente'. Como resume Luís Miguel Carolino, o céu actuaria, não
somente por intervenção do movimento e luz mas através de forças ocultas (occultas vires). Este instrumento, a influentia, explicava outros fenómenos mais "difíceis" (e.g., a geração do ouro e dos outros metais, o magnetismo, etc.). Ainda em presença, estaria a causa universalis
(com fundamentação escolástica) que explicava a preservação da ordem e
afastava o terror da vacuidade (do vazio) produzindo as qualidades primárias, num
cenário de causalidade eficiente dos corpos celestes. Com S. Tomás, considera-se que a influência no mundo sublunar funciona com causa eficiente dos fenómenos, ou causa universal destes, visando a subordinação à verdadeira causa principal, a Providência Divina ("Agant Corpora Coelestia in Sublunarem Mundu an non?" Ciência, Astrologia e Sociedade em Portugal (1583-1755), dissertação de doutoramento, Universidade de Évora, 2000, pp. 86 et seq.). O carácter da Astrologia Medieval e a nova abordagem Renascentista são objectos do enquadramento de Darrel Rutkin (entrevista no âmbito The Astra Project, CIUHCT, Univ. de Lisboa). Segundo Rutkin, na Idade Média prevalece o diálogo com a Filosofia Natural, com a Teologia e com a Magia (principalmente a talismânica). Nesta época, as estrelas têm uma natureza corpórea e a sua influência faz-se sentir na matéria sublunar através dos 'raios estelares'. Atendendo à vulnerável corporeidade, também a mente humana pode ser influenciada. Na Renascença, Ficino vai alargar o escopo ao "platonizar" a Astrologia. Doravante, o Universo será 'animado', torna-se Vivo. Esta visão relacionada com a Magia e com o Hermetismo entretanto assimilado, num millieu neoplatónico, acredita que os planetas têm uma "alma" e podem mesmo influenciar directamente a alma humana, comprometendo radicalmente algumas das salvaguardas medievais relativamente ao livre-arbítrio, etc. Muitos dos ataques de Pico, nas famosas Disputationes, objectivam aspectos da abordagem de Ficino. Após Newton, surgirá um novo paradigma explicativo das interacções macro-microcósmicas. Esta concorrerá para a marginalização da Astrologia e para a sua deslocação de legítima modalidade de conhecimento para 'alternativa' periférica. As descobertas de Galileu, as novae ("novas estrelas", mapeadas muito para além dos limites do mundo sublunar, e.g., por Tycho), e o debate em torno da cometologia (a natureza dos cometas) entre outros factores complexos e nem sempre imediatos, vão subsidiar a falência do modelo cosmológico aristotélico, abalando definitivamente a superioridade ontológica dos céus (vide a pertinente exposição de Luís M. Carolino, Ciência, Astrologia e Sociedade, A Teoria da Influência Celeste em Portugal (1593-1755), Fundação Calouste Gulbenkian, 2003). A 'Nova Física', a crítica Iluminista (relacionando retoricamente como antagónico o que antes estava "entrelaçado") e o mecanicismo do séc. XVIII acentuarão a ruptura. Segundo Brendan Dooley (Astrology and Science, Op. cit.), a Astrologia pós medieval atravessará três períodos fundamentais: 1) coincidindo aproximadamente com o Quattrocento, vai assimilar o corpus
hermético recém-descoberto e o neoplatonismo renascentista, 2) no séc.
XVI assimila o revivalismo aristotélico, abandona as teorias históricas
baseadas nas conjunções, consolida-se e redescobre Ptolomeu; 3) dos
finais do séc. XVI até ao início do séc. XVII, procura aproximar-se das
novas abordagens ao conhecimento natural, que eventualmente colocarão a
própria Astrologia em causa, enquanto sistema epistemologicamente
válido. O próprio processo do desenvolvimento científico ou dos saberes é plural e muito complexo. Para Steve Shapin (The Scientific Revolution, University of Chicago Press, 2018 (1996), vide "Some Historiographical Issues" na introdução), é questionável se houve no século XVII sequer uma entidade cultural única, coerente, chamada 'Ciência’ que pudesse ter conhecido uma mudança revolucionária. Shapin ("The History of a Term", Op. cit., p. 1), é peremptório: "There was no such thing as the Scientific Revolution, and this is a book about it.", contrariando a versão tradicional da "ruptura conceptual" celebrada por A. Koyré em 1943. Como explica Kocku von Stuckrad (História da Astrologia: da Antiguidade aos nossos dias, São Paulo, Ed. Globo S.A, 2007, cap.
VI), em vez de prosseguir repetindo o mito da "Revolução Científica",
tende-se hoje a analisar os processos culturais devotados à produção de
opiniões (sobre a realidade) compartilhadas coletivamente. Nesse
sentido, deu-se continuidade a propostas que já haviam sido formuladas
na Idade Média, na Renascença e na Reforma [e na Contra-Reforma], agora
complementadas por observações pioneiras na Física. Falar de
'revolução' "é uma estilização mítica das verdadeiras origens da
mudança". Não foi uma "revolução", mas sim o estabelecimento de um
método como disciplina-mestre cultural. A imposição de uma visão de mundo mecanicista (newtoniana)
rejeitou como retrógradas todas as explicações “ocultas” ou veladas,
não mensuráveis. É também a "era da crítica", segundo Kant (prefácio à Crítica da Razão Pura,
1781). Porém, vale dizer que foi basicamente na luta entre
aristotelismo - ou melhor: "neo-escolástica" - com o novo pensamento,
que os caminhos se separaram.
J. D. North (Chaucer's Universe, Oxford, Clarendon Press, 1988) resumiu os momentos da génese da perspectiva aristotélica e a resultante separação em duas "naturezas":
Seguindo a lúcida dissertação de Luís Miguel Carolino (Agant corpora coelestia in sublunarem..., Universidade de Évora, 2000), resumimos a doutrina, nas suas linhas fundamentais, de inspiração aristotélica. Assim, a formulação mais completa baseava-se no dualismo das diferentes naturezas, das duas realidades distintas e hirarquizadas: - Os céus eram incorruptíveis, feitos da quinta substantia. Os corpos celestes eram de uma natureza constituinte diferente da dos terrestres. Os planetas (gr. πλανήτης (planētēs), lat. erraticae ou errones [stellae] ou, simplesmente stellae, por oposição a astra, sidera] moviam-se segundo um movimento circular, logo perfeito e eterno. Serão, noutras interpretações, por vezes associados a "inteligências" espirituais (e não raramente aos 'anjos'). - O mundo sublunar, por oposição, era formado pela combinação dos quatro elementos, por isso caracterizado por movimentos ascendentes ou descendentes, rectilíneos, prevalecendo os processos de geração, mutação e corrupção, como as mudanças sazonais, os processos geológicos e vegetativos, o nascimento e a morte da vida vegetal e animal. Esta mutabilidade estava intimamente relacionada com a influência dos corpos celestes. A figura mais perfeita e mais capaz que quantas inventou a natureza, (Vieira, P. António, Sermões, Alves, Pe. António (org.), 15 tomos, Porto, Lello & Irmão, 1959; X, 203)
A "causalidade natural" astrológica, tradicional, seria agilizada (de modo abrangente), num primeiro momento, pelo "movimento & lume" (o movimento e a luz). O renascentista Tommaso Campanella (1568-1639) referirá que as estrelas operam nas coisas sublunares por calor, luz, movimento e aspecto. O Tomismo considerava que os céus eram constituídos de matéria e forma (que são responsáveis pelo movimento e mudança mas aí inseparáveis entre si, logo incorruptíveis). Daqui surgiu a preocupação da distinção entre o 'calor' causado per se do calor causado per accidens, sendo este último o teoricamente adoptado. Realçava-se a importância da Lua, cujo movimento 'arrebatava' o fogo impoluto contíguo à esfera do ar, aquecendo a região sublunar. Reconhecia-se a influência dos luminares, dos planetas e ainda das estrelas fixas (que Ptolomeu não utiliza mas que serão em muitos autores utilizadas nos julgamentos das natividades, astro-meteorologia e doenças, particularmente estando conjuntas com algum planeta, particularmente a Lua, ou nos ângulos do thema). A abordagem medieval separará as aplicações da astrologia: em tese, os eclesiásticos distinguiam naturalia de contingentia, admitindo a predição de coisas 'naturais' como doenças, fertilidade ou meteorologia; não a das coisas que dependiam de Deus ou do livre arbítrio dos homens. (Gleadow, Op. cit., p.45) Acerca da "omnipresença" do simbolismo associado à Lua, Bouché-Leclercq escreveu: "On peut dire sans exagération qu'il a existé de tout temps et qu'il existe encore une espèce d'astrologie naturelle, c'est-à-dire créée spontanément par l'opinion commune, une astrologie indépendante de celle des Chaldéens, Égyptiens, Hellènes, et dont la Lune est l'objet, le sujet, le centre le moteur." (L'Astrologie Grecque, 1899, p.90)
Ou seja, o livre arbítrio (liberum arbitrium)
e a responsabilidade perante Deus deveria ser preservada. A
materialidade física poderia estar sob a influência dos astros mas
nunca a vontade. A periclitância levou à criação de um célebre dictum que se tornou um "descargo de consciencia": Vir sapiens dominabitur astris, o sábio é "senhor" das suas paixões e "domina" as estrelas. Já em Boécio (Boethius) se encontra a premissa de que uma pessoa respaldada na virtude pode evitar a mutabilidade da 'fortuna', pois partilha da imutablidade divina. É importante ter em mente que ninguém questionava a validade da Astrologia. Esta podia ser criticada como demasiado complicada ou demasiado difícil para ser exequível. Partes dela, nomeadamente a genetlíaca, podiam ser rejeitadas como ímpias ou erradas. Mas que era possível, todos reconheciam, em particular a vertente chamada 'científica' ou natural era universalmente "aceitável" (vide Tester, p.178). Genericamente, reconhecia-se a influentia na vida vegetativa, nos fenómenos meteorológicos e nas enfermidades, através dos chamados 'aspectos', dos humores e na íntima relação com a doutrina dos "Dias Críticos", cara à medicina galénica (de Galeno de Pérgamo, notável médico do séc. II). A saúde e as suas disfunções interpretavam-se segundo o equilíbrio ou desequilíbrio dos humores do corpo. Somente a partir de Francis Bacon (1561-1626) se procurou privilegiar o procedimento indutivo, fundador do Método Experimental que hoje valorizamos. De um modo interessante, o legado hermético nas ciências experimentais emergentes, em particular na Química e nas ciências da vida, foi sublinhado por Thomas Kuhn (Tradição matemática versus tradição experimental no desenvolvimento da Ciência Física, in: Kuhn, T., A Tensão Essencial, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 63-100). Como o já citado Luís M. Carolino explica, a necessidade paralela de explicar ocorrências incompreensíveis à luz da filosofia aristotélica levou à consideração das chamadas qualidades ocultas, não manifestas mas constatáveis nos efeitos testemunhados. Exemplo paradigmático era o do magnetismo. Estas 'influentiae' através de virtudes ocultas eram explicadas pelas substâncias constitutivas dos corpos celestes. No século XVII havia, neste contexto, dissonância de opiniões. Alguns autores argumentavam que os planetas 'aquecem', não através da luz mas de uma virtude geradora de calor (vis calefactiva). Não menos importante, a acção oculta realizava-se mediante um "causa universalis", profundamente enraizada na filosofica escolástica entre os séculos XIII e XVII, explicando a preservação da ordem e do Universo e afastando o terror da possibilidade de formação do 'vácuo' (este horror vacui é um traço escolástico). Neste sentido, foi por vezes considerada um meio de intervenção divina que impedia a destruição do Universo (Grant, E., Planets, Stars and Orbs. the Medieval Cosmos, 1200-1687. 2nd ed., Cambridge University Press, 1996, p. 616). A teoria conhecida como ‘Plenismo’. será debatida no âmbito da Dinâmica de Fluídos (e.g., Hobbes, Boyle), também por Newton ou Leibniz. Em pleno século XVII, a tradição hermética e mística ainda oferecia, a
par da abordagem mecanicista emergente, o que se interpretava como
"credenciais de racionalidade". A prática literária do comentário (e.g., no Curso Conimbricense de matriz jesuíta) é extremamente esclarecedora. A sua metodologia recorre a um esquema previsível: quaestiones - resolutiones, desenvolvendo articulus
com teses afins e contrárias dentro de um determinado tema. Quando
surgem situações experimentais, não se destinam à promoção da aquisição
de conhecimento mas sim à demonstração de uma determinada tese (apriorismo). A
ciência era parte da Filosofia Natural. Prevalece o instrumento lógico privilegiado do
silogismo. Relativamente ao desprezo aristotélico e
escolástico pelo empirismo, Keith Hutchinson explica que, "atendendo
a que a experência normalmente indicava os efeitos dissociados das
respectivas causas, esta não parecia proporcionar uma fundamentação
para a concepção aristotélica de epistêmê." (What happened to Occult Qualities in the Scientific Revolution?, Isis,
73, p. 239 [trad. nossa]). Um aristotelismo "eclético" demonstrará algum dinamismo e agilidade na resposta aos dados novos das observações que "abalam o edifício" (os satélites de Júpiter, as fases de Vénus, as manchas solares, a distância dos cometas e novae...). Mantendo o 'prestígio' do edifício doutrinário, adopta o conceito da fluidez das esferas, tripartindo os céus em Caelum Aereum, Caelum Sidereum (onde revolvem os planetas, até ao côncavo das estrelas fixas) e Caelum Empyreum. Seguindo os jesuítas Kircher e Riccioli, aceita-se a natureza elementar da matéria celeste. Como compromisso que não abalava a ortodoxia religiosa, advoga-se amiudadamente o sistema do universo proposto por Tycho Brahe. Com este aggiornamento, o alicerce das teorias astrológicas dissipava-se, no plano da Filosofia Natural (referimo-nos à antiga dualidade das naturezas, a dos céus e a do mundo sublunar). Racionalizam-se assim as qualidades ou "virtudes" ocultas, que passarão a fazer parte do novo discurso científico, reduzidas às causas inteligíveis, naturais e explicáveis na construção da Ciência.
Mas tudo se alterou. Carolino resumiu (2000, p. 477): "Em finais do século XVII e inícios do seguinte, a ciência deixará progressivamente de residir no conhecimento das causas últimas e essenciais dos fenómenos para se converter no conhecimento experiencial desses mesmos fenómenos, um conhecimento traduzível em leis gerais, precisas e expressas matematicamente. Nesse momento, teorias como a influência astral e saberes, como a astrologia, assentes na especulação sobre as qualidades substanciais dos céus e dos planetas, deixaram de ter qualquer sentido. Eram, de facto, superstições, porque submetidas a uma arquitectura cognitiva de natureza apriorística e teleológica. (...) A teoria e a crença de que os céus eram na essência superiores à Terra e que influenciavam determinantemente a vida nesta, deixará de sustentar uma cosmologia comum a uma sociedade".
Iatromathematica (ἰατρομαθηματικά) "Do que temos dito se recolhe que os Medicos astrologos podẽ prognosticar pello conhecimento das causas celestes, & sublunares, os effeitos, & successos que teràm as doenças, porquãto dependẽ dellas os taes effeitos meramẽte, naó com sciencia infaliuel. senao com conhecimento moralmente certo; & digo que nao com sciencia infaliuel, por quanto nao ha Astrologo que saiba & conheça todas as causas celestes, e seus particulares influxos, donde veyo Scoto [Duns Escoto, teólogo e filósofo escolástico c.1266-1308] a dizer que sô os Anjos conhecem perfeitamente os effeitos naturaes, porquanto sô elles tem conhecimento de todas as causas naturaes, das circunstancias, & condiçoens requisitas." (Fr. António Teixeira, Epitome das noticias astrologicas para a medicina, 1670, pp.8-9). Trata-se das implicações médicas da astrologia, i.e. o reconhecimento das predisposições nosológicas (nosologia = classificação das doenças) dos pacientes, prognose, prevenção ou terapia, dependendo do caso. A agilização da prática médica respaldava-se, principalmente, na melothesia
(μελοθεσία) zodiacal (há variantes) e no seu "painel" de
associações e correspondências. A origem dos saberes médicos era,
tradicionalmente, atribuída ao lendário Hermes Trimegistus.
No Corpus Hermeticum há diversos textos relacionados com o que poderemos chamar "medicina homeopática": a ideia geral era a de que se o signo que governa uma determinada parte do corpo estivesse afectado por um planeta maléfico ou por um "mau" aspecto, a parte do corpo seria, por simpatia, também afectada, ficando disfuncional. Decorria daqui que o remédio seria incrementar o poder do signo, usando substâncias vegetais ou animais a ele associadas. A medicina Egípcia já tinha um antigo e vasto acervo desse tipo de remádios semi-mágicos, e a associação com as estrelas deveu-se, provavelmente, à influência Babilónica. Também aí a medicina estava relacionada com a magia. Os Gregos foram os primeiros a desenvolver uma medicina "científica" - a sua mais antiga ciência empírica. Os Babilónios interpretavam as posições das estrelas e planetas enquanto configurações favoráveis e desfavoráveis, e as fórmulas e amuletos medicinais eram feitos e escolhidos em sintonia com as configurações do céu. A correspondência entre plantas e corpos celestes nasceu, decerto, da medicina astrológica. (Tester, Op. cit., pp.23-4). Há na realidade diversas "melothesias". Em Valens (Anth., 2, 36) encontramos uma variante, atribuída aos "Antigos", sob duas formas; ambas seguem a antiga prática de começar o zodíaco em Cancer (Solstício de Verão) ou Leo (o domicílio do Sol) (Aratus 545-549; cf. Bouche-Leclercq, p.129, n.1). A primeira forma não se distancia de modo significativo da versão Hermética generalizada, a segunda concentra-se nos órgãos internos do corpo humano. Uma versão da anterior, enumerando as doenças/disfunções concretas, mais orientada para a prática médica, pode ser encontrada eu Teucro (fragmentos em Valens (2, 36), Rethorius (88) e mais tarde (séc. XII) em J. Kamaterus (L. Weigl, Studien zu dem unedierten astrologischen Lehrgedicht des Johannes Kamateros, Wurzburg 1902, pp. 21-22), A melothesia baseava-se na correspondência das partes do corpo humano com os signos, eventualmento com subdivisões dos mesmos. Podia basear-se nos decanos (10º), a partir destes nos graus individuais e está também documentada recorrendo a dodecatemoria, i.e. cada signo dividido num "microzodíaco" de doze parte de 2,5º cada; vide Neugebauer, O., Melothesia and Dodecatemoria, in Analecta Biblica 3, 270-275 (1959) .
Blaise Pascal (1623-1662) denuncia "...la commune erreur qui est parmi le monde, que la Lune est cause de tout" (Pensées, ed. Faugère I, 252, XXI/ ed. Havet VII.17 e 17 bis).
Todavia, a implantação da teoria humoral hipocrática (que não era única) não foi imediata. Segundo Jouanna: ...the
Hellenistic and Roman medical sects, whether Empiricists, Dogmatists,
Methodists or Pneumatists, did not seem to place much emphasis on a
theory of the four humours. (p.337) E acrescenta:
However, this future was not immediate; the theory did not re-appear in
the philosophical tradition of the fourth century, neither in Plato’s
Timaeus, where the nature of man is constituted of four elements (fire,
water, earth and air), nor in Aristotle. The famous Problem 30.1,
written in the Aristotelian tradition, concerning the melancholics’
genius, i.e. those people in whom black bile is predominant, is not
placed within a theory of the four humours. (p.338). Ou seja, a teoria não aparece no influente Timeu nem no contributo aristotélico onde pela primeira vez surge a referência ao "carácter melancólico", com uma longa e e fascinante história com apogeu na Renascença (vide o clássico Saturn and Melancholy de R. Klibansky, E. Panofsky & F. Saxl). O próprio Galeno parece ter preferido as 'misturas' das qualidades elementares (quente, frio, seco e húmido) no seu De temperamentis. Mas foi ele que, no séc. II AD, com o comentário do referido tratado (In; Hipp. De nat. hom. comm., 1 prooem. 11: CMG V 9, 1, p. 8, 9f. and p. 8, 19f.)
lhe garantiu o prestígio, ao mostrar ser essa teoria o alicerce do
trabalho do grande Ἱπποκράτης, transl. Ippokrátis (mestre rodeado de uma atmosfera de lenda e do qual,
como Vivian Nutton refere [Ancient Medicine, Routledge, 2004, ch.4] quase nada sabemos). Em todo o caso. Jouanne conclui: "é
somente alguns séculos depois de Galeno, na medicina Grega da
Antiguidade tardia, que a teoria dos quatro temperamentos (fleumático,
sanguíneo, bilioso [colérico]
e melancólico), com todas as suas características físicas e morais,
encontra expressão plena e quando a teoria dos quatro humores se
dissemina de um modo sem precedentes, quer expressamente ligada aos
ensinamentos hipocráticos e galénicos, ou não." (p.340, [trad. nossa]). A condição de saúde seria mantida pelo equilíbrio entre quatro humores (i.e., fluidos corporais): sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra (sanguinem flegma, choleram rubeam et choleram nigram), procedentes, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço. Cada um destes humores teria diferentes qualidades. As doenças seriam causadas por desequilíbrios. Assiste-se então, neste corpus de saberes obviamente empíricos e conjecturais à correlação completa entre elementos, qualidades, temperamentos e idades da vida humana. Na leitura comum, estas últimas são sete, pela sua alocação aos planetas (começando na "primeira idade" e na
'esfera da Lua', a mais próxima de nós, e terminando na mais longínqua,
a 'esfera de Saturno'). O monólogo de Jaques em "As you Like It" (Act 2, Scene 7) é um dos mais icónicos de Shakespeare e reflecte a doutrina das sete idades do homem: A origem dos períodos (em anos) associados a este tropo das "Sete Idades do Homem" parece ser apocatástico, i.e. relacionado com as revoluções dos planetas e o retorno às mesmas posições no Zodíaco.
Os Pitagóricos tinham enorme respeito pelos números quadrados e, a partir do 7 e do 9, valorizaram, especificamente, o 49 (7x7) e o 81 (9x9). O cômputo septenário aplicava-se ao corpo, o novenário à alma (plerique duos istos numeros subliliter dicreverunt, dicentes septenarium ad corpus, novenarium ad animam pertinere). O sexagésimo terceiro ano de vida (7x9) ameaçava ambos simultaneamente (Censorinus, De Die Nat., 14, 13-15) De resto, tanto havia Alopatas como Homeopatas na Antiguidade: "secundum physicos, qui morbos aut a contrariis aut a similibus asserunt posse depelli" (Servius, Ecloga X, 65)
Magia e afins...
Uma concepção
'animista' conduzirá, muitas vezes, a uma união da Magia e da
Astrologia. Segundo Cumont (citado por Garin, op. cit., p.10), "planetas
e constelações não eram apenas forças cósmicas cuja acção propícia ou
nefasta se debilitava ou reforçava segundo as voltas de um curso fixado
pela eternidade; eram divindades que viam e entendiam, se regozijavam
ou afligiam, tinham uma voz e um sexo, eram fecundas ou estéreis, doces
ou selvagens, obsequiosas ou dominadoras". O determinismo astrológico pode parecer antagónico da abordagem "provocadora" ou agilizadora da operação mágica,
que procura alterar o devir dos processos e acontecimentos, mas seria
uma distinção demasiado simplificada. De facto, ja na doutrina das interrogações (interrogationes)
o Homem ludibria o "momento fatal" da sua natividade e "descobre
alternativas ainda abertas, momentos de indiferença, em que pode
inverter o processo e escolher, por sua vez, a própria estrela" (Garin,
Op. cit., p.55). Na abordagem
mágica, "é na mediação das imagens, que têm por tarefa condensar os
poderes celestes, e dirigi-los, que se manifestam as mais remotas
heranças dos cultos astrais. No momento da passagem da definição
matemática duma configuração do céu para a tentativa de transformar as
consequências, dominando-as e diregindo-as: neste ponto, os cálculos
são substituídos por exorcismos, sortilégios, orações, enquanto corpos
e espaços celestes retomam os rostos dos deuses e dos demónios."
(ibid.,
p.58). Nesta "ciência das imagens", das figuras, dos sigilos ("marcas",
"sinais") de cerimónias mágicas e talismãs, encontramos um mundo de "olhares amigos ou inimigos", de realidades faustas ou nefastas, benignas ou malignas. E é preciso gerir as interacções, "ora
fazendo-as convergir e concentrar-se, se benéficas, ora dispersando-as,
ou atenuando-as, se maléficas, com a ajuda de pedras, anéis, selos,
etc.". Como Garin resume, Astrologia e Magia "fundamentam"
teoricamente a teoria das influências, e toda a trama de
correspondências que ligam e unificam o Cosmos, do Uno-Todo ao Homem, a
"imagem abreviada" dos cosmos. A magia talismânica estava
fortemente ligada a considerações astrológicas (tratava-se de agir e
propiciar alterações através da captura de "espíritos" ou "raios"
celestes, gravando imagens nos materiais adequados, em momentos
astrologicamente propícios). Chega ao Ocidente Latino no século XII
através do Liber Prestigiorum, atribuído a Hermes na tradução de Adelardo de Bath: Ex libris Hermetis Liber praestigiorum qui sic incipit: Qui geometrice aut philosophiae peritus expers astronomiae fuerit.”.
Este texto esteve na vanguarda de traduções das tratados de magia e
alquimia que tanto infuenciaram a filosofia e
arte europeias até à Renascença. Este sincrético género literário
absorveu temáticas abrangentes, incluíndo os decanos, numerologia,
brontologia (divinação a partir dos trovões e tempestades), herbalismo,
mineralogia etc. O Liber Prestigiorum
de Abelardo contituirá, a par do chamado "Picatrix Latino", referência
fundamental. Numa tradução posterior de João de Sevilha, intitulada De Imaginibus, encontramos o incipit: “Dixit Thebit Benchorat: Dixit Aristoteles qui philsophiam”. Ou seja, tanto este tratado como o Picatrix
remetem para Thabit ibn Qurra (séc. IX), polímata natural de Harran no
norte da Mesopotàmia, região que herdou o legado das antigas
civilizações do Oriente Próximo e da magia astral que associamos aos
"Magos", uma "astroteologia". Professavam uma religião semítica
helenizada e foram descritos pelos Cristãos Sírios como "adoradores das
estrelas" (Van Bladel, K., Hermes and the Ṣābians of Ḥarrān. The Arabic Hermes: From Pagan Sage to Prophet of Science. Oxford University Press, 2009, pp. 64–118). Por seu lado, os versáteis decanos
ou 'faces', com a sua iconografia de origem egípcia, também se ligam, na sua vertente mágica,
à operacionalização talismânica que atravessará subterraneamente os
séculos até ao advento da Idade Moderna. Numa vertente erudita, será
fortemente incrementada pelo
neoplatonismo e hermetismo Renascentistas. Numa belíssima imagem da tradição mágica medieval arquivada no Picatrix (lib. IV, III), o castelo que Hermes edificou no Egipto numa mítica cidade ideal,"Adocentyn" (al-Asmunain no original árabe, também transliterado como al-Ashmunain [hmnw, "Khemenu"; "Shmun" na translit. a partir do copta] relacionável com a antiga Hermópolis, cidade dedicada a Hermes-Thoth), possui uma torre com um globo luminoso cuja luz assume as cores associadas aos planetas, segundo os dias da semana: "At the summit of that tower, he built a kind of turret thirty cubits in height, on the top of which he placed a round orb whose color would change according to each of the seven days. At the end of the seven days, however, the cycle began anew. Every day, that city was covered by the color of that orb, and thus it glowed differently each day. Around the turret, there was abundant water where plenty of fish dwelled. He set up various statues of every kind around the city, and by their power the inhabitants were made virtuous, free from sin and wicked idleness. This city was called Adocentyn. These people had beentaught in the knowledge of the ancients, their depths, and secrets, along with the science of astronomy." (Atrell, D. and Porreca, D. (trans./eds.), Pennsylvania University Press, 2019, p.233). Curiosamente, o próprio Petrarca, quando no seu L'Africa representa uma construção fabulosa que coloca sob o jugo de Atlas, faz uma descrição semelhante à da torre de Hermes, destarte com pedras preciosas de várias cores que simbolizam os sete planetas.
A
Igreja medieval preocupava-se, e muito, com práticas que sugerissem
astrolatria, colocando-se na adversa contra as que encorajassem o culto
dos planetas. Albertus Magnus (séc. XIII) instrui quanto às práticas
legítimas e quanto às reprováveis. Assim, enterrar num campo agrícola
uma placa com o nome ou hieróglifo de um planeta é permitido;
acompanhar com invocações ou 'fumigações' não é permissível. (Speculum Astronomiae, x)
As letras eram simultaneamente números, Praticavam-se procedimentos com os nomes e não só. Como exemplo, para saber qual o signo que governava determinado ano (CCAG, vol. IX.1, p. 170) bastaria conhecer o paradeiro da Lua no dia 13 de Março. Sabemos que a Astrologia se praticou, sempre, em diferentes planos ou níveis de complexidade, do mais rudimentar (como é o caso) ao mais depurado. A prática popular será muito comum em vaticínios na Idade Média. A numerologia constituiu sempre uma "tentação", facilitada para os Gregos (pois utilizavam as letras como números, Alpha, Beta, Gamma e Delta equivaliam a 1, 2 3 e 4, e assim por diante), mas exequível em qualquer contexto linguístico pela sua simplicidade. Verifica-se a utilização de diagramas divinatórios (conhecidos desde a época helenística), atribuídos a figuras prestigiosas como Petosiris, Hipócrates, Apuleio ou Pitágoras, e que entraram cedo nas compilações do cômputo. Utilizavam expedientes muito ""mecânicos". Passavam por ponderar numerologicamente as letras do nome da situação/pessoa, incorporar a "idade" da Lua no dia "significativo", a partir daí calcular o remanescente da divisão por 29 ou 30 (mês lunar) e "prever" o desfecho (favorável ou desfavorável), eventualmente em função da posição do número resultante relativamente aos eixos (vertical e horizontal) de um esquema ou diagrama. Podia acrescentar refinamentos, integrando o cálculo da feria (dia da semana), incluir indicação de números favoráveis e nefastos ou personificações da Vita e Mors ("vida" e "morte"). E havia ainda os Lunaria, dedicados à prognose de diversos sucessos, nomeadamente relacionados com a saúde, para cada um dos trinta dias do mês lunar convencional, com antecedentes prováveis no sistema astrológico das mansões lunares. N.B.: A utilização numerológica do alfabeto Hebraico, bastante estudada e reconhecida, respaldou-se, habitualmente, em práticas eruditas (operando sobre o seu Livro Revelado) no âmbito do misticismo judaico (e.g., a Gematria cabalística). Segundo a opinião de Jean-Pierre Brach (que aqui resumimos), a questão se os números realmente existem separadamente num plano próprio ("realismo" matemático), ou se não passam de abstracções geradas pelas operações mentais ("idealismo") ainda é discutida. Estas posições estão historicamente ligadas aos nomes de Platão (e Pitágoras, cuja posição é todavia ainda debatida) e de Aristóteles, respectivamente. Desde a Antiguidade e até ao século XVII, os números estiveram sempre relacionados com aspectos qualitativos da natureza cósmica e humana. Nesa perspectiva, os números manifestam efectivamente as energias invisíveis que operam por detrás do véu exterior da realidade., estruturando e harmonizando o mundo físico a partir de dentro (ou de "cima"). Pressupões a ideia, em geral neoplatónica, de um universo estratificado, onde as entidades numéricas ocupam uma camada ou nível superior da realidade em relação aos objectos que lhes correspondem no plano material vulgar. (...) A influência e acção da matemática faz-se sentir em todos os planos da 'Criação' através de uma rede de analogias e correspondências entre os diferentes planos, hierarquicamente distribuídos, que constituem o Universo, da esfera divina às pedras ou ervas. Se hoje em dia não entendemos as entidades numéricas como "intermediários", providas de vida e influência próprias e permitindo o acesso à essência da realidade, esta ideia não era todavia ridícula. Reflectia uma tentativa de preencher o vazio entre a origem da criação e sua aparentemente grosseira manifestação física. Era também parte do modelo explicativo do universo e da sua estrutura. Finalmente, racionalizava as relações entre os componentes visíveis e ocultos da natureza, os mundos material e imaterial, na medida em que manifestavam a operação da iniciativa divina. Portanto, convém recordar que este lado qualitativo das matemáticas, longe de estar limitado às analogias simplistas e à vertente pseudo-divinatória numerológica, pertenceu por muito tempo a um discurso integral e profundamente filosófico de conspícuas doutrinas. Discursos religiosos, científicos e estéticos combinaram-se num esforço de formulação de uma abordagem "holística" da realidade, na qual os números eram considerados componentes vivos da Criação, não somente operadores lógicos essencialmente instrumentais na definição de leis que espartilham o universo sob um conhecimento exclusivamente discursivo. (Numbers are meant for counting, right?, in: Hanegraaff, W, Forshaw, P. & Pasi, M., (eds.), "Hermes Explains:..., Op. cit., 2019, pp.47-54; trad. nossa). Acerca da prevalência de simbolismos ternários e septenários, Bouché-Leclercq referiu: "Voy.
les divisions ternaires et septénaires de l'âme, du corps et de la vie
physique, même utérine, dans Macrobius (Somnium Scip., I, 6, 34-83):
même les sens y sont ramenés à l'ordonnance septénaire, parce qu'il y a
dans la tête sept trous percés [orifícios]
pour leur service. C'est une voie qui mène directement aux sept sages,
aux sept merveilles du monde, et, par delà, aux psychothésies
chrétiennes: les trois vertus théologales, les sept péchés capitaux,
les sept sacrements, les sept dons du S. Esprit, les sept douleurs de
la Vierge, etc. L'astrologie, comme les parfums dans l'air, est
partout, insoupçonnée, mais présente." (Bouché-Leclercq, L'Astrologie grecque, p.324, n.1) A "Esfera de Demócrito" (como as "esferas da vida e morte" medievais) era um instrumento divinatório "médico" (de onomatomancia, i.e. baseado nos nomes) para descobrir se o paciente viveria ou morreria (entre outras aplicações mais quotidianas). Usava a virtude mágica ("pitagorizante") dos números e da Astrologia. Apesar da designação, assumia a forma de um tabuleiro, geralmente circular ou rectangular. Incluia os dias do mês e estava obviamente relacionado com a lunação. Procedimentos similares, em conjunto com outros expedientes aritméticos, eram utilizados com o chamado "Círculo de Petosiris", onde também se utilizavam os dias da Lua, da semana, etc. Esquema de um Círculo de Petosíris, numa das suas variantes (L'Astrologie grecque, Op. cit., p.539)
Segundo J. D. North: "Although not strictly a part of astrology, geomancy was so closely allied with it in its terminology and practice, as well as in the popular imagination and in the moral condemnations of ecclesiastics. (...) Geomancy was an art of divination that probably, but by no means certainly, originated in the Arab world.°3 In its classical form it was the art of answering questions from an examination of patterns that at first sight resemble the spots on dominoes—but they are now to a maximum of eight. Considered more carefully, these patterns are always of four rows, each row having either one spot or two. (...) Any random procedure giving only two alternatives will serve—spinning a coin, for example, or casting with beans or palm nuts. (...) Although there are only sixteen possible figures in all, each with its name and character, they are only the elements from which diviners arrive at their conclusions. (...) The geomancer began, not with a single pattern or figure, but with four. In other words, a routine choice between odd and even was made sixteen times over. The four figures (called ‘mothers’, matres) are written down from right to left, on the top row of what will eventually be an array of sixteen figures, eight on the top row, four on the next, then two, and finally one, with a spare confirmatory figure to the side." (Chaucer's Universe, Op. cit., pp.234-36).
O primeiro passo era "lançar" ou "semear" os pontos, em dezasseis linhas, concentrando-se na questão a "adivinhar". Cada linha teria um número total de pontos (par ou ímpar) que determinava se daí resultava 1 ou 2 pontos. Quatro linhas formavam uma das dezasseis figuras possíveis. As primeiras (matres) eram colocadas no tabuleiro, da direita para a esquerda, na primeira horizontal. A "filha" à sua esquerda era derivada destas (somando os pontos e chegando a resultado par ou ímpar); as seguinte sucessivamente calculadas do mesmo modo, mas integrando todas as figuras à sua direita, i.e. a segunda "filha" resultando das "mães" e da primeira "filha", etc. (repetindo o processo para cada uma das seguintes, sempre na horizontal). Ou seja, cada "filha" resultava das somas das linhas horizontais das quatro matres, mais as das "filhas" eventualmente jà calculadas e colocadas à sua direita (resultado é sempre 1 ou 2 pontos).
O "Tabuleiro Geomântico" era construído segundo um esquema específico que incluia uma sequência de figuras: quatro matres (mães) e quatro filiae (filhas) na primeira linha horizontal de figuras. As quatro neptes (sobrinhas) da segunda linha horizontal de figuras e as seguintes, duas testes (testemunhas) e 1 iudex (juíz) colocavam-se em linhas sucessivas. As neptes, testes e o iudex resultavam (derivavam) sempre da "soma" das duas figuras que as antecedem, imediatamente acima, como numa árvore genealógica, procedendo linha por linha, uma de cada vez até ter a figura completa (e.g., na ilustração seguinte, a primeira linhal das figuras das testemunhas - "Witness 1" e "Witness 2" na ilustração - soma 4 pontos, logo a primeira linha da figura do juíz ("Judge") terá dois pontos, número par). Tabuleiro completo com identificação das "Casas" astrológicas simbólicamente associadas (ilustr. Elizabeth Z. Bennett) A interpretação é descrita nos tratados segundo regras, por vezes mecânicas, outras relacionadas com princípios astrológicos. Tabela (.PDF, 590KB) com as propriedade de cada figura, segundo um tratado do séc. XIII de Martinus Hispanus (coligida por Elizabeth Z. Bennett).
Assistir-se-á a uma mudança gradual. Todavia, a crença na relevância da Astrologia enquanto preditora meteorológica, dos ritmos, a ligação com outras disciplinas, como a Medicina (iatromathematica e concepção do Homem como microcosmos) e o conservadorismo académico dos ambientes católicos e/ou periféricos, atrasou a clarificação. Somente no séc. XVII podemos afirmar que se rompe a velha ligação com a Astronomia e se degrada o suporte filosófico e cosmológico. O Nominalismo é um interessante antecedente filosófico medievo. A maioria dos nominalistas sustentou que apenas os particulares físicos no espaço e no tempo eram reais, e que os chamados Universais existiam apenas post res,
isto é, subsequentes a coisas particulares. Assistiu-se, num longo
processo, de séculos, à gradual rejeição da pretérita mundividência autoritária, valorizando uma nova lógica e separando os saberes concretos (as ciências) da metafísica e, consequentemente a Astronomia da Astrologia. A partir daqui, habitamos um contexto em que o descrédito e a indiferença se começam a instalar. Mas a Astrologia continua a ser leccionada (com cautelas que transparecem nos programas, prólogos e dedicatórias, supostamente expurgada de "superstições") até pela Companhia de Jesus, por exemplo na Aula de Esfera do Colégio de Santo Antão (vide tese dout. de Luís Ribeiro: Transgressing boundaries? Jesuits, astrology and culture in Portugal (1590-1759), FCUL, 2021). A "Arte" (de modo "cauteloso") resiste enquanto pode e publicam-se serôdios manuais. Na sequência da "Descoberta" e colonização de terras austrais, enfrenta-se o problema da inadequação da racionalidade "sazonal" ao Hemisfério Sul, que inverte as Estações do Ano e onde os ventos são diferentes (tudo seria sazonalmente invertido, Aries com Libra, Cancer com Capricornus). Autores como como Tommaso Campanella defendem a coerência, propondo inverter os efeitos de cada signo consoante a latitude boreal ou austral. Mas muitos tratadistas contornam a lógica da explicação sazonal de Ptolomeu, preferindo dar ênfase às afinidades das "qualidades e operações" dos planetas com a natureza dos signos. Enfim, discute-se o ajustamento a esta "globalização" e até são dados à estampa tratados nas "novas" latitudes, por exemplo nas colónias espanholas sul-americanas.
O Universo "mudou", tornou-se maior e por vezes caótico. A complexidade frustrou a "previsibilidade" das supostas "interdependências". A antiga mundividência era "científica" porque estava de acordo com o modelo conceptual, o modelo de racionalidade vigente. A metodologia da disputa argumentativa era interessante, com as suas questiones e sophismata. Olga Weijers (The Developement of the Disputation between the Middle Ages and Renaissance, in: Burnett, C., Meirinhos, J., and Hamesse, J. (eds.), Continuities and Disruptions between the Middle Ages and the Renaissance, Federation Internacionale des Instituts d'Études Médiévales, 2007, pp. 139-150) refere a distinção entre a disputa "dialética" (herança dos duelos dialéticos da Antiguidade tardia) e a "disputatio" escolástica, já presente com toda a probabilidade no séc. XII, no âmbito da questio, a discussão de assuntos difíceis ou problemáticos na leitura de autores fundamentais, como método principal de pesquisa nas escolas medievais, a ferramenta dilecta para alcançar e ensinar a "verdade" nas diversas disciplinas. Recorria-se ao diálogo de respondens e opponentes. Posteriormente, com uma estrutura diferente: após a listagem de alguns argumentos preliminares para ambas as posições antagónicas, as soluções eram longas e complexas, habitualmente incluíndo diversos articuli com suppositiones, conclusiones, correlaria (corolários), etc. A mudança epistemológica do séc. XVII não se deveu prioritariamente à "evolução" das teorias científicas mas, acima de tudo, a uma alteração ao nível conceptual (Carolino, 2000, p. 428). As 'formas substanciais' da filosofia aristotélica deixaram de vigorar e, em seu lugar, institui-se como questão científica o comportamento concreto da natureza, não compatível com a explicação qualitativa da tradição, muito menos com o recurso a "qualidades ocultas". Acrescenta judiciosamente (pp. 426 et seq.) que o novo contexto epistemológico remete para a periferia do obscurantismo e da superstição a teoria da influência dos corpos celestes (que até meados do séc. XVII pertencia ao corpo constituinte da scientia, pois aí radicavam princípios que, a partir de bases sensoriais, garantiam a perceptibilidade dos factos singulares e alimentavam o intelecto no conhecimento do geral, das causas substanciais, bem como a valorização de processos como a "simpatia" ou entidades como o "spiritus" (de inspiração neoplatónica, e.g., em Ficino), que supostamente possibilitavam a inteligibilidade das coisas ocultas). Outra das causas para o descrédito da doutrina, no contexto Português de finais de setecentos, foi o facto de, apesar das inúmeras prognosticações mais ou menos "informadas" de mathematicos, almanaques e sarrabais populares, ninguém ter previsto o terrível terramoto (e sequente maremoto) de 1755, que reverberou por toda a Europa de então e mereceu referências de autores como Voltaire (Candide ou l'Optimisme, 1759) na sua crítica à religião, no contexto da problemática da Teodiceia de Leibniz. A Astrologia mostrou, 'por simpatia' (diremos com ironia), a sua inutilidade.
Hoje, a pertinência da abordagem astrológica nem merece cogitação. O Universo actual é quântico e relativista, é um espaço-tempo habitado por galáxias, pulsares e buracos negros. E as tentativas de aggiornamento da Astrologia não são convincentes. Qual o mecanismo de acção? Hoje, na diversidade tantas vezes contraditória das suas implementações, é sempre e somente uma "caricatura" de uma antiga mundividência que estava, apesar das "dificuldades", contextualizada numa determinada cosmologia. Num ambiente de "pós-verdades" relativas, estamos num ambiente new age com o típico ecletismo equivocado, habituais contradições e 'mumbo-jumbo': esta "astrologia" é real porque "funciona" (It works for me!). E é tudo! Enfim, como no epigrama atribuído a Quevedo... El mentir de las estrellas Sobejaram alguns vocábulos que atestam a pretérita importância cultural: "considerar", "desastre", "estreia", "influência", etc.
Uma referência deve ser feita ao intercâmbio de culturas e à vasta disseminação da horoscopia.
Como exemplo, o Extremo Oriente (China e, a partir daí, a Coreia e o Japão).
Segundo as recentes pesquisas de, por exemplo, Bill Mak ou Jeffrey
Kotyk (e.g., The Sinicization of Indo-Iranian Astrology in Medieval China, Sino-Platonic Papers,
No. 282, September 2018), há uma influência evidente. A Astrologia
Chinesa tradicional é uma hemerologia (estudo dos calendários), baseada em determinados ciclos.
Foi sempre a versão "institucional", do Estado. O sistema, baseado em augúrios e
dias favoráveis ou desfavoráveis, é muito antigo (datando pelo menos da
Dinastia Han).
O chamado "zodíaco" que todos conhecemos (com
um animal atribuído a cada ano) não o é tecnicamente. Segundo alguns
autores, não possui qualquer respaldo astronómico (vide e.g., Colin Ronan, Astronomy in China, Korea and Japan, in: Walker, C. (Ed.), Astronomy Before the Telescope, BCA, 1996, p.249). Somente por
coincidência tem 12 divisões (num
passado remoto teriam sido 12 direcções geográficas), sem relação com a
Eclíptica e, quando muito, pode hipoteticamente basear-se no ciclo de Júpiter (as "estações"
do
movimento do planeta, quando este, ao longo de 12 anos, passa de
directo a retrógrado
e vice-versa). Na antiga China, os astrólogos recorriam a métodos de
interpretação divinatórios complementares (ossos oraculares, habitualmente da escápula, fendas nas carapaças
de tartaruga aquecidas no fogo, etc.). Os Chineses desenvolveram ainda,
independentemente, um sistema de mansões lunares, mais tarde por vezes articulado com o sistema de nakshatras Indiano mas autóctone e estruturalmente diverso.
No Yavanajatãka (literalmente "astrologia genetlíaca dos gregos"),
traduzido por um primeiro autor e mais tarde versificado por
Sphujidhvaja no séc. III segundo Pingree (trabalho originalmente gizado
os séculos IV e VI segundo Bill Mak), Prajapati criou as constelações (e todas as coisas) a partir do seu próprio corpo; os signos (Rasis) também são, consequentemente, associados: "The
creator of all things, Prajapati, desiring to create people, carried
out his previous vow; he created the constellations from his own body,
beginning with the head - his body which is the source of parts which
are like all things." (ch.79, 56; Pingree, D. (trans./ed.), Harvard University Press, 1978). Prajapati
significa "senhor das criaturas" ou "senhor de todos os seres
nascidos", conceito versátil, variável e associado a diversas
divindades em função do texto e do contexto. A Astrologia Indiana mesclou os conceitos importados com os indígenas, como a 'transmigração das almas', os 'cinco elementos' (acrescentando o akasha, "o espaço", aos quatro mais usuais), especificidades da sua medicina (ayurveda) e o sistema de 'castas'. Na vertente prática, as subdivisões dos signos tornaram-se ainda mais utilizadas (e.g., em 7 e 9, saptamsas e navamsas). Na Índia prevaleciam (prevalecem) as minuciosas subdivisões dos Rasis
(signos) e dos graus. Também se documentam alguns "incríveis"
procedimentos. Complexidades como uma distribuição (que todavia parece
exclusiva do Yavanajatãka, cap.72) das letras do alfabeto Sânscrito pelos 108 navamsas
(nem todas as vogais estavam representadas), seguindo o esquema dos
'governadores' planetários e numa sequência fonética (guturais
- Marte; palatais - Vénus; labiais - Saturno; as vogais são
relacionadas com o Sol e as semivogais, sibilantes e aspiradas com a
Lua. Verificavam-se os efeitos de cada planeta nos dvadasamsa (1/12 de signo), a peculiar relação entre o tamanho dos membros do corpo humano e os 'tempos ascensionais' (udayapramãnãni) dos signos incumbentes (Yavanajataka, 16; cf. o Brhajjataka de Vaharamihira (5, 23) e o Kalyāṇavarma ou Sārāvalī
(3, 38)) [Bouché-Leclercq refee uma suposta tradição grega de
associação de certas vogais e consoantes aos signos e aos planetas
(respectivamente), avançando a hipótese de uma ligação á teoria musical
pitagórica: "L'alphabet ayant été
adapté au Zodiaque on a dû faire correspondre certains signes aux
voyelles. Cette adaptation aurait pu être elle-même suggérée par une
tradition pythagoricienne, qui assimilait la musique des sept orbes
planétaires aux voyelles et les signes aux consonnes." (Op. cit., p.150)]; também se devem aqui mencionar os prolixos Nābhāsa yogas: padrões ou formas dos sete planetas (excluem-se os nodos lunares), i.e.
a distribuição dos planetas do céu, segundo diversos critérios
(geométrico, numérico, relativo à natureza dos signos, etc., numa
enorme possibilidade de combinações). E os exemplos poderiam continuar. Como curiosidade, não se encontra na tradição indiana o cálculo das chamadas "partes" (Fortuna, etc.) e os chamados Aspectos são agilizados de maneira peculiar e muito diferente, todavia utilizando designações comparáveis. Saliente-se, como sumamente importante, que se recorre aos Nakshatras (um autêntico "zodíaco lunar") para tudo o que se relaciona com as "Interrogações". A Astrologia está muito viva no actual subcontinente,
Na realidade, e não existindo um "marcador" sideral óbvio e "inamovível" para o ponto geométrico e imaterial a que chamamos vernal,
foi sempre necessário convencionar o início do zodíaco sideral (com a
maior aproximação astronómica possível). A versão actualmente mais
utilizada na Índia resulta de uma reforma do calendário implementada em
1955, coordenada por Nirmala Chandra Lahiri, que convenciona que a
estrela Citrā (Spica) marca 0º de Libra. A partir deste referente, estabelece-se o início de Aries, diametralmente oposto.
Como
Martin Gansten refere, sendo a tradição Indiana 'sideral', as divisões
'tropicais' eram todavia utilizadas noutras circunstâncias, e.g.,
no calendário. Erradamente chamada "védica", não é mencionada nos
textos
conhecidos como 'Vedas', sendo a sua principal fonte denunciada pela
notória presença de nomes gregos nos trabalhos astrológicos em
Sânscrito. O Grego koinè (hē koinè diálektos, "o dialecto comum") era a "lingua franca" na época helenística. Um milénio mais tarde, a Tājika, cuja designação revela a origem perso-arábica, epitomizando e condensando
textos dessas fontes em versos sânscritos ritmados, apresenta
muitas técnicas que facilmente reconhecemos (dignidades, retornos solares, etc.); estará presente na Índia a partir do séc. XIII. A Astronomia/Astrologia Indiana, com todas as influências que absorveu, adaptou-se à complexa cultura do sub-continente, suas tradições e necessidades. Não sendo prioritariamente observacional, ênfase aconteceu na validação de parâmetros e modelos previamente adoptados. A metodologia ptolomaica simplesmente não era aplicável. O objectivo foi, principalmente, a produção dos seus elaborados calendários (pañcãngas), escalas de tempo, horoscopia, predição de eclipses e conjunções planetárias (entre si ou com estrelas fixas). A sua matemática era elaborada e complexa. Todavia, a astronomia avançava exclusivamente pela via de cálculo e não pela dedução dos 'factos' observados na natureza, A Astrologia ainda hoje é aí amplamente praticada. Como mais um exemplo da transmissão intercultural, neste caso cronológica, refira-se a influência indiana que surge indirectamente no MS. Ashmole 191.II, em Latim, contendo informação astronómica para 1428 para a latitude de Newminster (Nortúmbria, Inglaterra). Neste exemplar encontramos um comentário referindo que Alfonso X "el Sabio" situou a Era do Dilúvio Bíblico a partir da data de 16 de Fevereiro de 3102 antes da Encarnação de Cristo. Ora, essa data corresponde ao início do "Kali yuga" Hindu. A referida data foi comummente associada ao "Dilúvio" nas fontes Islâmicas e terá sido por intermédio dessas fontes (e.g., Omar al-Tabari) que acabou por chegar ao norte de Inglaterra. (vide Neugebauer, O. & Schmidt, O., Hindu astronomy at Newminster in 1428, Annals of Science, Vol. 8, No.3, September, 1952).
Na
investigação actual encontramos novas perspectivas
acerca da problemática da transmissão e intercâmbio de conhecimento
entre diferentes culturas, pondo em causa algumas ideias até agora predominantes na Academia. Adopta-se, seguindo o zeitgeist, um discurso "politicamente correcto" e cauteloso, num tema que se tornou controverso. John Steele (The Influence of Assyriology on the Study of Chinese Astronomy in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries, in: Mak, B., & Huttington, E. (eds.), Op. cit.,
2022, ch.1), por exemplo, refuta a teoria da origem Babilónica da
astronomia Chinesa (perspectiva que recua ao séc. XIX e a Archibald
Henry Sayce) e foi adoptada no séc. XX, inclusivamente no tão influente
trabalho de Joseph Needham. Bill M. Mak (Greco-Babylonian Astral Science in Asia: Patterns of Dissemination and Transformation;
East-West Encounter in the Science of Heaven and Earth 天と地の科学—東と西の出会い,
2019) considera que textos astrais culturalmente híbridos como os Gārgīyajyotiṣa, Yavanajātaka, Xiuyao jing e Qiyao rangzaijue
(dois primeiros são Indianos, seguintes são Chineses) devem ser vistos como
conglomerados de "pacotes" mais pequenos de conhecimento, com
proveniência heterogénea, e não como produtos adulterados de
"originais" provenientes de uma determinada tradição monolítica e unidireccional, como
eram caracterizados no passado. Na sua introdução, precisa que a
recepção das ideias estrangeiras não é um processo linear e simples,
antes uma aculturação assimétrica onde algumas partes podem ser
imediatamente absorvidas enquanto outras são transformadas, rejeitadas
ou silenciosamente ignoradas. Antes de mais, os "originais" podem não
ter sido singulares ou homogéneos. Podem ter sido veiculados de
maneiras diversas, oralmente ou por escrito, podem ser citações de
outros trabalhos, paráfrases, ou algo originalmente compilado
(pp.15-6). Como exemplo, o Yavanajātaka. O título não deve
ser tomado à letra sem uma atenta verificação do conteúdo. Mak
considera, ao contrário dos académicos mais antigos como Pingree (que
consideravam os elementos locais como simples interpolações no original
grego), que não se pode, em rigor, considerar uma "tradução" mas sim
uma complexa amálgama ou assemblage, provavelmente a partir de
compilações anteriores, que inclui novidades (que foram em algum
momento objecto de tradução, com toda a complexidade inerente)
interpretadas e adaptadas. Pontuam variantes e muitos conceitos
autóctones, e.g., tithis (um período lunar), nakṣatras (que conhecemos como "mansões lunares"), navāṃśaka (nonas partes dos signos), os dois pseudo-planetas Rāhu e Ketu (que se relacionam com os nodos lunares), referências às quatro castas Indianas (varṇa), o conceito de karma, o sistema triguna da "medicina" Āyurvedica,
etc. Ou seja, não se pode partir do princípio de que existe um
'Urkanon', ou fonte última (p.20). O produto textual é
algo novo e plural que revela a mundividência que o "teceu". Todavia, David Pingree, na sua tradução/edição do Yavanajataka (Harvard University press, 1978), ressalvou: "The
reader should realize that these statements do not deny Indian
originality in any skandha of jyotisastra; the Indians' understanding
of foreign scientific systems and their elaborations thereof led to
theories and methods which differ drastically from their Babylonian,
Greek, and Islamic counterparts, but which nevertheless do not
completely obscure their ultimate origins. In fact, Indian
interpretations and transformations of foreign texts are among the most
interesting subjects for investigation in the history of Indian
science." (vol. I, p.5)
Os textos de al-Kindi (séc. IX) serão basilares, não apenas no contexto específico mas na fundamentação abrangente da influentia. O termo latino “espécie” (“semelhança de um objecto”) relacionava-se com a força ou influência pela qual um objecto actuava sobre outro. Al-Kindi refere que diversidade das coisas aparentes no mundo dos elementos resulta sempre de duas causas, a saber: a diversidade da sua matéria (elementos) e a variável operação ou efeito dos 'raios estelares'. A teoria expendida afirmava que as coisas interagiam através de 'raios', da natureza e semelhança do objecto "emissor", que emanavam constantemente em todas as direcções e cuja eficácia dependia da distância. Daqui se retirava que uma combinação única de influências de força e natureza variáveis se verificava em qualquer ponto específico do Universo. A predisposição ou natureza do "objecto-alvo" será outra consideração, sendo comum na literatura o exemplo do magnetismo e da sua subtil eficácia entre determinados corpos. Como Robert Hand resume, enquanto Ptolomeu postulou um mecanismo cósmico tipicamente aristotélico no qual duas as "naturezas", a do céu e a sublunar, operavam de maneira bastante diferente, para al-Kindi não há essa distinção. Os "raios" operam do mesmo modo em todos os níveis, Trata-se de uma radiação "holística" e não exclusivamente 'electromagnética' como hoje decerto definiríamos. Podia integrar todas as 'virtudes'. O processo é aqui natural e toda a natureza está interligada por esta radiação mútua, cuja primeira fonte é uma 'harmonia celestial' que podemos interpretar como "energias astrológicas". Conceito influente no pensamento científico e na tradição mágica do Ocidente (vide introdução à trad. do De Radiis Stellicis publicada no âmbito do Project Hindsight, "Latin Track, vol. I". "Se a alguém fosse permitido compreender a totalidade da Harmonia Celeste, ele compreenderia na plenitude o mundo dos elementos e tudo nele contido, em qualquer lugar e em qualquer altura, tal como conhecendo o 'causado' a partir da sua 'causa'" (d’Alverney & Hudry (eds.), Al-Kindi De Radiis, in Arch. d’Hist. Doct. et Litt. du Moyen Age, XLI, 1974, p.223). É, por antecipação, um espantoso argumento "kepleriano". E é o próprio Kepler que resumirá o modo como os astros influenciavam de modo variegado através de radiações: ut objecta movent sensus, lux oculos, sonus auditum, calor tactum (De stella nova, VIII, ed. Max Caspar, Beck, 1938, vol.I, pp.184-6).
"...les planètes marchant à l'encontre du mouvement diurne, c'est-à-dire de droite à gauche, portent leur «regard» en avant, sur les planètes qui les précèdent, et elles lancent leur rayon en arrière sur celles qui les suivent." (Bouché-Leclercq, Op. cit., p.248).
Esta ideia parece nutrir-se, em parte, da mesma raíz arcaica que alimentou a disseminada crença supersticiosa na existência do "mau olhado", profusamente documentada em Evil Eye: An Account of this Ancient & Widespread Superstition de Frederick T. Elworthy (London, John Murray, 1895), e aí resumida (p.8): It was firmly believed by all ancients, that some malignant influence darted from the eyes of envious or angry persons, and so infected the air as to penetrate and corrupt the bodies of both living creatures and inanimate objects. "When any one looks at what is excellent with an envious eye he fills the surrounding atmosphere with a pernicious quality, and transmits his own envenomed exhalations into whatever is nearest to him." Heliodorus,Theagenes and Chariclea, i. 140) . Ver também, neste contexto, o Tractatus de fascinatione novus et singularis, in quo fascinatio vulgaris profligatur, naturalis confirmatur, et magica examinatur; hoc est, nec visu, nec voce fieri posse fascinationem probatur... [Johann Christian Frommann], Norimbergae, 1674. Os aspectos eram ponderados em relação a uma multiplicidade de pontos: os planetas, os cardines (os quatro pontos que estruturam a figura, em particular o Ascendens e o Medium Caeli), os nodos lunares, as cúspides das casas mundanas, as "partes" ou sortes, nomeadamente a importante pars fortunae (parte da fortuna), etc. [A maior parte dos astrólogos Latinos medievais calculava-as de acordo com as fórmulas incluídas na disseminada "Introduçáo" de Al-Qabisi (Alcabitius), traduzida por João de Sevilha.]. A utilização de pontos imateriais como os nodos lunares (Caput e Cauda Draconis), que se tornou comum, parece, neste contexto, contraditória. Alguns críticos questionaram o que é que esses "pontos" emitiam. Os astrólogos do período helenístico também utilizam a relação entre os signos do Zodíaco para esclarecer como os aspectos são formados mas não atribuem orbes (distâncias angulares descritoras da amplitude da sua eficácia), que mais tarde serão especificados na literatura astrológica. Traduzirão a ideia de que cada planeta está no centro de um "mundo" ou zona finita de influência dos seus raios, medida em termos angulares a partir do seu "corpo". Mediriam, segundo Alcabitius (e a maioria das autoridades medievais): Saturno — 9°; Júpiter — 9°; Marte — 8° ou 7°; Sol — 15°;Vénus — 7°; Mercúrio — 7°; Lua — 12°.
Alguns astrólogos Islâmicos privilegiavam um método de "projecção dos raios" mais elaborado, que se relacionava com as linhas definidas pelas horas sazonais e podia, por isso, ser visualizado em lâminas disponíveis para os astrolábios (vide Kennedy & Krikorian, 'The astrological doctrine of ‘projecting the rays’, Al-Abhath, 25. par.2, p.4 (reprint E.S. Kennedy, colleagues and former students, Studies in the Islamic Exact Sciences, American University of Beirut); Casulleras & Hogendijk, Op. cit,, Suhayl 11 (2012), pp.68 et seq.)
David Juste (A Sixteenth-Century Astrological Consultation, in: Deimann, W. e Juste, D. (eds.), Astrologers and their Clients in Medieval and Early Modern Europe, Böhlau Verlag, 2014, pp. 151-205) apresenta um interessante 'case study' de uma genuína natividade do séc. XVI (Munich, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 27004, f. 2r), calculada (com bastante competência, como foi possível verificar através de simulação informática) por Wilhelmus Mysocacus para um cliente: Joannes Sillyers de Mechelen (Malines). Procuraremos resumir alguns aspectos operativos a partir da competente análise de Juste (aproveitando para interpolar outros conteúdos e complementos relacionados), na perspectiva da reconstrução de alguns procedimentos-padrão tradicionais e dos conceitos subjacentes.
A questão do "enorme saber matemático em presença" e do papel da Astrologia na evolução da Matemática é "mantra" repetido e francamente sobrevalorizado. Foi sem dúvida uma motivação mas o problema é evidente: escassez de competências (Ptolomeu, Azarquiel ou Regiomontanus nunca foram casos paradigmáticos, antes geniais excepções), tecnologia pouco rigorosa de medição do tempo (antes dos relógios mecânicos e cronómetros e ainda muito longe do software utilizado pelos "astrólogos" actuais), procedimentos confusos e tabelas geralmente pouco precisas, com erros de formulação e de replicação às mãos de copistas e, mais tarde, dos editores. Ao contrário da "caricatura" prevalecente, há muito (i.e. desde os "tempos Babilónicos") que a Astrologia era baseada em tabelas e recursos afins, praticamente sem qualquer componente observacional. Na interpretação, os astrólogos repetiam os inumeráveis e amiudadamente contraditórios ditames das diversas compilações de aforismos, acriticamente. Por tudo isto, o estudo técnico dos exempla é por vezes pouco frutuosa. Segundo Tommaso Campanella (1568-1639), sendo necessário conhecer o grau e minuto do Ascendens para levantar a 'figura', isto era (como reconhece) muito difícil "e até considerado impossível por Pico e Santo Ambrósio". Requisitos exigentes que proporcionavam erros frequentes, mesmo no caso dos poucos mathematici competentes. Paradoxalmente, fica-se com a sensação de que, quanto menor o rigor em presença, maior a pretensão técnica da utilização de 'minuciosas' subdivisões dos signos e até dos graus. Já Sextus Empiricus comentava que se os graus são insuficientes, eles [os astrólogos] vão até aos minutos, o que lhes é impossível observar [i.e. medir]. A contradição parece não ser um problema quando, no labirinto de regras e variantes, qualquer grau (ou quase) poderia 'significar' qualquer "coisa" ou estar sob a "governação" de um qualquer planeta (dependendo das dignidades privilegiadas, e.g., o "senhor" do Termo, o da Triplicidade, os aspectos, antiscia, etc., entre outros inumeráveis procedimentos e opções), Há muito que se seguiam receitas empíricas e tabelas, precisas ou imprecisas, adequadas ou não à latitude do local. A esmagadora maioria dos exempla disponíveis no percurso histórico é manchada por erros técnicos, por vezes clamorosos, aproximações grosseiras ou incoerências. Nada deteve os vaticinadores. Mesmo numa época relativamente recente, os contemporâneos de William Lilly aconselhavam a utilização da mesma "Tabela das Casas" (inserida nos seus tratados) para qualquer latitude nas ilhas britânicas, "sem grande problema". Tende-se, evidentemente, a estudar os "bons" e minoritários exemplos (como o de Mysocacus) e mesmo nesses, por vezes, se encontram falhas. O problema é "eterno": Neugebauer já havia comentado a "notória" falta de precisão de algumas observações astronómicas na Grécia e na Babilónia. (The Alleged Babylonian Discovery of the Precession of the Equinoxes, Journal of the American Oriental Society, 70; 1950, pp.6-7). E depois temos a exposição "manhosa" de métodos imprecisos ou completamente inadequados, como os de determinação das longitudes planetárias (atribuídos a Balbillus) por Vettius Valens. Decerto Valens sabia que eram imprecisos mas insiste na sua divulgação (contraditoriamente, a par de tabelas astronómicas mais rigorosas) para, segundo Cristian Tolsa (Vettius Valens’ Longitudes (1.18), Balbillus, and the Illusion of Astrology’s Self-sufficiency, Universität Osnabrück, 2019), seduzir aprendizes e/ou insinuar uma autonomia (matemática, científica) que a Astrologia jamais teve. [De resto, o mesmo Valens utilizou expedientes (que hoje chamaríamos 'populistas') que criticou noutro astrólogo (Cristodemus), e.g., as típicas referências às "viagens" na demanda do "conhecimento", as enormes tabelas e a arrogância dos juramentos de secretismo exigidos aos aprendizes da "arte". Ingredientes para um best-seller astrológico na época Romana.] Um exemplo de almanaque astrológico tardo-medieval Acima, o mês de Setembro de 1470
[clicar na imagem para ver mês completo] num almanaque (Lisboa, Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Manuscritos da Livraria, MS 1711: "Almanac ab anno 68 usque ad annum 80, Nativitates quorundam P." i.e. "almanaque do ano [14]68 até ao ano [14]80, algumas natividades... " atribuido ao astrólogo Francês S. Belle; ligação) minuciosamente estudado por Helena Avelar de Carvalho (An Astrologer at Work in Late Medieval France: The Notebooks of S. Belle, Brill, 2021). Trata-se aqui do f. 17r. Em
cima, os planetas: Sol, Lua, Saturno, Júpiter, Marte, Vénus,
Mercúrio e "Caput Draconis", o nodo lunar ascendente; à esquerda os
dias do mês e as letras "feriales", i.e. indicativas da feria:
o dia da semana (repetem-se de 7 em 7 dias, evidentemente); no "miolo"
as posições (longitudes) dos planetas, com colunas para os graus e
minutos, nos signos indicados na segunda linha da tabela a negro (e
depois a vermelho ao longo da coluna de cada planeta; note-se a coluna
da Lua que, obviamente, inclui os sucessivos ingressos pois esta
percorre o Zodíaco rapidamente, ~12º por dia); à direita, coluna vazia
que se referiria, por comparação com outro meses, ao "motus" da lunar
por hora (em minutos de arco); replicação da sequência dos dias e,
destacada, tabela dos aspectos da Lua com os planetas, indicando os
dias específicos; na margem direita, os aspectos dos diversos planetas
entre si. Em baixo, "figuras" (i.e. "mapas" astrológicos) para as sizígias (conjunção ou oposição da Lua) e o ingresso
do Sol no signo Libra (por ordem: plenilúnio, ingresso, novilúnio). Os
ingressos do Sol nos signos que marcavam o início das estações do
ano (nos meses de Março, Junho, Setembro e Dezembro) e as sizígias
mereciam (sempre mereceram, tradicionalmente) particular destaque. Aqui, tabela disponibilizada pela historiadora com os símbolos utilizados ao longo do manuscrito (Op. cit.,
p.33). NB: Os símbolos utilizados na representação dos nodos
lunares surgem nos horóscopos medievais "invertidos" relativamente ao
uso actual. A razão pode residir, segundo H. Avelar de Carvalho, no
facto de as "figuras" horoscópicas estarem naturalmente voltadas para o
meridião (Sul), como de resto acontecia na Idade Média com os mapas,
particularmente os influenciados pela cartografia árabe.
Note-se que a verificação dos exemplos históricos deve recorrer às tabelas coevas e não às teorias planetárias actuais (o que aconteceu no estudo de H. Avelar de Carvalho, todavia sem prejuízos de maior). Praticamente todos os astrólogos da Idade Média tardia utilizaram as Tábuas Afonsinas (de edição Parisiense, com cânones de Jean de Murs). Stephan Heilen, na sua review do livro de H. Avelar de Carvalho (Heilen, S. (2022). An astrological practitioner analyzed. Journal for the History of Astronomy, 53(4), 498-503. https://doi.org/10.1177/00218286221115498) confirma, analisando uma amostra de casos, que os dados de S. Belle seguem com aproximação essas tabelas (o que, refere, não espanta atendendo à coeva disponibilidade das Ephemerides impressas por Regiomontanus (1474), baseadas nas anteriores). Mas considera que teria sido importante recalcular os horóscopos do MS (em número de 66) para averiguar a sua qualidade astronómica e tentar compreender se (e quais) foram da lavra ou simplesmente copiados por Belle (p.501).
A abordagem matemática ao thema descrito por Juste começou com a rectificação (procura de um maior rigor na hora precisa do nascimento, sempre problemática no passado; a ‘rectificação’ da data de nascimento recorria a acidentes, doenças, viagens, tudo o que permitisse retroactivamente, conseguir uma 'figura' que acomodasse esses eventos). Nesta natividade recorreu-se a uma técnica conhecida como "animodar": o Ascendente (ou o Meio-Céu) estimado, desloca-se para o grau do planeta que possui mais dignidades essenciais (domicílio, exaltação, triplicidade, termo e face, valorizadas respectivamente com 5, 4, 3, 2 e 1 pontos) no grau da sizígia (plenilúnio ou novilúnio) que precedeu o nascimento. [As dignidades essenciais não se relacionam com a presença per accidens, "em corpo", de um planeta em determinado sítio; o que está em causa é que cada grau do Zodíaco possui uma essencial afinidade ou animosidade com os planetas, incluíndo os dois luminares, Assim, em todo e qualquer grau se pode conhecer o senhor do domicílio, o planeta que nesse signo eventualmente se exalta, o(s) senhore(s) da triplicidade (organização dos signos em conjuntos que partilham a mesma natureza elementar, a saber: Fogo, Ar, Água e Terra), a atribuição dos termos ou términos, lat. fines, termini (de onde se excluem os luminares, pois na doutrina subordina-se a cada um destes uma metade do círculo oblíquo), bem como a atribuição dos decanos ou faces. Do mesmo modo se assinalam as debilidades detrimento e queda, antagonistas do domicílio e da exaltação, respectivamente]. O esquema era de tal modo fundamental que, por exemplo, o sector do Zodíaco em que acontece o "colapso" das dignidades do Sol e da Lua e, simultaneamente, a exaltação de Saturno (Infortuna maior) era considerado particularmente "perigoso": a via combusta.
As pars são designadas 'sortes' em Latim. A persistência e prestígio da pars fortunae radica em grande parte na sua relação com a Lua, com a mutabilidade da mesma, geometricamente articulada, como referido, com os importantes lugares do Sol e do Ascendente. Também com a inerente e caprichosa mitologia associada a Τύχη, transl. Tykhe, "sorte", extremamente popular na época helenística: "Nos anos turbulentos dos epígonos de Alexandre, uma percepção da instabilidade dos assuntos humanos levou as pessoas a acreditarem que Tykhe, a amante cega da Fortuna, governava a humanidade com uma inconstância que explicava as vicissitudes da época" (Spyridakis, S., The Itanian cult of Tyche Protogeneia, Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte 18.1 (Jan. 1969: 42-48) p.42).]
Era teoria geralmente aceite pelos astrólogos Gregos que o Sol governava a 'alma', a Lua o 'corpo', v. e.g., Macrobius (Saturnaliorum... I, 19, 17; cf. Bouche-Leclercq, p.521, n.1). Dorotheus (IV. 1) afirma que alguns dos "Antigos" perscrutavam os assuntos do corpo a partir da [posição] da Lua; e Firmicus (4, 1, 5) afirma: corpus hominis Luna susceperit ['a Lua assume o cuidado do corpo do homem']. Ptolomeu não partilhava esta opinião. Mas verifica-se, efectivamente, na literatura helenística (e indiana) a valorização do signo ocupado pela Lua nas natividades. "Petosiris diz que onde quer que a Lua esteja no momento da concepção, este [lugar] será o Ascendente ou o lugar oposto [o Descendente]. Onde quer que a Lua aconteça estar no nascimento, esse será o lugar do Ascendente na concepção" (Scholion sobre Demophilus, in E. Riess, Nechepso-Petosiris, Philologus Suppl. vi (1892), 325-88, fr. 14.3). A valorização da Lua reside pois na referida ideia de que o seu 'sítio' na natividade equivaleria ao Ascendente do momento da concepção (A. Sachs, JCS 6, 1952, 59). Como Pierre Brind'Amour relembrou (Le calendrier romain: recherches chronologiques, 1983), havia uma maneira astrológica de calcular a data da concepção: 273 dias antes do parto, i.e. dez revoluções siderais da Lua (Censorinus, De Die Natali 11.8; Varro ap. Aulus Gellius 11.10.8). Firmicus Maternus deixou-nos quatro regras para determinar o "senhor do nascimento" A sua quarta regra expõe outro racional, designando como "senhor da genitura" o governador (planeta incumbente) do signo sequente ao que é ocupado pela Lua; esta regra está relacionada com a observância da posição da Lua no terceiro dia após o nascimento, tendo justamente avançado aproximadamente 30º (cf. Bouche-Leclercq, p. 487, n.2) também Dorotheus (I 12), Hephaestio [II 24, 11]), Valens (1, 15), etc. Muito mais tarde, William Lilly transmite o que supõe ser a antiga opinião Grega comum, com a qual não concorda: "The Greeks did use to account that Planet Lord of the Geniture who had moft dignities in the place of the Moon and Mercury ; for Mercury is the Lord, or hath dominion of the spirit and vigour of the mind, the Moon swayeth the body." (CA, 1647, p.532).
Segundo uma das teorias, não é por acaso que os exemplares numismáticos cunhados por Augustus (que por motivos políticos e de afirmação retórica do seu fatum e autoridade, tornou público o seu thema astrológico), representam o suposto signo lunar do Imperador: Capricornus. A posição da Lua na natividade assinalaria o Ascendens da concepção. Esta iconografia tem sido um "bico-de-obra" para historiadores e cronologistas desde o tempo de Kepler, Scaliger e Albert Rubens até à actualidade. As referências do biógrafo Suetonius (De Vita Caesarum) e de Dio Cassius não permitem conclusões inequívocas, vide Tamsyn Barton, Augustus and Capricorn: Astrological Polyvalency and Imperial Rhetoric, JRS, Vol. 85 (1995). Outras teorias: Capricornus como simbolismo de prosperidade associado à representação do corno da abundância (cornucópia) na iconografia adoptada, relação com a auspiciosa Parte da Fortuna, possível interpretação do verso de Manilius: '...in Augusti felix cum fulserit ortum', associação ao Deus Pã, que ajudou os deuses Olímpicos a restaurar a ordem e a obliterar a ameaça do monstruoso Tífon, o signo como chronocrator ("governador do Tempo"; Lat. temporum principatum, potestatem, dominandi tempus) do mês do nascimento (Bouché-Leclercq), referência corográfica pois Capricornus governava as regiões Ocidentais,"'tyrannus/ Hesperiae Capricornus undae" (Horácio, Odes 11.17.17-20), o que se coaduna com a geopolítica da época. afirmação do Imperador como um "Sol" que ascende ininterruptamente a partir do Trópico de Capricórnio, etc. A resposta é, como a autora do estudo reconhece, multifacetada e mais relacionada com política e simbolismo do que com procedimentos técnicos astrológicos. Decerto uma afirmação da Monarquia, da apoteose dinástica, do Caesar. Iinstitucionalização da Astrologia e acto de propaganda. Segundo Tarúcio (Tarutius de Firmum,
filósofo e astrólogo do séc. I a.C.), aquando da fundação de Roma (que
"determinou" a partir do estudo retrospectiva da vida do lendário
Rómulo), a Lua estaria no signo da Balança: Romamque in Jugo cum esset Luna natum esse dicebat nec ejus canere fata canere dubitabat (Cícero, De Divin., II. 47; v. também Plutarco, Rom., 12), na data de uma importante festividade (Parilia, em honra de Pales, divindade pastoril, 21 de Abril, doravante dies natalis Romae)
e adequadamente coincidindo com um portento celeste: um eclipse. A
fundação da cidade foi tratada como uma natividade convencional.. Barton (pp.42 et seq.) salienta a fluidez da teoria astrológica, a fluidez da cronologia antiga e a prevalecente ignorância acerca do calendário (Augustus somente conseguiu implementar as regras do Calendário Juliano, estabelecido por Julius Caesar, após 36 anos). Portanto, como estabelecer datações fiáveis? Para além do problema das datas reformadas, as tabelas astrológicas (de questionável precisão e com variações) seriam baseadas no calendário Egípcio, original ou reformado justamente na época de Augustus. Barton também confirma que os astrólogos raramente se preocupavam com os problemas decorrentes da obliquidade da Eclíptica, o que se pode constatar no alargado estudo de Neugebauer e Van Hoesen (1959). Acrescenta ainda que não se sabendo a data ou hora da natividade, os horóscopos eram "acomodados" [retrospectivamente] às circunstâncias do cliente/nativo (refere o exemplo do horóscopo de Romulus, gizado pelo referido Tarutius, segundo Plutarco). Ou seja, as reconstruções técnicas académicas são muito problemáticas e, diremos nós, geralmente inexequíveis perante as variantes (oportunidade, intencionalidade) e as limitações de antanho, começando com a conversão de datas e continuando na ausência de cronometria minimamente fiável. Mais importante, a verdadeira natureza e enquadramento institucional da praxis astrológica: "a última coisa que preocupava os astrólogos era a contradição e o múnus da "arte" consistia em encontrar mais e mais maneiras de responder à mesma questão" (p.39, trad. nossa; v. mais adiante a citação original), No caso específico: "Furthermore, a major part of the appeal for emperors, and in particular for Augustus, who was after all experimenting in the ideological arena, was the flexibility of astrology. It combined familiar, very rich symbols in new ways, so that a complex network of signs could be created. While no one, not even Augustus and his consultant astrologers, could understand all the meanings generated, there was enough density for astrological symbols to be read at different levels by different audiences" (ibid.)
O "significador da vida", mais tarde conhecido como hyleg por influência dos textos árabes (haylāj, plural hayālij), seria escolhido seguindo um conjunto de regras, com variantes na literatura, relacionadas com a sua posição de facto, no Zodíaco, em relação a um conjunto de lugares vitais, que Ptolomeu também descreveu (Tetr. III.10, ed. Robbins): "In
the first place we must consider those places prorogative in which by
all means the planet must be that is to receive the lordship of the
prorogation; namely, the twelfth part of the zodiac surrounding the
horoscope, from 5° above the actual horizon up to the 25° that remains,
which is rising in succession to the horizon; the part sextile dexter
to these thirty degrees, called the House of the Good Daemon; the part
in quartile, the mid‑heaven; the part in trine, called the House of the
God; and the part opposite, the Occident. Among these there are to be
preferred, with reference to power of domination, first those55 which
are in the mid‑heaven, then those in the orient, then those in the sign
succedent to the mid‑heaven, then those in the occident, then those in
the sign rising before mid‑heaven; for the whole region below the earth
must, as is reasonable, be disregarded when a domination of such
importance is concerned, except only those parts which in the ascendant
itself are coming into the light. Of the part above the earth it is not
fitting to consider either the sign that is disjunct from the
ascendant,nor that which rose before it, called the House of the Evil
Daemon, because it injures the emanation from the stars in it to the
earth and is also declining, and the thick, misty exhalation from the
moisture of the earth creates such a turbidity and, as it were,
obscurity, that the stars do not appear in either their true colours or
magnitudes." Ptolomeu somente elege lugares acima do horizonte do horóscopo e que, cumulativamente, fazem aspecto com o Ascendente (por sextil, quadratura, trígono ou oposição), revelando um enfoque na geometria e explicação natural do sistema. Em resumo, são as Casas (etim. "lugares", "sítios") I, VII, IX, X e XI. Refere os nomes helenísticos dos topoi envolvidos, bem como a peculiar "doutrina" dos 5º (e.g,. os 5º acima do Ascendente, acima do horizonte, que estão na casa XII, já "pertenciam" ou expenderiam as características da Casa I), vide a nossa abordagem às casas astrológicas. Implícita na prática medieval, esta "regra" (5 graus) estabelecerá que quando um planeta está posicionado a menos de 5º do limite da casa seguinte, o seu julgamento assume que ele está nessa outra casa (aplicava-se às casas e não aos signos). Quanto à origem primeva (Helenística) dos derradeiros "Senhores da Natividade", a autora Demetra George reconhece a heterogeneidade dos procedimentos: "Each of our ancient authors posited their own unique variations of the procedures" (Ancient Astrology in Theory and Practice: A Manual of Traditional Technics, Vol.2, Rubedo, 2022, p.1037). Os conceitos remetem para estratos antigos da tradição [N.B.: na tradição helenística e romana, "os Egípcios" ou "os Antigos" eram, principalmente, Nechepso e Petosíris (o "Rei e o seu Sumo Sacerdote"). Sob estes pseudónimos, sugere-se a remota antiguidade dos textos, na realidade disseminados por autores anónimos que escreveram em Grego nos dois primeiros séculos a.C.]. São textos pseudepígrafos cujos fragmentos foram perpetuados por autores mais recentes. Valens e Firmicus protestam pela falta de transparência dos crípticos textos desses "Antigos", como se pretendessem esconder ou camuflar o conhecimento (Valens, Anthologiae., 7, 4: 1-3, trans. Schmidt, pp.28-29; Firmicus Maternus, Mathesis, 8, 2: 1, trans. Rhys Bram, p.267). George elenca numa nota as seguintes fontes para a sua invertigação dos referidos Senhores: Antiochus, Summary 1.29-30,2; Dorotheus, Carmen 3.2; Valens, Anthology 3.1-3; Ptolemy, Tetrabiblos III.2, III.10, IV.10; Porphyry, Introduction 30; Firmicus, Mathesis 4.6-8; Paulus, Introduction 36; Hephaistio, Apotelesmatics 1.13. 2.26. Disponibiliza (p.1036) uma tabela com uma equivalência das designações dos "senhores" (diversas épocas, tradições e idiomas; N.B.: a coluna "LATIN" parece-nos, apesar desse "header", incluir tão somente as transliterações (usadas no Ocidente Latino) das designações grafadas pelos autores árabes e persas. O Kurios (algo "nebuloso", mencionado por poucos astrólogos) aparenta, nos textos posteriores, diluir-se gradualmente no significado do Oikodespotes. A autora Interpreta de imediato os aspectos técnicos nos capítulos sequentes do seu estudo, com enfoque nos procedimentos descritos por Porphyrius, atendendo ao enquadramento neoplatónico e à preocupação com a identificação do daimõn pessoal que este autor manifestou. Giuseppe Bezza (Some considerations about hyleg and alcochoden) traduziu a opinião do pseudo-Porphyrius (CCAG v.4 p. 206,3-5.): "One needs to define and make distinctions between the hyleg (epikratêtôr), the alcochoden (oikodespotês) and the lord of the nativity (kyrios tês geneseôs). The ancients, in fact, have tied these words together and have not made real distinctions between them".
Na realidade, a partir de um limitado "núcleo" de premissas fundamentais, encontramos quase sempre e em todas as épocas uma multiplicidade de interpretações e procedimentos em função das idiossincrasias dos autores, das leituras dos materiais pretéritos disponíveis (mais ou menos fragmentados, modificados nas cópias e ulteriores traduções, com as suas releituras, revisões e lacunas), bem como decorrentes de eventuais adaptações a partir das práticas empíricas, Não há e nunca houve uma "tradição original", completa e definitiva", a servir de guia ou a "redescobrir". Resta aos 'práticos' contemporâneos, adeptos da "tradição", cotejar procedimentos e optar por uma das variantes.
Bouché-Leclercq deixou-nos algumas considerações acerca do simbolismo original dos 'cardines', decerto essenciais ao cômputo da longevidade numa genitura, bem como a sua especulação quanto aos expedientes que se tornaram necessários (recurso a "anaretae" planetários, etc.) devido à dificuldade da utilização simultânea dos referidos pontos simbólicos, nomeadamente devido à distância entre o ascendens (ponto de partida da vida) e o occasus (simbolo da morte): "Pour les astrologues, la carrière était toute tracée: la vie, partie de l'Horoscope, comme les astres, devait aller s'éteindre, comme eux, à l'Occident. Mais, vu l'habitude prise de compter une année par degré du cercle, cette course était évidemment trop longue. (...) Puisque la vie ne pouvait pas atteindre le diamètre (180°). elle devait se buter à l'aspect quadrat, qui était menaçant autant et plus que le diamètre. De là la règle, empirique et logique à la fois, du quadrant zodiacal (90°) comme mesure extrême de la vie, (...) Mais toutes les questions n'étaient pas résolues par là. Où placer le quadrant vital? Le symbolisme voulait que l'Horoscope fût le point de départ de la vie; mais il voulait aussi que l'Occident représentât la mort. Il exigeait de même, et plus impérieusement, que le MC. figurât l'apogée, la plénitude de la vie. (...) Pourtant, le recours aux planètes intercurrentes fournissant des moyens d'ajouter et de retrancher des années de vie, le IX lieu [locus, "lugar", actualmente e impropriamente designada "casa"] fut retenu, avec le MC. ou à la place du MC. comme "lieu aphétique", et l'Occident conservé comme seul lieu "anaerétique". (...) De leur côté, les partisans de l'Horoscope comme lieu aphélique n'étaient pas à bout de raisons. (...) Les uns durent s'obstiner à prendre pour carrière de la vie le quadrant compris entre l'Horoscope et le méridien. (...) d'autres eurent l'idée, traditionnelle aussi et symbolique à merveille, de placer la mort au plus bas de la région souterraine, en IMC. (...) Dans ce sens, suivant la théorie de l'άκτινοβολία ["radiação" ou "dos raios"] (qui a peut-être été créée ou systématisée à ce propos), la vie assimilée à un un mobile devait s'enferrer sur le dard des planètes anaerétiques Mars et Saturne." (L'Astrologie grecque, pp.412-14).
- Aumentaram o número de lugares "hilegíacos" de modo a incluir lugares
debaixo do horizonte (as casas II, IV e V). Por vezes, para a Lua, a II
(a do seu "júbilo" ou "alegria") e até, eventualmente e
surpreendentemente, a VIII (cujo simbolismo é adverso); nem todos os
autores aceitam a casa IX como lugar elegível;
Os Termos ou Términos (ὅρια, hória, fines, i.e. fronteiras, limites, converteram-se numa das Dignidades Essenciais. Existiram muitos sistemas, maxima confusio na expressão de Cardanus (1501-1576). Somente os chamados Termos Egípcios são conhecidos de outras fontes, sendo de longe os mais utilizados ao longo da história da astrologia. Nem os "Caldaicos" nem o terceiro esquema apresentado por Ptolomeu se encontram noutras fontes. Mas há outros sistemas não referidos no Tetrabiblos. Um destes, decerto inventado por Valens, inclui os luminares. Um esquema Indiano surge no Yavanajātaka, 269/270 A.D.. Os mais utilizados foram, sem dúvida, os Egípcios (com o seu prestígio e a alegada base empírica subjacente). Abū Ma’shar, na sua Grande Introdução descreve cinco sistemas mas também utiliza os Egípcios. Esta dignidade estava ligada a uma das mais importantes tarefas da astrologia antiga: a determinação da "duração da vida". A soma dos termos de cada planeta equivalia ao número limite de anos que esse planeta garantia se estivesse particularmente bem posicionado no horóscopo do nativo (v. Heilen, op. cit. p.47). Segundo a explicação de Helena Avelar e Luís Ribeiro (Op. cit., 2010, pp.37-8), os "anos dos planetas" eram divididos em "máximos", "maiores", "médios" e "menores". Eram, na prática, utilizados para calcular durações. Os máximos diziam respeito a escalas históricas, os restantes à escala humana. Os "máximos" e os "menores" derivavam dos períodos geocêntricos: ciclo sinódico [intervado que um astro leva a reaparecer no mesmo ponto em sucessivas conjunções com o Sol, período orbital aparente observado a partir da Terra] e/ou ciclo zodiacal) dos planetas. Os "anos maiores" eram a soma do número total de graus que o planeta possuía nos Termos Egípcios (v. infra); os dos dois luminares, que não tinham termos atribuídos, seriam (na opinião dos autores citados) "números simbólicos". Os "anos médios" resultavam da média dos "maiores" e "menores". É legítimo concluir que elenco dos "anos dos planetas" se respaldava, na quase totalidade, em interpretações de ciclos astronómicos. Mas, como C. Brennan resume (Hellenistic Astrology: The Study of Fate and Fortune, Amor Fati Publications, 2017, p.278), não se encontra uma sistematização clara subjacente à sua distribuição, cuja lógica permanece esquiva, ou seja, desconhecida. Há, todavia, alguns "padrões". Paulus [Alexandrinus] verifica que o número total de graus alocados a cada planeta ao longo dos doze signos zodiacais equivale aos chamados "anos maiores" de cada um desses planetas: Saturno: 57, Júpiter: 79, Marte: 66, Vénus: 82, Mercúrio: 76. (Eisagogika ("Introdução"), 3; cf. Rhetorius, Compendium, 49). O terceiro sistema de termos apresentado por Ptolomeu no Tetrabiblos (I.21), decerto da sua autoria e apresentando uma coerência interna que não se encontra nos restantes, mas quase nunca utilizado, será muito mais tarde repescado no movimento de "retorno a Ptolomeu" e utilizado por William Lilly et al. (para mais pormenores acerca do tema, (vide George, D., Op. cit., vol.2, pp.1130-32); Heilen, S. (2010). Ptolemy’s Doctrine of the Terms and Its Reception. In: Jones, A. (eds) "Ptolemy in Perspective". Archimedes, vol 23. Springer) A relação entre as técnicas de previsão da longevidade foram objecto de debate na Astrologia medieval. Métodos alternativos, técnicas distintas pareciam por vezes "coalescer" nas práticas de alguns astrólogos. Nomeadamente as Direcções (ar. Athazir ou Tasyir) o os chamados "anos dos planetas" (v. infra), neste caso os anos do Alcocodem. Segundo o De judiciis nativitatum liber praeclarissimus de Antonius de Montuolmo (na edição aumentada de Regiomontanus, apud J. Petreium, 1540; cap. V), Ptolomeu descreveu a primeira técnica (Directio, Prorogatio). Haly Abenragel ou (Ali Ben Ragel) expendeu diferentes opiniões e dúvidas (mas deverá ter utilizado ambas as técnicas). Aboali pareceu-lhe confuso e pouco competente. Omar de Tyberias utiliza os "anos dos planetas" mas é confuso: em duas descrições do método, numa utiliza o Almutem e na outra o Alcocodem. Leopoldo de Austria também demonstrou enorme confusão e Bonatti de Forli nada de novo acrescentou da sua lavra, tampouco explicou. Estas são, resumidamente, as opiniões da resenha de Montuolmo (que sabemos activo em Bolonha entre 1384 e 1390) acerca destes autores e da explicação dos métodos, advertindo: "The sages of the stars are in disagreement and in diversity concerning the timespan of natives, as will be manifest below, when I shall cite in order their opinions..." (Robert Hand (trans.), Project Hindsight, "Latin Track". vol. X, pp.38 et seq.) Os Decanos ou Faces
(facies), ou "máscaras" (prosõpa),
subdivisões dos signos em sectores de 10º, baseadas longinquamente nas
antigas "figuras" egípcias, encerravam habitualmente a lista das
dignidades essenciais. Ptolomeu transmite opiniões acerca destas e de
outras dignidades menores começando sempre com "Eles afirmam..."). De
modo peculiar e característico procura um racional e baseia as suas faces
numa relação geométrica entre o domicílio do planeta em causa e os do
Sol e da Lua. Não estabelece relação com os decanos. A partir da Idade
Média, os Decanos valem um ponto e operam, segundo Zacuto, como um homem que esteja vestido com as suas melhores roupas, como se o planeta fosse “bem parecido”. E existiram "dignidades" ainda menores. S. Heilen refere
(Op. cit., p.78, nota 12) unidades ainda mais pequenas de divisão dos signos, elencadas mas "provavelmente não utilizadas", dos dodecatemoria (2.5° cada, v. Manilius, 2.693–737) ao espantoso Myriogenesis(os
"incontáveis nascimentos", decerto com origem Egípcia e qualificando os
graus, ou até os minutos de arco, tecnicamente sem qualquer referência
aos planetas), sistema referido várias vezes por Firmicus Maternus, que
se reporta aos
'efeitos' específicos de cada um dos 21600 (!) minutos de arco que
existem no Zodíaco. Parece que uma espécie de "horror vacui" levou a divisões e subdivisões, listagens de graus propícios e nefastos (e.g., os graus damnandae ou "insalubres"de Manilius, 4. 408-501), cuja diversidade é assombrosa. Ptolomeu evitou estes
expedientes que, todavia, percorrem um longo caminho na tratadistica. Acerca das minuciosas subdivisões indianas, vide Pingree (ed.), Yavanajataka, vol. 2, 1978, p.208.
NB: As chamadas 'Casas' dividem-se em Cardinais (anguli), Sucedentes (succedentes; anaphora, palavra que se relaciona com a sequência e os tempos ascensionais) e Cadentes (cataphora).
Shlomo
Sela explicou como Abraham Ibn Ezra (prolífico autor
do séc. XII nascido em Tudela) definiu os cinco "lugares vitais"
fundamentais do horóscopo, respaldado em Doroteus de Sídon (decerto via al-Tabari) e Ptolomeu. (Abraham Ibn Ezra on Nativities and Continuous Horoscopy ("Abraham Ibn Ezra’s Astrological Writings, Volume 4; Études sur le Judaisme Médiéval, LIX"), Brill, 2014): The
process of predicting the native’s lifespan starts with the
identification of the five “prorogative places: (1-2) ״the positions of
the two luminaries, (3) the position of the conjunction or opposition
of the luminaries, whichever occurs last before the native’s birth, (4)
the degree of the ascendant, and (5) the lot of Fortune. (p.46) E completa: Ibn Ezra explicitly cites Ptolemy and Dorotheus as the ultimate sources of this doctrine. Indeed, Dorotheus׳ prorogative places in the third part of Pentabiblos ["Carmen Astrologicum"] are identical with Ibn Ezra’s “places of life,״ although they do not occur in the same order. The main difficulty with gauging Ptolemy’s contribution is that his reference to the aphetikoi topoi or aphetes, the Greek name for Ibn Ezra’s “places of life,” is found in two different contexts. (1) Tetrabiblos IV:10 enumerates the ascendant, Sun, Moon, lot of Fortune, and midheaven (almost identical with Ibn Ezra’s “places of life”), which are directed to make predictions not with regard to the native’s lifespan but in relation to other domains, such as his body, journeys, property, soul, marriage, dignities, glory, etc. (2) Tetrabiblos III:10 deals with the prediction of the native’s lifespan, as Ibn Ezra’s “places of life” do, but mentions, first, the first, eleventh, tenth, ninth, and seventh horoscopic places, and then the Sun, the Moon, the ascendant degree, and the lot of Fortune. (p.47) Ou seja, Ezra refere os cinco lugares (Sol, Lua, a última sizígia que antecede o nascimento, o Ascendente e a parte da Fortuna, por esta ordem). Todavia, Ptolomeu elenca os aphetikoi topoi em duas passagens diferentes do Tetrabiblos. Na primeira (IV.10), enumera o Ascendente, o Sol e a Lua, a parte da Fortuna e o Meio-Céu. Na segunda (III.10, na qual discute a "duração da vida") refere, como lugares 'vitais', primeiro as casas I, XI, X, IX e VII; depois [os lugares onde estão] o Sol, a Lua, o Ascendente e a parte da Fortuna. Listas "similares mas não idênticas" surgirão, segundo Shlomo Sela, em trabalhos subsequentes de outros autores. Eis o excerto relevante (Tetr. III.10; trad. anglica na Loeb Classical Library, 1940): In the first place we must consider those places prorogative in which by all means the planet must be that is to receive the lordship of the prorogation; namely, the twelfth part of the zodiac surrounding the horoscope, from 5° above the actual horizon up to the 25° that remains, which is rising in succession to the horizon; the part sextile dexter to these thirty degrees, called the House of the Good Daemon; the part in quartile, the mid‑heaven; the part in trine, called the House of the God; and the part opposite, the Occident. Among these there are to be preferred, with reference to power of domination, first those which are in the mid‑heaven, then those in the orient, then those in the sign succedent to the mid‑heaven, then those in the occident, then those in the sign rising before mid‑heaven; for the whole region below the earth must, as is reasonable, be disregarded when a domination of such importance is concerned, except only those parts which in the ascendant itself are coming into the light. Of the part above the earth it is not fitting to consider either the sign that is disjunct from the ascendant,57 nor that which rose before it, called the House of the Evil Daemon, because it injures the emanation from the stars in it to the earth and is also declining, and the thick, misty exhalation from the moisture of the earth creates such a turbidity and, as it were, obscurity, that the stars do not appear in either their true colours or magnitudes. Como Shlomo Sela elucida, os referidos "lugares da vida" [no texto: "places of life", mais adiante equivalente "prorogative places", os lugares "hilegíacos"] preenchem duas funções principais: por um lado, um dos cinco [gr. apheta, ar. haylaj, o hyleg], após um complexo processo de verificação e selecção, é escolhido para ser "dirigido" [referência à técnica dinâmica das direcções: directio, prorogatio, ataçir, etc., consoante contexto linguístico ] ao longo do zodíaco para um "lugar da morte" [o "abcissor", gr. anareta, ár. qati], descrevendo um arco que serve o cálculo da duração da vida do nativo; por outro lado, o planeta considerado mais poderoso no "lugar da vida" [atrás escolhido], o chamado "senhor do nativo" [será, de facto, o alchocoden, o planeta mais dignificado no lugar do hyleg], que em última análise dá os seus respectivos "anos" [cada planeta disponibilizava uma expectativa, fixa para cada planeta, de anos limite de vida: seriam os anos maiores, médios ou menores, em função de factores relacionados com a sua situação e força no horóscopo] para aferir a duração da vida do nativo.
Voltando ao horóscopo estudado, Wilhelmus Mysocacus passa a elencar os Aspectos (Trino ou Triângulo, Quadratura, Sextil, Oposição e a Conjunção, um caso especial de coincidência de dois planetas), que classifica como "partiliter" (um aspecto partil é exacto, "platice", ou plático, é somente aproximado), "receptione" (recepção, quando, por aspecto, um planeta recebe dignidade de outro que está num lugar no qual o primeiro tem dignidade, havendo outras variantes). À oposição de Júpiter e Saturno, o astrólogo chamou "futurus", talvez por analogia com a doutrina dos ciclos atribuídos a estes ponderosos e lentos planetas. Todos os aspectos são indicados como dextrum ou sinistrum (direito ou esquerdo). Também são consideradas e listadas as latitudes planetárias, todavia não muito utilizadas no julgamento. Seguidamente, resumem-se as características físicas e morais do nativo, em primeiro lugar analisando os quatro ângulos do horóscopo (Ascendente, Meio-Céu, Descendente e Fundo-Céu, na terminologia actual). Para cada ponto, tem em consideração um amplo leque de parâmetros, incluíndo o signo e o seu senhor, o planeta que aí possui exaltação, os termos, os aspectos ou qualquer planeta aí situado presencialmente. Prossegue uma consideração preditiva dos tópicos significados pelas doze casas, em particular os relacionados com as flutuações na riqueza e património (De fortune incrementis ac decrementis), saúde e moral (De infirmitatibus et animi perturbationibus), honrarias, estatuto e dignidades (De honoribus, officiis et dignitatibus), tipo de morte (De qualitate mortis nati), etc. Toma em consideração o planeta que domina o signo no qual a cúspide (início) da casa se situa, os planetas em presença, os aspectos, etc. Utiliza como significadores os planetas em causa, para cada tópico. Chegado às actualmente chamadas técnicas dinâmicas (v. infra) utiliza profusamente as chamadas 'Direcções'. Neste método, a um significador é dado um movimento imaginário de 1º por cada ano (correspondência muito comum adoptada por Ptolomeu), até este chegar a um ponto significante do mapa, por contacto ou por aspecto (relação geométrica). Mysocacus escolhe como significadores a Parte da Fortuna (pars fortunae) para questões de riqueza e património (o astrólogo explica que dirigiu a pars fortunae não apenas da maneira comum, “contra successione 12 signorum”, mas também na sequência da ordem dos signos), o Ascendens, a Lua e o 'Hyleg' (neste caso específico é o Sol) para questões de saúde, o Meio-Céu e o Sol para situar honrarias e prestígio. Os lugares "significantes" para os quais se direccionam incluem os planetas, os nodos lunares, bem como algumas estrelas fixas (cuja "natureza", associação a características dos planetas, as tornava relevantes) e os limites dos signos zodiacais (calculando os ingressos dos significadores) Serão estes os candidatos a promittor [nas Direcções é o ponto que se deslocava, segundo o movimento diurno, até ao lugar de um significator, considerado estático; v. infra]. Este método permitiu analisar o futuro mas também eventos do passado. Diversos parâmetros são utilizados, incluíndo a natureza dos planetas, os aspectos e a posição do ponto "alvo" da direcção [significator], especialmente nos termos (a penúltima dignidade essencial, vide supra) Recorre-se também ao método das 'Revoluções' (revolutiones), que projecta o tema original, o "radix" [i.e., tema radical, original, da natividade em causa], para anos futuros. Esta técnica funciona por 'aniversários' e foi aqui utilizada mormente em questões relacionadas com a saúde. Refere-se, por exemplo, que no quinquagésimo ano do nativo, Saturno transita [definição de Trânsitos: os planetas movem-se perpetuamente, criando novas relações com as posições planetárias do mapa] o grau do Ascendente do radix, em quadratura com o Sol no momento da revolução. (“fecit Saturnus transitum per gradum ascendentis radicis, stetitque in hora revolutionis in quadrato Solis”). Trata-se de uma situação inauspiciosa. E no septuagésimo ano, a direcção do Sol (que é aqui o "Hyleg") chegará aos (graus dos) termos de Júpiter em quadratura esquerda com a Lua e o Ascendente chegará à posição radical (natal) da Cauda do Dragão (inauspicioso nodo lunar inferior, da natureza de Saturno e Marte, as infortunas, quando a Lua descende na sua órbita e cruza a Eclíptica para Sul), e nos termos de Vénus. O nativo terá uma deplorável revolução anual nessa altura, acrescentando o facto de o signo que rege a Casa VIII ("da morte") se situar no Ascendente e ambos os luminares estarem afligidos por "maus aspectos", responsabilidade das infortunas (Saturno e Marte). Perigo de vida! David Juste refere que nada podemos "confirmar" por falta de elementos biográficos. O
Zodíaco resulta de uma "equalização", de um nivelamento artificialmente
gizado nas constelações da faixa do céu percorrida pelos luminares e
pelos planetas. A cada signo, independentemente do tamanho da constelação que lhe empresta o nome, atribui-se 30º (dos 360º que totalizam o grande círculo
oblíquo). A divisão recua à antiga Mesopotâmia. O zodíaco tropical representa um conceito astronómico mais sofisticado e nocional, ao preterir a facilidade da observação dos marcadores concretos, das estrelas, a uma abstracção geométrica como a intersecção do Equador Celeste com a Eclíptica (coniunctio circulorum). O sistema resultante torna-se fixo, isentado do lento deslocamento (1º por cada 100 anos solares*, segundo Ptolomeu) provocado pela Precessão dos Equinócios, fenómeno descoberto, tanto quanto sabemos, por Hiparco (séc II a.C.) comparando valores medidos das longitudes de algumas estrelas, nomeadamente Spica, com os valores de Timocharis (c.320-260 a.C.), cf. Ptolomeu, Synt. 7. 3 pp.28-32. É historicamente designada como "precessão" porque se assiste a uma movimento dos equinócios ao longo da Eclíptica, para oeste (oposto ao movimento anual do Sol ao longo desse círculo). Atendendo a que na época helenística o desfasamento era modesto (ambos os "zodíacos" praticamente coincidiam), é crível que a maior parte dos astrólogos não se preocupassem ou simplesmente desconhecessem a questão "sideral" versus "tropical". Esta resultou, como afirmado, de uma investigação astronómica e matemática de vanguarda, i.e. "académica", ainda relativamente recente nessa época. * Valor actualmente aceite: 1º em 72 anos Mesmo os adeptos do zodíaco sideral
("das estrelas", o das constelações) utilizavam e utilizam (prevalece
no contexto da Astrologia praticada na Índia) a divisão homogénea e
convencional em sectores de 30º e não as verdadeiras dimensões em
longitude de cada uma das constelações, que são obviamente desiguais, o
que pode ser apontado como uma incoerência. O diferencial entre o início do Zodíaco fixo (0º Aries) e o Equinócio é conhecido em Sânscrito como Ayanāṃśa (ainda como ayanabhāga, "porção"). O desfasamento Tropical-Sideral é, actualmente, de cerca de 24° - 25°. Logo, quase todos os pontos do horóscopo "caem" hoje numa constelação diferente daquela que originalmente "marcava" o signo com ela relacionado e ao qual emprestou o nome. O primeiro autor da astrologia conhecido a advogar a utilização do zodíaco tropical foi Ptolomeu. Procurando ancorar a prática astrológica ao background científico da sua época, articula-a com as mudanças sazonais e as qualidades (quente, frio, húmido e seco). O zodíaco tropical estabelece inequivocamente o ponto inicial e disponibiliza simetria dos tempos ascensionais (dependentes da inclinação da Eclíptica; na definição de Neugebauer e van Hoesen: ‘how many degrees of the equator cross the horizon of a given locality simultaneously with the consecutive zodiacal signs’ (Greek Horoscopes, p.11)). Contudo, Bouché-Leclercq salientou como este passo obliterou as associações de ideias (simbólicas) da astrologia zodiacal: "Ptolémée, qui sait que la précession des équinoxes modifie incessamment la position des points cardinaux (équinoxes et solstices) par rapport aux signes et qui prétend dériver la vertu « naturelle » des signes de leurs rapports avec ces points, Ptolémée, dis-je, détache du Zodiaque réel, représenté par les constellations, le Zodiaque fictif, qui se déplace avec le point vernal, celui dont se servent encore les astronomes d'aujourd'hui. (...) [Il] se garde bien de notifier cette rupture avec la tradition et d'avertir qu'elle ira s'aggravant, ruinant par la base les associations d'idées qui constituent le fond de l'astrologie zodiacale." (L'Astrologie grecque, p.129, n.1). Os tratadistas medievais distinguiam o zodíaco dos signos (situado na nona esfera) do zodíaco das constelações (“signos con estrellas”, no Tratado Breve de las Influências del Cielo de Abraão Zacuto), plasmado na oitava esfera. O Zodíaco Tropical (na nona esfera) respalda-se nas estações do ano; o Sideral, das constelações, nas estrelas (como a designação 'sideral' nome elucida). Quanto à demora a erguerem-se no céu, os signos de Cancer a Sagittarius (Verão e Outono) são signos de ascensão longa ou recta, porque demoram mais tempo a erguer-se e os signos de Capricornus a Gemini (Inverno e Primavera) são de ascensão rápida ou oblíqua. A versão tropical não se afirmou na prática astrológica durante séculos. Mesmo
muito mais tarde, autores árabes, fundamentando
as suas práticas em fontes iranianas, continuavam a calcular a partir de
tabelas 'siderais'. Na sequência da primeira fase da adopção de fontes árabes pelo Ocidente Latino, a utilização de valores 'siderais' sobreviveu na Europa Medieval nos séculos XII e XIII (até cerca de 1250), como foi recentemente estudado por Philipp E. Nothaft (Sidereal Astrology in Medieval Europe (Twelfth and Thirteenth Centuries): Traces of a Forgotten Tradition, International Journal of Divination and Prognostication, 3(1), 45-84.n, 2022). Segundo Nothaft, as longitudes siderais entraram pela primeira vez no Ocidente Latino através de uma série de traduções de zījes (tabelas e cânones) de al-Khwārizmī, originalmente coligidas em Bagdade (c.825) e mais tarde editadas por astrónomos no al-Andaluz. As tabelas do movimentos médio dos planetas de al-Khwārizmī baseiam-se em materiais indianos e persas mais antigos e operam no contexto de um zodíaco sideral. A precessão nunca é referida. As primeiras tabelas em Latim a oferecer o algoritmo necessário para a conversáo em valores "tropicais" foram as Toledanas (compiladas em Árabe e traduzidas na segunda metade do séc. XII). As longitudes podiam ser convertidas utilizando a chamada "equação" [da oitava esfera], neste caso em informação tabulada que contemplava uma precessão bi-direccional (teoria do acesso e recesso, anacronicamente conhecida como "trepidação"). Foram populares até à adopção das Tábuas Afonsinas. (pp.6-7) Por exemplo, o autor anónimo de um texto referido por Nothaft (incipit: “Cum sint due signorum distinctiones...”) datado de 1188, refere que na sua época o Sol alcança o coniunctio circulorum (i.e., os pontos equinociais) quando está no 23º grau de Pisces e Virgo (signos siderais). Isto representa um desfasamento de 8 graus entre o zodíaco sideral e o zodíaco definido pelas estrelas e constelações (secundum figuras stellarum), que de acordo com o autor se move 1º em cada 100 anos. (p.19) Todavia, a convenção que adoptava o zodíaco tropical quando se tratava dos tempos ascensionais já era antiga. Surge já firmemente estabelecida no séc. I no trabalho de Geminus de Rodes na sua Introdução aos Phainómena (vide 1.9, 1.13, 2.27–45, 6.44–49, 7.4; trad. James Evans e J. Lennart Berggren, Princeton University Press, 2006). Nothaft, na conclusão do estudo citado, expende a tese de que o peso dos ditames da Universidade de Paris levaram à adopção do consenso "tropical" a partir da segunda metade do séc. XIII. Abraão Zacuto, no “Tratado Breve de las Influências del Cielo” (1486), esclarece [judiciosamente] que as mansões lunares se calculam a partir dos vinte e um graus e meio de Aries, porque foi a deslocação sofrida pela oitava esfera desde que foram calculadas, na época de Ptolomeu, até à data em que o autor escreve o seu Tratado. Em causa a Precessão dos Equinócios. (Tratado Breve de las Influências del Cielo (1486), de Abraão Zacuto. Estudo e edição de Eunice Mateus dos Santos, dissertação de mestrado (FCUL - Departamento de História e Filosofia das Ciências, 2021, p.53)
As mais importantes técnicas dinâmicas - Revoluções: nas revoluções dos anos do nativo, estuda-se a figura quando o Sol retorna ao mesmo exacto ponto zodiacal em que se situava no momento do nascimento. É uma técnica utilizada para o prognóstico das condições gerais do ano em causa. Foram muito favorecidas na época medieval tardia. Mas tornou-se difícil perpetuar o interesse pois o Tetrabiblos nunca menciona esta técnica. Todavia, o Centilóquio (que hoje sabemos ser apócrifo), mencionava as revoluções mensais (aforismo 88). - Profecções: os vários componentes da natividade avançam um signo por ano e estuda-se a relação da nova configuração com a original. J. D. North regista um exemplo da sua aplicação no seu Chaucer's Universe (p.216): Alkabucius’ [al-Qabisi]
example (79) has a root horoscope with ascendent 17° Capricorn, the Sun
at 15° Pisces, the Moon at 15° Libra, mid-heaven at 8° Scorpio, and the
lot of fortune at 17° Leo. The child is entering its fourth year, so in
the constructed horoscope all signs are advanced by three. The
‘ascendent’ becomes 17° Aries, so Mars, lord of Aries, is alcochoden.
The ‘Sun’ is now at 15° Gemini, and so on. All the rules that may be
applied to theroot horoscope can now be applied to the constructed version. - Progressões ou direcções primárias. Mais complexas, uma espécie de "sistema absoluto" de previsão. Utilizando o "carrocel" que é o movimento diurno. Gr. aphesis, al-Tasyīr em árabe, é o processo conhecido no Ocidente como "progressões" ou direcções ("primárias" desde que surgiram outras modalidades). Foi descrito no Tetrabiblos (III:10, trad. F. E. Robbins, Loeb Classical Library, 435). Segundo O. Schirmer (Op. cit.), Atazir, ataçir, athacir, directio, prorogatio, théorie aphetique, etc. (consoante etimol. adoptada), é uma técnica que "move" artificialmente um ponto da 'figura' (e.g., planeta, cúspide, aspecto) para o lugar de outro ponto, geralmente um outro corpo ou um seu aspecto (segundo o movimento diurno, que hoje sabemos ser aparente, da Esfera Celeste), calculando essa distância em graus equatoriais e reduzindo-a (fazendo-a equivaler) a um período de tempo que, utilizando a nova configuração, permitiria prognosticar. Para uma descrição detalhada dos aspectos técnicos, v. Al-Biruni on the Computation of Primary Progressions (Tasiyr) de Jan P. Hogendijk, in: Burnett C. & Greenbaum, D. (eds.), From Masha' Allah to Kepler: Theory and Practice in Medieval and Renaissance Astrology, Sophia Centre Press, 2015.
A técnica ganhou desenvolvimento no Tetrabiblos, IV.10. Em vez de um único significador (prorogator) do "arco" ou percurso da vida (que é a motivação original), Ptolomeu admite cinco lugares vitais
(mais tarde chamados "hilegíacos"): Ascendente, Meio-Céu, Sol, Lua e
Parte da Fortuna. Expomos a variante 'standard' (de ascenções mistas, como veremos), aqui simplificada e menos exacta (exemplo infra não contempla as latitudes eclípticas dos planetas), que todavia permite compreender a intenção da
abordagem. (Para exposição mais completa, particularmente das metodologias
de astrólogos Islâmicos, remetemos para os pertinentes estudos de Julio Samsó, Josep Casulleras, Jan Hogendijk ou Michio Yano) Como exemplo, a famigerada determinação da duração da vida do nativo. O significador [Gr., aphetai = "emissores"] é o ponto P (significator; aqui é o "ponto vital": apheta, haylaj, hyleg); o promissor é o ponto F (promittor; ar. al-musayyar: "o que viaja"; aqui é o grau "que corta", o "destruidor": gr. anareta, ár. qati, o abcissor), que podia ser uma das "Infortunas" (Saturno ou Marte), o ponto Descendente do horóscopo, etc. (v. infra). Utiliza-se apenas o movimento diurno (...do Mundo,
como se dizia; hoje sabemos que é somente aparente, resultando da
rotação da Terra). Não estão em causa movimentos próprios dos
planetas/pontos
relativamente às estrelas, O referido movimento (tasyīr significa dirigir, propulsar, de sayyara, da raíz árabe "syr"), "carrega" na prática
o ponto F para a posição P' no mesmo círculo de posição
de P (círculo representado na ilustração, intersectando perpendicularmente os
pontos Norte e Sul do horizonte), necessário pois dificilmente os dois
pontos teriam a mesma declinação. O arco FP'
é paralelo ao Equador Celeste.
Em resumo, existe à partida, obviamente, determinada distância zodiacal
entre os dois pontos. Todavia, como os graus se movem devido ao
movimento
diurno a diferentes velocidades (dependendo do seu lugar no Zodíaco, da
obliquidade da Eclíptica na época e da Latitude específica do
lugar), o arco doravante medido no Equador Celeste (ou num paralelo) pode ser maior ou menor (é a questão dos diferentes tempos ascensionais verificados na chamada esfera oblíqua). NB: referidas em particular em relação aos fenómenos dos ortos e ocasos, a sphaera recta diz respeito à latitude zero (Equador), a sphaera oblíqua é a das restantes latitudes geográficas. Transformava-se então este arco
(graus, minutos...) em tempo, cada grau equivalendo tradicionalmente a
1 ano solar e cada minuto de arco a cerca de 6 dias. Noutras aplicações mundanas, os períodos escolhidos seriam diferentes, e.g., Ibn Abī-l-Riŷāl refere o Tasyīr al-tahwīl ("tasyīr do aniversário"), bastante previsível, em que 30º equivalem a 1 ano da vida do nativo (Díaz-Fajardo, M., El Capítulo sobre el Tasyīr en A--Bari, de Ibn Abi-l-Riyal y su Traduccíon Alfonsí,
Al-Qantara, XXXII 2, julio-decembre 2011, p.352). Os astrólogos
modernos fazem habitualmente "progredir" os planetas a partir da
posição original no horóscopo, obtendo o arco a partir da Eclíptica,
sem utilizarem o movimento diurno. Esta opção existia mas era uma das
menos utilizada na prática medieval (Josep Casulleras & Jan P.
Hogendijk: Progressions, Rays and Houses in Medieval Islamic Astrology: A Mathematical Classification, Suhayl 11 (2012), p.43). Este método directo (Direct Method)
traduz tão somente a diferença em longitude eclíptica entre os dois
pontos. Não era comummente aplicado no Oriente mas foi usado por
astrólogos no Magreb e al-Andaluz (e.g., al-Istiji, ibid. p.45). A reter... - Na prática, o ponto P considera-se 'estacionário'; mede-se pois o arco rotacional que F descreve, pelo movimento do Primum Mobile, para chegar ao círculo de posição onde "está" (virtualmente, pois já lá não está) o ponto P. Procedimento dependia da posição de P. diferença das ascensões rectas (AR) [como seria no exemplo na ilustração acima, pois P está no Meridiano], das ascensões oblíquas (AO) ou das complementares descensões oblíquas (DO); v. definições destas coordenadas. (A descensão oblíqua (DO) é complementar da AO, i.e. equivalendo à AO do signo diametralmente oposto). Alguns astrólogos também estavam disponíveis para considerar o ponto F precedendo o significador ou emissor. pressupondo uma rotação na direcção oposta ao do movimento diurno da Esfera (ver e.g., Ptolomeu, Tetrabiblos (Ed. Robbins, Loeb C. L.), pp. 279-281; Ibn Hibinta. 1987, vol. 1, p.139). - A 'Figura Celeste' divide-se em duas metades: - Todos os ângulos e arcos são computados segundo modulo 360. Assim, 40º − 320º = 80º. - O ponto "emissor" (P). precedente. e o ponto "destrutivo" (F) são sempre escolhidos de modo a que a porção do grande círculo n não exceda 90º. Ou seja, n ≤ 90. Os astrólogos antigos e medievais expressam esta quantidade como um arco rotacional no Equador Celeste e não como um ângulo.
O Opusculo de astrologia en medicina, y de los terminos, y partes de la astronomia necessarias para el uso della (Lima, 1660) de Juan de Figueroa, elenca (Opusc. IV, Cap. III) uma selecção dos significadores e promissores. Assim, podem ser significadores os lugares "hilegíacos" ("lugares elegiales"): Ascendente, Meio-Céu, Sol, Lua e Parte da Fortuna [autor segue rigorosamente Ptolomeu; outros autores admitiram os planetas enquanto significadores]. Podiam ser significadores uns dos outros. Como promissores: os planetas, seus aspectos, os antiscia [etim. "sombra", simetria, equidistância relativamente ao eixo solsticial, Cancer-Capricornus], os termos [ou términos], as estrelas 'fixas' [descartadas por Ptolomeu pela impossibilidade de gerir e tornar lógica a sua utilização], as casas celestes [i.e. suas cúspides], os nodos lunares (caput e cauda) ou, em geral, qualquer ponto do Zodíaco "excepto las partes que dirigem los Arabes, que se tienen por vanas y supersticiosas" [numa atitude típica desta época, somente se utilizava a pars fortunae, a única referida por Ptolomeu].
N,B.: A desacreditação das Tábuas Afonsinas (em termos de precisão) começou cedo (e.g., por Levi ben Gerson) mas deve-se, acima de tudo, a Peuerbach (o Purbáquio dos nossos tratadistas) e ao seu discípulo Regiomontanus, em Viena, somente nos finais do séc. XV. O objectivo é conhecer o comprimento do arco de progressão (ar. tasyīr). Nesta técnica, quando existe coincidência com os cardines da 'figura' (ASC, MC, DS, IC),
tudo é imediato. Nos sistemas de domificação utilizados, estes pontos
fundamentais da 'figura' coincidem com as cúspides (ar. markaz, pl. marakiz, i.e. "centros") das Casas I, IV, VII ou X. Nestes casos não era necessária a chamada "equação":
Ou seja, caso P estivesse sobre o horizonte oriental (altura=0º) media-se a ascensão oblíqua do arco (para a latitude geográfica em causa); se P estivesse no horizonte ocidental, poente, seriam as descenções oblíquas (que comodamente equivalem às ascensões oblíquas dos signos diametralmente opostos na roda zodiacal). Em relação ao Meridiano (ponto P nos diferentes Quadrantes):
Nas situações "gerais", quase sempre intermédias (quando P não está num dos cardines, com semi-arco diurno diferente de 90º) utilizava-se o método 'standard' do semi-círculo de posição (Position Semicircle Method, seg. Hojendijk & Casulleras): neste sistema de "ascensões mistas" o ponto F é rodado para o semi-círculo de posição de P, que também passa nos pontos N e S do Horizonte. Parece ser o mais universal, pois resolve a situação dos planetas que estão entre o Horizonte e o Meridiano.
- a distância a de P ao Meridiano, medida no seu paralelo; - D, semi-arco diurno de P, i.e. metade de 2D (arco diurno). 2D é a porção do paralelo que está sobre o horizonte = DO - AO (de P); Hogendijk grafa equiv.: AO + 180 - AO. - AR do arco (i.e. diferença das ascensões rectas dos dois pontos); - AO do arco (i.e. diferença das ascensões oblíquas dos dois pontos se estes estiverem no Hemisfério Oriental da 'figura'; utiliza-se a descensão oblíqua se P estiver no Hemisfério Ocidental da 'figura'. Logo... P no Hemisfério Oriental da 'figura': AR_PF − a/D x (AR_PF − AO_PF) Al-Qabisi, na sua célebre Introdução (IV.12c) refere procedimento a utilizar quando P e F (na nomenclatura que temos utilizado) estão em quadrantes diferentes (guiamo-nos pela tradução de B. Dykes (ITA, Cazimi Press, 2010). A edição Burnett/Yamamoto/Yano (Warburg Institute, 2004, p.125) traduz os dois pontos como "indicator" e "position"): "Deve dirigir-se o significador para o ângulo que vem a seguir [i.e. determinar a distância ao 'cardine', ASC, MC... seguinte]; depois dirigir a partir desse ângulo até ao sítio [grau do promittor, ponto F], da maneira como já expliquei [anteriormente como fazer] a direcção a partir de um ângulo, e deve-se então juntar ambos [os arcos de direcção]". Ou seja, o processo é faseado, duas operações, utilizando as regras em função das posições de P e do 'cardine' que se encontra entre P e F. Somam-se ambos os arcos no final. Quanto à terminologia utilizada por al-Qabisi, ler acima o esclarecimento de al-Biruni.
Disponibilizavam-se tabelas para converter facilmente o arco resultante em tempo. Método torna-se mais complexo (e exacto) se se tomar em consideração a latitude eclíptica dos planetas, obrigando à conversãp em coordenadas equatoriais (nomeadamente considerar a declinação). Al-Biruni, no al‐Qānūn al‐Mas‘ūdī, recorre a coordenadas altazimutais deduzidas do ângulo horário e declinação do planeta. Transfere as coordenadas para um novo sistema no qual o círculo básico de referẽncia é a Primeira Vertical (círculo que passando pelo zénite, inclui os pontos Este e Oeste), v. Hogendijk, Op. cit. Ptolomeu apresentou uma alternativa técnica que se baseia noutro princípio geométrico, relacionada com as horas sazonais (as dos astrolábios e relógios de sol). Hojendijk e Casulleras, na sua classificação, chamaram-lhe "Hour Angle Method" (método das linhas horárias), Op. cit., 2012, p.53. Aqui. as linhas são definidas do seguinte modo: para qualquer dia, o período entre o nascer e o ocaso do Sol divide-se em doze períodos iguais, Os dois pontos ficarão na mesma posição se estiverem na mesma linha horária. Estas horas são sazonais, variáveis em função da estação do ano. Mas se o comprimento varia, as horas são sempre seis. O mesmo se aplica às horas sazonais nocturnas (entre o ocaso e o nascer do sol sequente). Assim, segundo os autores, o problema resumia-se a transportar o ponto F até coincidir com a linha horária do ponto P, calculando o intervalo em tempo. [NB: A solução envolve a proporcionalidade dos semi-arcos de ambos os planetas. O semi-arco é simplesmente o nº de graus ou o tempo que um ponto demora, segundo o movimento diurno ou primário, no sentido dos ponteiros do relógio, a deslocar-se do círculo do horizonte ao círculo do meridiano, ou vice-versa.]
Bouché-Leclercq (L'Astrologie Grecque,
1899) verificou com perplexidade a confusão e mistura dos dois sistemas principais
cometidos a este cálculo, prolixamente documentados na literatura. Um
utiliza a atribuição de 'anos' (utilizados de modo diverso e muitas vezes associados aos termos, penúltima dignidade essencial); outro a amplitude dos arcos
de direcção. Segundo afirma, as autoridades antigas, medievais e
renascentistas não deixaram de os mesclar e confundir "...mélanger,
combiner, troquer les deux systèmes principaux, empruntant la durée de
la vie à l'un et la répartition du temps à l'autre." (p.411)
Segundo J. D. North, a primeira abordagem a este problema complexo parece ter almejado relacionar a vitalidade do indivíduo com o signo/planeta/casa sob a qual ele nasceu.(...) A partir do conceito de que um planeta governa a genitura, tornou-se natural supor que este imprimiria à vida uma determinada extensão, projectando-a de acordo com três classes de sítios [i.e. segundo o posicionamento em casas angulares, sucedentes ou cadentes] no qual o planeta podia ser encontrado no momento do nascimento [i.e. quão dignificado este estaria]: "If the planet (alcochoden) [o mais dignificado no sítio do hyleg, aqui na terminologia medieval, influência arábica] happens to be in an angle, one chooses the basic number for the length of life from the great years (anni maiores); if the planet is in a succedent place, from the mean years (anni medii); and if cadent, then from the lesser years (anni minores). But this is not the end of the calculation, for the other planets in the horoscope affect the result by adding or subtracting from the basic figure (in years or months, according to rules for its strength or weakness). Infortunes in hostile aspects subtract their number given under ‘lesser years’ from the total, while fortunes in benign aspect add their number, still taken rom the line of ‘lesser years’. In this way the life expectancy is found; but there are still certain restrictive rules that we need not consider further." (Chaucer's Universe, p.222). [A tabela seguinte, que inclui entre outros dados, os anos 'maiores' 'médios' e 'menores', encontra-se na p.221 do estudo de North; colunas dizem respeito aos planetas (Sol, Lua, Saturno, Júpiter, Marte, Vénus, Mercúrio) e nodos lunares] Ptolomeu baseou-se em sistemas pretéritos mas introduziu alguma "coerência". Segundo Bouché-Leclercq:
Sa théorie repose essentiellement sur l'assimilation du Zodiaque à une roulette dans laquelle la vie des individus est lancée avec une force plus ou moins grande d'un certain point de départ ["o lugar do prorogator, apheta, o hyleg medieval"] et se trouve arrêtée, ou risque d'être arrêtée, par des barrières ou lieux destructeurs [os lugares "destruidores", "abcissores"], sans pouvoir en aucun cas dépasser un quart du cercle [um quadrante]. Le nombre de degrés parcourus, converti en degrés d'ascension droite, donne le nombre des années de vie. (ibid.) [Trad.: "A sua teoria baseia-se, essencialmente, na assimilação do Zodíaco a uma "roleta" na qual a vida dos indivíduos é lançada com maior ou menor força de um determinado ponto de partida (lugar do "apheta") e é travada ou se arrisca a sê-lo pelas barreiras ou lugares destruidores ["abcissores"], sem poder em qualquer caso ultrapassar um quarto de círculo [um quadrante]. O número de graus percorrido, convertido em graus de ascensão recta, dá o número de anos de vida"] Esta teoria "afética" instaura definitivamente a doutrina
das "direcções" (hoje chamadas 'primárias'). North refere, com
propriedade, a antiga ideia de associar o horoskopos ao nascimento e a
morte ao ponto diametralmente oposto (occasus). Mas assim a longevidade
seria excessiva, potencialmente de 180 anos (na tradicional
equivalência 1º = 1 ano). A utilização confinada a um quadrante (90º) parecia
razoável. Numa nota em que cita Plínio (p.222, n.29), somos informados
de que o autor romano atribui aos míticos Nechepso e Petosíris a doutrina de que a
vida não pode ultrapassar o tempo ascensional (em graus, contados em
anos) de um quadrante da Eclíptica no clima [i.e. faixa de latitude] em causa (seriam 112 anos em Alexandria, vide Neugebauer, HAMA, p. 721).
A opção 'quadrante' prevaleceu. Mas como gerir o simbolismo dos vários
ângulos? O meio-céu era visto como o pináculo da existência, como
Dante demonstra na abertura do seu Inferno: "nel mezzo del cammin di
nostra vita". Segundo North, Ptolomeu optou por este ponto num primeiro
sistema, criando perplexidade nos seus intérpretes pelo facto de
retirar ao ponto "afético" o protagonismo e tornando o ponto do occasus(Descendente)
o único "anaereta", que assinalava o final da vida neste
esquema. Mas o alexandrino acabou por respaldar-se no sistema mais
consensual, onde a vida é comparada a um 'mobile', "arrastado" pelo
movimento diurno, a caminho do ponto que representa a destruição ou
morte, e encontrando percalços
perante as infortunas (Saturno e Marte) ou os seus aspectos.
[Basicamente, é o sistema que foi acima exposto no seu refinamento
islâmico medieval]. Ptolomeu
avançou vários potenciais pontos de partida.
"[Ptolemy] insisted on aphetic points above the horizon that were also in aspect with the ascendent, giving pseudo-physical reasons for his choice—mid-heaven, the ascendent (with the five-degree rule), the beginning of the eleventh house (‘good daemon’), the descendent, and the beginning of the ninth house (‘that of god’). This rule is of course the prototype for that which we met in Alkabucius’ account of the equivalent concept, hyleg. As for aphets, the rules were the prototype for those given by Alkabucius [al-Qabisi] for alcochoden. They were, briefly: (by day) (1) the Sun, if in an aphetic place; otherwise (2) the Moon if in such a place; otherwise (3) the planet which, being in an aphetic place, has most dignity, or right of lordship, whether of the Sun’s place, or that of the last new moon, or of the ascendent; otheerwise (4) the ascendent itself. By night, the rules were much the same, but the roles of Sun and Moon were reversed, full moon was substituted for new, and the lot of fortune for the ascendent, if under case (3). If under case (4), then if the last syzygy was a full moon, the lot of fortune corresponding to it was to be taken. (North, Op. cit. 1988, p.223). [Como já referimos, estas regras foram sendo flexibilizadas]
Reconhecendo o sincretismo entre as teorias que relacionam o Macrocosmo-Microcosmo, o "dietário" Hipocrático, a crença egípcia na influência de determinados "demónios" sobre determinadas partes do corpo e a "Melothesia" em geral, David Pingree (na sua edição do tratado astrológico indiano Yavanajataka, versificado por Sphujidhvaja) comenta a confluência entre Melothesia e Thema Mundi [vide Corpus Hermeticum 10, 11 e A.-J. Festugiere, La revelation d' Hermes Trismegiste, vol. 1, 2nd ed., Paris 1950, pp.92-93)]: "Hermetic savants wrapped the primitive, erect cosmic man (Sphujidhvaja's Kala or Prajapati) about the path of the Sun with the top of his head touching the soles of his feet at 0° of Aries. Though this imaginative concept was intended to be applied to the field of iatromathematics, its development was influenced by several relationships which had a mystical appeal for its superstitious inventors. The vernal equinox is at the head of the universal man (Scholia in Aratum 545, p.446, E[rnst] Maass); his heart lies in Leo, on whose breast shines the bright star Regulus; and, at the time of the Creation, his head was in mid-heaven (Macrobius, In Somnium Scipionis 1, 21, 23). This last coincidence indicates a connection between the melothesia and the thema mundi, which is, in fact, the horoscope of the cosmic man (Antiochus, Introductio 2, 1 in CCAG 8, 3; 119)." A versão mais conhecida do thema possui Aries
culminante, Firmicus Maternus (séc. IV) acrecentou a exacta posição dos
planetas (no 15º grau dos respectivos signos) segundo os míticos
"Petosiris e Nechepso", que nesta doutrina, como afirma, terão seguido
"Aesculapius e Hanubius". Existem outras versões. Abu Ma'shar (Albumasar,
séc. IX) distribuiu os planetas segundo as suas "Exaltações" (que foi sempre a dignidade mais respeitada na tradição Indiana), o
Venerável Beda colocou o Sol no Equinócio Vernal. O Ascendente está em Cancer, ocupado pela Lua. O Sol, ígneo e quente, é considerado no pico da sua influência [no Hemisfério Norte] em Leo.
Seguidamente são atribuídos os restantes planetas tradicionais,
respeitando a ordem zodiacal e segundo as suas velocidades e
distâncias. Mercúrio, que nunca se pode afastar do Sol mais do que um
signo está situado em Virgo; Vénus, que nunca se pode afastar do Sol mais do que dois signos está situado em Libra. Marte, o planeta seguinte, mais afastado do Sol e mais lento, situa-se no signo seguinte (Scorpio). Júpiter é então associado a Sagittarius e finalmente Saturno a Capricornus (Saturno é o planeta mais lento e Capricornus o signo mais afastado dos signos iniciais (Cancer e Leo).
Portanto, este esquema disponibiliza a base conceptual dos domínios
planetários, pelo menos dos fundamentais. Os restantes “senhores” ou
“governadores” dos signos (cada um dos cinco planetas possui dois
"domicílios") são distribuídos criando uma imagem “espelhada” do thema, sendo os planetas doravante atribuídos a partir do signo onde está a Lua seguindo uma ordem zodiacal inversa. Mercúrio em Gemini, Vénus em Taurus,
etc. Temos pois um esquema simétrico. A partir deste
esquema, podemos extrapolar algumas das qualidades da natureza
básica dos chamados “aspectos”. Por exemplo, se desenharmos duas linhas, uma a
partir de cada um dos dois luminares, para Vénus (Libra e Taurus),
teremos um sextil. Sabemos que Vénus +e a “fortuna menor" e o sextil o mais
fraco dos aspectos benéficos ou "fáceis". Se agora desenharmos linhas
até Marte verificamos que se trata de quadratura; sendo Marte a
“infortuna menor” e a quadratura o menos mau dos dois aspectos
perniciosos. Um trígono ou triângulo (120º) separa o Sol de
Júpiter (em Sagittarius) e a Lua de Júpiter (em Pisces); diz-se que é o melhor dos aspectos fáceis ou benéficos, sendo Júpiter obviamente a “fortuna maior". Os signos de Saturno (Capricornus e Aquarius),
por seu lado, opõem-se aos domicílios do Sol e da Lua, pois Saturno é a
“infortuna maior” e a oposição é o aspecto mais nefasto. Percebe-se
assim o que revela a geometria deste thema.
Portanto, quando se pondera a ideia de “aspecto” sobreposta ao conceito
de ‘casa astrológica’, compreende-se como se torna importante a
referência “geométrica” à primeira casa, onde está o Ascendens.
É por isso que as casas que possuem aspecto com o Ascendente (I, III,
IV, V, VII, IX, X e XI) são geralmente associadas a tópicos positivos
ou rotineiros da vida, enquanto as “inconjuntas” (as que com o
Ascendente não possuem qualquer relação geométrica de aspecto: II, VI,
VIII e XII) tendem a ser associadas a temáticas negativas e perniciosas
(especialmente a VI com doenças, a VIII com a morte, a XII ou dozena com perdas).
Ou seja, parte do racional que preside ao significado das Casas relaciona-se com a base conceptual aqui exposta. O precursor helenístico parece ser o conceito de chrêmatistikos
([posicionamento] "vantajoso" ou "lucrativo"), encontrado , por
exemplo, em Antiochus, Porphirius, Rhetorius ou Timaeus, que
estabelecia uma relação geométrica dos "lugares" com o ascendente,
válida num sistema de equivalência Casas-Signo. Aí, ficavam de fora as "casas" II, III, VI, VIII e XII (achrêmatistikos, sem relação).
https://theastrologypodcast.com/2020/11/28/an-overview-of-the-history-of-western-astrology/ (aced. 29 de Junho de 2023)
Os Decanos do Palazzo Schifanoia
Nestes espantosos frescos, pintados, pelo que se supõe, por Francesco del Cossa, Ercole Roberti e outros (circa 1468-70), o rectângulo central dedicado a cada signo está dividido em três segmentos iguais por linhas douradas. Em cada divisão surge uma estranha imagem. Estas imagens representam, como o historiador Aby Warburg foi o primeiro a reconhecer, os decanos (drekãnas) da tradição Hindu (descritos no Yavanajâtaka, lit. "os ditos dos jónios" (i.e. dos gregos), que sobrevive numa versão versificada por Sphujidhvaja, c. 270 A.D.), como explicados por Abu Ma'Shar no seu Liber introductorii maioris (séc. IX). O Liber introductorii foi traduzido na Península Ibérica, no séc. XII, por Johannes Hispalensis, de Sevilha. Foi depois traduzido no norte de Espanha ou sul de França por Hermannus de Carinthia e ainda por Pietro d'Abano, vide Yamamoto and Burnett, (eds./transl.), The Great Introduction to Astrology by Abū Maʿšar, vol. I, Brill, 2019, p. 5). Abu Ma'Shar refere a designação indiana darīgān, que está relacionada (Op. cit., p.515). Estamos perante um fascinante testemunho da transmissão de doutrinas através dos contextos culturais egípcio ptolomaico, iraniano, indiano e árabe, chegando ao Ocidente Latino através do al-Andaluz e à Ferrara renascentista do duque Borso d'Este, no século XV. Esta "viagem no tempo", imortalizada na arte, fascinou Warburg (um dos promotores da Conferência Internacional de História da Arte, em Roma, no ano de 1912), o grande "historiador das imagens" e fundador de uma especial abordagem à Iconologia (com a seminal palestra “Italienische Kunst und internationale Astrologie im Palazzo Schifanoja zu Ferrara”). Apesar
das similitudes iconográficas, há algumas diferenças em relação à
descrição de Abu Mas'Shar. A iconografia pode ter sido adaptada a esta
utilização específica (cf. Philippe Morel, Mélissa, Magie, astres et démons dans l’art italien de la Renaissance, Paris, 2008, pp. 120 et seq. e Marco Bertozzi: La tirannia degli Astri, Gli affreschi astrologici di Palazzo Schifanoia,
Livorno, 1999). Sabemos pouco acerca do projecto. Os textos base deste
magnífico ciclo de pinturas parecem incluir Manilius, a já referida Introdução de Abu Mas'Shar [talvez na tradução latina de Pietro d'Abano], o Picatrix (a já referida colectânea de textos de índole hermética: Ghāyat al-Ḥakīm no original em Árabe que se supõe do séc. XI,
vertido para Castelhano e Latim no séc. XIII e extremamente influente
no imaginário e iconografia do Renascimento, acreditando-se outrora
tratar-se de genuíno e "antiquíssimo" texto hermético) e ainda Boccaccio
(Dieter Blume: Picturing the Stars: Astrological Imagery in the Latin West, 1100-1550, in: Dooley, B. (ed.), A Companion to Astrology in the Renaissance, Op. cit., ch.10)
Resenha histórica... A. Bouché-Leclercq (L'Astrologie grecque, 1899), destacou ...l'idée que chaque division du temps, grande ou petite, devait avoir son génie protecteur, être la propriété d'une divinité quelconque, d'un χρονοκράτωρ ["chronocrator"]. (...) Les Égyptiens, dès le temps des Pharaons, avaient donc semé le long de la route diurne et nocturne du Soleil toute espèce de génies, qui lui disputaient pour ainsi dire la maîtrise du temps..." (p. 220). Serão divindades designadas pelo nome vago de "figuras" ou "personagens", facies, "formae decanorum" em Martianus Capella. Ptolomeu desprezou-os, não os considerando no Tetrabiblos. Bouché-Leclercq assevera a origem egípcia destes génies: "...qui étaient attachés à des étoiles, constellations ou parties de constellations, situées sur la route du Soleil". Este 'caminho do Sol' seria inicialmente, na sua interpretação, uma vasta faixa entre os trópicos, não confinada às imediações da Eclíptica. Na perspectiva hermética, as divindades dos decanos seriam "gardiens vigilants, inspecteurs de l'Univers", divindades eventualmente incorpóreas e num plano diferente, numinoso. Na adaptação astrológica, "helenizada", serão integrados com as necessárias "subordinações" às correspondências do sistema. Pródigos em propriedades e afinidades "secretas" e simbólicas, são relacionados numerologicamente com a década (as 36 décadas do ano egípcio), supostamente com a tetraktyis pitagórica (representação simbólica do número 10 segundo um triângulo "perfeito") e com os aspectos astrológicos triangulares (trígonos) segundo Manilius. Também estavam, segundo o historiador francês, relacionados com os talismãs e gnósticos e floresceram, com ou sem "máscaras" planetárias, senhores das partes do corpo humano e de uma farmacopeia vegetal e mineral (p.237). [vide representação dos 'selos' dos 36 decanos, CCAG VI p. 74]. O termo "decano" nunca foi, evidentemente, designação autóctone. Otto Neugebauer (The Egyptian “Decans”. in: Astronomy and History Selected Essays.
Springer, 1983 ) monstrou que as secções de 10º foram originalmente
asterismos ou constelações cujos nascimentos helíacos (quando começavam
a estar observáveis antes do orto (exortum, "nascimento") solar, suficientemente afastados do
brilho matinal) estavam separados por 10 dias, permanecendo
observacionalmente inacessíveis por 70 dias. Como Antonio Panaino
explica (The Decans in Iranian Astrology, in: 'East and West',
Vol. 37, No. 1/4 (December 1987), pp. 131-137), a tradição, competindo
com a divisão zodiacal, é originalmente egípcia. Nesta, o Sol,
percorrendo a sua via nocturna, era apoquentado por uma sequência de
"génios" (que habitavam determinadas estrelas e asterismos) e
tentavam, sem sucesso, obstaculizar o seu percurso. O sistema funcionava, na prática, como um "relógio de estrelas" e relaciona-se com a divisão em 12 horas doravante adoptada. Neugebauer (The Exact Sciences in Antiquity, 2nd ed., Dover Publ., 1969, pp.81 et seq.) explicou a interacção de dois componentes essenciais da contagem do tempo na civilização Egípcia: o nascimento de Sirius (arauto da cheia do Nilo) e a estrutura do ano civil de 12 meses, cada um com três décadas (3 x 10 dias). Salienta que foi a estrutura decimal do calendário egípcio que determinou o espaçamento dos decanos e, consequentemente, o número de horas que o seu nascimento indicava em cada noite. Uma divisão mais fina levaria a um aumento do número de horas, uma divisão mais larga ao inverso. A divisão duodecimal das horas (que se perpetuou) não é, portanto, arbitrária, somente a consequência da ordem decimal do calendário civil. Na fase final (época helenística), verifica-se, como sabemos, uma colagem ao esquema zodiacal babilónico. Os 36 decanos passam então a representar terços dos signos, cada um com 10º.
J. Bidez e F. Cumont (Les Mages héllénises,
1938) também salientaram a importância dos fragmentos do autor Teukros relativamente aos decanos. Abu
Ma'Shar conheceu o sistema, decerto a partir de mediação persa. O
grande compilador assume a incompletude do entendimento dessas
tradições: The Ancients related the indications
of the places of the sphere and of the decans of the signs to the
figures and things that they considered arose in the decans of the
signs, because they were closest to the thought of one speculating
concerning this, and they called these figures by different names and
assigned to each one of them a condition different from that of
another. Some figures and their condition, and names and their
condition, are near to things existing among us, but others are far
from them, being strange in name, nature, and condition, when one
thinks about them." (Yamamoto and Burnett, (eds./transl.), Op. cit., 1.6b, p. 547) O seu texto dá-nos três sistemas (madhhad) para a divisão: o dos Gregos (al-Yunãn), o dos Persas (al-Furs) e o dos Hindus, declarando que o sistema persa segue um tal 'Tinkalus', i.e. Teucro (autor Babilónico do séc. I a.C.). As divindades associadas aos decanos possuíam, na literatura hermética (e.g., Corpus Hermeticum, IV), autoridade sobre os planetas e estrelas do Zodíaco. São, na literatura astrológica habitualmente associados aos paranatellonta (paranatellõ, asterismos fora do Zodíaco que nascem em simultâneo com os signos). Estes pertenciam à chamada Sphaera Barbarica, de estrelas fixas extra-zodiacais de origem egípcia. Objecto de uma compilação de um já referido Teucro, estudada por Franz Boll (Sphaera. Neue griechische Texte und untersuchungen zur geschichte der Sternbilder, 1903) e, mais tarde, de um tratado acerca das estrelas fixas conspícuas, de autor desconhecido ("Anonymous of 379", i.e. do ano 379 AD) que refere: "...we will begin to state the effects concerning the active power of each of the non-wandering stars, after indeed inscribing in the table the degree number in longitude which each of them occupies in the consulship of Olybrius and Ausonius, at which time we wrote this book. This is on account of the fact that the non-wandering stars move 1 degree into the following tropical signs in 100 years, just as the divine Ptolemy exemplified (trad. R. Schmidt, Project Hindsight, Greek Track, vol. II-a, p.3). Neste caso o tratadista utiliza um zodíaco sideral. Concluíndo,
observou-se uma fértil transmissão entre diferentes geografias, do
Mediterrâneo ao Indostão. Também decerto alguma diversidade, bem como a
utilização de divisões alternativas dos signos em fracções menores (e.g., dōdecatēmoria de 2.5º cada; no contexto Hindu os conhecidos navamsas e os dwadashamshas,
divisões em nove e em doze partes iguais, respectivamente). Chegou-se à
atribuição de "imagens" a cada um dos seus graus individuais (o que
Bouché-Leclercq chama "passe-temps arithmétiques", Op. cit., 216-7). A designação neo-Persa e Árabe 'daregan' - 'darijãn' deriva decerto do Sâscrito 'drkãna', 'drekkãna', que por seu lado tem origem grega (MacKenzie, D. N., Zoroastrian Astrology in the Bundahisn', BSO(A)S, XXVII, 1964, p. 516, n33).
Firmicus (Mathesis,
II. IV) refere subdivisões nos decados zodiacais, uma doutrina que não
desenvolve. Afirma que alguns autores atribuem três divindades a cada
um, a que chamam munifices ou liturgi
("ministros"). Deste modo cada signo possui nove munifices. A tradução
de J. Rhys Bram (Noyes Press, 1975 n.27, pp.306-7) esclarece: "In
a fragment of the Hermetic writings which goes under the name of
"Stobaeus" (Corpus Hermeticum, ed. A.J. Festugiere, Paris, 1945-54) the
decans are called "guards" or "sentinels," and they have
subdivisions called "soldiers" or "sub-liturgi.". Firmicus
considera que se deve observar com atenção se um planeta está num dos
seus decanos, pois funciona como se estivesse no próprio signo. O mesmo
se aplica aos Termos (II, VI). Um conceito com afinidade é o das Horas Planetárias. As horas planetárias eram regidas pelos ritmos naturais e começavam com o nascimento do Sol (diurnas)
e com o seu ocaso (nocturnas). Como as de um relógio de Sol, as suas
durações eram variáveis pois estavam dependentes da variação sazonal na
latitude do lugar. As faces ou decanos seguem, como vimos, a sequência "Caldaica" (Saturno - Júpiter - Marte - Sol - Vénus - Mercúrio - Lua). A primeira face de um signo é a do seu "governador", e.g., a de Aries é atribuída a Marte. Constata-se que a primeira
hora de cada dia descreve a sequência dos dias da semana. Assim, o
Domingo começa com uma hora governada pelo Sol e termina, sempre na
sequência descrita (que se repete ciclicamente), com uma hora de
Mercúrio (que é a décima segunda e última hora nocturna de Domingo).
Segue-se, na sequência, e já no dia seguinte, a hora planetária
governada pela Lua. Por isso, o dia que se segue é Segunda-Feira (Lunes, Lundi, Monday, Montag), pois é a Lua que preside à sua hora primeira, e assim sucessivamente. Trata-se, no fundo, de um sistema de chronocracias. (Esta relação é evidente em muitos idiomas mas não do Português), Ver Taboada dos dias e horas Planetarias (Simão Falónio, "Compêndio Astrologico e iudiciario", Em o collegio de Stº Antão, Lxª Anno. 1639 [Torre do Tombo, Manuscritos da Livraria, nº 2642]),
indicando o nº de ordem da hora do dia e da hora da noite e o planeta incumbente, para todos os
dias da semana (colunas de Domingo a Sábado). Por exemplo, ao
Domingo, o Sol "governa" a 1ª hora do dia e a terceira da noite.
Em resumo, reconhece-se uma longa genealogia e complexidade ao antigo sistema de decanos, que sobreviverá muito simplificado, somente como dignidade menor, com pífia relevância na doutrina astrológica sequente (Lucia Bellizia, The Paranatellonta in ancient Greek Astrological Literature, Genoa, 2010; Wolfgang Hubner, Manilio e Teucro di Babilonia, in: Liuzzi, D. (ed.), Manilius fra poesia e scienza, Lecce, 1993, pp. 21-40).
Portentos e fenómenos extraordinários E vimos monstros na terra (Garcia de Resende) Existia um enorme interesse nos mirabilia... coisas extraordinárias, calamidades. E a Astrologia era ferramenta hermenêutica. Jim Tester comentou: It might be possible for academic astrologi to write later about such things, and show by their charts that it was, of course, all foreseeable; but actually getting the foreseeing right at the time, before the events, was to say the least more difficult (p.208). Como alguém ligado ao ludopédio dizia: "prognósticos só no fim!". Em geral, a prolixa compilação de registos, listagens e cronologias nos séculos XVI e XVII resultou de uma poderosa combinação da consciência histórica com o poder replicador da Imprensa. Mas este fascínio das cronologias e das copiosas listagens integrava-se, frequentemente, mais numa tentativa ampla para perscrutar o "Divino Plano" do que na preocupação da preservação dos testemunhos do passado. Como K.Pomian referiu, muitos dos historiógrafos e cronistas acreditavam que a Astrologia funcionava como uma teologia naturalista da história: "naturalistic theology of history" (Krzysztofk Pomian, Astrology as a Naturalistic Theology of History, in: Zambelli, P. (ed.), "Astrologi Hallucinati: Stars and the End of the World in Luther’s Time", W. de Gruyter, 1986, pp.29-43). Interpretavam-se as grandes conjunções, os eclipses e os cometas como intermediários numa cadeia causal, agentes de um Plano Providencial que se desenrolava na História do Mundo, a caminho dos seus fins, determinando conspícuas mudanças e transformações no âmbito terreno (Adam Mosley, Past Portents Predict: Cometary Historiae and Catalogues, in: Tessicini, D. and Boner, P. (eds.), "Celestial Novelties on the Eve of the Scientific Revolution 1540-1630", ("Biblioteca di Galilaeana III", Museo Galileo/Istituto e Museo di Storia della Scienza), Leo S. Olschki Editore, 2013, pp.16-17). A vertente 'natural' da Astrologia é copiosamente atestada nos séculos XVI e XVII. A judicatura aberta e pública, por seu lado, tornou-se formalmente "perigosa" (sendo escrutinada pela Inquisição nos países católicos). Uma argumentação de cariz teológico, desafianda, procurará interpretar a sinalética “divina”: determinados fenómenos irregulares, não cíclicos, significariam pois seriam sinais deliberadamente manifestados pela vontade de Deus. Maria José Ferro Tavares elucida o contexto: "...com o Evangelho Eterno de Joaquim de Fiore (1135-1202), a história da cristandade foi entendida de um modo apocalíptico, num devir [as Três Idades: do Pai, do Filho e do Espírito Santo] em direcção à última vinda de Cristo, o Messias. Articulada com os apocalipses judaicos, [estas doutrinas] acabariam por ultrapassar a ortodoxia, sendo rotulados de heresia, heresia essa que teve contornos de contestação social e eclesiástica e como tal foi condenada. (...) O milenarismo, como Jean Delumeau demonstrou, é uma atitude que radica no anseio de um mundo melhor, que no contexto judaico-cristão tem cambiantes messiânicos e universais." (O Milénio e a História, Discursos, série III, CEHI, Fev. 2002). Segundo Robin B. Barnes (Astrology and Reformation, Oxford University Press, 2006, p. 84): "Comprova-se que Profecia e Prognosticação (astrológica) estão demasiado interligadas nos séculos XV e XVI, para serem inteiramente separadas entre si, e muitos contemporâneos entenderam-nas como complementares e não contraditórias. Recuando ao século XII, recorria-se a textos Clássicos e Islâmicos para o emprego da Astrologia como ferramenta para o entendimento profético e apocalíptico. Esta tendência tornou-se mais pronunciada ao passo que os conceitos astrológicos ganhavam crédito e disseminação. De facto, a Astrologia assumiu-se como um catalisador fundamental no fermento acelerador das ideias e tradições proféticas; para muitos, os sinais celestiais ofereciam uma base científica, objectiva para as especulações e avisos acerca do futuro. Muitas visões apocalípticas tardo-medievais focaram-se na chegada do Último Julgamento ou acontecimentos terríveis como a vinda do Anticristo. Outros, contudo, incluiam elementos de esperança para determinados tipos de realização histórica predestinada pelo Divino, antes do Final dos Tempos. Habitualmente, viam o futuro marcado por catástrofes e sofrimento, mas vislumbravam uma recuperação final e uma vitória terrena dos crentes." [trad. nossa].
"Céu de pedra
(Pop.; transcrito por Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 160, n. 403, 1999)
Eram barbatos ou crinitos. E a sua cor denunciava o planeta do qual partilhava a "natureza". Interpretava-se a forma, a cor, o tamanho do núcleo, a duração e quando surgiam: "Dizem
os Astrologos gentios, que quando os Cometas parecerem no Veraõ,
significaõ esterilidade; quando no Estio, guerras; quando no Ottono,
pestes; e quando no Inverno, significaõ leys, e costumes novos, e
tambem estes tem significaçaõ sobre a agoa, e secura, como os do Estio.
(...) Se o Cometa aparecer pela menhaã diante dos rayos do Sol, seraõ
seus effeitos muito cedo; e se á tarde, tardios e menos evidentes (...)
Se o cometa aparecer pouco antes de nascer o Sol, denota guerras,
mudanças de Imperio, Reyno, Leys, couzas mui notaveis e assinaladas, e
pela maior parte toquaõ aos Principes (...)." (João de Araújo Sardinha, Curiozidades Mathematicas..., 1615; BGUC, Ms. 1029, 120r)
Como Jean-Pierre Verdet resume: "Dans l'imaginaire populaire, lorsqu'une comète apparaît, c'est que le diable allume sa pipe et jette son allumette. Il y a donc lieu d’être inquiet. Si une comète se montre, il faut surveiller le lieu de son apparition, la région vers laquelle elle s’élance, l'étoile qui l'influence, la forme qu'elle imite." (Le Ciel: Ordre et Désordre, Gallimard, 1988, p.79). Os relatos de antigos cometas foram coligidos em "cometografias". A primeira foi, provavelmente, a de Stumpt (Zurique, 1548). A mais conhecida e espectacular pela profusão de ilustrações, mapas e relatos é o Theatrum Cometicum de Stanislas de Lubienietz (Stanislaw Lubieniecki), publicado em Amesterdão em 1667, reunindo todos os comentas conhecidos desde o Dilúvio Universal até à data da publicação. O simbolismo tradicional destes portentos só foi desafiado no Iluminismo. Para o astrónomo Johann H. Lambert (1728-1777), a aparente desordem que demonstravam seria, pelo contrário, participação na "ordem suprema" do universo, ainda não discernida devido ao nosso incompleto e imperfeito conhecimento desse âmbito macrocósmico.
Um pensador de vanguarda, Pierre Bayle (1647-1706), nos seus Pensées diverses écrites à un docteur de Sorbonne à l'occasion de la Comète qui parut au mois de décembre 1680 (obra abreviadamente conhecida como "Pensées sur la comète", 1682-3), ataca a tradição e as superstições relacionadas com os cometas. Salienta quão ridículo seria conceber que o céu se manifestasse perante acontecimentos (relativamente) pequenos e mesquinhos, como o nascimento ou a morte de príncipes: "Plus on étudie l'homme, plus on conçoit que l'orgueil est sa passion dominante, et qu'il affecte la grandeur jusque dans la plus triste misère. Chétive et caduque créature qu'il est, il a bien pu se persuader qu'il ne sauroit mourir sans troubler toute la nature, et sans obliger le ciel à se mettre en de nouveaux frais pour éclairer la pompe de ses funérailles. Sotte et ridicule vanité. Si nous avions une juste idée de l'univers, nous comprendrions bientôt que la mort ou la naissance d'un prince est une si petite affaire, eu égard à toute la nature des choses, que ce n'est pas la peine qu'on s'en remue dans le ciel." Sabemos como o cometa de
1577 foi, no contexto lusitano, unanimemente relacionado com a
desastrosa iniciativa militar de D. Sebastião, que então fazia
preparativos para a campanha que terminou em desastre nas areias de
Alcácer-Quibir (Ksar-el-Kebir). O aparentemente conspícuo cometa de 1500 (fr. "la grande Asta", it. "signor Astone")
havia sido considerado responsável pelo naufrágio em que pereceu o
navegador Bartolomeu Dias quando fazia, na armada de Cabral, a
travessia entre o Brasil e o Cabo da Boa Esperança, Associado a esse infortúnio por João de Barros (Décadas, 1552) e Manuel de Faria y Souza (Asia Portuguesa, Tomo I, 1574, p.45), foi referido por Alexandre Guy Pingré no séc. XVIII. A notícia é mais tarde registada por Humboldt (que se respalda em João de Barros) no seu Examen Critique de l'Histoire de la Geographie du Nouveau Continent (Tomo I, Librairie de Gide, 1836, p.296) e, a partir desta referência, por François Arago (Astronomie Populaire, vol.II, 1855, p.332). Porque o ser humano é, acima de tudo, um "descodificador" (como afirmou Jacques Le Goff), a "cometomância" criará uma tipologia dos exemplares segundo a sua morfologia, natureza, cor (os "saturninos" teriam uma sinistra cor verde-negra), comportamento, dimensões e duração. O Fr. António do Espírito Santo (Cometas, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 2830, fls. 340r-348v) elenca os seguintes "tipos": "Véru", "Tenáculo" ou "Caudato", "Pértico", "Roza", "Ascóni", "Miles", "Aurora", "Argento", "Niger" e "Cerácias" (vide Luís Miguel Carolino e Carlos Ziller Camenietzki, Tokens of the future: comets, astrology and politics, in Cronos, vol.9: 33-58, Universitat de València, Diciembre 2006) Cientificamente,
deve-se a Girolamo Fracastoro (c. 1476/8–1553) e a Petrus Apianus a
descoberta sobre a direcção das caudas dos cometas, que se opõem ao
Sol. Apianus pensava que um cometa era uma espécie de lente e que a sua
cauda era simplesmente um leque de raios que atravessava as lentes.
Gemma Frisius e Cardanus deram posteriormente publicidade a esta ideia
engenhosa. Tycho Brahe foi um dos que adotaram o princípio da
lente, num trabalho de 1588 sobre o cometa de 1577, considerando que,
neste caso, a fonte da luz não era o Sol mas sim Vénus. Kepler aceitou
por muito tempo a ideia das "lentes solares". Todavia, criticou-a a
partir de 1618. Descartes adotou uma versão da ideia. Newton criticou-a
e lentamente a teoria desvaneceu-se. (v. North, J. D., The Norton History of Astronomy and Cosmology, W. W. Norton & Company, 1994, p.277)
“…dizemos, que os Ceos saõ corruptiueis ab intrínseco, & incorruptiueis ab extrínseco,…" (ler trecho original; .PDF, 266KB) Mas o abalo estrutural determinado pelos fenómenos “inexplicáveis” será inquestionável. Em particular, falamos das novae (como hoje sabemos, são explosões estelares poderosas e luminosas, eventos transitórios que ocorrem durante os últimos estágios evolutivos de uma estrela) de 1571, 1600 e 1604 e do cometa de 1577. Estes fenómenos naturais irregulares eram tratados com imaginação pelas pessoas mais iletradas mas também por propagandistas e pregadores (que os invocavam à maneira das velhas narrativas hagiográficas e moralizantes), procurando atribui-los ao milagre divino e, tantas vezes, instrumentalizando-os a bem da propaganda política (messianismos, lutas políticas, investidura de alternativas de poder, resposta ao terror de ameaças coevas, e.g., a pressão dos Turcos, cujas cimitarras eram plasmadas na morfologia de muitos cometas). Luís Miguel Carolino (2000, caps. IV e V), numa argumentação tempestiva, realça a parenética dos pregadores dos séculos XVI e XVII no contexto contra-reformista (através da ars dicendi do púlpito persuasivo, prescrita pelo Concílio de Trento), com os seus exempla cosmológicos e a propagação de representações sociais, políticas e culturais. O Portugal anterior à Restauração foi palco privilegiado (por exemplo no sermonário do Padre António Vieira, no messianismo de uma “monarquia católica” e no advento do Quinto Império, a aetas aurea, o destino transcendente de Portugal sob a dinastia de Bragança). Tudo isto confirmado por sinais divinos preconizadores. Segundo as suas palavras: “O nosso lusitano Bocarro
[Manuel Bocarro Francês, 1588-1662, autor excepcional na medida em que
discordava de Aristóteles e considerava que os céus eram igualmente
elementares, logo corruptíveis] resplandece entre todos”, no elencar das “causas
intrínsecas das exaltações dos impérios”: as conjunções dos planetas
Saturno e Júpiter; a mudança dos auges dos planetas, principalmente do
Sol; a mudança da excentricidade; a obliquidade do Zodíaco; o orbe
magno.” (“Discurso em que se prova a vinda do senhor Rei D. Sebastião”). Estas cogitações acompanhavam movimentos milenaristas europeus. Utilizava-se a Astrologia e as suas atribuições geográficas (os países e regiões sob influências específicas, numa tradição corográfica que nos chega da época helenística, entretanto adaptada às ulteriores geografias). Johannes Kepler, por exemplo, prognosticou que a stella nova de 1604, que se seguiu a uma grande conjunção de Júpiter e Saturno no ano anterior (abrindo um ciclo de oitocentos anos numa triplicidade ígnea, i.e. dos signos de fogo), levantaria uma nova monarquia que viria a formar um "Império Universal" e venceria os "infiéis" (verifique-se o paralelo). É certo que Kepler elaborou, em paralelo, precisas demonstrações matemáticas e geométricas, mas o vaticínio, endereçado ao Imperador Rudolfo II, prevalece como o objectivo. A utilização "profética" que se fazia destes "portentos" não adivinhava, por ora, as consequências desestruturantes que terão para a imago mundi vigente.
Para Vieira, só um “entendimento tão rude e contumaz não se persuade que um monstro de tão prodigiosa grandeza não foi criado sem algum fim”, reagindo contra os que “chamam aos cometas causas naturais e não reconhecem neles outro mistério ou documento mais alto”. Aos que os interpretam como “efeitos de causas segundas”, contrapõe o pregador a definição de “vozes da primeira causa” (Joaquim Fernandes: O Padre António Vieira e os "Sinais (na mentira azul) do Céu", Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UFP, s/d, p. 14). A abordagem prognosticadora tratará de interpretar segundo procedimentos astrológicos convencionais (a posição na "pauta celeste", na expressão feliz de Carolino): conjunções, aspectos, e, enfim, todas as associações simbólicas do arsenal astrológico.
O
debate ao longo do século XVII tenderá gradualmente a reduzir esta
intencionalidade divina, privilegiando as causas naturais e os efeitos
gerais. A nova abordagem experimental constatará que a explicação usual
não colhe, atendendo a que estes objectos não denunciam paralaxe
astronómica (técnica já desenvolvida no final do séc. XV por Regiomontanus)
e, como tal, estão espantosamente distantes, não podendo gerar-se na
atmosfera como era a explicação convencional. Como exemplo, Segundo
António Pimenta (1620-1700), que foi professor de matemáticas na
Universidade de Coimbra, "Todas as sciencias naturais se estribão em dous polos, ou tem por fundamento duas bazes, huma he a rezam ["razão"], outra, a experiencia." (Sciographia da nova prostimasia celeste e portentoso cometa do anno de 1664, Lisboa, 1665, p. 26). Os cometas deixarão de ser “portentos” mas ainda vão assustar o vulgo. Quando o cometa Halley reapareceu no céu em 1910, como esperado, muitos temeram que a civilização fosse envenenada por ácido cianídrico, um dos componentes químicos recentemente descobertos da "cauda" do cometa. Os jornais espalharam o pânico, o merchandising foi tremendo. Ignorantia multorum... foi a febre do cometa! Em 1997, o espectacular cometa Hale-Bopp (C/1995 O1) foi interpretado por uma seita designada Heaven's Gate (do âmbito New Age e culto OVNI) como "sinal inequívoco" para a sua "partida" deste planeta e deste "nível existencial", culminando no suicídio dos seus membros. Os cometas parecem perpetuar um estranho fascínio.
A "Estrela de Belém"
As explicações mais difundidas são a de uma múltipla conjunção de Júpiter e Saturno em Pisces
(suposto signo astrológico da nação Judaica) em 7 a.C., já mencionada por Kepler,
ou uma simples criação fictícia de um portento justificativo por parte do
Evangelista Mateus (como referiu o Professor David W. Hughes). Mateus é a única fonte,
com escassas e ténues referências ao fenómeno. Segundo Owen Gingerich,
seria possível aceitar a leitura Bíblica desde que se assumisse o ponto
de vista dos chamados "Magos" (i.e.
"astrolólogos"). Gingerich seguiu o racional de Michael Molnar, que
supostamente terá encontrado evidências de que a Palestina era, na
época, considerada como estando astrologicamente sob o signo Aries.
Ora, verificou-se uma rara ocultação de Júpiter pela Lua em 17 de Abril
de 6 a.C.; concomitantemente, os planetas conhecidos concentravam-se na
proximidade do Sol, justamente em Aries (N.B.: referimos fenómenos não observáveis
pois aconteceram durante o dia, portanto somente relevantes para os
astrólogos, munidos de tabelas que devolveriam razoável aproximação,
todavia longe da das recentes simulações dos proponentes desta teoria),
Seria, no entanto, possível saber acerca do stellium (alinhamento dos planetas), conhecer a posição do Sol em Aries
sem qualquer equívoco e prever uma conjunção próxima entre a Lua e
Júpiter. Em todo o caso, parece-nos uma argumentação que requer uma
concatenação de condições muito exigente e, demais, desprovida de um fenómeno observável.
Para Allan Chapman (de Oxford) não é pertinente pocurar fenómenos: "foi
um milagre". Edwin Krupp conclui, judiciosamente, que projectamos
sempre significados no céu e que quando as pessoas querem que coisas "mundanas" sejam significativas, acautelam que algum 'sinal' aconteça:
"What’s
important is not whether there really was a particular object, but the
fact that people are always assigning significance to what happens in
the sky. And when they want things on Earth to be significant, they
make sure that something happened in the sky." (Couper & Henbest, Op. cit., p.57)
A Estrela dos Magos enquanto "cometa" e uma suposta aparição de um cometa sobre Jerusalém em 68-69 AD, descrito como uma "espada" pelo historiador Josefo (Flavius Josephus), presságio da destruição da cidade. No desfecho da primeira guerra Judaico-Romana (67-70), Jerusalém foi cercada e destruída por Tito, em 70 AD. Como M. Pingré já ponderava em 1783 (Cométographie..., Tomo I, pp.288-9), Josefo distingue o astro que parecia uma espada e o cometa, que teria permanecido um ano observável (o que é período excessivo). Este autor admite que podem ter sido vários cometas simultâneos. Cometa não surge nas actuais cometografias, e.g., Kronk (Cometography: A Catalog of Comets, vol. I, Cambridge University Press, 1999) e deverá ser, alternativamente, uma referência ao conspícuo cometa do ano 66, o mesmo que virá a ser conhecido como "Halley"); (Stanislai Lubieniecii [Lubieniecki], Theatrum Cometicum, Tomo II) Segundo Pingré (Cométographie, Tomo I, p.288), Jerusalém foi ocupada e saqueada em 70 AD. Josefo não é claro quanto ao cometa pois inclui dois presságios, uma estrela e um cometa: "Thus were the miserable people persuaded by these deceivers, and such as belied God himself. While they did not attend, nor give credit to the signs that were so evident, and did so plainly foretel their future desolation. But like men infatuated, without either eyes to see, or minds to consider, did not regard the denunciations that God made to them. Thus there was a star, resembling a sword, which stood over the city: and a comet, that continued a whole year." (de Bell. Jud., lib. VI, 5, 3; ed. William Whiston, 1737)
Numa típica interpretação psicológica, Howard Sasportas (The Twelve Houses,
1998 (1985)) articula alguns argumentos que nos permitem compreender a
abordagem "psi". Parte-se da pressuposição de que vivemos numa cultura
desiquilibrada, na qual perdemos o sentido dos ritmos naturais da vida, onde razão e fé,
material e espiritual estavam interligados. Se antes a mundividência
era orgânica, a partir do século XVII a visão do mundo tornou-se mecanicista: o sentido de um universo espiritual e orgânico foi substituído por uma visão do mundo enquanto "máquina" (vide pp.34-5). Sasportas
refere que o crescimento nos separa e distingue da "ilimitada matriz
universal" da qual emergimos. Todavia, a diferenciação é desafiada pela
compreensão de que todas as partes de um sistema são interdependentes e
estão ligadas a todas as outras (p.35): [The Ascendent is] coincident
with the first independent breath we take, the Ascendent and the 1st
house proclaim the beginning of a cycle, the initial step in the
process of Becoming. Whatever is born at a moment in time reflects the
qualities of that moment. The Ascending sign comes into ligt and
distiguishes itself from darkness at the same time that we emerge from
the dark, hidden, and indifferentiated environment of the mother's womb.
(p.37). Aqui se afirma a "diferenciação" que acontece após o abandono
do que podemos considerar o "paraíso amniótico". O autor refere que,
numa perspectiva psicológica reducionista, o desejo de um "re-ligação"
com o sentido perdido da totalidade primeva poderia ser entendido como uma regressão ao estado "pré-natal". Contudo, na realidade, esta urgência traduz-se, em termos espirituais,
numa demanda pela união com a nossa "fonte" e pela experiência directa
de fazer parte de algo mais vasto ("divine oneness"). Há um dilema
entre dois impulso contrastantes: o nosso 'ego' fica aterrorizado com a
desintegração da sua identidade; contudo, aspira à totalidade.
(pp.98-9). Esta
pequena amostra permite apresentar a abordagem que, respaldando-se à
partida em Freud, Jung, Piaget ou Klein, não hesita em assumir um
ecletismo audacioso, com ingredientes místicos e esotéricos.
As abordagens psicologizantes parecem ter trazido
alguma credibilidade, ou pelo menos "viabilidade": a Astrologia será valorizada por Carl Gustav
Jung (1875-1961) enquanto território de "sincronicidade". O conceito conhece uma
evolução na definição mas pode ser basicamente descrito como circunstâncias que
parecem possuir nexos relacionados sendo, todavia, desprovidas de
relação causal. Reconhece-se a pertinência e até a necessidade destas
"coincidências acausais" para o funcionamento saudável da mente, no
enfoque de material do Inconsciente (articulando-se conceitos como "objectividade filosófica" e "supra-objectividade" no vasto contexto do Inconsciente Colectivo, vide Jung, C. G. [1952] 1993. Synchronicity: An Acausal Connecting Principle.
Bollingen, CH: Bollingen Foundation). Deste modo, as configurações
astrológicas representavam, para Jung, um exemplo de relação paralela
acausal entre fenómenos diversos, relacionados em termos de significação e não de causalidade
(o que é inovador em relação a todas as fundamentações pretéritas,
baseadas em "sinais" de origem divina, na própria acção dos corpos celestes ("mouimento & lume")
enquanto "causas" ou na "influência" a partir das chamadas "virtudes
ocultas"; foram sempre estas as explicações historicamente debatidas).
Para o
psicanalista, manifestam-se segundo "coincidências significativas",
"ligações
acausais"
e uma polémica "numinosidade" (influência de Rudolf Otto). Em causa
está a correspondência entre
estados mentais e fenómenos físicos, algo que não pode ser
empiricamente testado. Os críticos tendem a explicar esses "fenómenos"
através de probabilidades ou de "confirmações" subjectivas e/ou
enviesadas. Numa curiosa comparação entre o escritor Lovecraft e Jung, Jerome Y. Lettvin confessa: "I
have long felt that H. P. Lovecraft is Jung's 'nom de plume' in
English: both are devoted to calling up vague, subliminal feelings
about things that are never described or expressed." (The Gorgon's Eye, in: Brecher, K, & Feirtag, M. (eds.), "Astronomy of the Ancients", The MIT Press, 1980 (1979) p.137).
As far as we can discern, the sole purpose of human existence is to kindle a light in the darkness of mere being. (Jung, Memories, Dreams, Reflections, ch.11) A tradição esotérica estimulou Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra analítico,
a formular uma hipótese dos "arquétipos" influenciada pelas 'ideias'
ou 'formas transcendentes' da filosofia platónica. Verifica-se ainda
uma influência da percepção de um pensamento "arcaico", bem como
da tradição alquímica, das religiões filosóficas extremo-orientais,
etc. Na sua pesquisa, Jung
julgou ter encontrado
temas míticos recorrentes, propondo que estes arquétipos (ou melhor, as
múltiplas e multívocas imagens arquetípicasde
cada um desses arquétipos) canalizam
experiências e emoções que resultariam em padrões de comportamento com
desfechos prováveis ou de algum modo previsíveis. Procurou assumir
uma abordagem empírica que resultasse em algo clinicamente aplicável e
útil. Como Freud referiu, Jung utilizou o material mitológico para
harmonizar o neurótico com o religioso e com a fantasia mitológica.
Os "arquétipos" materializam um conceito que se refere a
um padrão de pensamento ligado a supostas "ideias universais", inatas,
ou
imagens presentes num suposto "inconsciente colectivo", comum a todos
os seres humanos. Segundo Jung não são, pelo menos frequentemente,
mitos com uma forma definida, antes 'componentes', motivos, imagens
primordiais que se manifestam através de processos inconscientes cuja
existência e significado podem somente ser inferidos; Jung considera-os
apriorísticos. Não são culturalmente recebidos, são experienciados. O 'inconsciente colectivo'' (Al . kollektives Unbewusstes) aloja os conceitos, arquétipos, inconscientemente partilhados. É, segundo Jung, algo transpessoal que nos envolve, um medium
análogo a uma "anima mundi", diferente do inconsciente
personalizado da psicanálise freudiana. Serão
símbolos primevos (e.g.,
"A Grande Mãe", "O Velho Sábio", "O Herói", "O Trapaceiro", "A Sombra", "A Árvore da Vida", "A Água",
"A Torre"). Contrapartida psíquica do 'instinto', o 'arquétipo'' é, como Richard Tarnas descreve (Introduction to Archetypal Astrology, ensaio de 1987): a universal principle or force that affects--impels, structures, permeates--the human psyche and human behavior on many levels. Para Jung,
os arquétipos estariam na base de muitos temas mito-poéticos e símbolos recorrentes que
habitualmente surgem nas lendas, mitos e sonhos, "atravessando culturas
e épocas" e ligando intuitivamente o particular e o universal. Como o próprio Jung escreveu (Die Archetypen und das kollektive Unbewußte, trad. Maria Luíza Appy e Dora M. R. Ferreira da Silva): "Uma
camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente
pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa
sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em
experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais
profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo
"coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual,
mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui
conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os
mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são
idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato
psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada
indivíduo. Uma existência psíquica só pode ser reconhecida pela
presença de conteúdos capazes de serem conscientizados. Só podemos
falar, portanto, de um inconsciente na medida em que comprovarmos os
seus conteúdos. Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente
os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade
pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por
outro lado, sào chamados arquétipos." (Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2ª edição), Editora Vozes, Petrópolis 2002, pp.15-16) Jung, "who looked for something in everything" (MacNeice, Op. cit., p.193), desenvolveu então, em colaboração com Wolfgang Pauli, uma
teoria "agilizadora": a 'Sincronicidade' (al. Synchronizität).
Termo cunhado nos finais dos anos vinte ou princípio dos anos 30 do
século passado, sucessivamente (re)definido por Jung de diversas maneiras
diferentes (geralmente relativamente corentes entre si): tanto encontramos a
cósmica "coincidência significativa" como nos limitamos a uma
"projecção" [no Cosmos] puramente subjectiva (individual), que se origina no nosso psiquismo, ou até uma espécie de
dinâmica interpretativa puramente "divinatória", análoga ao do Tarot, vide parte IV de Jung on Astrology,
de S. Rossi & K. Le Grice, Routledge, 2017). Esta diversidade e
multiplicidade deveu-se a uma procura de um princípio que respondesse a
exigências objectivas da sua teoria [na Astrologia, por exemplo,
procurava-se responder às questões colocadas pela Precessão, i.e. o "deslocamento" dos signos no Zodíaco Tropical, ou pelo Heliocêntrismo]. A Sincronicidade descreve geralmente circunstâncias que se afiguram portadoras de
significado, independentemente de qualquer nexo de causalidade,
promovendo uma ligação simbólica entre o indivíduo e o mundo exterior.
Trata-se de um hipotético princípio "não causal" enquadrando a ligação
intersubjectiva ou filosófica entre "coincidências
significativas" que nos acontecem e que Jung supostamente testemunhou na sua prática
clínica (e.g.,
o célebre episódio do escaravelho que embate na janela do consultório
de Jung durante uma consulta na qual a paciente havia referido um sonho
que envolvia uma jóia que lhe teria sido oferecida com a forma de um
animal similar, supomos que de um scarabeus
egípcio; o psicanalista recolhe o escaravelho e oferece-o à senhora,
abalando a sua mundividência racional cartesiana
através dessa "concidência
significativa"). Um exemplo mundano habitualmente referido é o do
relógio que pára quando o seu dono falece, numa relação "simbólica" e
não causal. Ao longo da sua carreira, como vimos, Jung expendeu
diversas
definições de "sincronicidade,
definindo-a (trad. nossa) como "factor hipotético equivalente à
causalidade enquanto princípio explicativo", "princípio acausal de
ligação", "paralelismo acausal", e ainda "coincidência significativa de
dois ou mais acontecimentos onde algo diferente da probabilidade
aleatória está envolvido". Segundo Pauli, também se poderia descrever
como "correspondência", "conexão" ou "constelação" de factores
distintos, individuais. Ambos consideram que, tal como acontece com as
relações causais, também as 'acausais' podem gerar um significativo
entendimento da psychē e do
Mundo. Em suma, trata-se de geração de sentido, da "confirmação" de um
vínculo íntimo e simbólico entre o indivíduo e o envolvimento, O psicanalista argumentou que é possível observar uma correlação entre as imagens arquetípicas e os temas astrológicos, nomeadamente os "deuses" associados aos planetas e signos do zodíaco. Concluiu que as figuras simbólicas astrais descritas nas constelações foram inspiradas por imagens do acervo do Inconsciente Colectivo. A Astrologia seria portanto uma primeira forma de "Psicologia". A sincronicidade permite-lhe afirmar que tudo o que nasce ou é concebido num determinado momento, possuirá as qualidades desse momento cronológico específico. Prosseguindo de acordo, considera que a correlação com os corpos celestes é acausal e não directamente determinada pelos planetas. Ao mesmo tempo que fornece uma dimensão transpessoal e espiritual, ligando a psychē e o Kósmos, a Astrologia Psicológica nunca poderá decididamente ser "determinística". Daí a ênfase na individuação, no processo do desenvolvimento individual e não na vertente preditiva. Recordemos que a Individuação é o conceito jungiano central, pois este processo é a realização do Si. Uma pessoa "individuada" permite que um maior número de elementos psíquicos se tornem "conscientes", desenvolve o conhecimento de si mesmo, procura a aproximação do eu a uma concepção de um “eu” atemporal que seria a síntese da nossa totalidade. É um processo sem conclusão. Consiste em aproximar o mundo e o indivíduo e não excluí-lo do mesmo. Utilizam-se amiudadamente, por analogia, metáforas alquímicas ou esquemas simbólicos "totalizantes": as mandalas. Segundo
os praticantes da variante astrológica relacionada, estamos hoje
distantes das mundividências "fatalistas" do passado e a Psicologia
tornou-se, doravante, uma ferramenta adequada para compreender os
comportamentos e os nexos da relação humana com a base arquetípica
da realidade. Há lugar para uma "causalidade" (comparada às causas formais e finais aristotélicas) dos
planetas na carta celeste, através dos seus arquétipos, influências que
"impelem" ou "governam" determinado tipo de experiências. Numa
perspectiva totalizante, segundo R. Tarnas, "(...) the
universe is informed and pervaded by a fundamental holistic patterning
which extends through every level, so that a constant synchronicity or
meaningful correlation exists between astronomical events and human
events" (ibid.). Esta Astrologia está nos antípodas da recente (re)afirmação
preditiva, "tradicionalista", das modalidades anacronicamente
"medievais", "helenísticas", etc., hoje tão popularizadas. Criticismo Jung foi um investigador e empenhado na validação empírica das suas teorias, Sensível e complexo, também revelava propensão para o misticismo e para a premonição. A leitura da sua "biografia" (Erinnerungen, Träume, Gedanken, 1962) está repleta de episódios e interpretações que nos parecem do âmbito do parapsicológico e do fantástico). O ulterior criticismo científico considerou que os princípios hipotéticos da abordagem jungiana não eram válidos (i.e. não existiam) ou se situavam fora dos limites científicos, do seu método, dos seus pressupostos de verificabilidade, etc. Citemos alguns argumentos: Segundo La Barre, Jung concluia que o simbolismo arquetípico seria "herdado" filogeneticamente [pela espécie], enquanto, segundo este crítico, se comprova que este possui, como toda a Cultura, raíz ontológica (social, não biológica). "Whereas the folklorist laboriously and inductively constructs a motif-index, and has an ethnographically-sophisticated caution about finding relationships not resting firmly on geographical contiguities or historical continuities, Jung would deductively range over all time and space with the dreambook of absolute archetypal symbology, and rediscover eternally only what is in the book." (Weston La Barre, Folklore and Psychology, Journal of American Folklore, LXI (October-December, I948), 382-390. E acrescenta: "But a meaning means to the person or persons meaning it, so to speak (...). Acusa-se Jung de cometer erros semelhantes aos perpetrados por James Frazer ou Otto Rank ao recorrer a uma espécie de formulação "Universalgedanken" (i.e. baseada em ideias universais). J. Melville e Frances S. Herskovits explicam o apelo deste tipo de abordagem generalizadora e simplificadora (que implicitamente comparam à do pouco cauteloso Lévy-Bruhl) e que abarca, simplificando, temas recorrentes do "anthropos": "The vitality of all such theories is due in part to the fact that they represent attempts to explain fundamental problems in human behavior and to account for recurrent themes in the creative efforts of man. But in part, also, they tend to be well received because they give simple answers to questions that remain to challenge those willing to face the complexities of objective enquiry" (Dahomean Narrative, Northwestern University African Studies, No. I (Evanston, 1958), p.103). Segundo Alan Dundes, as teorias de Jung eliminam a tradicional relevância da contextualização cultural em antropologia: "Jung's theory eliminates the need for the study of cultural conditioning to understand mythic archetype" (The Study of Folklore (Englewood Cliffs, New Jersey, I965), 291). Existem, na teoria jungiana (que praticamente se tornou um culto), óbvios vestígios dos excessos da mitologia comparada, a partir da categorização de funções simbólicas "universais" supostamente equivalentes ou paradigmáticas, e também uma variante de um "perenialismo" que na época estava em voga (materializado em muitas colaborações no seio do grupo Eranos, que iniciou os seus encontros em Ascona em 1933, com Jung entre os seus elementos). Segundo os críticos, interpretar os mitos como universais tende a abstraí-los da sua génese histórica concreta e dos seus contextos culturais específicos. Os arquétipos reduzem pois as expressões culturais a conceitos genéricos e descontextualizados, negligenciando as complexidades e tornando-as elásticas e simplistas. Constituem resultado da subjectividade (e dos preconceitos culturais) do intérprete. A exemplificação de mitemas e símbolos é aleatória, sendo considerada pelos seus críticos "puro misticismo". è sempre reiterada a tendência para a generalização. O "inconsciente colectivo" [nas definições pós-jungianas recentes é definido como "psique autónoma" ou " independente"] é entendido como um exemplo óbvio de "sobre-interpretação", inconfirmável pelas investigações das neurociências e da antropologia. Os materiais são "assimilados" e passam pelo "crivo" etnocêntrico dà confinada faixa do estudo das mitologias indo-europeias. O seu conteúdo pode ser artificialmente criado e rapidamente substituído para se enquadrar na interpretação subjectiva. De resto, Jung nunca utilizou estudos experimentais controlados, baseando-se apenas na observação clínica de pacientes (restrita, limitada e não representativa), nas suas próprias fantasias e experiências oníricas (!), na sua interpretação subjectiva para a formulação das teorias. O método e procedimentos de recolha de dados "não foi sistemático nem independentemente controlado" (vide Schultz, D., & Schultz, S. (2012). A History of Modern Psychology (10th ed.). Belmont, CA: Wadsworth). Ou seja, tudo existe apenas na tessitura do aparato simbólico e analógico fabricado pelo intérprete. Aí, "em situação", estaria livre das peias da 'racionalidade limitada' (v. infra) e poderia emprestar sentidos à linguagem de correlações que vislumbra (cf. discurso "transfigurador" legitimado na Arte ou na Literatura). Claro que qualquer "pseudo-validação" de índole não-binária, hoje perfeitamente "viável" na desbragada jactância pós-estruturalista (que a tudo se pode adaptar), não é evidentemente cientificamente "verificável" nem pode constituir um 'sistema'. Quanto à Astrologia Psicológica (como um todo), focada na ponderação da personalidade e do carácter, vem sendo justificadamente criticada pelo seu 'viés de confirmação', tendência para procurar e interpretar informação nova de acordo com os seus princípios, previamente estabelecidos, evitando tudo o que os possa contraditar. O discurso astrológico e opinião acerca do actual momento historiográfico Exemplificando como as peripécias dos astrólogos assumem um escopo que vai "do sublime ao ridículo", Louis MacNeice refere (Astrology, Op. cit., p.35): "Such is the cosmopolitan and venerable background to all the goings-on of astrologers both big and little; to the Archbishop of York whose sudden death in his garden was attributed by his enemies to the book of astrology he had hidden under his pillow; to the egg, hatched in Rome in 1680 with markings suggesting a comet, that touched off dozens of sermons and solemn theses in Germany ; to such pronouncements as “All moles are the result of the influence of the planets” or “A doctor without astrology is like an eye that cannot see” or “The Sun, Moon, and stars were created on Wednesday, April 22nd, 6 P.M., about 4002 years before Christ”; to, in our own day, an astrological columnist in a Sunday newspaper who answers personally 100,000 letters per year; and also to certain German astrologers working out horoscopes with the aid of eight hypothetical trans-Neptunian planets that hardly anyone elsewhere has heard of."
Ainda segundo MacNeice, "There is something in this concept of natural correspondences that attracts the mystic in us. And there is an equally strong attraction for the poet in us, or at any rate for the patternmaker." (Astrology, Op. cit., 1964, p.17). E concede: "...whether astrology now is a "fossilized science" or was never any more than a pseudo-science [é o problema da 'demarcação', do âmbito filosofia da ciência e da epistemologia], it originated in the wish that is at the heart of science—the wish to make sense of the universe." (p.25). Muitos dos exemplos horoscópicos historicamente documentados têm função didáctica (exemplificação de aspectos teóricos), retrospectiva (exegese e justificação de acontecimentos relevantes) ou politicamente "comprometida". Os textos da exposição da Astrologia judiciária são previsíveis e relativamente coerentes na agilização dos supostos princípios, todavia caóticos e contraditórios na filigrana das categorias e dos intermináveis jogos combinatórios e procedimentos. Uma das críticas mais persistentes refere a impossibilidade de conhecer e processar o milefólio de potenciais causas em presença. J. C. Eade afirma (relativamente às iterações proporcionadas pelas técnicas conhecidas como direcções e profecções): "it is a game playable ad infinitum" (The Forgotten Sky: A Guide to Astrology in English Literature, Oxford, Clarendon Press, 1984, p.103). J.D. North observou: "the leading astrological authorities swell their rule books with endless permutations of simple pattern, persuading us to accept complexity as truth." ("Science of Stars: Why Astrologers Are Always with Us" Times Literary Supplement, 2 September 2005). A infinita diversidade de técnicas, procedimentos e variantes permitia qualquer prognóstico. Como Tamsyn Barton judiciosamente salientou, a última coisa que preocupava os astrólogos era a contradição e o múnus da "arte" consistia em encontrar mais e mais maneiras de responder à mesma questão: "As emerges, if you cast and interpret a horoscope following the prescriptions of ancient treatises, the last thing astrologers worried about was contradiction. (...) The art of astrology consisted of finding more and more ways of answering the same question. The result of all this accretion of doctrines is that if you approach a natal horoscope with a simple question about the 'native' or subject, such as 'How many children will this person have?', you can end up with six or more different answers ranging from 'None' to 'Twenty-four or more', by following recommended procedures." (Barton, T., Augustus and Capricorn: Astrological Polyvalency and Imperial Rhetoric, JRS, Vol.85, 1995, p.39). O corpus apotelesmático traduz uma visão do mundo integradora mas simplista, repetitiva, repleta de metáforas pueris (e.g., antropomórficas), baseada em hierarquias, polaridades, simetrias e antagonismos, enfoque na riqueza e ganância (etimol.), autoridade e obediência, imenso à vontade com hierarquias e com a prática esclavagista. Uma "lógica" que não é particularmente subtil, parece coerente mas é amiudadamente incoerente, ora recorrendo a explicações naturais, ora numerológicas ou simbólicas, com excepções ad hoc. A judicatura escondia-se na complexidade "ilimitada" das opções e variáveis, enquanto simulava enorme precisão nos cálculos e tabulações. Prometia respostas para a duração da vida e para o tipo de morte (em textos que, mesmo "descontando" o enquadramento histórico, parecem escritos por autênticos facínoras). Assumia uma atitude anquilosada, transpirava estatismo, homofobia, misoginia e preconceito (alguns tratados detalham requintadamente configurações astrais associadas às mais diversas "perversões"). Segundo Eugenio Garin (O Zodíaco da Vida, Op. cit., pp.11-12), Franz Cumont terá comentado a este propósito: "Os doutores em ciências siderais e até o austero Ptolomeu consagram páginas inteiras a enumerar todas as aberrações de um erotismo mórbido com a impudícia serena dos casuístas". Para as 'patologias', ver e.g., Tetr. III.15; abordagem mais abrangente no clássico de Cumont: L’Egypt des astrologues (Bruxelas, 1937). Como Bouché-Leclercq comentou: "Le Zodiaque devient ici, pour les besoins de la cause, un véritable hôpital ou musée pathologique". (L'Astrologie grecque, p.432, n.2). Evidentemente estereotipada, curadora da ordem (também política) e da regularidade, o que somente não surpreende nas épocas e sociedades onde possuía "justificação". Provavelmente vivemos hoje em sociedades comparáveis, se descontarmos o efeito mitigador do "politicamente correcto". Mas há todo um percurso na interpretação do Mundo e do nosso lugar nesse Mundo que, sem a pretensão de encontrar todas as respostas, nos estimula a construir o nosso "destino". Expectativa que, por exemplo, nos isenta do fatalismo veiculado por Firmicus: "This
is what the earthly body works for day after day - to snare the divine
soul in depraved desires, deceive it with sweet blandishments, so that
the soul is so submerged and weighed down that it can never find its
source but will be forever cast down into the shadows and the mire." (VIII, 2; p.266; trad. Rhys Bram)
Theodor
Adorno, numa análise do fenómeno contemporâneo da astrologia "de cordel" (jornais, periódicos), escrita em meados do
séc. XX, considerou-a promotora do estatismo social, considerando que a
sociedade se projecta nas estrelas de modo a que o indivíduo aceite o
seu destino, condicionado e ao arrepio da sua vontade ou interesses, no quadro de um sistema capitalista complexo e
promovendo uma visão na qual a vida humana é determinada por forças
para além do seu controlo. Deste modo, para o filósofo da Escola de Frankfurt, a Astrologia
trabalhava em tandem com outros fenómenos da indústria cultural na
propagação de uma "ideologia da dependência"; 1952-3, trad. e publicado
na revista Telos,
nº19 (Spring 1974). Trata-se, bem entendido, de uma análise parcial do fenómeno,
numa perspectiva política muito contextualizada e datada. Mas há
decerto conclusões ainda relevantes. No Livret des elections universelles de Pèlerin de Prusse (séc. XIV, parcialmente transcrito na dissertação de Floriane Gaignard: Le dauphin et l’astrologue: le Livret des elections universelles des 12 maisons de Pèlerin de Prusse, Université de Montréal, 2014, p. 52), a escolha do momento propício para encetar uma empresa é particularmente relevante para as lideranças: "...et causes royaulx et de princes, pour garder naturelment leur commencement en quelconques matire. Car la salvacion de prince est conservacion de pays et de pueple, et le empeschement de prince empesche le pueple, comme l’empeschement de la teste empesche les autres membres.". Estaremos, segundo Jean-Patrice Boudet, perante a conhecida "metáfora organicista" do corpo político, vide e.g., o Policraticusde João de Salisbúria (c. 1115-1120). Na Idade Média, e antes desta, a "arte" colabora na defesa do poder e na perpetuação da ordem vigente. É utilizada para validar dinastias, guiar estratégias militares, justificar o momento auspicioso da fundação de cidades (e.g., Bagdad), etc. Tamsyn Barton (Augustus and Capricorn, Op. cit., 39, 42, 44, 47-48) constatou (como já referimos) que todas as antigas práticas eram fluidas, flexíveis, polivalentes e propensas ao improviso e que os astrólogos gizariam os horóscopos ajustados aos clientes e ocasiões. O que é certo é que finais do séc I, a Astrologia estava já profundamente enraizada em Roma (Volk, K., Manilius and his Intelectual Background, Oxford University Press, 2009, p.128). A influência do estoicismo de Posidonius foi importante (bem como, no sentido oposto e crítico, a do céptico Carnéades). Vai alavancar a promoção da Monarquia em Roma. A coincidência é evidente: Astrology emerged as the Roman Republican system began to collapse, a coincidence which, in my view, was no accident. Astrology belonged with the sole ruler, as state diviners belonged with the Republic (Barton, T., Ancient Astrology, 1994, p.38). A sua utilização propagandística é óbvia, promovendo ou debilitando, lançando e fazendo circular anedotas e episódios "reveladores". Exemplo paradigmático é o da publicação do horóscopo de Augustus. Outra utilização pode ter sido a póstuma "reabilitação" de figuras, reorientando-os políticamente (o que pode ter acontecido com a memória do "profeta" Nigidius Figulus, associado por Suetonius à predição do auspicioso destino de Augustus e que era, na realidade, anti-Cesarista, tendo inclusivamente morrido no exílio, vide Vigourt, A., Les Présages impériaux d’Auguste à Domitien, De Boccard, 2001). A promoção 'divina' enquanto diuus ("deus") de Julius Caesar (pai adoptivo de Augustus), com 'sinais' e iconografia do âmbito astrológico, promovida após a sua morte, prepara o caminho para o primeiro Imperador. Mas como o "jogo" astrológico pode também ser praticado pelos adversários, nomeadamente "adivinhando" e anunciando a morte iminente do líder, assistimos posteriormente a diversos éditos limitando a actividade, um destes publicado pelo próprio Augustus, numa fase turbulenta, em 11 AD. Com o seu sucessor Tibério, o receio tornar-se-á "paranóico".
O problema da definição é relevante. Num sentido amplo é plausível que um qualquer tipo de actividade divinatória envolvendo o exame interligado do céu e dos fenómenos atmosféricos seja (ou seja quase) "universal". Mas convém não esquecer as motivações religiosas, rituais, calendáricas, etc. Nem tudo constitui Astrologia, muito menos horoscópica. A partir de práticas de divinação astral, os povos da antiga Mesopotâmia começaram a implementar observações sistemáticas tendo em vista a correlação de padrões no céu com os acontecimentos da vida, enquanto "sinais". Ambas as realidades se espelhavam nessa correlação. Assim se compilaram colecções de augúrios, por exemplo a referida como Enuma Anu Enlil. A observação era "sideral", não "zodiacal" (a observação zodiacal exige um ponto, um fiducial de referência). Somente mais tarde se esquematizam as constelações que formarão o zodíaco (mais tarde aí dividido em função dos doze meses esquemáticos do calendário). Mesmo nesta fase, não encontramos horoscopia individual até ao exemplo datado por A. Sachs como sendo de 410 a.C. (Journal of Cuneiform Studies 6 (1952), p.49), assinalando provisionalmente a data de início da Astrologia Genetlíaca (natal). A antiguidade e a origem unívoca da Astrologia, sugerida pelos autores Clássicos, é espúria. Eles sabiam que esta estava de algum modo relacionada com a Babilónia mas creditavam-lhe uma origem egípcia, projectando-a num passado distante que garantia prestígio. Era exposição convencional na literatura, em relação a qualquer tema científico ou filosófico. De facto, é num Egípto tardio que se assiste à origem da Astrologia Horoscópica, em Grego (textos atribuídos, sem rigor histórico, a personagens míticos de épocas remotas) e com a mescla de influências que somente o contexto Helenístico virá proporcionar. Aí encontramos perfeitamente estabelecidos os cardines (ângulos), os lugares ou casas, bem como inúmeros aspectos da doutrina doravante perpetuados e interpretados nos dois milénios seguintes. Convergiram múltiplas influências, de diversas épocas e geografias: o elenco das constelações e o Zodíaco Babilónico (com provável origem no "caminho da Lua" e por onde deambulavam também o Sol e as restantes "estrelas" errantes, associadas a divindades) depois convencionalmente dividido em sectores de 30º cada e os padrões planetários de longa data registados recorrendo a uma eficiente aritmética de base sexagesimal; o conceito de "ascendente" e "culminação", os decanos e as 'cronocracias' egípcias (traduzindo o movimento diurno ou 'primário'), provavelmente também as chamadas "partes"; enquadrados pelo racional filosófico grego e recorrendo à sua evoluída matemática e geometria. Umberto Eco escreveu há alguns anos acerca do discurso perenialista do suposto "esoterismo" de R. Guénon et al. Podemos arriscar citar a sua lúcida perspectiva, convidando aqui a adaptar o (deslocado) excerto ao "sistema" da Astrologia... "que não permite que se exclua nada, e qualquer jogo que dentro dele se faça pode desenvolver-se cancerigenamente ad infinitum, através de um entrelaçamento de associações, baseadas, algumas, sobre a similitude fonética, outras sobre a suposta etimologia, outras sobre a analogia de significado, num jogo de leva-e-traz entre sinonímias, homonímias e polissemias, num deslizamento contínuo do sentido onde cada nova associação deixa cair aquilo que a provocou para apontar na direção de novos desembarcadouros, e o pensamento continuamente destrói as pontes que deixa para trás. Nesse deslizamento do sentido, o que importa não é, com certeza, a demonstração, mas a convicção de que o que já era sabido só pode ser confirmado por uma espécie de cacofonia ensurdecedora do pensamento, onde todo o som dá música, e a harmonia resulta da vontade do adepto, que quer, ao som dessa música, a todo custo dançar." (Os Limites da Interpretação, Editora Perspectiva, 2016 (© Fabri, Bompiani, Sonzogno, Etas S.p.A., 1990), 2.4.4.)
O argumento de que as ferramentas científicas são "exógenas e inadequadas" à "validação" do sistema astrológico é algo especioso. Podemos encontrá-lo muitas vezes e há muito tempo, e.g., Lucio Bellanti (De astrologica veritate, 1498, fols. a4r-a5r) interpretou a Astrologia como "plena", e somente dependente das suas premissas internas. Mas a "verdadeira" Astrologia reclama-se vaticinadora, ergo não pode pretender ser exclusivamente lúdica, experiencial, arquetípica ou "ferramenta de auto-conhecimento". Por vezes, como vimos, fala-se hoje de "correlação" em vez de "causalidade" e invocam-se teorias sistémicas sem qualquer propriedade. De resto, as práticas de outrora (doravante "reabilitadas" em certos meios) eram preditivas! No passado a clientela exigia prognósticos e informação relacionada com situações concretas, não queria aconselhamento ou subsídios para o "auto-conhecimento". Na opinião de Anthony Aveni, não podemos descontextualizar: I don’t think you can lift astrology out of its historical or cultural context and plug it into our contemporary worldview without changing its meaning. (In the Shadow of the Moon, Yale University Press, 2107, p.20). Existe algum sucesso verificável, para além do aleatório e contingente? Representada frequentemente como doutrina "empírica", resultante das premissas acumuladas ao longo dos séculos pelos seus praticantes, parece, pelo contrário, funcionar a partir de proposições pré ou acríticas e não escrutinadas. Todos os estudos científicos efectuados recentemente (e.g., por Abell e Greenspan, Geoffrey Dean ou o implementado por Christopher French et al.: “Belief in Astrology: A Test of the Barnum Effect.” Skeptical Inquirer 15 (Winter 1991): 166-72), chegam inequivocamente ao resultado da irrelevância prognóstica. Mas como sabemos, todos somos "vítimas" daquilo em que queremos acreditar, com os contorcionismos semânticos à disposição para definir a "nossa" definição de astrologia. De resto, podemos reiterar o argumento da inexequibilidade da própria interpretação da "carta" ou "mapa" (a que habitualmente chamamos "horóscopo"). Segundo J. V. Stewart (Astrology - What's Really in the Stars, Prometheus Books, 1996, p. 109), a carta utiliza cerca de 40 factores ou variáveis, tendo o próprio autor calculado 583200 combinações possíveis dos factores principais, omitindo "progressões" (pormenores da metodologia estatística são omitidos mas reconhece-se a pertinência do exercício). Refira-se a lógica confusa, ardilosa e titubeante que caracteriza os próprios rudimentos da "arte" e as supostas causalidades, nem ponderando as inúmeras variantes, os milhares de confusos e contraditórios aforismos e as dezenas de sistemas de domificação (divisão das chamadas "casas"). Princípios que acreditaríamos prestigiosos, imediatos e inequívocos, como as referidas "casas" ou a singela determinação do planeta de alta influição numa genitura (natividade), parecem pouco consensuais (aqui a exposição de Figueroa, Opusculo de Astrologia en medecina, y de los terminos y partes de la Astronomia necessarias para el uso della..., 1660); opusc. I, cap.36, fol.67).
Recentemente, o autor e físico Alexander Boxer (A Scheme of Heaven: The History of Astrology and the Search for our Destiny in Data,
W. W. Norton & Company, 2020) considerou que muitas das questões da
Astrologia estão relacionadas com tratamento de dados (a actual
inspecção, depuração, transformação e criação de modelos de dados com o
objetivo de informar conclusões e apoiar a tomada de decisões): “it
occurred to me that it can be seen as the antecedent of modern data
science. If astrology is garbage, how do we know?" Conclui que muitas
das questões se relacionam com o tratamento de dados: "It seemed to me
that a lot of these questions are data questions". Caracteriza a antiga
Astrologia como "a scientific worldview of impersonal cause and effect,
where anything becomes “scientific” as long as you can express it in
numbers". Boxer encontra uma ligação evidente entre os algoritmos
utilizados pelos antigos astrólogos para desenharem os seus horóscopos
e fazerem predições e aqueles utilizados pelas actuais empresas e
analistas de informação para anteciparem o nosso comportamento e opções
de vida. Foi, na perspectiva de Boxer, um projecto de análise de dados [informalmente] sustentado durante
séculos; práticas, exempla, abordagens retroactivas, colecções de aforismos e de
genituras. È uma abordagem que nos parece muito limitada mas encerrando pontos curiosos.
Como Hammer comenta (p.137):
Nos media, é
comum encontrarmos textos de divulgação científica sem delimitações ou
advertências quanto ao contexto específico, sem múltiplos pontos de
vista de uma mesma área de pesquisa. Dessa forma, a ciência que aí se
comenta torna-se deficitária e dogmática. É necessário acautelar a presunção de rigor e os perigos do
Cientismo, a teoria positivista que defende ser a ciência o melhor [e
único] método para o conhecimento de todas as coisas, e o que preenche
a necessidade de saber da inteligência humana. Karl Popper critica o
positivismo lógico e o cientificismo,
pois possui discordâncias no que concerne ao método científico.
Estabelece que ciência é aquilo que pode ser refutado, dando forma a
uma ciência em que não existe uma verdade absoluta, pois ela só está em
vigor até ao momento em que é contraditada. (Popper, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica.
[S.l.]: Cultrix. pp. 27–46). Feyerabend também assume a crítica a
partir do momento em que defende o pluralismo epistemológico ou
"anarquismo epistemológico". Para este filósofo, as regras e
metodologias científicas rígidas são um mito, pois são impraticáveis. Argumenta que não há objectividade de facto
nos saberes científicos, pois estão contextualizados numa dada
situação. Assim, critica o indutivismo e o racionalismo (Regner, Anna
Carolina Krebs Pereira (1996). Feyerabend e o Pluralismo Metodológico. Epistéme: Filosofia e História das Ciências em Revista. 1 (2): 61-7). De resto, Thomas Kuhn elaborou sobre o conceito de Paradigma:
conjunto dos conceitos fundamentais e dos procedimentos padronizados
que orientam e determinam a prática científica numa dada época,
mutáveis e flutuantes. Numa perspectiva antropológica, Edgar Morin afirma que a expressão homo sapiens ("o homem racional"), deve ser aplicada com restrições, porque o homo é também demens. Entre sapiens e demens
não existe fronteira: os sentimentos e as emoções estão envolvidos na
chamada racionalidade e no conhecimento. Somos possuídos pelas ideias e
pela cultura na qual estamos integrados e inseridos, fenómeno a que
chama "Noosfera", e agimos automaticamente na forma de um semi-sonambulismo quando não nos apercebemos dessa açcão sobre nós. Entretanto, na ensaística pós-moderna refuta-se a
noção do "sujeito exterior à experiência", que se torna inequivocamente "actor" desse
"processo", enquanto agente com uma perspectiva particularizada. Reflectindo
nas características do "homo sapiens-demens", a verdadeira surpresa,
quanto a nós, foi o desenvolvimento de um sistema pleno e coerente de organização do
conhecimento que é explicativo, testável, independentemente verificável
e preditivo, com metodologias e padrões rigorosos. um processo sempre aberto, importante
e consequente nas suas implementações tecnológicas (quantas vezes
perniciosas, é certo). A consciência científica
"plena" e informada somente se tornou preponderante ou com "autoridade"
num determinado
contexto civilizacional. Foi um desenvolvimento único e improvável,
para além do mito e da magia. E a predominância de uma mundividência na
qual o método
é efectivamente (re)conhecido e valorizado é incomum ou inexistente
fora de certos nichos, mesmo em sociedades insuspeitas e
repletas dos sofisticados produtos da tecnologia. O mesmo acontece com
a Democracia: tão rara,
tão frágil, tão atípica quando observamos a tessitura social das
sociedades na perspectiva antropológica e sociocultural, Tão única
(frutificou numa única Cultura) e tão atacada, por inimigos internos e
externos.
Historiografia Já passou algum tempo desde a primeira publicação de L'Astrologie grecque (1899),
por Auguste Bouché-Leclercq, considerado o primeiro historiador
moderno da astrologia, com um marcado interesse pelo percurso dos
textos divinatórios e por esta "superstição" que parecia em vias de
extinção. Na historiografia das ciências, a sensibilidade ao tema
esteve
muitas vezes injustificadamente ausente. A abordagem é necessária,
metodologicamente pertinente e interessante. Entretanto assistimos a
uma
mudança de rumo e a uma abordagem mais completa. Todavia,
verificam-se
alguns "excessos"...
O resultado deste ambiente é o desdém pela scholarship que, estudando as fontes (sem apriorismos), ousa não encontrar astrologia "partout". Também o relativo desprezo por obras ponderadas e sérias que delimitaram o que era o que não era do âmbito desta abordagem e descreveram o seu percurso histórico (obviamente referindo antecedentes) mas começando, como deve ser, pelo início: a época Helenística, quando, num contexto de intercâmbios propiciadores, o então recente ferramental matemático e geométrico se articulou com um suporte filosófico responsivo (vide Otto Neugebauer, The Exact Sciences..., (2nd ed.), 1957, pp.97 et seq.). Como curiosidade, já vimos esse grande Historiador da Ciência (O.N.) "vitimado" pela descontextualização e revisionismo, transformado em insigne e exclusivo "Historiador da Astrologia"(!). Chegamos assim aos académicos que também são (ou foram) "astrólogos praticantes"(!) com consulentes e tudo. Sabemos como os paradigmas científicos são algo complexo e de sinuosos percursos mas... será coerente? O que nos revela acerca do pundonor epistemológico desses "académicos"? Com ou sem
"wokismos", a verdade é que a Ciência (sim, com maiúscula) representa a
única actividade humana cujos efeitos são verdadeiramente cumulativos,
independentemente das barreiras de tempo, étnicas ou linguísticas.
Prudens futuri temporis exitum
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