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Eclipses, trânsitos e ocultações

"...quod luce inter horam tertiam ferme et quartam tenebrae obortae fuerant." (T. Livius, Ab urbe cond., XXXVIII, 36, 4)

"Quando a Lua está em eclipse, deverás observar com exactidão o mês, dia, o turno da noite [i.e. a hora], o vento, direcção, a posição das estrelas em cuja região o eclipse acontece. Os augúrios relacionados com esse mês, esse dia, essa hora, esse vento, essa direcção e essa(s) estrela(s) deverás indicar." (Charles Virolleaud, L’Astrologie Chaldéenne, Paris, 1908-12, "Sin" [a Lua] XIX, pp.19-20; v. também E. F. Weidner, Alter und Bedeutung der babylonischen Astronomie..., Leipzig, 1914, p.23 [trad. nossa])

“The impression is singularly vivid and quieting for days, and can never be wholly lost. A startling nearness to the gigantic forces of nature and their inconceivable operation seems to have been established. Personalities and towns and cities, and hates and jealousies, and even mundane hopes, grow very small and very far away." (Mabel L. Todd, Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.25)

Eclipse lunar - Apianus "Astronomicum Caesareum" (1540)


introdução | mito e ciência | cronologias | contributos científicos | eclipses lunares | eclipses solares | eclipses "portugueses" | próximos (solares) | trânsitos | ocultações lunares


Os eclipses (em geral, tanto lunares como solares) estiveram presentes em momentos fundamentais para o nosso entendimento do Universo: a esfericidade da Terra, através da curvatura da sombra por esta projectada na Lua durante um eclipse lunar (Aristóteles), o cálculo do rácio das distâncias relativas do Sol e da Lua por Aristarco, a estimativa das longitudes, pelo menos desde a época de Ptolomeu (condicionando a nossa percepção da dimensão do mundo conhecido até à época da expansão marítima europeia, com consequências nas viagens empreendidas), a determinação da velocidade da luz (por Ole Rømer, observando os eclipses dos quatro principais satélites de Júpiter), a busca de hipotéticos planetas intra-mercuriais como o “esquivo” e inexistente Vulcano (preconizado por Le Verrier devido a anomalias orbitais de Mercúrio), a verificação da precisão de elementos orbitais (retrospectivamente, a análise dos eclipses históricos permite, dependendo da sua fiabilidade, estimar alterações verificadas na velocidade de rotação, i.e. na duração do dia do nosso planeta), a otimização de técnicas fotográficas, o estudo detalhado da atmosfera de uma estrela (o Sol), a sua análise espectrográfica e a descoberta de um novo elemento químico por Jules Janssen e Norman Lockyer (o Hélio, He, mais tarde também detectado no nosso planeta), a natureza gasosa da cromosfera solar e a confirmação de um efeito previsto na teoria de Albert Einstein, etc.

Planos orbitais Terra e Lua
Planos orbitais da Terra e da Lua. A e B são pontos da linha de nodos, na intersecção dos dois planos (Máximo Ferreira e Guilherme de Almeida, Introdução à Astronomia e às Observações Astronómicas (2ª ed.), Plátano, Edições Técnicas, 1995)

Introdução: o fundamental, ciclos

Um eclipse solar só pode acontecer na Lua Nova; um eclipse lunar acontece sempre na Lua Cheia. Os planos da órbita da Terra e da Lua não coincidem
(ou teríamos sempre um eclipse solar em cada Lua Nova e um eclipse lunar total em cada Lua Cheia). Assim seria se as órbitas da Lua e da Terra fossem complanares (i.e. se desenvolvessem exactamente no mesmo plano). Mas ambos estão desafasados cerca de 5º (em rigor 5.145°), o que faz que em cada metade do seu período orbital, a Lua esteja acima ou abaixo da Eclíptica, não se verificando o alinhamento exigido entre o Sol, a Terra e a Lua.  As órbitas dos luminares intersectam-se em dois pontos chamados nodos. São os pontos (historicamente designados Caput e Cauda Draconis) onde a órbita lunar cruza a Eclíptica (literalmente "o lugar dos eclipses"). O período que o Sol (no seu movimento aparente) demora a voltar ao mesmo nodo é o chamado "ano de eclipse" (ou "dracónico"), equivalendo a cerca de 346.6 dias. Os eclipses somente acontecem quando o Sol e a Lua estão nesses pontos (um eclipse solar acontece quando ambos os luminares estão no mesmo nodo; um eclipse lunar quando cada qual está num dos nodos. i.e. a 180º, ou muito perto). A Eclíptica, percurso do Sol, era, desde a Antiguidade, acima de tudo definida (como o seu nome indica) pela sua relação com os eclipses. No séc. XVI, Robert Recorde explicava: "bicause there can be no eclipse of Sonne or Moone, onles [unless] the Moone be vnder that lyne" (The Castle of Knowledge, 1556). Como o Sol não é um ponto mas sim um objecto extenso, a sombra produzida consiste em dois círculos concêntricos: a umbra ("sombra", círculo interior) e a penumbra (círculo exterior).

Diagrama "Ano de eclipse"
Diagrama representando um "ano de eclipse". Somente quando os nodos se "alinham" pode acontecer eclipse, o que se verifica duas vezes neste ciclo (proporcionando dois ou mais fenómenos). (Diagrama original in: Harrington, Philip S., Eclipse!, John Wiley & Sons, 1997). O chamado "ano de eclipse" é o intervalo entre duas passagens sucessivas do Sol por um dos nodos e, como o nodo se vai deslocando ao encontro do avanço do Sol, esse intervalo é 18.6 dias menor do que o ano tropical (o das estações, ou comum). Por isso, num ano comum podem acontecer não apenas dois mas até 5 eclipses. Dois eclipses solares são inevitáveis, um em cada nodo.


Por efeito das forças gravitacionais, a linha dos nodos desloca-se lentamente, fazendo com que os alinhamentos se verifiquem a cada 173 dias. É a chamada "temporada dos eclipses". Como Kepler de Souza Oliveira Filho & Maria de Fátima Oliveira Saraiva explicam: "Se o plano orbital da Lua coincidisse com o plano da eclíptica, um eclipse solar ocorreria a toda Lua nova e um eclipse lunar a toda Lua cheia. Entretanto, o plano está inclinado 5,2° e, portanto, a Lua precisa estar próxima da linha de nodos (cruzando o plano da eclíptica) para que um eclipse ocorra. Como o sistema Terra-Lua orbita o Sol, aproximadamente duas vezes por ano a linha dos nodos está alinhada com o Sol e a Terra. Estas são as temporadas dos eclipses, quando os eclipses podem ocorrer. Quando a Lua passar pelo nodo durante a temporada de eclipses, ocorre um eclipse. Como a órbita da Lua gradualmente gira sobre seu eixo (com um período de 18,6 anos de regressão dos nodos*), as temporadas ocorrem a cada 173 dias, e não exatamente a cada meio ano. A distância angular da Lua do nodo precisa ser menor que 4,6° para que ocorra um eclipse lunar, e menor que 10,3 ° para um eclipse solar, o que estende a temporada de eclipses para 31 a 38 dias, dependendo dos tamanhos aparentes e velocidades aparentes do Sol e da Lua, que variam porque as órbitas da Terra e da Lua são elípticas, de modo que pelo menos um eclipse ocorre a cada 173 dias." (http://astro.if.ufrgs.br/eclipses/eclipse.htm; aced. em 16 de Julho de 2024).

* i.e. no sentido contrário relativamente ao movimento directo dos luminares ao longo do Zodíaco. A órbita da Lua desloca-se devido ao efeito de maré combinado da Terra e do Sol. A linha dos nodos regride por ano 19.4° para Oeste. Devido a esta "precessão" dos nodos, os eclipses acontecem nos anos sequentes com um avanço de 18.52 dias relativamente ao ano anterior. (vide Vanin, Gabriele, Les Eclipses: Comment les Observer et les Comprendre, Paris, Éditions Grund, 1999, p.34).


Probabilidade de Eclipse ("danger zone")
Probabilidade de ocorrência de um eclipse solar,"danger zone" (Littmann, Espenak & Willcox, Totality: Eclipses of the Sun (3rd ed.), p.13)

Portanto,
como Littmann, Espenak e Willcox explicam, duas vezes por ano, grosso modo, acontece o "período perigoso", a mencionada "temporada" quando o Sol atravessa a região dos nodos e um eclipse é possível. Acontece um qualquer tipo de eclipse solar se, na Lua Nova, a distância do Sol a um nodo lunar for: 18°31' (máx.), 15°21' (mínimo), 16°56 (médio). Será central (i.e. os centros dos dois luminares vão coincidir) se estas distâncias estiverem nos intervalos: 11°50' (máx.), 9°55' (mínimo),  10°52 (médio). Estes limites são, como sabemos, variáveis devido a variações aparentes nos diâmetros angulares e velocidades do Sol e da Lua devido às órbitas elípticas da Terra e da Lua. (Totality: Eclipses of the Sun, 3rd ed.,, Oxford University Press, 2008, p.14).

"Um alerta de eclipse começa quando o Sol entra na zona perigosa, 15 graus e 1/3 a Oeste de um dos nodos da Lua, e não termina enquanto este não escapar para além de 15 graus e 1/3 a Leste desse nodo. Viajando 1 grau por dia, o Sol estará na zona perigosa por cerca de 31 dias. Uma vez que a Lua completa o seu circuito (com todas as fases) alcançando o Sol a cada 29,53 dias, o Sol não consegue percorrer toda a zona perigosa antes que a Lua aí chegue. Um eclipse solar deve acontecer, sensivelmente a cada meio ano, sempre que o Sol se aproxime de um nodo e entre numa destas zonas perigosas."(ibid.; trad. nossa).


O
Saros

A sequência mais ampla dos eclipses obedece a um período chamado
Saros (i.e. "repetição"), perfazendo 223 meses sinódicos (mês sinódico: lunação, tempo transcorrido entre duas luas novas consecutivas) e aproximadamente equivalente ao ciclo de regressão dos nodos da órbita lunar, no qual os centros dos dois luminares e a linha dos nodos quase voltam às mesmas posições relativas. Traduz-se num intervalo de quase 19 anos solares: 18 anos, 11 dias (ou melhor, entre 10 e 12 dias, variação dependendo da hora específica do fenómeno e do nº de anos bissextos [diz-se "bissexto", i.e. Bis VI Kal. Martii, pois no sistema de contagem romano era repetido o sexto dia das Calendas de Março] que acontecem nesse período de dezanove anos no nosso calendário Gregoriano (e.g., 10 dias se acontecerem 5 bissextos) e cerca de 8 horas (7 horas e 42 minutos). Os eclipses assim separados pertencem a um mesmo saros e todos os ciclos são, hoje, astronomicamente numerados, Convencionou-se que os eclipses com número ímpar (na sua série) são os que acontecem no nodo ascendente; atribui-se número par aos que acontecem no nodo descendente.

Utilizando o exemplo dos eclipses solares, como um saros não corresponde exactamente a 18 anos, a data de cada um dos eclipses de uma "série" deve avançar os referidos 11 dias suplementares. Mas como a diferença é, em rigor, de 11 dias e 8 horas, estas horas "a mais" traduzem-se numa deslocação rotacional do nosso planeta debaixo da umbra (sombra) lunar que equivale a cerca de 1/3 de um dia ou 120º de longitude (1h=15º). Logo, o eclipse vai acontecer noutra região do globo, deslocada cerca de 120º para Oeste (v. mapa com exemplo infra nesta pág., onde também se explica a evolução dos eclipses de uma "série" no longo prazo).


Há outros ciclos, como o "inex" de cerca de 29 anos, relacionando 358 meses sinódicos com 388.5 meses dracónicos, i.e., dos nodos, retorno da Lua ao mesmo nodo da sua órbita. Foi detectado por
van den Bergh na sua análise dos dados coligidos no vasto Canon der Finsternisse de Oppolzer (vide G. van den Bergh: Periodicity and Variations of Solar and Lunar Eclipses, T. Jeenk Willink & Zoon N. V., Haarlem, 1955).

Em resumo, o Saros é um período que equivale ao ciclo de regressão dos nodos da órbita lunar. Esta propriedade advém de ser um múltiplo inteiro tanto da lunação como do período dracónico (ou "draconítico"). Após três períodos, o eclipse repete-se aproximadamente na mesma localização geográfica. Permitia apenas saber se aconteceria um eclipse num determinado dia, sem definitivamente classificar se seria parcial, total ou anular (não tinha em consideração as distâncias do Sol e da Lua), ou se podia ser observado da mesma localização que o seu antecessor. Não se sabia a razão da recorrência ou da periodicidade específica, apenas compeendida após o detalhado estudo dos movimentos lunares. Já não é usado há muito tempo. A complexa mecânica (relacionada com o célebre "problema dos três corpos", que ocupou matemáticos como d’Alembert, de Clairaut ou Leonhard Euler, em Setecentos), bem como a ponderação de outras eventuais e minuciosas interacções gravitacionais, permite actualmente prever estes fenómenos com enorme precisão, i.e. ao segundo.

A designação nasceu de um equívoco (como procuraremos elucidar mais adiante): "It is common in 20th century literature to say that this cycle is the interval that the Babylonians or other ancients called the Saros, and it is probably hopeless to try to correct this error. Sarton [1952, p. 119] and Neugebauer [1957, p.142] point out that the mistake arose in the 17th century. Halley started it by misreading a poorly edited text of Pliny's Natural History." (Newton, R. R., Ancient Astronomical Observations..., The Johns Hopkins Press, 1970, p.94).

Eclipses, Asa Smith, 1849
A magnitude dos eclipses era medida em dígitos ("dedos") ou "pontos" (doze avos do diâmetro), como se pode ver na fig. 6, representação do eclipse lunar. Em baixo, tipologia dos eclipses do Sol (Asa Smith, Smith's Illustrated Astronomy, Cady & Burgess, 1849)


Ekleipsis


Esta palavra, que foi transliterada do Grego como "eclipse", significa abandono ou falha (
no sentido de algo "disfuncional"); defectus solis, dizia-se em Latim, "desfallecimento ou ausencia", como explicava Frederico Oom no seu livro acerca do eclipse de 28 de Maio de 1900 (v. infra). Num passado remoto, sem entendimento da mecânica celeste ou tecnologia adequada, seria extremamente difícil compreender a causa dos inusitados fenómenos. Num eclipse solar, os nossos antepassados remotos observavam o Sol a ser lentamente reduzido mas o brilho intenso não permitiria facilmente perceber que se tratava da Lua, apesar da sua fase permitir suspeitar da proximidade. É necessário "esquecer" o que conhecemos (as órbitas, a interacção Sol-Terra-Lua) para procurar imaginar as interpretações míticas, que coincidiam na ideia-base de que a ordem e a regularidade eram seriamente ameaçadas. Nas mais disseminadas tradições, encontramos o mitema do "monstro que devora o luminar": um dragão no Extremo Oriente, um demónio chamado Rahu na Índia (que se disseminou para o sudeste asiático, bem como para nordeste, até à Mongólia e Sibéria, e.g., através do Arakho do folclore dos Buriates), na Mitologia Nórdica eram dois infatigáveis lobos gigantes criados por Loki, rei das artimanhas (Hati perseguia a Lua e Skoll perseguia o Sol); no Egipto, a enorme serpente Apep atacava a barca do Sol (), tema provavelmente relacionável com os eclipses solares, etc.

Kala Rau (Rahu)
Na indonésia chama-se Kala Rau ao asura Rahu, referido no Mahabharata. Na tradição Hindu, os Asuras são demónios antagonistas dos benevolentes Devas, ou deuses. O arteiro Rahu terá sido rapidamente decapitado por Vishnu (enquanto Narayana) após cometer o sacrilégio de beber do elixir da imortalidade reservado aos deuses. O corpo pereceu mas a sua cabeça tornou-se imortal. O demónio vinga-se perseguindo o Sol e a Lua, que o terão denunciado. Por vezes "engole" um destes (eclipse) mas o luminar acaba por sair pela goela cortada. (Desenho efectuado a partir de pintura tradicional Balinesa por Joseph Bientasz, Griffith Observatory, in: Krupp. E. C., Beyond the Blue Horizon..., Oxford University Press, 1992 (1991), p.168)

Flammarion - eclipse Tashkent
Um eclipse lunar em 16 de Dezembro de 1880 (data Gregoriana) foi recebido ruidosamente em Tashkent (Uzbequistão) com tambores e címbalos (gravura recolhida numa edição de 1900, em Russo, da célebre Astronomie Populaire de C. Flammarion)


Fontenelle (1657-1757), escritor e pensador Iluminista, expôs diversas superstições e medos relacionados com os eclipses em algumas culturas extra-europeias, mas também ironizou com pretéritas superstições dos "refinados" (raffinés) gregos e com o pânico ainda recente dos seus contemporâneos franceses, quando, durante um eclipse, muitos se trancaram em caves e porões
:
 
"Ah! vraiment, répondis-je, il y a bien des peuples qui, de la manière dont ils s’y prennent, ne la devineront encore de longtemps. Dans toutes les Indes orientales on croit que quand le Soleil et la Lune s’éclipsent, c’est qu’un certain dragon* qui a les griffes fort noires, les étend sur ces astres dont il veut se saisir ; et vous voyez pendant ce temps-là les rivières couvertes de têtes d’Indiens qui se sont mis dans l’eau jusqu’au col, parce que c’est une situation très dévote selon eux, et très propre à obtenir du Soleil et de la Lune qu’ils se défendent bien contre le Dragon*. En Amérique on était persuadé que le Soleil et la lune étaient fâchés quand ils s’éclipsaient, et Dieu sait ce qu’on ne faisait pas pour se raccommoder avec eux. Mais les Grecs qui étaient si raffinés n’ont-ils pas cru longtemps que la Lune était ensorcelée, et que des magiciennes la faisaient descendre du ciel pour jeter sur les herbes une certaine écume malfaisante? Et nous, n’eûmes-nous pas belle peur il n’y a que trente-deux ans, à une certaine éclipse de soleil [refere-se a 1654], qui à la vérité fut totale? Une infinité de gens ne se tinrent-ils pas enfermés dans des caves, et les philosophes qui écrivirent pour nous rassurer n’écrivirent-ils pas en vain ou à peu près? Ceux qui s’étaient réfugiés dans les caves en sortirent-ils?" (Bernard Le Bouyer de Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes, "second soir", 1742 (1686); excerto é do texto-base, a última edição revista pelo autor; seguimos a Edição Crítica de Alexandre Calame, Paris, Librairie Marcel Didier, 1966, pp.56-57)
 
* "Demon" nas edições de 1886 e 1724.

Numa tradução deste trecho em Português (baseada noutra edição):

"Ah! respondi eu, quantos povos ha ainda que pela sua maneira de discorrer sobre os Eclipses estarao longo tempo ainda sem adivinha-la. Em todas as Indias Orientaes se crê que, quando o Sol, e a Lua se eclipasam, é porque um certo Demonio, que tem as Garras muito negras, se estende sobre estes Astros, quaes pretende apossar-se; e, se alli podesseis transportar-vos, verieis em todo o tempo que dura o Eclipse os rios coalhados de cabeças de Indios [i.e. hindus], que se mettem na agua até ao pescoço, por ser esta uma situação muito devota, segundo a sua crença, e muito propria para obter do Sol, e da Lua que se defendam bem do Demonio, que procura agarra-los. Na America persuadem-se que o Sol, e a Lua estão enfadados, quando se eclipsam, e Deos sabe o que aquelles povos são capazes de fazer para se reconciliarem com elles! E os Gregos, que eram tão subtis nas suas pesquizas, não acreditaram longo tempo que a Lua cedia aos encantos, e feitiços com que algumas Magicas a faziam descer do Ceo para espalhar sobre as ervas certa espuma venenosa? E entre nós mesmos não se experimentou, haverá talvez sessenta anos, o maior susto occasionado por um Eclipse do Sol? não se conservaram uma infinidade de pessoas encerradas em subterraneos, a pezar de tudo quanto os Philosophos escreveram para destruirem tão ridiculo susto?" (Conversações sobre a Pluralidade dos Mundos: Vertidas de Francez em Vulgar pela Senhora D. Francisca de Paula Possóllo da Costa. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1841, pp.75-6).


O pânico foi descrito na gazeta burlesca semanal de Jean Loret, do dia 15 de agosto. Eis as últimas rimas:
"Beaucoup de gens, et des plus braves,
Se cachèrent au fond des caves,
Et tel fut au grenier exprés
Pour voir le soleil de plus prés..."


O Eclipse é, na alargada abordagem antropológica resumida por Jean-Pierre Verdet (Le Ciel: Ordre et Désordre, Gallimard, 1988), um culminar da desordem cósmica: "...cas extrême des phases de la lune ou de la disparition quotidienne du soleil - est celui du grand désordre cosmique." (p.76). Os valores simbólicos do eclipse e os do incesto, tabu universal ("le signe même du désordre social") são também relacionáveis e surgem em algumas interpretações (ibid.).

Na arte, na literatura, na Sci-Fi (ficção científica) ou na BD, o interesse pelos eclipses é evidente, da Odisseia de Homero a Tintin, passando por Shakespeare e Asimov (Nightfall, 1941), pela pintura de Taddeo Gaddi, Rafael (Raffaello Sanzio) ou Hendrick ter Brugghen. Os portentos disseminaram o seu fascínio
.

Gaddi - Anunciação aos Pastores (pormenor)vaziaRafael - Isaac e Rebeca
Taddeo Gaddi, L'Apparizione dell'angelo ai pastori (pormenor); fresco, Cappella Baroncelli, Santa Croce, Florença (década de 1330). Gaddi representou os efeitos luminosos que observou no eclipse de 16 de Julho de 1330 (Pasachoff, J., Olson, R. Astronomy: Art of the eclipse. Nature 508, 314–315 (2014); à direita: Isacco e Rebecca spiati da Abimelech (Gn:26); fresco de Rafael, Logge di Raffaello, Vaticano, 1518–19


Historicamente, a confirmação de padrões significativos na recorrência e tipologia dos eclipses da Lua foi muito facilitada pelo facto de estes serem
sempre observáveis a partir de todo um hemisfério do nosso planeta (na verdade, em mais de metade do planeta devido ao movimento de rotação), enquanto os eclipses solares estão confinados a restritas regiões geográficas, afastadas entre si. O registo cuidadoso dos fenómenos permitiu antecipar os eclipses lunares, reconhecer repetições e, provavelmente, as "lacunas" (eclipses não observados). Os povos da Mesopotâmia foram os primeiros a compreender que os eclipses (lunares) se manifestavam num ritmo próprio. Obedeciam a ciclos. E o saros, já mencionado acima, será o mais importante:
 
"(,,,) As time passed and they accumulated more records, the Chaldeans and other ancient peoples recognized that a specific eclipse occurred a precise number of days after a previous eclipse and before a subsequent one. Eclipses had a long-term rhythm of their own. The most famous and, perhaps, most useful of these eclipse rhythms was the saros, discovered by the Chaldeans and inscribed on clay tablets in their cuneiform writing. The Chaldeans noticed that 6,585 days (18 years 11 days) after virtually every lunar eclipse, there was another very similar one. If the first was total, the next was almost always total." (Littmann, Espenak & Willcox: Totality: Eclipses of the Sun (3rd ed.), Oxford University Press, 2008, p.21).

É um múltiplo quase exacto de vários outros períodos: 18 anos e onze dias perfazem 6585 dias, representando 223 lunações (retorno da mesma fase da Lua à mesma data do calendário solar (Juliano), i.e. o chamado Ciclo Metónico*), 242 revoluções dracónicas (cada uma é o retorno ao mesmo nodo, 27,21 dias) e 238 revoluções anomalísticas (cada uma é o intervalo entre duas passagens da Lua pelo seu perigeu, o ponto mais próximo da Terra, 27,55 dias). Está atestado num texto babilónico encontrado em duas placas cuneiformes identificadas e coligidas por Abraham Sachs em 1953 (Olaf Pedersen (Alexander Jones, ed.), A Survey of the Almagest..., Springer, 2008, p.162, n.1).

* Ou Enneadecaeteris: mínimo múltiplo comum (aproximado) da duração, em número de dias, do ano trópico (o das Estações) e do mês sinódico lunar (o das lunações). Ciclo tradicionalmente utilizado na “harmonização” dos ritmos convencionais do Sol e da Lua no Calendário Litúrgico, com a sua gestão do excesso de dias do ano solar sobre o lunar - a Epacta).

 

Dresden Codex
Uma serpente emplumada engole o Sol. É um tema recorrente em diversas mitologias dos eclipses, protagonizado por dragões (no Extremo Oriente), lobos (entre os povos nórdicos), jaguares (em algumas culturas Pré-Colombianas), demónios de toda a espécie. O eclipse solar assume, na perspectiva antropológica, uma ideia de perigo, desordem (cósmica, social), desequilíbrio e caos. A técnica para afastar a "ameaça" e acabar com o momento disruptivo era, em quase todas as culturas, fazer o maior barulho possível. Na ilustração, desenho de detalhe da tabela de eclipses do chamado Códice de Dresden (Akademische Druck- u. Verlagsanstalt Graz; p. 57b). Os Maias utilizaram calendários complexos, tendo enorme abrangência na Mesoamérica um ano ritual de 260 dias. Respaldavam-se em ciclos diferentes dos utilizados no chamado "Velho Mundo", com abordagens e interpretações simbólicas específicas. Reconheciam o período de 177 (ou 178) dias que intervalava os eclipses. Sabiam, empiricamente, que os eclipses somente se podiam repetir em semestres, ou ocasionalmente em cinco meses (porque, como hoje diremos, o Sol e a Lua precisam estar situados nos nodos, onde ambas as órbitas, i.e. a Eclíptica e a órbita da Lua, se intersectam)


Também os Maias, na Mesoamérica, após registarem um número suficiente de eclipses, verificaram recorrências, nomeadamente que os fenómenos de maior magnitude se verificavam apenas em intervalos de seis meses lunares ou cinco meses lunares. Descobriram empiricamente a duração aproximada do "ano de eclipse", bem como do meio-ano de 173.3 dias. Recorrendo à data de um eclipse lunar ou solar observado, existia a possibilidade de nova ocorrência, embora em muitos casos o eclipse não acontecesse ou não fosse observável a partir da localização geográfica habitada por estes povos.

Todavia, não existia ainda, em qualquer civilização, uma teoria que explicasse o padrão. No caso dos eclipses solares, confinados na área que abrangem e (numa mesma série) "reincidindo" em regiões geográficas afastadas, é provável que, no máximo, num ou outro caso particular, se pudesse inferir uma vaga "possibilidade" de recorrência. Mas seria inexequível antecipar. Com os Gregos desenvolve-se uma perspectiva geométrica na qual os "planetas" (no sentido lato tradicional, que incluía os luminares) descreviam órbitas, e estas eram circulares. Com Hiparco, e depois com Ptolomeu, desenvolve-se um conhecimento mais aprofundado das peculiaridades dos movimentos aparentes do Sol e da Lua. As ulteriores tabelas medievais, respaldadas no legado ptolomaico e com refinamentos promovidos pelos astrónomos das regiões islamizadas, permitiam antecipar os eclipses lunares com notável precisão (~1 hora). Mas o verdadeiro salto qualitativo, definitivo no que diz respeito aos eclipses do Sol, só acontecerá mais tarde com as leis da mecânica celeste de Newton. Edmond Halley (1656-1742) foi o primeiro astrónomo a calcular e antecipar
com precisão as localizações, "timings" e percursos dos eclipses. Fê-lo para os eclipses solares de 1715 e 1724, cuja totalidade percorreu a Inglaterra. O primeiro eclipse cronometrado por um grupo de astrónomos foi, justamente o de 3 de Maio 1715, data Gregoriana (Stephenson, F. Richard (1982). "Historical Eclipses". Scientific American. vol.247, no.4. pp. 154–163). A partir daí, tornou-se também exequível calcular (retrospectivamente) fenómenos no passado e conhecer a sua cronologia.

Halley - mapa caminho eclipse 1715
O mapa desenhado por Halley para o eclipse de 1715 foi um dos primeiros do seu género (o primeiro parece ter sido desenhado pelo astrónomo Alemão Erhard Weigel em 1654, vide Kanas, Nick, Solar System Maps: From Antiquity to the Space Age, Springer/Praxis Publishing, 2024, p.224). Após o eclipse, foi corrigido e republicado, adicionando o caminho do futuro eclipse de 1724 que também atravessaria a Inglaterra


A recorrência lunar reconhecida na antiga Mesopotâmia também acomoda os eclipses solares. Normalmente,
cada ciclo inclui 70 eclipses (41 solares e 29 lunares). Dado um determinado eclipse, decorrido um destes intervalos assiste-se a outro eclipse com geometria similar (duração, tipo, configuração do percurso de sombra, etc.), todavia observável noutra região geográfica devido ao facto de os períodos relacionados não serem exactamente múltiplos. Em causa está a dinâmica do sistema Sol-Terra-Lua. Como já vimos acima, antes de mais, atendendo a que um saros não corresponde exactamente a 18 anos, a data de cada um dos eclipses do "grupo" vai avançar os 11 dias em excesso. Mas como a diferença é, em rigor, de 11 dias e 8 horas, as horas "remanescentes" traduzem-se na deslocação rotacional do nosso planeta sob a umbra (sombra) lunar que equivale a cerca de 1/3 de um dia ou 120º de longitude (1h=15º). Logo, o eclipse vai acontecer noutra região do globo, deslocada cerca de 120º para Oeste. Logo, é necessário completar 3 saros (669 meses sinódicos, período designado Exeligmos (aparentemente favorecido pelos Gregos) que encontramos mencionado no Isagoge de Geminus (XVIII) ou no Almagesto (IV, 2) de Ptolomeu) para que o eclipse atinja aproximadamente a mesma região do globo, "voltando" à mesma longitude. Porque já se verificou um diferencial de 33 dias (11x3), o Sol estará, todavia, um pouco mais alto (ou baixo), dependendo da estação do ano e do movimento ascendente ou descendente da Lua através do nodo (i.e. deslocamento gradual do nodo lunar, cerca de 0.5º entre eclipses sucessivos), determinando uma faixa e totalidade geograficamente deslocada para norte ou para sul.

Eclipses do saros 136
Caminho de Totalidade de nove eclipses pertencentes ao saros nº 136, no intervalo 1901-2045 (Espenak, F. & Meeus, J., Five Millennium Canon of Solar Eclipses:
–1999 to +3000 (2000 BCE to 3000 CE), NASA/TP–2006–214141, p.38). Eclipses sucessivos dos saros com nº par acontecem deslocados para Oeste e Norte; dos saros com nº ímpar para Oeste e Sul.

Todos os eclipses de uma mesma série acontecem no mesmo nodo lunar (ascendente ou descendente). A longo prazo, uma série (ou "família") saros começa com um conjunto de eclipses parciais observáveis em latitudes muito elevadas, seguido de um conjunto de eclipses anulares, totais ou híbridos (nestes, o cone de sombra não toca a superfície do nosso planeta nos extremos do seu percurso mas somente numa fase intermédia devido à curvatura terrestre) em latitudes geográficas medianas (N.B.: embora existam saros sem eclipses totais, ou sem eclipses anulares, nenhum tem somente eclipses parciais). Em resumo, o ciclo começa de modo incipiente, somente penumbral, Após um intervalo aproximado de dois séculos, a umbra começa a tocar a superfície do nosso planeta e a proporcionar eclipses mais notáveis durante cerca de 950 anos. Finalmente, espiralando ao longo do globo, e tendo entretanto atravessado o Equador, a série sai de cena com um conjunto de modestos eclipses parciais próximos do pólo geográfico oposto, após um intervalo médio de 1300 anos. [Mobberley, M., Total Solar Eclipses and How to Observe Them, Springer, 2007, pp.15-17): Zirker, J. B., Total Eclipses of the Sun (Expanded ed.), Princeton University Press, 1995, pp.37 et seq.; Nordgren, T., Sun, Moon, Earth: The History of Solar Eclipses..., Basic Books, 2016, ch. 2]

Como acontecem muitos e não apenas um único eclipse em cada período de (quase) 19 anos, há sempre vários ciclos saros a decorrerem em simultâneo (~40 em curso a qualquer momento).

A interpretação do nome Saros (Gr. σάρος) é de origem moderna (Neugebauer, O., A History of Ancient Mathematical Astronomy, Springer, 1995, vol.1, p.497 n.2). Terá sido pela primeira vez utilizado (neste contexto) por Edmond Halley em finais do séc. XVII, enquanto comentava passagens de uma edição da Naturalis Historia de Plínio (Emendationes & Notae in tria loca vitiose edita in textu vulgato Naturalis Historiae C. Plinii). A palavra foi, supostamente, retirada do "Suda" (ou "Suidas"), um extenso lexicon (dicionário) Bizantino do séc. XI (v. trad. entrada relevante em Inglês, .PDF, 20KB; 1ª nota denuncia a extrapolação para o tema dos eclipses, nota é pertinente e corrige lapso no original). Otto Neugebauer procurou descrever o turbulento percurso deste conceito (The Exact Sciences in Antiquity, 2nd ed., Dover Publications, 1969, pp.141-2): associado à Astronomia pela primeira vez no referido dicionário, não tinha qualquer ligação aos eclipses (mas sim com uma relação trivial entre o ano e o número de meses do ano). Com suposta origem na Suméria, relacionava-se primitivamente, segundo Ideler (Handbuch der Mathematischen und Technischen Chronologie, I, 1825, p.213), com conceitos como "universo" ou "pluralidade" e, mais tarde, com o número 3600 (expressão concreta de uma elevada quantidade). É, de facto, usado por Berossus (circa 290 A.C) como sinónimo de "3600 anos". Edmond Halley lê em Plínio a descrição da recorrência dos eclipses (que sabia serem 223 meses), numa edição que indicava "222" (edições diferentes grafavam números diversos, incluindo 235, obviamente sugerido pelo Ciclo Metónico, que é diferente, ainda hoje usado no nosso Calendário Litúrgico). Presumindo que o texto do séc. XI se baseara em Plínio, decide aplicar a "correcção" a ambas as fontes, relacionando erradamente a mais recente com a temática dos eclipses (não tendo em conta contexto original, que não faz sentido com a alteração). Esta conjectura (embora criticada por alguns autores na época) foi todavia publicada por Montucla na sua célebre Histoire des mathematiques (1758) e o mito "Saros" não mais se desfez. Em resumo, Halley interpretou incorrectamente a descrição original mas a terminologia perpetuou-se no uso astronómico. Em rigor, segundo Franz Xaver Kugler (Die babylonische mondrechnung, 1900), no período Selêucida (mais tardio) os eclipses eram calculados medindo cuidadosamente a latitude lunar relativa às sizigias (Lua Nova e Lua Cheia), existindo contudo indicações da utilização. num período anterior, de um ciclo de cerca de 18 anos para determinar a sua recorrência (bem como a de diversos outros fenómenos lunares).

 
O "Eclipse de Tales"
Conhecida ilustração oitocentista de uma batalha entre Lídios e Medos, relatada por Heródoto, supostamente interrompida por um eclipse total que motivou a celebração da paz entre os antagonistas (reproduzida por Todd, Mabel L., Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.95). Proveniente de fonte francesa (autoria do artista Georges Rochegrosse, 1859-1938)


Cronologias

Uma vertente interessante consiste no recurso aos eclipses do passado como ferramenta cronológica.
Neste âmbito, onde a Astronomia, a História e a Cronologia, se encontraram, há alguns nomes do passado que são referência. No primeiro quartel do séc. XIX, o Barão Franz Xaver von Zach (1754-1832) elencava diversos "éclipsographes": "Scaliger, Petau, Riccioli, Calvisius, Struyck, Ferguson, Lambert, Pingré, etc." (Correspondance Astronomique, vol.3 (1819), p.560).

Os académicos do final do século XIX e início do XX (Friedrich Karl Ginzel, John Knight Fotheringham et al.) procuraram interpretar os vagos relatos clássicos, quase sempre literários, presentes em resumos históricos, biografias e até poemas (como um conhecido exemplo de Arquíloco (séc. VII a.C.), fragm. 122, v. Barron and Easterling, 1985, p.125) porque não havia nada mais 'técnico' à disposição. Com a descoberta e tradução de parte dos registos cuneiformes encontrados na Mesopotâmia (quase todos arquivados no Museu Britânico), consegue-se amiudadamente obter informação muito mais precisa. É muitas vezes possível fazer a relacionação com os antigos calendários, em paralelo com as listas disponíveis de reis e soberanos (como o "Canon Basileon" que encontramos nas tabelas de Ptolomeu), e.g., o eclipse ocorrido na data equivalente a 15 de Junho de 763 a.C. surge na chamada "Crónica Assíria", sendo relevante para a cronologia desta civilização. Na tradução fidedigna de Alan R. Millard:

(Eponym of) Bur-Saggile of Guzana. Revolt in the citadel; in (the month) Siwan, the Sun had an eclipse (samas attalu).

[Assyrian Chronicle; trans. Millard (1994, p.58)]
 
O 'epónimo' ("limmu" no original) refere-se ao governador provincial ou magistrado cujo nome identificava o ano para o qual estava mandatado (comparável aos "arcontes" Gregos e aos cônsules que encontraremos em Roma). Neste caso o seu nome era Bur-Saggile. A partir do "Cânone dos Reis" que Ptolomeu transcreveu (vide G. J. Toomer, Ptolemy's Almagest. Translated and annotated, Duckworth, 1984, p.11), foi possível (nas listagens de eclipses retrospectivamente calculados) localizar o que responde ao ano, mês e localização. Pela tradução de Millard percebemos que o eclipse, sendo na região de Assur, não se refere obrigatoriamente à capital, como é habitual encontrar noutras referências. A sua magnitude também não foi sugerida no registo original.


Outro exemplo é o eclipse no dia do novilúnio do mês de Hiyar, equivalendo (numa pesquisa retrospectiva) a de 3 de Maio de 1375 a.C. em Ugarit (antiga cidade do norte da Síria):  o Sol foi humilhado e apagou-se em pleno dia ("The sun was put to shame and went down in daytime", vide J. B. Zirker,
Total Eclipses of the Sun, Princeton University Press, 1995, chapter 1; a fonte original é a placa cuneiforme KTU 1.78, encontrada em 1948). A verificação das datas cronológicas tem em conta a aceleração orbital da Lua e desaceleração da rotação da Terra (resultado das forças em presença nas marés oceânicas, que em pequenos incrementos se tornam influentes a longo prazo). A primeira explicação matemática detalhada do efeito foi feita pelo notável matemático Pierre-Simon de Laplace (1749-1827) no último quartel do séc. XVIII. Na realidade há múltiplos factores, nomeadamente climáticos,  que criam pequenas variações na rotação da Terra, nem todos ainda completamente compreendidos. As cronologias são constantemente ajustadas e refinadas em função do conhecimento destas variáveis e com nova informação de antigos relatos entretanto descobertos. Segundo F. Richard Stephenson, os eclipses cronologicamente válidos enquadram-se em três categorias (por ordem de relevância decrescente): os que também incluem a hora do dia, os que foram relatados como acontecendo próximo do orto ou do ocaso do Sol e, por fim, os que não relatam os "timings" mas são considerados conspícuos, i.e. totais ou quase totais. ("Historical Eclipses". Scientific American. Vol. 247, no. 4., pp.173-74).

Refira-se que, curiosamente, não há, aparentemente, qualquer evidência de registos relacionados com eclipses nas fontes do Antigo Egípto. Seria tabu? Segundo os editores da Encyclopedia Britannica: "Some scholars have suggested that perhaps eclipses were highly distressing and were deliberately left unrecorded so as to not "endow the event with a degree of permanence" or tempt the sun god Re (Ra). One Egyptologist has suggested that various references to an apparently metaphorical form of blindness align with historical eclipse dates and may be symbolic records of these events. Or perhaps papyrus records were simply lost to time." (Petruzzello, Melissa. "The Sun Was Eaten: 6 Ways Cultures Have Explained Eclipses". Encyclopedia Britannica, 1 Aug. 2017, https://www.britannica.com/list/the-sun-was-eaten-6-ways-cultures-have-explained-eclipses. Accessed 30 October 2023)

A leitura histórica não está,
porém, isenta de dificuldades, atendendo à complexidade da interpretação de muitas das fontes, com testemunhos imprecisos, ficcionados ou, de algum modo, "falsificados" (e.g., fenómenos "transladados" para coincidirem com eventos históricos ponderosos). Muitos astrónomos e divulgadores reputados repetem até à saciedade relatos com pífia credibilidade, porque insuficientemente ou equivocamente documentados. Exemplos: o célebre episódio Chinês dos astrónomos Hsi e Ho (nomes que remetem para a antiga mitologia astronómica solar, com ulterior materialização "histórica" na lenda; podemos encontrar um bom resumo em Littmann et al.: Totality: Eclipses of the Sun (3rd ed.), Op. cit., pp.33 et seq.; a fonte confucionista original (uma compilação de diversos discursos antigos e registos de eventos) foi ed./trad. por James Legge: The Chinese Classics, vol. 3, The Shoo King [Shu Ching], Hong Kong University Press, 1960). Fenómeno dataria da (debatida) dinastia Hsia ou Xia e chegou à Europa num tratado de 1732 da autoria do jesuíta Antoine Gaubil. A lenda refere um eclipse que ocorreu supostamente em 2137 a.C. Aos negligentes astrónomos incumbentes, Hsi e Ho, foi prometida severa (capital) punição por não terem antecipado a ocorrência, episódio que J. Needham (na senda de outros autores) considera obviamente espúrio e uma interpolação relativamente recente (Mathematics and Science in China and the West, vol.3, Cambridge University Press, 1959, p.189). Outro célebre fenómeno foi supostamente "previsto" por Tales de Mileto e interrompe uma batalha entre Lídios e Medos (Heródoto, I, 74), Plínio (Nat. Hist. II, 9) ou Cícero (De Divinatione, 49), Foi "validado" no séc. XIX pelo astrónomo G. B. Airy como sendo o eclipse ocorrido na data equivalente a 28 de Maio de 585 a.C. O próprio sítio da batalha, nas margens do rio Halys, é somente mais uma suposição. A polémica começa pela (im)possibilidade de previsão das circunstâncias locais ou geográficas na época de Tales (para os eclipses solares não bastaria conhecer o ciclo saros, seria necessário recorrer a um vasto acervo de datas de eclipses observados na região, dos diversos saroi em curso, para uma estimativa minimamente informada baseada nos pares ou trios ocasionais), De resto, se o filósofo milesiano utilizou um ciclo, convém esclarecer que os ciclos contêm um número integral de meses e a predição apontaria necessariamente o dia, não o ano, como descrito no relato. Simon Newcomb (1835-1909) cedo sugeriu cautelas na leitura crédula destes antigos "relatos" de supostos eclipses. Salientou o facto de Tales apenas ter "previsto" um único eclipse (demais total, na sua região geográfica) e a enorme improbabilidade inerente: "That he predicted only a single eclipse is highly improbable; that, in addition, this one should prove to be total within a hundred miles of his birthplace transcends all reasonable probability" (Researches on the Motion of the Moon..., Washington, Government Printing Office, 1878, p.30). Convém lembrar que Tales ou Pitágoras pertencem a uma categoria de "heróis sapientes" mitificados, aos quais tudo era (e foi sendo) atribuído, muitas vezes anacronicamente (a cosmologia de Tales era ainda muito rudimentar, concebendo uma Terra plana que flutuava numa vasta extensão de água). Para Otto Neugebauer (The Exact Sciences in Antiquity, 2nd ed.. Dover Publications, 1969, pp.142-3) a realidade de tal previsão é liminarmente recusada e a "ligação" babilónica não colhe pois entre estes não existia, na época, qualquer teoria para prever eclipses solares. nem os Babilónios alguma vez desenvolveram uma teoria que tomasse em consideração a latitude do lugar. Citamos da 1ª edição de 1952, p.136:

"The myth of the Saros is often used as an 'explanation' of the alleged prediction by Thales of the solar eclipse of -584 May 28. There exists no cycle for solar eclipses visible at a given place; all modern cycles concern the earth as a whole. No Babylonian theory for predicting a solar eclipse existed at 600 B.C., as one can see from the very unsatisfactory situation 400 years later; nor did the Babylonians ever develop any theory which took the influence of geographical latitude into account. One can safely say that the story about Thales’s predicting a solar eclipse is no more reliable than the other story about his predicting the fall of meteors."

O ano específico (4º ano da 48ª Olimpíada), muito mais tarde indicado por Plínio (que teria acesso às datas dos eclipses mais conspícuos), coaduna-se, de facto, com o de uma totalidade que se observou na Ásia Menor em 585/4 a.C., v. mapa (F. Espenak, NASA/GSFC, editado). Todavia, neste caso o eclipse teria sido somente observado ao final da tarde, hora pouco usual para este tipo de confronto bélico. De resto, como Ronald R. Newton salienta, a fonte Heródoto (séc. V a.C.) faz numa outra passagem (VII, 37) a clara descrição de um eclipse comprovadamente inexistente, supostamente observado de Sardes circa 446 a.C. pelas forças militares de Xerxes, que se preparavam para atacar os gregos (datação é, neste caso, verificável através de diversas outras fontes fidedignas). Se Heródoto se "enganou" aí, com um intervalo de somente uma década, como acreditar nesse outro relato (mais de um século anterior ao historiador) de um fenómeno concomitante com uma batalha não datável entre Lídios e Medos? (Ancient Astronomical Observations..., Op. cit., 1970, pp.97-9). Newton também refere (p.44):

"Since an eclipse was often regarded as an omen, an imaginative writer could place an eclipse before or at the beginning of a great event, such as a military campaign, and interpret it to suit the course of history. This procedure perhaps accounts for the remarkable tendency of people to fight battles during a solar eclipse. The death of a king or an eminent person is often accompanied by prodigies or marvels. A well known example is given by Plutarch [ca 100; Life of Caesar]: The most signal preternatural appearances were the great comet, which shone very bright for seven nights after Caesar's death, and then disappeared, and the dimness of the sun, whose orb continued pale and dull for the whole of that year ...'' Also the fruits dia not ripen properly and a phantom appeared to Brutus."


Ainda acerca do "eclipse de Tales", citamos a opinião lúcida de Sir H. C. Rawlinson, em 1858:
"The prediction of this eclipse by Thales may fairly be classed with the prediction of a good olive crop, or the fall of an aerolite [predição atribuída a Anaxágoras]. Thales, indeed, could only have obtained the requisite knowledge for predicting eclipses from the Chaldeans; and that the science of these astronomers, although sufficient for the investigation of lunar eclipses, did not enable them to calculate solar eclipses—dependent as such a calculation is, not only on the determination of the period of recurrence, but on the true projection also of the track of the Sun's shadovv along a particular line over the surface of the earth—may be inferred from our finding that in the astronomical canon of Ptolemy, which was compiled from the Chaldean registers, the observations of the Moon's eclipse are alone entered."  (Month. Not., Royal Astr. Soc., vol. xviii. p. 148; March 1858)

- Excerto (.PDF, 690KB) do estudo de Jack B. Zirker (Total Eclipses of the Sun), que se respalda na opinião de alguns especialistas, transcrevendo a pertinente tipologia de relatos espúrios de R. R. Newton (Op. cit.) e um paper de Miguel Querejeta (de 2011) que resume abordagens pretéritas e analisa mais duas propostas quanto à possibilidade de Tales ter utilizado ciclos para prever um eclipse, concluindo e demonstrando estatisticamente a impossibilidade do procedimento.

Já as referências de Tucídides (c. 400 a.C.) são fidedignas e expostas numa linguagem precisa. Na sua História da Guerra do Peloponeso (
nomeadamente em II.XXVIII, IV.LII e VII.L) encontramos algumas referências facilmente confirmadas pelos cálculos astronómicos retrospectivos:
 
"Durante este mesmo Verão no princípio do mês lunar, no único momento em que isto pode acontecer, houve um eclipse do Sol depois do meio-dia; tomou a forma dum crescente e depois de novo ficou cheio e algumas estrelas tornaram-se visíveis." (História da Guerra do Peloponeso (trad. Raul M. Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwher), Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 2013; II.XXVIII)

A Literatura Clássica associou amiudadamente os eclipses a acontecimentos históricos ou míticos considerados importantes, como por exemplo ao nascimento e morte de Romulus e à fundação de Roma. A Bíblia parece incluir pelo menos um relato explícito de um eclipse do Sol, em Amos, VIII.9. Já os portentos que nos Evangelhos acompanharam o nascimento e a morte de Jesus Cristo (da estrela de Belém às "trevas" da crucificação) são hoje teologicamente considerados engenhosas narrativas que ilustram ensinamentos religiosos, como acontece amiudadamente na tradição da midrash talmúdica, e não "relatórios" de eventos cósmicos ou de outro tipo. Na crucificação, um eclipse solar teria sido impossível pois o plenilúnio vernal assinalava a Pesah (Páscoa) Judaica (e, como sabemos, não há eclipses do Sol na Lua Cheia). Demais, as "trevas" duraram três horas, segundo três dos Evangelhos, e.g., "E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona." (Mateus, 27:45), Contudo, segundo algumas exegeses, poderá ter acontecido um eclipse lunar pois alguns comentários referem uma Lua "vermelha" ou "cor de sangue".

H. Buntingo - Crucificação
A "Figura" do céu aquando da Crucificação na "Cronologia Universal" de Heirico Buntingo (Heinrich Bünting). O autor explica: o sol perdeu a sua luz no meio do céu de modo contranatura (i.e. milagrosa), não muito longe da cabeça do dragão [caput draconis, o nodo lunar ascendente], "de onde naturalmente não podia estar longe". Foi, portanto, um eclipse sobrenatural: "Hyperphysica igitur & praeternaturalis fuit haec defectio solis". A Lua, sem receber luz deste sol "naturaliter deficere", estava no imum coeli, nos Antípodas, perto da cauda do dragão [cauda draconis, o nodo lunar descendente]. Acresce que Saturno [a Infortuna maior], emergindo sobre o horizonte, esteve em quadratura [aspecto astrológico maléfico], e "olhou" para o Sol e para a Lua ("...solis et lunae aspexit"), estando estes eclipsados. Termina a exposição salientando quão terrível foi esta configuração do céu: "Vides ergo quam terribilis haec fuerit facies coeli." (Chronologia catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora editarum, ultima & absolutissima demonstrata. Omnium gentium et temporum, tam sacris quam alias probatis scriptis. Calculo quoque astronomico prutenico vt laboriosissimo ita certissimo. Ecclipsium, stellarum, & calendariorum: Ebræorum, Græcorum, Ægytiorum & latinorum: vsque ad ipsum mundi initium. Historia item..., Salomon Richtzenhan, Magdebvrgi, 1608, fol.237v.). Uma abordagem horoscópica deste jaez seria, claramente, censurada pela Igreja de Roma.


Os antigos Chineses foram pródigos no relato de eclipses bem como no de todos os fenómenos relacionados com a regularidade (ou o distúrbio da regularidade) no céu e, consequentemente (por correspondência), no vasto Império do Meio
. Os eclipses faziam parte da "astrologia política". Segundo Littmann et al. (Op. cit., p.35), desconheceram todavia as causas concretas destes fenómenos até uma época relativamente tardia: The Chinese were early in recording eclipses but late in recognizing their cause. Not until the third or fourth century a.d. did they understand solar and lunar eclipses well enough to be able to predict them accurately. Utilizavam métodos divinatórios complementares, por exemplo ossos oraculares (também designados "ossos de dragão") e pedaços de carapaças de tartaruga estaladas por aquecimento no fogo, nas quais se observavam e interpretavam as fendas resultantes. Apesar da longa tradição, o primeiro registo fiável é relativamente tardio: "For all its ancient historical tradition China is without a single reliable eclipse record before 720 B.C." (Stephenson, "Historical Eclipses", Scientific American. Vol. 247, no. 4, 1982, p.175) . O conhecimento (entretanto alcançado) de que que um eclipse solar seria causado pela interposição da Lua, mereceu resistência por parte de alguns sábios. O astrónomo Wang Chong (séc. I) questionava, filosoficamente, como seria possível a Lua, que era Yin, causar o obscurecimento do Sol, Yang (i.e. mais forte)? Preferiu acreditar que estava na natureza do próprio Sol "minimizar-se" ou "apagar-se" durante a ocorrência do fenómeno. (Thurston, H., Early Astronomy, Springer-Verlag, 1994, p.85).

Num registo Chinês de (i.e. reduzido a) 17 de Julho de 709 a.C. e presumidamente observado em Ch'u-fu (Qufu), "...o Sol foi eclipsado e foi total.": "Duke Yuan, 3rd year, 7th month, day jen-ch'en [cyclical day number = 29], de first day (of the month). The Sun was eclipsed and it was total." (Ch'un-ch'iu, I). Segundo Stephenson, que citamos (1997, p.226), trata-se da primeira referência explícita à totalidade, em qualquer civilização.


Bandeira dinastia Qing
Shih ("comer", "consumir") é, da dinastia Shang em diante, uma palavra relacionada com os eclipses, revelando a persistência no imaginário tradicional do dragão que abocanhava o luminar. A associação entre eclipses e dragões presidiu ao desenho da insígnia da Dinastia Qing (ou Ch'ing, de origem Manchú), a última dinastia imperial Chinesa. Será insígnia e a primeira Bandeira Nacional. Esta versão rectangular (aqui ilustrada em escala de cinzentos) foi adoptada em 1889 (Close, Frank, Eclipses ["What Everyone Needs to Know" Series], Oxford University Press, 2019)


Por seu lado, as observações árabes medievais são, segundo
F. Richard Stephenson (Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.456), das mais rigorosas de todo o período pré-telescópico. Ibn Yunus (m. 1009 A.D.), que viveu no Cairo (al-Qahirah), compilou num único tratado (al-Zij al-Kabir al-Hakimi, um manual com tabelas dedicado ao Califa al-Hakim), cerca de trinta observações de eclipses lunares e solares ocorridos no período 829-1004 A.D. Os astrónomos sabiam dos perigos da observação do Sol e al-Biruni (no Kitab Tahdid Al-Amakin..., tratado de geografia matemática do séc. XI) aconselha a observação por intermédio do reflexo na água. No contexto Islâmico, as horas eram muitas vezes identificadas aproximadamente pelas orações diárias: Fajr (amanhecer), Zuhr (meio-dia), 'Asr (tarde), Maghrib (poente) e 'Isha (noite). Num exemplo relatado por Ibn Hayyan em Córdova, data equivalente a 17 de Junho de 912 A.D. (299 da Era Islâmica, A.H.), num eclipse vespertino, as pessoas acreditaram tratar-se do ocaso do Sol (cit. por Stephenson, 1997, p.438; trad. nossa):

"Neste ano, o Sol foi eclipsado e dele tudo desapareceu na quarta-feira (arbe'a) quando faltava uma noite para completar [o mês de] Shawwal. As estrelas apareceram e a escuridão cobriu o horizonte. Julgando que era o pôr-do-sol, quase toda a gente rezou a oração do Maghrib ["poente"]. Depois disso, a escuridão dissipou-se, o Sol reapareceu por meia hora e depois pôs-se." (al-Muqtabis fi Tarikh al-Andalus (vol. III, p.147; Paris, 1937
)

John Steele refere (Observation and Predictions of Eclipse Times by Early Astronomers, ("Archimedes", vol. 4), Kluwer Academic Publishers, 2000, p.107) que os registos são escassos para o contexto, situam-se todos entre os séculos. IX-XI e foram observados por apenas seis fontes: "All of these date from the ninth to the eleventh centuries AD, and were observed by only six different people: Habash, al-Mahani, al-Battani, the Banu Amajur [um grupo de astrónomos que observou em Bagdad e, talvez, Shiraz], Ibn Yunus and al-Biruni."


Quanto ao período europeu medieval, o mesmo Stephenson (1997, ch. 11), considera as crónicas em geral elucidativas na descrição e datação dos fenómenos (acautelando qual a era cronológica utilizada, vide p.378 et seq.). Lavraram-se muitas crónicas monásticas, tão numerosas que raramente foram editadas em compilações e por isso permanecem "escondidas".

Na Europa, antes do séc. XVII e da utilização do telescópio, encontramos poucos registos cronometrados: "Indeed, before the beginning of the seventeenth century AD, only seven astronomers are known to have made detailed timed observations of eclipses: Isaac ben Sid, Levi ben Gerson, Jean de Murs, Regiomontanus, Bernard Walther, Nicholas Copernicus, and Tycho Brahe. This trend was radically reversed during the seventeenth century AD, in particular after the invention of the telescope." (John Steele, Op. cit., p.133)



Eclipses Medievais observados no Noroeste Peninsular e "Portucalenses/Portugueses" em particular


Segundo F. Richard Stephenson
(1997, p.385), os registos (chronicas, annales) identificam, por regra, a feria (dia da semana), obscurecimento e visibilidade eventual de estrelas (por vezes reportando-as "atrás e à frente do Sol", ou seja, a leste e a oeste do luminar). Também se encontra adjectivação expressiva mas vaga, e.g., maximus, universalis, terribilis ou horribilis. As expressões "sol obscuratus est" ou "sol defectus est" são comuns. A duração da obscuridade é muitas vezes exagerada nestes relatos, talvez por inspiração da narrativa da Paixão nos Evangelhos sinópticos (i.e. os que revelam paralelismos e estrutura comum). O de Lucas, em particular, parece atribuir as "trevas" a um eclipse (XXIII, 45). Alguns registos emulam a própria escolha de palavras da Vulgata (ibid.).

Um dos exemplos é o notável eclipse que pode ser vinculado com toda a certeza à data equivalente a sexta-feira, 3 de Junho de 1239 A.D. referido no Livro das Kalendas
do Cabido da Sé de Coimbra, cujo códice original recua aos séculos XIII e XIV (v. Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra). Coutinho transcreve (pág. 435):

"Eodem die tunc feria VI.ª obscuratus est sol et nigerfactus est et in meridiefacta est nox et stelle apparuerunt in ceio sicut solent apparere in nocte, sub era M.ª CCªLXX-ª VIIª (IIIº Nonas Iunii"): "No mesmo dia de sexta-feira, o sol obscureceu-se e enegreceu-se e ao meio-dia fez-se noite e as estrelas apareceram no céu como costumam aparecer de noite, na era [=ano] de 1277
, 3º dia das Nonas de junho.” [trad. nossa].

Importante: o cômputo dos anos usava, na Península, a Era
Hispânica (v. infra), com início em 38, em vigor em Portugal até 1422 e abolida por carta régia de D. João I, sendo então adoptada oficialmente a (já antes eventualmente usada em paralelo) Era de Cristo. Neste caso: 1277 38 = 1239 (AD). O eclipse aconteceu durante o conturbado reinado de D. Sancho II, reinava Fernando III em Leão e Castela e Luís IX (São Luís), rei de França, estava prestes a encetar a Sétima Cruzada.

Existem
diversos relatos contemporâneos (e.g., de Toledo, Montpellier, Cesena, Siena, Florença, Arezzo, Spalato, i.e. Split, na Croácia) ao longo do percurso da totalidade (alguns destes transcritos por Stephenson, Op. cit., 1997, p.397 et seq.). O seguinte relato, em Castelhano, surge nos Annales Toledanos segundos (transcr. Enrico Flórez, España Sagrada: Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII, p.409)
 
"Escurecio el Sol Viernes hora de VI. è duro una pieza entre VI. è IX. é perdió toda su fuerza, è fizóse como noche, è parecieron Estrellas y a quantas, è de si clareció el Sol luego, mas á grand pieza no tornó en su fuerza. Despues cobró su fuerza como la solie aver, Era MCCLXXVII."

Eclipse 3 de Junho de 1239
O mais espantoso eclipse da nossa Idade Média. 5 minutos e 56 segundos de "trevas" em Coimbra. Percurso da totalidade do eclipse de 3 de Junho de 1239. A "idade" da lua era de 28 dias, luna 28 (GUIDE9.1)

Testemunhos diversos também foram coligidos por G. Celoria (Sull'Eclissi Solare Totale del 3 Giugni 1239; Memoria del S. C. ing. Giovanni Celoria, presentata nell'adunanza del 7 gennajo 1875, in: "Memorie del Reale Istituto Lombardo di Scienze e Lettere. Classe di scienze matematiche e naturali", 3, vol. 13, fasc. 2, 1877, pp. 275-302). Eis alguns:
 
«Et sane proditum memoria est, consequenti anno millesimo dugentesimo trigesimo nono solis defectionem conti[gi]sse IIIº Nonas Junii, qui dies Veneris fuit, horâ sexta densissimis tenebris luce commutata, quae defecto solis nobilissima fuit.»
(Io. Marianae [Juan de Mariana, 1536-1624], Historiae de rebus Hispaniae Libri XXX, lib. XIII, cap. I)

Eclipse 1239 transcr. J. de Mariana
Excerto da p.540 de edição de Mogúncia de 1605 da obra de Juan de Mariana, onde se menciona o esclipse de 1239. O autor refere dois ("bis") fenómenos, referindo depoi
s, na sequência, uma informação (atribuida a um Bernardo Guido Aragonius) acerca de outro suposto eclipse no dia 25 de Julho. Reconhece-a espúria, explicando que isso "não podia estar de acordo com as revoluções dos astros".
 
«Entrò el Rey (don Jayme el Conquistador) en la ciudad de Montpellier, jueves a dos de junio del ano de M.CC.XXXIX, y otro dia viernes entre el medio dia y hora de nona escrive el Rey, que se eclipsò el Sol de tal manera, que no se acordavan averie visto tal, porque del todeo fue cubierto de la Luna y se escurecio el die de tal suerte, que se vieron las estrellas nel cielo»
(Zurita, Anales de la Corona de Aragon, lib. III, cap.36)
 
«Annis ter denis bis centum mille novenis
Junius intrabat; cuius lux tertia stabat:
Sol obscuratus fuit, orbis obtenebratus,
In media luce coepit fore Sol sine luce.
In horâ totus fuit moeror a Sole remotus,
Sub feria sexta sunt hec miracula gesta.»
(Annales Caesenates [i.e. de Cesena], Muratori, Rer. Ital. Script., Tomus XIV. p. 1097)
 
«E stando noi nella città di Arezzo, nella quale noi fummo nato, nella quale noi facemmo questo libro, nel convento nostro, la qual cittate è posta verso la fine del quinto climate, e la sua latitudine dall'equatore del die è 42 gradi e quarto, e la sua longitude da occidente è 32 e terzo, uno Venerdi
[sexta-feira], nella sesta ora del die, stando il Sole venti gradi [20º] in Gemini, stando il tempo sereno e chiaro, incominciò l'áire a ingiallare [a "amarelar"], e vedemmo coprire a passo a passo tutti il corpo del Sole, e fecesi notte; e vedemmo Mercurio presso al Sole, e vedeansi tutte le stelle, le quali erano sopra quello horizonte : e li animali si spaventarono tutti e li uccelli [pássaros]: e le beste salvatiche si potevano prendere agevolmente [facilmente]: e tali furo che presero delli uccelli e delli animali, a cagione ch'erano ismarriti [estavam perdidos]; e vedemmo stare il Sole tutto coperto per spazio, che l'uomo potesse bene andare 250 passi: e l'aria e la terra si comenciò a raffreddare [arrefecer]; e cominciossi a coprire e discoprire dal lato d'occidente.» (Ristoro d'Arezzo, Della composizione del mondo, lib. I, cap. XVI)

Eclipse 1239 (Struyck)
N. Struyck elencou este eclipse no seu tratado de 1740: "...à hora sexta o Sol escureceu, de tal modo que o dia se tornou noite e as estrelas apareceram no céu." (Inleiding tot de algemeene geographie, benevens eenige sterrekundige en andere verhandelingen, Amsterdam, 1740, p.130). Acrescenta prolixas referências bibliográficas.


Uma história fascinante relaciona a pequena capela de Sainte-Madeleine, Mirabeau, Provence-Alpes-Côte d'Azur (pesquisável na mediateca POP
: "plateforme ouverte du patrimoine", Ministère de la Culture) e este fenómeno (documentado nessa região, por exemplo em Digne, actual Digne-les-Bains, numa anotação marginal num martirológio coetâneo, v. Celoria, Sull'Eclissi Solare Totale del 3 Giugni..., Op. cit., p.278). A austera construção, muito tempo abandonada, possuiu, numa das pedras do lado esquerdo do arco da porta ("lapis ad laevam arcum portae"), uma breve inscrição (em Latim e antigo Provençal) que assinalava o notável fenómeno, acrescentando uma frase de teor moralista. Mencionada por Pierre Gassendi na biografia de Peiresc (Fabricii de Peiresc, Senatoris Aquisextiensis Vita), lib. IV, p.136 na 3ª edição, Haia [Hagae-Comitis], 1555). Aí, Gassendi refere como Peiresc foi informado da existência desse memorial por um seu amigo, Joannes Gallaupius Castuellis (i.e. Jean Gallaup de Chasteuil), que referiu a existência de registos, nomeadamente eclesiásticos. Foi transcrita pelo mesmo Gassendi na Opera Omnia, Tomo IV, p.373, (Ed. Florentiae), que descreveu o local e o conteúdo da inscrição detalhadamente. Foi mais tarde lida pelo Barão von Zach que publicou essa investigação na sua Correspondance astronomique. A sua visita à capela, então em ruínas, aconteceu na Primavera de 1811 e a respectiva memória publicou-se em 1819 (Corr. Astron., vol.3, p.563; A Gênes [Génova], A. Ponthenier, imprimeur-fondeur); este astrónomo também reacendeu, na época, o interesse na antiga notícia de Gassendi, divulgando-a noutros arquivos, nomeadamente no renomado periódico astronómico do Barão de Lindenau (vol.II, p.490).

Mirabeau, epigr. eclipse 1239      Vestígios da antiga inscrição (fotografia de S. Dumont, 1988). À direita, fotografia recente da capela (fonte: provenceguide.co.uk), sendo destacado por nós o lugar onde esteve registo epigráfico; em baixo, a cópia da inscrição feita em 1811 pelo secretário de von Zach. Numa tradução contemporânea, em Francês: "L'an du Seigneur 1239, le 3 des nones du mois de juin, le soleil s'est obscurci. Réfléchis, prends garde, si tu commences, comment tu finiras. Qui bien fera, bien (trouvera)."

A capela foi classificada em 1928 e intervencionada em 1948. O que aconteceu é pouco claro. O tempo, a erosão ou um "restauro" apagaram o registo? Segundo Simone Dumont e Jean Meeus (Sur les Traces d'une Éclipse (1988), "Astronomie", vol. 102, pp.365-371), o testemunho epigráfico (que acreditam ser original do séc. XIII), terá sido irreparavelmente vandalizado no início dos anos 70 do século passado. Já não existe e não nos foi possível encontrar qualquer estudo, registo gráfico ou fotográfico recente da inscrição, anterior à suposta mutilação.


Interpretação da informação paleográfica

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS CONSULTADAS:
João Pedro Ribeiro, Dissertações Chronologicas e Criticas Sobre a Historia e Jurisprudencia Ecclesiastica e Civil De Portugal..., Tomo II (Academia Real de Sciencias de Lisboa, 1857), v. em especial Dissert. VI, secção VI: "Notas numericas, ou Caracteres empregados nas Datas"; Jesús Muñoz y Rivero, Manual de Paleografía diplomática española de los siglos XII al XVII, Moreno y Rojas, Madrid, 1880; Cesare Paoli, Programma scolastico di paleografia latina e diplomatica..., Firenze, Sansoni, 1889; Arthur Giry, Manuel de Diplomatique, Paris, Librairie Hachette et C.ie, 1894; Adriano Cappelli, Cronologia, cronografia e calendario perpetuo: Dal principio dell'èra cristiana ai nostrigiorni..., (sesta edizione aggiornata)., Milano, U. Hoepli, 1988 (1906); J. M. Cordeiro de Sousa, Apontamentos de Epigrafia Portuguesa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1928; José Vives, Inscripciones Cristianas de la Espana Romana y Visigoda, Barcelona 1942; Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo - Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram..., 2 vols., 1798-99 (3ª ed.; Ed. Critica de Mário Fiúza, Porto, 1965-66); Eduardo Borges Nunes, Abreviaturas Paleográficas Portuguesas, Lisboa, Faculdade de Letras, 1981; Avelino de Jesus da Costa, Normas Gerais de Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos (3ª ed., revista e aumentada, Coimbra, 1993); Mário Jorge Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), [col. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas], Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000, 3 vols., (especialmente vol. I, caps. V e VI); Maria José Azevedo Santos, Ler e Compreender a Escrita na Idade Média, Edições Colibri, 2000; Manuel Romero Tallafigo, Laureano Rodríguez Liañez, Antonio Sánchez González, Arte de leer Escrituras Antiguas: Paleografía de lectura (Instrumenta studiorum; 2), Universidad de Huelva Publicaciones, 2003; Énio de Mesquita Samara (Paleografia, documentação e metodologia histórica, São Paulo, Humanitas, 2010.

- A Escrita e os caracteres utilizados

É importante compreender que a escrita nunca é monolítica, antes viva, assumindo variáveis consoante as influências culturais e estilísticas predominantes, ateliers epigráficos específicos, suportes, técnicas caligráficas e evolução nos traços de construção dos grafemas, etc. Ao longo dos séculos, encontramos estilizações, braquigrafia, i.e. reduções (cada época teve as suas regras de abreviação), letras geminadas, inclusas e sobrepostas, excepções e toda a sorte de variantes. Uso não convencional dos procedimentos "regulares", com prolixo recurso a minúsculas e "barbarismos" diversos.

Usaram-se as
maiúsculas romanas, a chamada caligrafia uncial (Infopédia, dicion.) originalmente ainda sem espaços entre as palavras, de letra grande e arredondada, conservando, quanto ao módulo, características de maiúscula (no sentido paleográfico), i.e. confinável entre duas linhas horizontais (as minúsculas são mais tardias - séc. VIII - e desenhadas com recurso a quatro linhas paralelas que permitem diferenciação vertical) e também as minúsculas. A numeração das datas acompanha as diversas mutações.

Na Península, a conversão de Recaredo, em 589, marca o início de uma colaboração entre a monarquia visigoda e a Igreja, desenvolvida marcadamente ao longo do século VII. Apesar do nome, a letra "visigótica"  evoluiu a partir das modalidades de escrita (cursiva, uncial e semiuncial) romanas do início da Era Cristã. Foi o resultado da evolução local da letra romana e escreveu-se na Hispania e no sul de França (na província eclesiástica da Septimania [parte ocidental da antiga província da Gallia Narbonensis]). Factor de continuidade gráfica com a tradição romana, usou-se cursiva e redonda.


Todas as escritas regionais têm a mesma raíz latina. A escrita "visigótica" consolida-se no séc. VIII, já na chamada Reconquista, e será mais correctamente definida como "visigótica-moçárabe" (littera toletana ou littera mozarabica), porque usada nos códices litúrgicos dos moçárabes de Toledo e, em geral, dimanando de centros do Cristianismo peninsular. Apresenta (tal como as restantes) minúsculas derivadas da "cursiva comum" do sistema pós clássico. No século XI, a substituição da Liturgia Hispánica ou rito moçárabe (também conhecido no passado como "visigótico") pelo rito romano "padrão" determina abandono dessa letra nos textos litúrgicos e o início da influência continental. A escrita "carolígia" ou "carolina", é a minúscula cursiva comum do pós-clássico romano aperfeiçoada (deliberadamente desenvolvida tendo em vista padronizar as práticas de escrita nos imensos domínios do novo "Império Romano": o Carolíngio). Entretanto, acompanhando as mudanças que se verificavam na Europa (novas nações que se consolidavam, cidades com estatutos jurídicos próprios, novas ordens religiosas, universidades, transição artística do Românico para o Gótico, etc.) surge a escrita "gótica", dimanada do norte de França, que foi usada em todo o mundo latino do século XII ao XVII. A letra "gótica" (termo depreciativo posteriormente criado pelos humanistas), também conhecida como minúscula gótica, é o tipo de letra angulosa e com linhas quebradas originada entre os séculos XII e XIII a partir da fragmentação das formas manuscritas da escrita carolíngia. Na Baixa Idade Média (fase final do período), a "gótica" disseminou-se pela Europa a partir dos seus primórdios no norte de França. Será também a modalidade de escrita predominante entre nós até ao início do séc. XV, nas versões "cursiva" (rápida) e "librária". Esta letra vai documentar a "viagem" do Latim ao Português: a gradual transição para o "vulgar" verifica-se entre os séculos XIII e XIV. A chamada "escrita joanina" (emanada da chancelaria do Mestre de Avis) tem como modelo a escrita "Bastarda" (Bâtarde), derivada da gótica, adaptada para o estilo cursivo. No final do séc. XV surge um novo estilo, a chamada "escrita manuelina", que se caracteriza por algumas semelhanças com a escrita "cortesã" castelhana, gótico-rotundo, com iniciais coloridas maiúsculas e com decorações exuberantes, títulos e nomes escritos em vermelho e iluminuras, inclinação predominante para a esquerda, etc. [v. Énio de Mesquita Samara (Paleografia, documentação e metodologia histórica, cap.3), Maria Teresa P. Coelho (,A escrita “manuelina” nas provisões régias quinhentistas. Lisboa, Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 10 (julho-dezembro 2018), 97–109) e Ana Cristina Ferreira (A escrita na legitimação do poder: a letra joanina e a Dinastia de Avis. Contributos paleográficos. Lisboa, Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série, Nº 10 (julho-dezembro 2018), 47–70)].

Escritas - exemplos
Alguns exemplos de escrita: uncial librária, visigótica redonda, carolíngia do séc. IX, gótica librária, humanística redonda e humanística cursiva. (fonte Romero et al., Arte de leer Escrituras Antiguas: Paleografía de lectura, Universidad de Huelva Publicaciones, 2003, excepto exemplo da letra gótica librária: Bíblia Latina de 1407 em exibição na Abadia de Malmesbury; fotogr. Adrian Pingstone)

Como Mesquita Samara refere, no Renascimento os humanistas retornaram a uma escrita que interpretavam como "antiqua" mas que era, afinal, a "carolíngia". Chamar-se-á agora, reinventada, "humanística", com formas mais claras e redondas. Depois, com origem na "gótica" cursiva e influenciada pela "humanística" librária e redonda, surge em Itália uma escrita cursiva que, introduzida no uso tipográfico, foi exportada e está na origem das escritas modernas. Ainda hoje os caracteres oblíquos que reproduzem as suas características são chamados "itálicos".


A Æra  Hispanica (de César ou, mais raramente, Gótica)


"E assi posta a Era de Cesar, e diminuindo trinta e oito annos, restam os annos do nascimento do Senhor." (Gaspar Estaço, Várias Antiguidades de Portugal, 1625, p.36)

Com início a 1 de Janeiro do ano 716 AUC (Ab urbe condita, i.e. da Fundação de Roma) e funcionando de acordo com o cômputo do tempo do calendário juliano, foi instituída como cronologia oficial do reino Visigótico de Toledo. André do Avelar referia esse antigo uso: "Para assinalarem o tempo das escrituras antigamẽte em Espanha, punhão a Era, & assi se acha em muytas Chronicas..." (Chronographia ou Reportorio dos Tempos..., 1602 [1ª ed. 1585], L. I, cap, LXI).

"Era": do Latim tardio "aera", decerto plural de "aes", "aeris" (bronze), sendo que o plural já expendia o sentido de número ou algarismo. (...) Ou seja, é latinismo que no sentido em causa, segundo referências como A. Souter (1949), já se abona na Hispania do séc. IV (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (7ª edição), Segundo Volume (C-E), Livros Horizonte, 1995 (1952), pp.427-8).

Note-se que não se trata de uma "era" qualquer mas sim da "Era" por excelência, pois o termo parece ter começado a ser usado nesse sentido cronológico particular e específico no norte da Península, em torno do séc. V. Segundo A. Giry: "C'est en effet l'ère espagnole (...) qui a été d'abord désignée exclusivement par le mot aera." (Manuel de Diplomatique..., p.88, n.1). A data é habitualmente anunciada pela fórmula "(sub) era..." (e não por "anno..."). A razão da escolha do seu ponto de partida é, em rigor, desconhecida. Quanto à sua disseminação geográfica, foi utilizada na "...Penisola lberica, in Africa e nelle provincie meridionali, visigotiche, della Francia." (Cappelli, Cronologia..., (sesta edizione, 1988), p.8). Foi impossível chegar a uma conclusão quanto à motivação ou acontecimento promotor, tantas as teorias avançadas. As explicações que envolvem o título de Augusto ou a consolidação da Hispania como província tributária revelam debilidades (relacionadas com o momento político romano: no oriente a Batalha de Actium acontece somente em 31 a.C.; por seu lado, a conquista da Península somente é celebrada monumentalmente na Ara Pacis em 9 a.C.). E a chamada "Era" de Augusto começou, como se sabe, em 727 AUC (27 a.C.), quando o Senado outorga plenos poderes a Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus. Santo Isidoro de Sevilha (Hispalis) seguiu a teoria da integração no Império. André de Resende, no séc. XVI, considerava que a sua origem remetia para a partilha das províncias pelo Triunvirato que se formou quatro anos após a morte de César, cabendo a Hispania a Octaviano, o futuro Imperador Augusto. Estaria relacionada com as tabelas Pascais, marcando o início de um ciclo? (v. J. Heller, Ueber den Ursprung der sogenaunten spanischen Aera, in: Heinrich von Sydel, "Historische Zeitschrift", T. XXXI (1874), pp.13-32). Seguindo a geografia e cronologia das inscrições lapidares, José Vives concluía pela origem indígena, Asturiana e Cantábrica: "No cabe duda que allí nació la datación por la era. Por otra parte todas las inscripciones son sepulcrales, carácter que conservarán aun mucho después (lo son todas hasta el año 550), es decir de carácter popular y local. Esto quiere decir que no hay que pensar en que fuera introducida por los romanos para commemorar la conquista o la constitución de una provincia o cosa parecida, tal como fantasearon Hübner y Mommsen. La prueba es que no se ha encontrado en ninguna inscripción de carácter oficial: miliarios, dedicaciones, etc. en toda España, tal como se encuentra el «annus provinciae» en no pocas de Mauretania" (Inscripciones Cristianas de la España Romana y Visigoda, 1942, p.182). De facto, no Levante utilizaram-se os anos consulares [(COSS, Consulibus) ou pós-Consulares (abrev. P.C.), quando a data se referia a um consulado pretérito; os Fastos consulares permitem a verificação destas datas] e os régios até mais tarde, demonstrando o carácter peninsular desta contagem. O romanista Álvaro d'Ors (La era hispánica, Madrid, 1962), argumentou que a escolha da Era se enquadrara na teoria das "Idades" da historiografia de Santo Isidoro, privilegiando, numa perspectiva Cristã, uma data coincidente com a da concessão do título de Imperator a Augusto: o começo do Imperium assinalaria a Idade na qual o único acontecimento efectivamente relevante havia sido o nascimento de Cristo. Segundo Manuel Romero Tallafigo et al. (Arte de leer Escrituras Antiguas: Paleografía de lectura [3ª edición aumentada], p.75) está relacionada com a introdução do calendário Juliano: "se inició el 1º de enero del año 38 antes de Cristo, fecha de la introducción del calendario juliano en la península ibérica".

José Maria Pereira de Lima mencionava duas opiniões quanto ao seu início (Elementos de Chronologia, 1876, p.85): "O primeiro dia d'esta era foi o 1.° de janeiro do anno 31 antes da era christà, segundo outros o anno 38". Contudo, cotejando as datas disponíveis rapidamente se conclui ter sido implementada a última opção (desconhecemos exemplos da primeira).

O que importa sobremaneira é ter sido profusamente utilizada em inscrições em moimentos (sepulturas), na moeda cunhada (e.g., o Maravedi, moeda de ouro peninsular [Morabitino em Portugal] com antecedentes árabes), pelas escrivaninhas e chancelarias régias. Independentemente da adopção de um referencial para a contagem dos anos, existia a complexidade inerente aos diferentes estilos adoptados para o início do ano. Na Península utilizou-se a Era Hispânica (vinculada na sua origem ao 1º dia do Calendário Juliano) e mais tarde a Era de Cristo (cujos anos começariam, segundo Dionysius, no dia 25 de Dezembro), mas o ano começava ao estilo da Anunciação, em 25 de Março.

"En resumen es casi seguro que la Era hispánica nació en la región astúrico-cantábrica en donde se han hallado inscripciones, que la usan, desde fines del siglo III; de allí se iría propagando paulatinamente a las regiones vecinas: a Mérida a finales del s. IV; a toda la Lusitania, a la Bética y Gallaecia a últimos del V, y a la parte occidental de la Cartaginense a mediados del VI. Hasta el tiempo de la Reconquista no penetró en Aragón y Valencia, en donde se hizo corriente, y, sólo esporádicamente, en Cataluña." (José Vives, Inscripciones..., 1942, p.185)

A predominância da datação nesta contagem "ibérica" é esmagadora no corpus das inscrições portuguesas medievais (sendo que alguns registos integram duas cronologias). A seguir temos a utilização do Anno Domini
(começava a 25 de Dezembro ["Estilo do Nascimento"], seguindo Dionysius Exiguus ou, no sistema que virá a prevalecer, a 1 de Janeiro ["Estilo da Circuncisão"]) e, raramente, do ano ab incarnatione Domini ("da Encarnação do Senhor") que começava numa data diferente. Neste último havia dois cômputos, o de Pisa e o de Florença: "o cômputo de Pisa antecipa-se nove meses ao Nascimento de Cristo e o cômputo de Florença começa três meses depois do Nascimento." (Avelino de Jesus da Costa, Normas Gerais de Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos, 2ª ed., Braga, 1982, p.24). Destes, em Portugal, o mais usado foi definitivamente o Florentino. Iniciava o ano na concepção de Cristo a 25 de Março (exactamente nove meses antes da Natividade seguinte), celebração da Anunciação (lat. Annuntiatio), e assim o ano coincidia com o Ano Juliano entre 25 de Março e 31 de Dezembro. Estava desfasado 2 meses e 24 dias do início do ano Juliano.

O próprio Papado utilizou muitas vezes nos seus documentos o referido Calculus Fiorentinus, sistema divulgado pelos Cistercienses, adotado com visibilidade em Florença e Roma, vinculado ao dia 25 de Março (de 753 ab urbe condita, i.e. "da fundação da cidade": Roma) e significando que os dias até 25 de Março pertenciam ao ano precendente. Estilos dependeram dos diversos pontificados, sendo por vezes usados em simultâneo. Entre os séculos XV e XVII, por exemplo: estilo da Anunciação para as bulas, do Natal para outros actos (por vezes o da Circuncisão para os breves). [Não deixa de ser curioso que o Papado seja, praticamente, a última instituição a adoptar a Era de Cristo]. Em Portugal também se chegou eventualmente (e raramente) a usar como referência a celebração da Anunciação ao estilo "Pisano" (adoptado no norte de Itália e sul de França em finais do séc. X mas que depois perdeu visibilidade excepto, justamente em Pisa).

Resumo: em Portugal utilizou-se a Era Hispânica até 1422 (em Castela e Leão até 1383). Todavia, há que considerar que o início do ano era observado em Março e não em Janeiro. É apenas desde a adopção do Calendário Gregoriano (15 de Outubro de 1582) que o ano se começa a contar a partir de 1 de Janeiro. Antes, considerou-se a data do Ano da Encarnação: "C'était toutefois au 25 mars qu'on faisait commencer ordinairement les «années de l'Incarnation», d'un emploi assez fréquent dans la péninsule à partir du XIIe siècle" (A. Giry, Manuel de Diplomatique..., p.125). Assim sendo, é necessário ponderar as datas que caem até 25 de Março (celebração da Anunciação) pois, traduzindo para o nosso cômputo, devem "avançar" 1 ano (sendo que já estarão no ano seguinte, começado a 1 de Janeiro). Março era reforçado, digamos, por ser o mês do equinócio vernal, abertura do chamado "ano das estações" e do astrológico, com início justamente em Aries (convencionalmente a 21 de Março, por exemplo nas regras do cômputo da data da Páscoa).

O indício óbvio do antigo passado Romano do início do ano em Março persiste nos nomes dos meses: Setembro, Outubro, Novembro, Dezembro. Julho e Agosto, antes da renomeados em honra de Júlio César e de Augusto chamavam-se, esclarecedoramente, Quintilis e Sextilis, respectivamente.

Note-se que, na conversão de datas, as "variáveis" relacionadas com o começo do ano somente nos podem afastar 1 unidade do ano correcto, sendo no sistema mais utilizado relevantes apenas quando se interpretam registos do primeiro trimestre de um determinado ano, até à data da Anunciação.]

Para além de "reduzir" o ano em causa para a era que utilizamos (hoje habitualmente designada "Era Comum", CE em Inglês), convém referir outros aspectos...


O R
egisto das Datas - algumas características e peculiaridades (N.B. em alguns exemplos não foi aqui possível no texto reproduzir com exactidão os detalhes gráficos; interpretar como aproximações).

Abreviaturas:
A classificação exposta por Jesús Rivero (Manual de Paleografía diplomática española de los siglos XII al XVII, Moreno y Rojas, Madrid, 1880, p.102), inclui: siglas (e.g., D.N. [Dominus noster]), abreviaturas por apócope (supressão de fonema ou sílaba no final de palavra, e.g., an, apr, kal, sic [annos, aprilis, kalendas, sicut]), abreviaturas por síncope (eliminando segmentos no meio da palavra, e.g., abbi, alla, dns, epc, millus [abbati, alleluia, domini, episcopus, millesimus]), abreviaturas por letras, geralmente vogais, sobrepostas, e.g., aqª, integº, qªnto [aqua, integro, quanto]. abreviaturas por signos especiais não alfabéticos (e.g., a conjunção "et" substituída por um sinal semelhante a um "7" ou pelo "&"; po' [por], etc.), abreviaturas por conjunção de letras "encaixadas" umas nas outras (monogramáticas) e utilização de letras-numerais (o exemplo das letras romanas e gregas é evidente).


J. Vives, detalhe inscr. nº145
Datação que J. Vives interpretou como "δLXXX", ou DLXXX fazendo equivaler o delta ao D. Esta grafia do "D" (500) é comum desde a epigrafia paleocristã. No exemplo: Era 580, i.e. 542 AD

- Antes de mais: quando se lê "era" ou "
...na era de", a palavra "era" deve interpretar-se como "ano" (neste contexto).

- Palavras estavam amiudadamente "reduzidas" (muitas abreviaturas tinham origem taquigráfica) e, nessa circunstância, muitas vezes assinaladas por linha ou, em geral, sinal gráfico sobreposto, que indicava supressão de letras: "É frequente encontrarmos sôbre certas abreviaturas um pequeno traço horisontal, traço que por vezes se parte, ficando os dois fragmentos unidos por um pequeno arco de círculo e que outras vezes (...) nos aparece com a forma de dois crescentes ligados com as pontas para cima" (Cordeiro de Sousa, Apontamentos de Epigrafia Portuguesa, p.21).

- Os numerais cardinais eram por vezes acompanhados de letra(s) sobreposta(s) indicando a terminação.

Numerais terminação (Rivero)
Exemplos de terminações em latim, por Rivero, Op. cit., p.152

"D" cortado (Hubner)
Nas inscrições lapidares, um "D" cortado (que seria obliquamente) significava "Die" (Dia); também se refere a abrev. do plural ("diebus"). Emil Hübner, Inscripriones Hispaniae Christianae, 1871 (índice IX. "Scriptvrae Compendia", p.115). Este "D" antecedido por "I", significava "Idus".

Inscrição Mosteiro de Vairão
Transcrição de uma conhecida inscrição lapidar dedicatória proveniente do Mosteiro de São Salvador de Vairão (Sérgio Paiva, viladoconde.com): IN NOMINE DOMINI PERFECTUM EST TEMPLUM HUNC PER MANIS PALLA DEOVOTA SUB DIE KALENDAS APRILLIS ERA LXXIII REGNANTE SERENISSIMO VEREMUNDU REX (Em Nome do Senhor, foi concluído este Templo pela mão de Palla [antropónimo, acredita-se que seja Dª Pala Froiaz], Devota [Deo-vota, o mesmo que Deodicata, segundo o Elucidário do Fr. Joaquim de Viterbo], no dia 14 das Calendas de Abril da Era [ano] de 73, reinando o sereníssimo Rei Bermudo). Note-se utilização de abreviaturas e linhas horizontais sobrepostas (NE, DNI, K, ER, etc. o "RE" final, não sinalizado, provavelmente devia, em rigor, ser desdobrado como "REGE", ablativo). Data será 1073, equivalente a 1035 AD, reinado de Bermudo (ou Vermudo) III de Leão.

- Tal como nas palavras comuns, pontos eram habitualmente usados como separadores. Aqui separam as diversas ordens (milhares, centenas...): "Nota-se que, quási sempre, entre cada palavra duma inscrição existem uns pontos, três, dois, ou um, conforme os seus caracteres são unciais, góticos, ou latinos. Isto sem um grande rigor, é claro." (Cordeiro de Sousa, p.19). Exemplo seguinte recolhido no chamado "Livro da Noa", grafando data de 1237, 1199 AD).

Data exemplo, separada por pontos

- Dois pontos ou uma espécie de 'til' sobre uma letra substituem "ra", "ar", "ro"... Sobre um "E", passaremos a ler "Era"

Numeral 1000 - variantes
Variantes do numeral 1000: letra capital, uncial, o chamado "T visigótico" e "I" com traço sobreposto, já usado pelos Romanos (exemplos retirados de Rivero, Op.cit.)

- IV (numeral 4) foi sempre (até uma época tardia) escrito iiii ou iiij (prolongado último caractere). De resto, I e J não se distinguiam então no alfabeto. IX (9) era grafado viiii ou viiij.

- Em alguns números, vários xis ligavam-se entre si pois eram escritos sem levantar a pluma (nexos ou ligaduras são as linhas de ligação entre as letras, abundantes nas modalidades cursivas).


- O caso do numeral cinco:
"b=u (=v)", uma confusão típica do latim da Península Ibérica (Vives, Inscripciones..., p.192). Usou-se muitas vezes o "b" em substituição de "v" (5). Noutro exemplo: "IBc" (400), Cordeiro de Sousa, p.37. (O número IB (=IV) é aqui acompanhado por um expoente, que estaria desenhado mais acima, indicando 'centenas', v. infra). Entre nós, o desenho da letra minúscula foi associado a esse número até finais do séc. XVII.

Segundo Ana Cristina Ferreira (que se respalda num exercício não publicado de Eduardo Borges Nunes, de 1979), a sobreposição gráfica entre b e v acentua-se nas práticas da chancelaria régia a partir de finais do séc. XIV: "...o v começa a ser feito com um traço de arranque, da esquerda para a direita, em ângulo consigo próprio, tornando-se cada vez mais semelhante ao b (...) O 5 transforma-se então em b e não num v semelhante a b, como até então, uma vez que no final do reinado fernandino já os traços de ataque dos v deixam de ser simples traços de ataque e passam a ser traços constitutivos da própria letra..." (A escrita na legitimação do poder: a letra joanina e a Dinastia de Avis. Contributos paleográficos. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série, Nº 10 (julho-dezembro 2018), 47–70; pp.62-3).

- O famigerado X' (dez aspado ou plicado), usado praticamente durante um milénio (exclusivamente na Península), equivalia (antes do séc. XIV) a XL (40), aparecendo com variadas e por vezes apenas vestigiais plicas e já confundindo muitos transcritores do passado. O seu desconhecimento resultou em muitas datações erradas (geralmente em 30 anos). Segundo Vives (ibid., p.186), não era mais do que uma simplificação de "XL", com os traços do L muito reduzidos. Detalhe curioso: num período medieval tardio, o X aspado derivará para um "R" nas datações portuguesas da 2ª Dinastia, com o mesmo valor de 40 (e.g., ...na era de mil iiic Rii anos [1342]).
Dez "aspado"
X (dez) aspado (Vives, Op. cit., 1942)

- Pode encontrar-se o chamado "L uncial", com desenho semelhante ao actual "2", utilizado com o valor do numeral 50, e.g., "Era | Mª | CCª | 2XXX" (1280ª). Referindo o acervo epigráfico, Barroca afirma: "A repartição por centúrias denuncia, (...), que estamos perante uma forma que alcançou particular sucesso ao longo do Séc. XII e particularmente do Séc. XIII, resumindo-se a um caracter meramente excepcional no Séc. XIV." (vol. I, p. 232). Os últimos exemplos detectados (no registo epigráfico) por Barroca são de 1329 (ibid., p.231).

S. Martinho de Manhente: L uncial
Epígrafe da Igreja de São Martinho de Manhente: ao centro, o “L” normal do texto (no nome GUNDESALVVS), diferente do "L" uncial da data (que parece o nosso "2"), ambos destacados por nós. "ERA:M:C:2", i.e. 1150, que será 1112 AD (Mário Jorge Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa, Vol. II Tomo I, p.156; estampa no vol. III, p.320)

- Vernacular, por extenso, ganha visibilidade e participa do registo da data em conjunto com os romanos (e.g., "E na era de mil e duzentos e xxxbij" [1237]).


- Recorreu-se frequentemente a quantificadores discretos (
especificamente a ordinais) e "adjectivos e advérbios distributivos" (Giry, Manuel de Diplomatique..., p.92). Em lápides antigas utilizou-se "a" ou "A" (género feminino), e.g., "ERA Ta XXA", (era 1020ª, milésima vigésima). Repare-se no uso de um caractere similar a um "T" (que foi chamado "T visigótico") equivalendo a M (mil), cujo desenho pode, em certas inscrições, sugerir um "D" (500); a sua utilização é entendida como reveladora de arcaísmo e de moçarabismo (v. Barroca, 2000, vol 2, p.38). Exemplos mais recente: "Sub era millesima ducentesima trigesima septima..." (Livro da Noa); "...ata a era de mil IIc xxxbiiiº ano foram as chuyvas tantas..." (Crónica de 1419).

- Também se usou, em inscrições mais antigas, uma forma inversa na data,  e.g., ER XXXIII post T (1033)

- Tornou-se comum, em muitos códices, as centúrias serem registadas por unidades acompanhadas por um pequeno significador dos centos, em expoente,  e.g., mil llc xxxvbii [1237]. Nos séculos XIV e XV foi comum usar traço sobreposto.

- Outras situações que podemos encontrar: "BiS" ou "BIS" - 2 dezenas, "ter(CETU)" - 300, etc.


- Na numeração do ano, a indicação do milhar é muitas vezes omitida, por redundante (
particularmente no séc. XI, após passagem do 1º Milénio), Ou seja, apenas se grafavam os anos do século corrente.

- Por vezes a indicação de que se usou a era de Cristo surge indicada abreviadamente Xpo, de "Ih[e]su Xpo" (Jesus Cristo), herança da grafia grega. Também se encontra mais tarde "ANNO DE CHRISTO", "Era do Salvador". etc.

Chrismon
Variantes do Chrismon, Cristograma ou monograma de Cristo (baseado nas letras "Chi e Rho"), sobreposição de XP (Rivero, Op. cit., lâmina 3ª)

- Provavelmente mais "arcaico", e raramente encontrado, temos o "episemon" (ς), assim (impropriamente) chamado devido à semelhança gráfica com uma letra-numeral de origem grega (o digamma), equivalendo a 6. Segundo Mário J. Barroca, "Apesar de ser conhecido da série epigráfica paleocristã portuguesa (desde 527 ou 528 [...]), não temos, na Epigrafia Medieval Portuguesa (Sécs. IX a XV) nenhum exemplo de utilização desse nexo." (Epigrafia Medieval Portuguesa..., vol. I, p.227). Também se utilizou muito raramente o  ζ (Zeta), letra grega que valia 7 enquando numeral.

Giry pp.94-95
A. Giry, no seu Manuel de Diplomanique (pp.94-95), elenca algumas peculiaridades peninsulares, como a maneira de registar os milénios recorrendo ao "l" com traço por cima, o "a" no final, o "T" equivalente a "M" ou o "X" aspado. Contudo, nunca nos deparámos com os dois "X" sobrepostos.

Romanos paleografia - Borges, 1981
Variantes  [indicadas por a), b), c)...] dos numerais romanos equivalentes a 40, 50, 90, 100, 300. 500 e 1000, na nossa paleografia (E. Borges Nunes, Abreviaturas Paleográficas Portuguesas, Lisboa, F.L., 1981, p.118)

- Finalmente, há as "datas caprichosas", na expressão de João Pedro Ribeiro. Complicam a leitura com as suas extravagâncias rimadas em versos heróicos, entre outros expedientes.

N.B.: Verificam-se alterações ortográficas (particularmente a partir do séc. XII), com letras que substituem outras por influència do vulgar (e.g., "c" por "t" [nunciare por nuntiare, graciam por gratiam]); também a omissão do "h" (e.g., unc por hunc) ou o uso supérfluo de outras (e.g., esglesia por ecclesia, Peydro por Pedro), entre inúmeras outras alterações. Sinais de correcção: ponto debaixo de uma letra indicava que havia sido incorrectamente escrita e devia ser suprimida. Também se usava linha horizontal a riscar. Omissões inadvertidas eram grafadas na margem, com linhas a indicar o sítio da palavra.



- Datas: sistema romano de registo e contagem dos dias

Neste sistema, por muito tempo utilizado no Ocidente latino, a contagem dos dias era feita “para trás”, a partir de três "marcadores" ou dias pivotais: Kalendae, Nonae e Idus. E contava-se inclusivamente, i.e. também o próprio dia onde a contagem começava. [v. tabela Calendário Juliano, .PDF 477KB]
   - Kalendae (Kalendae, dies Calendarum ou Kalendarum, as Calendas), abrev. Kal., o primeiro dia de cada mês.
   - Nonae (Nonas), abrev. Non. Nono dia antes dos Idos, contando este último. As Nonas caiam no quinto dia do mês, todavia no sétimo em março, maio, julho e outubro.
   - Idus (Idos), abrev. Id. ou Idib., pelo ablativo Idibus. Os Idos eram a 15 de março, maio, julho e outubro, a 13 nos restantes meses (relacionados com a localização das nonas).
(O dia anterior a estes marcadores era o Pridie, abrev. Prid.)


Dias - sistema romano
"...os mezes a quantos dias trazem as Kalendas, nos, idus." (Manoel de Figueiredo, Chronographia Reportorio dos Tempos..., Lisboa, Jorge Rodriguez, 1603, fol. 15)

- É também importante, como vimos, acautelar a data convencional do início do ano. Pode verificar-se diferença de uma unidade pois o ano começava em Março (era também o mês vernal, análogo ao Nisan hebraico, início de Aries e do "veraõ" [i.e. primavera], que antecedia o estio. Assim, por exemplo, um eclipse documentado em Janeiro ou Fevereiro de determinado ano (como um eclipse da época de Camões que veremos adiante) pode, afinal, situar-se no ano seguinte do nosso cômputo.

- O sistema romano clássico previa duas possibilidades, 1 de Janeiro e 1 de Setembro, sendo a primeira o início do ano civil, 1º dia do ano no Calendário Juliano. Mas a data de 1 de Março era simbolicamente utilizada por se tratar do mês do aequinoctium, início do círculo zodiacal.

A partir de finais do séc. XIII já começamos gradualmente a testemunhar o abandono do sistema romano e a indicação do dia na sequência do respectivo mês, e.g., "...XVIII:DIAS:ANDADOS:DOYTUBRO:..."

- Ter em conta a
feria (dia da semana), argumento muitas vezes incluído e facilmente confirmável.

- Atentar na eventual informação complementar de carácter litúrgico e hagiográfico contextualizável: elementos do cômputo, celebrações litúrgicas e santos venerados eram por vezes mencionados (
v. resumo, .PDF com definições, tabelas, ciclos do ano litúrgico, calendário e santoral, bem como a nossa pág. elementos do cômputo). No latim medieval e tardo-medieval, a expressão da data tende a seguir o modelo da linguagem vulgar, e.g."Dies solis proxima ante festum omnium sanctorum, anno 1496" (domingo imediatamente anterior à  celebração de Todos os Santos, ano de 1496). É adequado consultar kalendarium coevo, preferencialmente utilizado na região, diocese ou província eclesiástica. O Martyrologe Universel de Chastelain continua a ser uma preciosa referência geral.

Alguns santos eram celebrados em diferentes
datas. A mais comum era a data da sua morte ou martírio (natale, i.e. o "nascimento celestial") mas podia ser a do nascimento concreto, a "recuperação" das relíquias ou, frequentemente, a sua transladação (A. Giry, Op. cit., p.155). Dioceses diferentes podiam celebrar o mesmo santo em datas diferentes. Há notórias variantes nos nomes dos santos, quando vertidos para língua vulgar.

A ordenação dos domingos da Quaresma ou do Advento não seguiu uma regra uniforme. Dias podiam ser contados para trás, da Páscoa (Pascha, Paschalis dies, Resurrectio) ou do Natal. A prática medieval preferiu muitas vezes numerar os domingos depois do Pentecostes a partir do Domingo da (Santíssima) Trindade (o primeiro a seguir à anterior celebração). No uso comum, os domingos eram quase sempre referidos através dos temas das respectivas leituras do Evangelho que lhes estavam associadas ou pelo intróito, canto de abertura da missa (deste modo, os quatro domingos do Advento eram designados: Ad te levavi, Populus Sion, Gaudete e Memento nostrum Domine). Em ambientes monásticos, encontra-se frequentemente a designação dos domingos em função do primeiro versete ou responso do primeiro Ofício do dia em causa no breviário. Nos sacramentários, evangeliários ou leccionários mais antigos, os domingos do segundo semestre são muitas vezes contados a partir de uma data fixa, nomeadamente a celebração dos Apóstolos Pedro e Paulo, 29 de Junho segundo uso romano.


- Os elementos foram usados pelos computistas na construção do calendário e na articulação entre o ano litúrgico e o civil. A Epacta, a Indicção e outros parâmetros figuram por vezes, particularmente entre os séculos X e XIII, entre os definidores das datas. Também eventualmente o dia da lunação (i.e. a "idade da lua", em dias). De facto, uma data podia ser completada com elementos do cômputo
eclesiástico ou referências às celebrações litúrgicas ou aos dias da veneração dos santos. Dois exemplos, em excertos transcritos por J. P. Ribeiro (Dissertações Chronologicas...):

1) Carta de doação do Couto de S. Faustino (na Régua) por Dª Teresa ao bispo do Porto, que data: "Era 1165, et quotum III. Nonas Septembr. Indictione 5.ª Epacta 17 Concurrentibus 5. Luna 24. anno Incarn. Dominic. 1127; Pontificatus autem Domini Hugonis, ejusdem sedis Episcopi, anno 14." (Tomo II, p.12)

(Era [Hispânica] de 1165, aquando do dia 3 das nonas de Setembro, indicção 5ª, Epacta 17, Concordante [parâmetro dos Concurrentes] 5, [idade da] lua 24, ano da Encarnação do Senhor 1127; 14º ano do pontificado de D. Hugonis [Hugo, i.e. Hugues, pois seria de origem Francesa] nessa sede episcopal, que ocupou até 1136, ano em que faleceu)


Giry - elementos para 1127
Montagem a partir da "Table Chronologique" de A. Giry, com parâmetros para 1127 A.D. Pela letra dominical ("B") conhece-se facilmente  a feria (neste caso foi um Sábado)

Registo com muita informação. Epacta permite explicar um detalhe interessante. É indicada a 17, enquanto fórmula e tabelas (v. supra) indicam epacta 6. Não há erro: uma vez que a data é 3 de Setembro (3º dia das Nonas), a epacta já havia sido actualizada
no início desse mês ("...september mutat epactas", vestígio da origem deste argumento no Calendário Alexandrino). Portanto; 6 + 11 = 17 (11 dias é o incremento anual). A "idade da Lua" (=24 dias) também está correcta, como se pode confirmar (por exemplo) num "Calendário Lunar Perpétuo" (v. figura seguinte), a  partir do Áureo Número desse ano (=7, cf. coluna "Nombre d'Or" na tabela acima).

Excero de Calend. Lunar Perpétuo
Excerto de um calendário lunar perpétuo (original © 2013 IRHT). A "idade" da Lua no dia 3 de Setembro num ano com Áureo Número 7 = 24 (dias), v. destaque.

2) Dia identificado pelo santo nele venerado: "...no anno da Encarnação 1148, 18 do Reinado do mesmo Soberano, e 40 de sua idade: que este entrara na mesma cidade no mez de Outubro do mesmo anno, dia de S. Crispim." (ibid., p.10)

Tal como noutro registo que refere "...in Crispini quoque festo", trata-se do dia 25 de Outubro, atestado em inúmeros calendários e santorais. Ver referência seguinte in: L'Art de Vérifier les Dates... (edição de 1783), Tomo I, p.65:

Referência a S. Crespim

Outro exemplo (Chronicon Lamecense, fol. 1v.): "Ciuitas Lamecensis capta fuit per manus fernandi Réegis in die sancti saturnini". Neste caso, refere-se a conquista de Lamego aos Mouros por Fernando Magno, rei de Leão (no ano equivalente a 1057 AD). Este excerto refere-se ao dia específico, indicado pelo santo correspondente: "...in die sancti saturnini". Remetemos para o nosso resumo, que inclui um calendário onde se pode encontrar um "Sadorninho" (Saturnino).



Indictio

A Indicção Romana não está especificamente relacionada com o cômputo mas sim com a cronologia.
Foi originalmente utilizada para efeitos de tributação ("Indictio Tributaria"). Como sempre, houve variantes. O sistema perpetuado no Mediterrâneo oriental utilizou o início tradicional do ano grego a 1 de Setembro. É a Indicção "grega", "constantiniana" ou "constantinopolitana" O mundo latino seguiu um ano indiccional a começar a 1 de Janeiro ("imperial" ou "ocidental"). Outros computistas começavam a  25 de Dezembro, a 24 de Setembro (Beda), etc. É apenas um parâmetro que se disseminou pelo uso nos documentos papais, que não se relaciona com os elementos do cômputo e que, por si, não permite situar uma data inequivocamente. Remanescente do Imperium, a Indicção surge nas antigas Tabelas Pascais, adaptada aos anos do calendário Juliano. O ciclo de 15 anos foi utilizado nas bulas papais, documentos públicos ou diplomáticos. Segundo Adriano Cappelli: "...divenne una delle più importanti note croniche dei documenti, tanto in Occidente che in Oriente." (Op. cit., 1988, p.6). Já a Epacta (Adjectiones lunae) era importante na determinação litúrgica da data da Páscoa no calendário Juliano. O seu número diz-nos a "idade" da Lua (em dias) no dia 1 de Janeiro, ou seja, o número de dias que medeia entre o último novilúnio (Lua Nova) de Dezembro e o dia 1 de Janeiro. Os Dies concurrentes, concurrentes septimanae, também chamados “epactas solares”, estabeleciam, para determinado ano, o número de dias (entre 1 e 7) "supérfluos" que sobravam das 52 semanas (hebdomades) completas do ano antecedente. Têm uma correspondência directa com as (mais recentes) letras dominicais. Ambos expedientes utilizados paraconhecer a feria (dia da semana).

Ver tabela (.PDF, 543KB) dos novilúnios para cada ano do ciclo Metónico de dezanove (conhecendo o nº de ordem nesse ciclo: o chamado Áureo Número; v. Golden Number, Wikipedia EN,) no Calendário Juliano. Útil quando o dia da lunação (e.g., luna decima) é indicado num documento. A partir da data da Lua Nova (= início da lunação) será fácil conhecer a "idade" (convencional) ou fase da Lua para qualquer outro dia.


-
Hora do fenómeno: o chamado "passo do sol" era, para os autores pré-modernos, do meio-dia ao meio-dia seguinte, podendo eventualmente condicionar verificação de ou outro detalhe (relacionado com a hora do fenómeno).

Utilizavam-se horas sazonais (12 diurnas e 12 nocturnas, diferentes na sua extensão dependendo das estações do ano e latitude do lugar). As horas canónicas eram referência: Matinas
, Prima (aurora), Terça, Sexta (meio-dia), Nona, Vésperas (pôr-do-sol) e Completas. Eram anunciadas pelo toque dos sinos. A contagem de cada intervalo (até ao advento dos relógios mecânicos no séc. XIV) podia ser medida pela clepsidra (relógio de água), ampulheta, vela marcada ou até por orações ritmadas (Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues).

- Nos relatos mais técnicos (tendencialmente mais recentes), é comum encontrar alguma informação posicional, nomeadamente o signo em que o Sol estava e o asterismo, "imagem" ou estrelas entre as quais se encontrava, em corpo (os signos do zodíaco tropical há muito não coincidem com as "imagens" que lhes deram os nomes), devido à precessão ou "antecipaçam" dos equinocios (consultar precessão e pág. Mapas).

Aries - Figueiredo, 1603
O sector zodiacal alocado ao signo Aries (o Carneiro) e a "imagem na oitava esfera" das estrelas da constelação na Chronographia de Manoel de Figueiredo, 1603 (note-se símbolo que assinala o início do signo Taurus junto da linha graduada que representa a Eclíptica)

Dizemos "imagens" porque "constelação" era algo diferente: uma relação entre corpos celestes, uma interacção, aspecto (e.g., conjunção, quadratura, trino), etc. que acontecia num determinado contexto, data ou intervalo. A "Figura" era o "mapa total", o horóscopo gizado para determinado momento.

Como antes referido, a magnitude de um eclipse era medida em "digitos" (dedos), doze avos do diâmetro.

N.B.: Quando era mencionada a "cabeça do dragão" (Caput draconis) ou sua Cauda, pretendia-se referir os nodos lunares, onde a Eclíptica e a órbita da Lua se intersectam e onde acontecem os eclipses. Não há qualquer relação imediata com Draco (a constelação boreal).


[Na aferição cronológica e astronómica foram utilizados os programas GUIDE 9.1 (projectpluto.com) e Clock 1.2 (conversor de datas incluído no pacote SkyClock - "An electronic ephemeris" -, 1991, de Pierre Brind'Amour - Departmento de Estudos Clássicos da Universidade de Ottawa); em linha: Millesimo (Denis Muzerelle, IRHT - Institut de recherche et d’histoire des textes) e o sítio EclipseWise.com, de Fred Espenak]


Na investigação dos "nossos" eclipses, vamos recorrer principalmente à tradição dos annales, relatos em forma de seriação anual dos acontecimentos, numa lógica memorialística.
As origens da tradição remontam, pelo menos, ao século VIII e às notícias anuais inscritas em tabelas de cômputo pascal. Segundo Pierre David (1947), Annales Portugalenses Veteres, Revista Portuguesa de História 3, p.87: "Les chroniques continuent ou du moins imitent la Chronique universelle d’Eusèbe de Césarée (324) portée jusqu’à 378 par saint Jérôme". Os diferentes relatos revelam frequentemente muitas coincidências na descrição e vocabulário, o que é apanágio da prática analística e, posteriormente, cronística.

Séculos mais tarde, com o advento dos modernos estudos paleográficos e historiográficos, surgem úteis compilações. Os conhecidos
Portugaliae Monumenta Historica [PMH], coligidos sob a orientação de Alexandre Herculano, resultaram da recolha e publicação de fontes e documentos dispersos pelos cartórios conventuais do país, em abandono desde que em 1834 fora ordenada a extinção das Ordens religiosas. Incluem um conspícuo contributo conimbricense. De facto, nos registos analísticos portucalenses e portugueses destacam-se os dos cónegos crúzios do scriptorium do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Quando aqui mencionamos o chamado "Chronicon Conimbricense" (o acervo que ao longo dos séculos dimanou de Santa Cruz e dependências) respaldamo-nos principalmente nas compilações posteriores, como as incluídas no España Sagrada... de Enrique Flórez (no séc. XVIII) ou mais tarde, nos PMH.

Na compilação España Sagrada: Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII (pp.301-4 da "segunda edición" de 1799), Flórez é muito crítico, referindo que o acervo conimbricense se trata de cópia de várias cópias, fragmentado e coligido sem diferenciação nos títulos ou sequência. Problemas que Antonio Caetano de Sousa não havia resolvido na sua recolecção (integrada na obra Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Lisboa, 1739, Tomo I, Livro III, Num. 10., 375 et seq). O historiador e teólogo espanhol também aponta lapsos nas datas (que compara com as exaradas noutras fontes), inversão de acontecimentos, "desordem" no uso do Latim e do vulgar (Português) e o que considera um "erro persistente" da utilização do romano "X" por "XL" (F. desconhecia o X aspado). Mas reconhece que o chronicon possui coisas notáveis que não se encontram noutros textos. Por seu lado, na introdução (em Latim) aos PMH, Alexandre Herculano refere o MS. autógrafo a que se intitula "Chronicon Conimbricense" e que chegou até nós arquivado de várias maneiras. Depois refere o "evasivo" livro dito "das nonas" ou "da sacristia", anexado a um saltério (livro litúrgico com salmos e sermões) que, após separado, foi pelos próprios monges tão cuidadosamente guardado (no séc. XVI) que se chegou a acreditar perdido para a posteridade (perditum posteri crediderint). Adiante refere que a crónica conimbricense deve ser entendida como uma colecção ou quadro de crónicas diversas e dispersas que foram transmitidas por registos, ou por tradição, ou mesmo pelos escritores que as recolheram pela fé da memória. Mas acredita que, considerada na plenitude, possui estrutura enquanto recolecção, desde o material mais antigo até aos fragmentos coligidos e integrados no séc. XIV:
 
"Chronicon Conimbricense, si univeraliter consideretur, variarum, ac dispersarum rerum chronicorum, quae a monumentis, vel traditione, vel etiam scriptorum eas res colligentium fide memoriae mandata sunt, collectio potius vel compages credendum est: in cuius tamen non solum prima parte, quam antiquius scriptam diximus, sed etiam in illa saeculo XIV collecta, nec fragmenta, quae promiscue complectitur nec articuli, vel versiculi invicem dividuntur."

Vetusto exemplo do edifício cronístico conimbricense, o códice conhecido como "Livro da Noa" (Libri Nonae, saeculo XII vel ab initio XV), "Livro das Eras do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra" ou "Livro da Sacristia" (que no formato actual resulta de uma encadernação, feita no séc. XVII, de livretes previamente apensos a um um saltério) é considerado a mais antiga crónica medieval com entradas em Português. As suas entradas relatam sucintamente o que foi acontecendo de notável e relevante. Escrito em Latim e em Português, os registos-base mais antigos podem recuar ao séc. IX. Entradas foram depois copiadas ou redigidas entre o início do séc. XIII e os XIV e XV (o último registo data de 1406: "Era 1444"). Muitos registos replicam-se noutras compilações, outros são exclusivos. É conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (AN-TT):  Cónegos Regulares de Santo Agostinho, Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, liv. 99 (refª PT/TT/MSCC/L099), v. digitalizações.

Segundo a ficha técnica do Arquivo Nacional, o primeiro registo reporta-se ao ano 317; o último registo do f.27 refere-se a 1406 (1444 da Era Hispânica), Como Antonio Caetano de Sousa (que o transcreveu) explicou, designa-se "...Livro das heras [eras] de Santa Cruz de Coimbra, chamado vulgarmente das Noas, o qual antiguamente estava na Sachristia, e se rezava por elle a Noa [Nona], por estar junto com o Psalterio desta hora, q[ue] no fim tinha as heras, que se seguem , escrittas em vinte e oito folhas de Pergaminho de Flandes antiguo, encadernado em duas taboas, das quais metade estâ coberta de carneira, que parece vermelha." [D. Antonio Caetano de Sousa, Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo I, Lisboa Occidental, Na Officina Sylviana da Academia Real, M.DCC.XXXIX (Livro III, Num. 10., p.375)


Os seus textos foram copiados, total ou parcialmente, desde o século XV, e mais tarde publicados em formato impresso por António Caetano de Sousa, Enrique Flórez, Alexandre Herculano (nos PMH) e por outros editores mais próximos de nós (Alfredo Pimenta, Pierre David ou António Cruz, que eventualmente citaremos).


Voltando aos fenómenos que nos ocupam, recuemos até ao séc. V através dos registos de um bispo cronista do noroeste peninsular, Idácio ou Hidácio (latiniz. Hydatius) de Chaves (Aqu
æflaviensis) ou de Limica (na região de Ourense na Galiza). Hydatii Gallaeciae episcopi Chronicon: narração da desagregação do poder romano e das invasões germânicas entre 379 e 468. Foi mencionado no Agiólogo Lusitano de Jorge Cardoso, estudado e editado, entre outros, pelo historiador Marcelo Macías y García e o seu chronicon pode ser encontrado na Patrologia Latina (Tomus 51) de Jacques-Paul Migne. Edições mais recentes por J. Cardoso (Crónica de Idácio: Descrição da invasão e conquista da Península Ibérica pelos Suevos (Séc. V), versão e anotações de José Cardoso, Braga: Universidade do Minho, 1982), J. Campos (O bispo de Chaves, su cronicón. Introducción, texto crítico, versión española y comentario por Julio Campos. Salamanca: Ed. Calasancias, 1984) e César C. Colodrón (Cronicón de Hidácio, Editorial Toxosoutos, Galiza, 2004). Utilizou-se aqui a excelente edição bilingue (Latim-Francês) de Marc Szwajcer, disponível no sítio de Philippe Remacle).

É o Cronicón mais antigo desta região e recorre a três cronologias:
- a Era das Olimpíadas (suputação de períodos de quatro anos que começava na primeira Lua Cheia depois do Solstício de Verão, ou seja, por volta do dia 1 de Julho, data habitualmente considerada pelos cronologistas, v. Louis de Mas Latrie, Trésor de Chronologie d'Histoire et de Géographie pour l'étude et emploi des documents du Moyen Age, Paris, Victor Palmé, 1889, pp.4 et seq.); na prática a contagem foi ajustada pelos cronologistas ao início do ano civil (1 de Setembro no ano Grego). O sistema foi oficialmente abolido por Teodósio, o Grande, em 395 d.C.);
- a Era Hispânica;
- eventualmente, a do paradigmático Eusébio de Cesareia, circa 265-339, o primeiro historiador do Cristianismo (baseada na data do nascimento de Abraão, com início a 1 de Outubro de 2015 a.C.),

Seguem-se os eclipses solares mencionados (quatro foram totais e o último anular), geralmente com informações relativamente precisas. A equivalência aos anos da era comum foi feita pelo editor a partir da sequência disponível no texto, informações acerca da feria (dia da semana) e cruzando datações.


N.B.: na simulação astronómica dos fenómenos recorreu-se ao programa GUIDE 9.1 (projectpluto.com) reflectindo a maior precisão que actualmente podemos conseguir.

- "Solis facta defectio tertio idus Novembris feria secunda"
. 11 de Novembro de 402 AD (na 295ª Olimpíada), no terceiro dia dos Idos de Novembro, segunda-feira. Relato correcto, excepto na feria: foi uma terça-feira. Mas houve eclipse, faixa de totalidade sobre os Pirinéus, sudoeste de França, Sardenha, Cirenaica e Egipto.

- "Solis facta defectio die decimo quarto kal. Augusti, qui fuit quinta feria.". 19 de Julho de 418 AD (na 299ª Olimpíada). No décimo quarto dia das Calendas de Agosto. Confirma-se, excepto na feria: foi uma sexta-feira. Faixa do eclipse atravessou a península na direcção da Córsega, Itália e Balcãs.

- "Solis facta defectio die nono kal. Januarias, qui fui tertia feria"
, 23 de Dezembro de 447 AD (na 306ª Olimpíada), Nono dia das Calendas de Janeiro, terça-feira. Confirma-se, faixa percorreu a península, grosso modo a norte do Tejo, seguindo para a Biscaia, França e Alemanha (ou Gália e Germânia se preferirmos).

- "Quinto idus Junias die, quarta feria, ab hora quarta in horam sextam, ad speciem lunae quintae vel sextae, sol de lumine orbis sui minoratus apparuit"
(No quinto dia dos idos de Junho, quarta-feira, da quarta à sexta hora, o sol apareceu diminuído com apenas uma parte do seu disco luminoso, como uma lua no quinto ou sexto dia). A comparação com a dimensão em dias ("idade") do crescente lunar constitui um paralelo interessante. Fenómeno seria a 9 de Junho de 459 AD (na 309ª Olimpíada) mas esta data está errada. Como o editor judiciosamente sugere, só poderá tratar-se do fenómeno de 28 de Maio de 458. Neste caso será o quinto dia, não dos Idos mas das Calendas de Junho, uma quarta-feira. Foi parcial na Hispania como relatado, faixa percorreu a Inglaterra a caminho da Dinamarca e do Báltico.

- "Decimo tertio kalend. Augusti die, secunda feria, in speciem lunae quintae sol de lumine suo ab hora tertia in horam sextam cernitur minoratus."
(No décimo terceiro dia das Calendas de Agosto, segunda-feira, o sol foi visto diminuído na sua luz, da hora terceira até à hora sexta, aparecendo como uma lua de cinco dias). 20 de Julho de 464 AD (na 311ª Olimpíada), Confirma-se, fenómeno anular, faixa "entrou" na Bretanha e continuou para a Europa Central e de Leste.

Idácio - Chronicon
Idatii Episcopi Chronicon..., numa edição parisiense de 1619

Von Zach (Corr. Astron., vol.3, p.560) assinala uma totalidade na Península, já no séc. VII. Descreve como J
oannes Vasaeus Brugensis (João Vaseu entre nós, humanista Flamengo), após compulsar registos de uma antiga crónica do "Bispo Isidorus Pacensis" [trata-se da chamada Crónica de 754 ou Continuatio Hispana...; anón., atribuída no passado a um suposto bispo de Beja, Pax Julia (daí "Pacensis"), personalidade de outro modo desconhecida], transcreveu um eclipse nestes termos: "Eodem anno solis eclipsis, & stellae in meridie visae, Hispaniam omnem territaverunt" (No mesmo ano, eclipse do sol e as estrelas viram-se ao meio-dia, e toda a Espanha ficou aterrorizada).

Vasaeus, p.427
A breve notícia de Vasaeus no seu Rerum Hispaniæ Memorabilium Annales (livro dedicado ao Cardeal D. Henrique), Colónia, 1577, p.427. Previamente editado em Salamanca em 1552.

A data específica não é mencionada mas a crónica é sequencial, sendo fácil circunscrever intervalo em causa. Os cálculos retrospectivos (von Zach refere os de um tal Wurm, de Estugarda) comprovaram que só pode ter acontecido no dia 12 de Abril, cedo, durante a manhã
(talvez meridie esteja aqui no sentido retórico de "em pleno dia", pondera o barão). O mapa seguinte permite confirmar que, no que virá a ser território português, totalidade abrangeu (grosso modo) as actuais regiões da Estremadura, Ribatejo e Beira Interior.

Eclipse 12 de Abril de 655
Parte do percurso da totalidade do eclipse de domingo, 12 de Abril de 655 (GUIDE9.1
)

Seguidamente, o mesmo von Zach acrescenta outro relato que afirma ter encontrado no De Rebus Hispaniae (lib. II, cap. XXII) de Roderico [Rodrigo Jiménez de Rada], Arcebispo de Toledo: "hujus temporibus eclipsi solis, stellae meridie apparentibus omnis Hispania territarum". A compilação é da primeira metade do séc. XIII, em nove livros, e colige informações de diversas fontes, desde as góticas até outras provenientes do Al-Andalus. Quanto ao eclipse, os detalhes são escassos e von Zach infere que tenha acontecido "vers l'an 695" (em torno do ano 695).

De Rebus Hispaniae, ed. Valverde, p.72

O nosso autor cometeu um erro de palmatória; tomou a data de DCLXXXXV no início desse capítulo como sendo da Era Cristã e não, como se usava, da Era Hispânica. Os cronologistas já o sabiam e explicavam. Segundo Calvisius: "Datis igitur annis ad æram Hispanicam numeratis, si anni 38. ipsis subtrahantur, siunt anni æræ Christianæ" (Calvisius, Op. chron., cap. XLIV). Scaliger [Escalígero] (De Emendatione Temporum [edição final de 1592]) referiu que basta acrescentar 38 anos aos anos de Cristo (Epocha estabelecida por Dionisius "Exiguus" e disseminada graças à obra do Venerável Beda): "Itaque annis Christi Dionysianis semper addenda 38, vt habeas eram Hispanicam" (p.446), ou, o que significa o mesmo, que a Hispânica antecede a de Cristo 38 anos: "quae cum triginta octo annis Computum Christi Dionysianum antecesserit" (p.448). O jesuíta Hadrian Daude também explica nos mesmos termos (Historia universalis et pragmatica Romani Imperii, regnorum..., Tomo I, 1748, p.15). Todos anteriores ao Barão.

Consultando a fonte, seguimos a edição de Juan Fernández Valverde, Brepols, Editores Pontificii, 1987, pp.71-72 (ler acima um excerto da pág. 72). Relato surge, como referido, no cap. XXII: "De recensuindo et concilis eius tempore celebratis et de sacto ildefonso". A morte do rei Quindasvinto, pai de Recesvinto (Lat. Reccesvinthus, chamado "Recensuyndus" nesta crónica) foi, segundo outras fontes, no ano 653, mas aqui regista-se DCLXXXXV (i.e. 657 da Era de Cristo). Realizou-se então o VII Concílio de Toledo. Crónica elenca sucessivos concílios até ao décimo, que sabemos ter acontecido em 656 (era [Hispânica] de DCXCIII segundo diversos códices, ver e.g., Juan Tejada y Ramiro, Coleccion de cánones y de todos los concilios de la Iglesia Espanola, Madrid, 1850, cap. LV; G. Martinez Diez, (S.J.), Los Concilios de Toledo, in: Anales Toledanos, Toledo, n.3, 1971, 119-138). É neste contexto que surge o relato do eclipse, seguindo-se, na mesma frase, uma referência às incursões dos Bascos (que apoiavam um rival de Recesvinto chamado Froia ou Froya) que o rei repeliu. Contudo, estas incursões e o cerco a Saragoça pelos rebeldes parecem ter acontecido pouco depois da morte do antigo rei, pai de Recesvinto. Portanto, lemos neste trecho notícias num pequeno intervalo entre 653 e 656. Com maior segurança, podemos assumir que intenção do cronista era certamente situar o eclipse no reinado (autónomo e pleno, pois antes coadjuvou o seu pai) de Recesvinto: 653-672. A crónica conclui que Recesvinto foi um rei muito estimado e que morreu nas Calendas de Setembro, sendo sepultado na sua terra, Gerticos, "...nunc Bamba dicitur" (agora chamada Bamba), i.e. Wamba, no ano DCCXIII (675 AD). Data mais consensual é a de 672. Digladiam-se datas, como sempre, e parece haver um pequeno desfazamento de 3 ou 4 anos na cronologia (em relação a outras fontes). Não é relevante neste contexto astronómico e podemos tomar como garantido o mencionado intervalo para o eclipse. Neste, encontramos os seguintes fenómenos Ibéricos com magnitude, dois dos quais foram decerto notáveis:
 
12 de Abril de 655 (eclipse total, v. supra)
28 de Janeiro de 659 (
eclipse híbrido e apenas parcial na Península)
4 de Setembro de 666 (
eclipse total)
 
Conclusão: esta data dos tempos visigóticos nunca poderá ter solução definitiva por falta de elementos na sua raíz mas a forte impressão que o fenómeno imprimiu ("...omnis Hispania territatur"), a sequência cronística com relato imediatamente antecedido pela notícia do X Concílio de Toledo (656) durante o curto pontificado do Papa Eugénio (654-657), bem como a referência adjacente à exigente defesa militar perante a incursão Basca, leva-nos a acreditar numa data precoce e de que se trata exactamente do mesmo eclipse de 12 de Abril de 655 acima referido e cujo mapa se disponibilizou. Ademais, o vocabulário utilizado nas descrições revela notáveis semelhanças: "...Hispaniam omnem territaverunt" no pseudo-Isidoro, "...omnis Hispania territatur" em Rodrigo. Não há coincidências.


Voltando a J. Vasaeus ("Hispaniae Chronicon", na colectânea Rerum Hispanicarum scriptores aliquot..., Tomus prior. Ex bibliotheca cl. viri Dn. Roberti Beli Angli, Francofurti, Andreae Wecheli, 1579, p.582), encontramos outro relato segundo "Isidorus Pacensis":

Vasaeus - texto na compilação Rerum Hispanicum, T1, p.582

O cronista converte (à partida correctamente) o ano original no de 719 da Era de Cristo, cujos acontecimentos elencava. Na realidade, relato provavelmente refere um eclipse que aconteceu antes, no dia 3 de Junho de 718, uma sexta-feira. Foi total e, de facto, vespertino na Península, como as últimas opiniões expenderam (pois, como se lê, não houve consenso quanto à hora do fenómeno).

Eclipse de 3 de Junho de 718
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 3 de Junho de 718 (GUIDE9.1)

Lemos ainda outro relato transcrito por Vasaeus na já mencionada edição de Colónia da obra Rerum Hispaniæ memorabilium....: "Hoc tempore fuit eclipsis solis per horã integrã" (p.512). Na sequência cronológica, só pode ser uma referência ao eclipse total de quarta-feira, 17 de Junho de 912 AD.

Eclipse 17JUN912
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 17 de Junho de 912 (GUIDE9.1)


Excluíndo os mencionados, e até ao fenómeno de 939 AD cujo relato leremos adiante, houve outros eclipses notáveis que provavelmente mereceram notícia. Verificaram-se os seguintes fenómenos com totalidade ou anularidade sobre a Península (com duas excepções, acrescentadas pela sua magnitude):

Eclipse anular - 8 de Dezembro de 698 (totalidade não abrangeu a Península, somente parcial mas com elevada magnitude)
Eclipse anular - 14 de Julho de 706
Eclipse anular - 14 de Julho de 708
Eclipse anular - 9 de Janeiro de 753
Eclipse total - 16 de Agosto de 779
Eclipse anular - 16 de Setembro de 787
Eclipse total - 17 de Setembro de 833
Eclipse total - 5 de Maio de 840
Eclipse total - 27 de Junho de 903 (totalidade não
abrangeu a Península mas quase alcançou o Cabo S. Vicente, no sudoeste)


Avançando, encontramos a seguinte notícia do século X nos anónimos Anales castellanos primeros ou Annales Castellani Antiquitores, provenientes da basílica de San Isidoro de León que cobrem os anos 618-939. Eis o relatado (Madrid, BN, mss. V.4,I, fol. I; M. Gómez-Moreno (ed.): Anales castellanos, in "Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia", Madrid, 1917):

"In era DCCCCLXXVII videlicet die II feria ora IIII sic demonstrabit Deus signum in celum et versus est sole in tenebris in universum mundum quasi ora una. Post inde ad XVIIII dies quod est VIIII
idus augustus · in diem quod celebratur christianis Sancti Iusti et Pastoris die III feria sic venerunt cortoveses ad Septemmankas..." (Na era de 977 [939 A.D.], uma segunda-feira, hora quarta, quando Deus mostrou sinais no céu e transformou o sol em escuridão em todo o mundo durante cerca de uma hora. Dezanove dias mais tarde, que é o nono [oitavo, recte] dos idos de Agosto, em que os cristãos celebram os santos Justo e Pastor* [6 de Agosto], terça-feira, os cordoveses chegaram a Simancas...). A feria indicada para a relatada chegada das forças sarracenas está correcta: dia 6 de Agosto foi uma terça-feira. Há, como assinalado, um pequeno lapso implícito no cômputo do dia 6 a partir dos idos de Agosto (dia 13): seria o oitavo dia "dos idos" e não o nono. Quanto ao eclipse, data não é directamente grafada mas contando (inclusivamente, como era norma) XVIIII dias para trás a partir de 6 de Agosto chega-se ao dia 19 de Julho (data inequívoca, astronomicamente comprovada). O eclipse total de 19 de Julho de 939 foi decerto notável mas parcial na região em causa (e.g., 0.966 em Valladolid, 0.935 em León) e o ápice aconteceu, de facto, durante a manhã. A feria está aqui incorrecta: foi sexta-feira. Faixa de totalidade "percorreu" a península de sudoeste para nordeste. Eclipse é provavelmente assinalado na crónica pela sua proximidade em relação à importante Batalha de Simancas, travada, segundo se acredita, no início de Agosto.

* Segundo a tradição foram dois irmãos martirizados em Complutum, actual Alcalá de Henares, em 304 A.D., cf. Claude Chastelain, Martyrologe Universel, Paris, Frederic Leonard, 1709, p.390 (v. infra); p.301 na edição de 1823 de M. de Saint-Allais.

Martyrologe Universel, p.390
A lenda dos dois mártires no elenco do dia 6 de Agosto (Martyrologe Universel..., Paris, 1709, p.390)

Eclipse de 19 de Julho de 939
Parte do percurso da totalidade do eclipse de sexta-feira, 19 de Julho de 939 (GUIDE9.1)


Ainda antes da fundação do reino encontramos os dois relatos seguintes, ambos registados na secção "Chronicon Conimbricense Pars I" incluída nos Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores [escritores e monumentos narrativos] (Volumen. I, Fasciculum I, 1856, p.4):

"Era M.ª LXX.ª I.ª III Kalendas Julii oscuratus [
grafado "osculatus"] est sol et cotremuit terra" (Na era [ano] de 1071, no 3º dia das Calendas de Julho o Sol foi obscurescido e a terra tremeu). Trata-se do eclipse anular de 29 de Junho de 1033 AD. A data está correcta pois o ano referido é o da Era Hispânica ou de César e trata-se do 3º dia (contado para trás, inclusivamente, i.e. contando também o primeiro à maneira romana), a partir de 1 de Julho. Fenómeno parcial na península, linha central passou a norte da Galiza na região do golfo da Biscaia. Um "portento" é associado a outro: o estremecimento da terra.

Livro da Noa - eclipse de 1033
Breve notícia do eclipse de 1033
no Livro da Noa (AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0024 no acervo "digitArq")

Eclipse 29 JUN 1033
Parte do percurso da anularidade do eclipse de 29 de Junho de 1033 (GUIDE9.1)

Seguidamente, na mesma pág. dos PMH, o relato de um fenómeno datado das Calendas (o primeiro dia) de Julho da "era de MCXVII" (1 de Julho de 1079, ano equivalente na Era Cristã ou "Comum"):

"Era M.ªC.ªX.ª.VIIª Kalendas Julii hora VI.ª oscuratus est sol et stelit ipsa obscuritas per duas horas donce apparuerunt stelle in celo et quase media nox effectus est." (o sol obscureceu-se e o próprio ficou escuro durante duas horas, depois apareceram as estrelas no céu como se fosse meia noite), cf. Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introdução de António Cruz, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968, p.75. Este testemunho, de 1 de Julho de 1079 A.D., foi elencado por Paul M. Muller* (v. Zirker,  Op. cit., 1995, Table 1.1
: referência a "Alcobaca").

* An Analysis of the Ancient Astronomical Observations with the Implications for Geophysics and Cosmology, Newcastle, Fiddes Litho Press, 1975

Livro da Noa - eclipse de 1079
O eclipse das Calendas ("Kl's") de Julho de 1117 (1079 AD) no Livro da Noa (AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0026 no acervo digitArq
)

Eclipse de 1079 no Chronicon Complutense
O mesmo eclipse no Chronicon complutense sive alcobacense, aqui recolhido da colectânea de E. Flórez (Tomo XXIII, p.317)

Este fenómeno também surge elencado no Chronicon Complutense (i.e. de Complutum, actual Alcalá de Henares, mas decerto com origem em Alcobaça: Chronicon complutense sive [ou] alcobacense). Breve chronicon manuscrito cujo conteúdo foi inserido na compilação de Enrique Flórez (Tomo XXIII, segunda edición de 1799) e, no século passado, incorporando uma recensão conhecida como Chronicon conimbrigense, foi publicada por Pierre David com o título Annales Portugalenses veteres (1945). Provavelmente o mais antigo sumário de acontecimentos Galaico-Portugueses.

Eclipse 1 de Julho de 1079
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 1 de Julho de 1079 (GUIDE9.1)

O excerto seguinte é da crónica anónima [a identidade do autor é debate polémico que atravessa gerações de especialistas] conhecida como "Crónica de Portugal de 1419" (previamente editada a partir de um Ms. incompleto como "Crónica de Cinco Reis de Portugal" em 1945 e, com novas fontes, como "Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal" em 1952). Como o seu último editor, Almeida Calado, referiu (1998, Introd., p.XLI): "Visto que em toda a sua extensão é um texto independente das crónicas oficiais conhecidas - as de Duarte Galvão e Rui de Pina -, às quais é muito anterior, a Crónica de Portugal de 1419 vale por si própria como monumento da historiografia quatrocentista, quer seja ou não atribuível a Fernão Lopes." [Fernão Lopes é uma das tradicionais atribuições, "quase segura" segundo Lindley Cintra no seu artigo no Dicionário de Literatura (dir. Jacinto do Prado Coelho), Porto, Figueirinhas, 1992 (4ª ed.), vol. 1, p.238]

Crónica de 1419 - excerto p.103 
O relato (datado na Era Hispânica) na Crónica de Portugal de 1419, ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, p.103 [título desta crónica é convencional, não surge em qualquer "incipit" ou "explicit"; a excelente edição de Almeida Calado baseou-se nos manuscritos 886 da Biblioteca Pública Municipal do Porto e no (mais antigo) códice M-VII-15, da Casa de Cadaval])

Rui [Ruy] de Pina (Cronista-mor do reino) é responsável por um corpus de crónicas (redigidas entre 1513 e 1522) dos primeiros soberanos da Dinastia de Avis. Na Chronica de D. Sancho I (título formal: "Crónica del rei D. Sancho deste nome o primeiro e dos reis de Portugal o segundo...") encontramos (na transcrição de Miguel Lopes Ferreyra) este expressivo relato, com informações que parecem  "refundidas" do exemplo precedente:
 
"E na era de Nosso Senhor de mil cento e noventa e nove annos, entre ha Sexta, e Noa do dia foy grande, e muito espantozo Cris
* [cris, crys, solcrys eram vocábulos comummente usados; eclipsi ou eclypsi começa a surgir gradualmente, a partir do séc. XIV] do Sol, que por todos aquelles que escreviam has couzas maravilhosas de seus tempos, asáas memorado, porque ho Sol foy negro todo como pez, e ho dia que era craro, se tornou muy escura noyte, e nos Ceos sendo de dia pareceu ha Lua, muittas Estrellas, por cujo nome, e espanto, e mortal temor, os homens, e molheres de todo ho estado, e condiçam, crendo que ho mundo se acabava, e vinha ho dia do derradeyro juizo, temendo a morte, e por acabarem has vidas, em tantos luguares leyxavam has casas, e fazendas, e desacordadas se acolhiam às Egrejas, e Cazas piedosas, e depois que has trevas se começaram a derramar, e ho Sol cobrando sua claridade, foy ha Lua vista em desvayradas maneyras, como nunqua fora vista, e viam estes sinais serem tam fóra do regulado curso da natureza, como hos que tiveram a Payxam de N. Senhor, e este dia deste Cris assi foy nomeado, e assi ficou lembrado nas memorias dos homens, especialmente de Portugal, que quando depois pessoas antiguas se perguntavam por cousas de tempos passados, de que queriam saber a verdade, e as testemunhas para certidam das suas idades, e tempos referiam seus ditos, e mores lembranças, ha este dia que se tornàra noyte..." (Chronica do Muito Alto, e Muito Esclarecido Principe D. Sancho I, Segundo Rey de Portugal; composta por Ruy de Pina...; fielmente copiada do seu original por Miguel Lopes Ferreyra. - Lisboa Occidental : na Officina Ferreyriana, 1727, pp.49-50).

* "Cris, s. Eclipse. Do gr. ékleipsis, «acto de abandonar, abandono, deserção; defecção, desaparição; eclipse (do sol, da lua); cessação ou desaparição (das forças), enfraquecimento», pelo lat. eclipse-, «eclipse (do sol, da lua)». Séc. XV: «...no qual dia do seu fallecimento ho Sol foi crys em grande parte de sua claridade; e assi tambem foi ho Sol crys, ho dia que a Rainha Dona Felipa sua molher falleceo...», Rui de Pina, Crónica de D, Duarte, cap. I, nos Inéd. Hist. I, p.73. O cultismo eclipse no séc. XVI: «...e não per situação geografica de eclipses . e outras observações de oposição e conjunção de outros planetas com o Sol e com a Lua», Déc., III, 5, cap. 5, p.257" (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (7ª edição), Segundo Volume (C-E), Livros Horizonte, 1995 (1952), p.253)

Na sequência do relato (a seguir ao transcrito), parece implícita a opinião de que as vicissitudes sofridas com intermináveis chuvas e seu efeito nas sementeiras (e consequente fome), no ano de 1201, estariam, de algum modo, ainda relacionadas com o assustador fenómeno anteriormente testemunhado.

Também no chamado "Livro da Noa" se encontram os fenómenos insólitos do dia "iii.nñs.junii" (terceiro das nonas de Junho, por nós destacado na imagem seguinte) de "m.cc.xxx.vii" (1237, i.e. 1199 AD, destaque seguinte), "Sub era millesima ducentesima trigesima septima..." na transcrição de Antonio Caetano de Sousa (1739). Relato nesse fólio refere mais tarde: "...congregata in Eclesia Sanctae Crucis Colimbriae maxima multitudine hominum, et mulierum tam saecularium quam Religiosorum...", entre outras peripécias similares às que encontramos noutras crónicas.

Livro da Noa - eclipse 1199
Início do relato do suposto eclipse de 1199 no Livro da Noa (
AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0018 no digitArq)

Duarte Nunes de Leão,
1530-1608, (na primeira parte das Chronicas dos reis de Portvgal, reformadas pelo licenciado Dvarte Nvnez do Lião..., Lisboa: por Pedro Crasbeeck, 1600, .61) replica o relato com muitas coincidências, acrescentando que o momento se havia até tornado marco cronológico:
 
"Correndo depois o anno de MCXCIX [utiliza aqui a Era de Cristo]. foi aquelle grande & memorauel eclypse do Sol, que começando entre a sexta & noa, se fez todo negro como pez, & de dia mui claro que era, se tornou noite apparecendo a Lua & as strellas. Por cujo espanto os homees & molheres de todo stado, cuidando que era o fim do mundo, deixando suas casas & fazendas, se acolherão aas igrejas querendo nellas acabar. E depois que a luz se restituiu, foi a Lua vista em tam desvairadas maneiras, q causou outro espanto não menor. E foi tam grande & desacostumado eclypse, que da hi em diante como cousa notauel, referião os homees os annos & conta do tempo a este acontecimeto, como se referia ao nascimento de nosso Senhor IESV Christo, ou aa era de Cesar."

Eclipse - Crónica Ruy de Pina
Notícia no texto de Ruy de Pina afirma: "E na era de mil duzentos e xxxbij [xxxvii], que era do ano de Cristo de mil e cento e noventa e nove..." (fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq)

Crónica D. Sancho I - cópia manuscrita
A data do mesmo eclipse num códice do séc. XVI da crónica de Ruy de Pina. Anteriormente no acervo do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (antiga cota: CDLXIII; cota actual na Biblioteca Nacional: ALC 295). Destacamos: "...na era de N.S. Jesus Cristo de mil e cento e noventa entre a sexta e nona [horas] do dia foi o grande e espantoso eclipse..." (ler relato completo, PDF, 260KB). Aqui o ano indicado é 1190 (e não 1199) AD. Na sequência, parece existir uma informação incompatível (pelo recurso a um ano diferente do de outras cópias, numa era diferente): "na era de César de mil e duzentos" (acerca das chuvas e da impossibilidade das sementeiras). Mereceu apostila posterior que parece limitar-se a referir qual seria o ano equivalente a 1200 na era de Cristo (1162). Enfim, talvez uma cópia desleixada, pouco incomum. Também não aconteceu qualquer eclipse "espantoso" em 1190. Note-se o desenho curvilíneo da conjunção "e", comum na época.

Encontramos o fenómeno na transcrição de materiais conimbricenses inserida nos Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores (Volumen. I, Fasciculum I, 1856, p.3; ler relato).
No eloquente testemunho, muita gente piedosa se juntou na Igreja de Santa Cruz na sequência deste fenómeno: "...sinal como não havia acontecido desde a Paixão de Nosso Senhor até ao presente". Aconteceu "no terceiro dia antes das Nonas de Junho" (i.e. dia 3; nonas de Junho eram a 5) e "...houve mesmo noite entre a sexta e a nona hora (...)". O testemunho salienta que foi "...no mesmo dia em que Cristo sofreu" (sexta-feira) e "à mesma hora". O relato parece, no final, referir o que hoje podemos designar 'efeito pinhole' (i.e. de câmara estenopeica), referindo o aparecimento de "signa lunarum". Tratava-se, na realidade, de projecções do "crescente" solar (característico das fases parciais de um eclipse): ...ubi cumque solis radii per foramen aliquod subitrabant (...sempre que os raios do sol entravam por alguma abertura). Acontecimento foi registado, acompanhando o arquivo coimbrão, por Enrique Floréz et al. na compilação España Sagrada. Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII, 1767, p.335 (p.336 na "segunda edición" de 1799; ver pág., PDF, 100KB).

Sabemos como a tradição cronística se respaldava em relatos pretéritos, quase replicando informação verbatim. As crónicas resultam habitualmente de séries de cópias com colagens e interpolações (e até "contaminações"), amiudadamente grafadas a várias mãos num persurso complexo. As datas erradas coincidem, o que não deve causar admiração: as crónicas baseiam-se sempre em fontes comuns ou preexistentes, perpetuando-as. Os lapsos também eram comuns no processo manual de replicação e escrevia-se amiudadamente muito depois dos acontecimentos (são geralmente "tardias" e baseadas em fontes escritas que se perderam).

Trata-se, quanto a nós, do grande mistério dos eclipses "portugueses". Este fenómeno, propiciador "de noyte e trevas", no qual o sol enegreceu ("...sol factus fuit nigrior") será, depois, "classificado" por de Pina e Leão como "Cris" e "eclypse", respectivamente. Repetidamente documentado (mas com segurança associado somente a uma única proveniência: Coimbra). Talvez tenha prevalecido o fascínio de um ano "terminal": "E na era de Nosso Senhor de mil cento e noventa e nove annos...". Contudo, não se assistiu em 1199 AD a qualquer eclipse (v. Total and Annular Solar Eclipse Paths: 1181-1200 - Eclipse Predictions by Fred Espenak [NASA's GSFC]), nem sequer parcialmente observável. Acontecera um pífio eclipse em Abril de 1194 AD (magn. 0.226 em Coimbra, que nem merece referência e pode ter passado despercebido). Demais, dia mencionado foi uma quinta-feira e não uma sexta.

É verdade que a Crónica de 1419, por exemplo, segue nesta parte do "percurso" uma sequência datada com uma cadência regular. Da conquista de Tuy e outras praças por D. Sancho I avança um ano para este relato (sem permitir qualquer pista quanto à localização). Segue, no ano sequente, para uma notícia acerca das chuvas e dificuldades nas sementeiras e depois, no ano seguinte, para a decisão régia da contrução de um castelo em Montemor, no bispado de Évora. Ficamos com a impressão de que algo justificou aquele lugar na sequência, mesmo que simplesmente interpolado.
Curiosamente, crónica não menciona o confirmadíssimo eclipse de 3 de Junho de 1239 quando elenca os acontecimentos do reinado do outro Sancho (neste caso o segundo).

É curiosa a repetição desta data de 3 de Junho
, encontrada no eclipse total de 1239 (aí justamente uma sexta-feira). O intervalo de horas também coincide. Qual a probabilidade? Houve um eclipse anular a 6 de Dezembro de 1192 AD (no noroeste e parte do nordeste do país) e acontecerá outro (também anular) em 27 de Novembro de 1201 AD (v. mapas seguintes). São péssimos candidatos: o primeiro é demasiado periférico; o de 1201 (magn. 0.951 em Coimbra) pode ter impressionado, embora por si dificilmente justificasse semelhante comoção e jamais as trevas descritas ou as estrelas avistadas. Este "grande & desacostumado eclypse" exige mais do que uma anularidade.

Eclipse 1          Eclipse 2
Eclipses anulares de domingo, 6 de Dezembro de 1192 e terça-feira, 27 de Novembro de 1201 (GUIDE9.1)

As crónicas a que temos acesso são, como é sabido, posteriores. Vamos especular e supor que as sucessivas transcrições a partir de suposta notícia "original", coetânea (a que já não temos acesso), não reconheceram a eventual presença de um X (dez) aspado (=40) antes de "XXX" ou, talvez mais lógico, se tomou um "L" ou um "2" (L uncial = numeral 50) por um simples X. Sabemos quantos erros aconteceram nesse passado de cópias manuscritas, muitas vezes ainda a pequena distância cronológica dos acontecimentos relatados. Os próprios historiadores cometeram depois erros de leitura não despiciendos. M. J. Barroca, Op. cit., vol. I, p.228 escreve: "De pouco valeram as advertências de D. José de Cristo, de Fr. António Brandão e de outros historiadores. Na realidade, o X aspado tem conduzido desde sempre a erros. Já João Pedro Ribeiro se lamentava dos erros de datação na leitura de muitos documentos, que muitos dos seus antecessores haviam cometido por não reconhecerem a presença do X aspado e do L uncial". Segue-se a citação de Ribeiro: "...os tenho reconhecido por mal lidos nas suas datas, v.g. por se ter dado ao 2, ou L, o valor de 20, ou X aspado o valor somente de 10." (1811, Tomo II, p. 28).

No fenómeno em causa, m.cc.xxx.viji seria talvez m.cc.2xx.vij (1277, i.e. 1239 AD). É "suspeito" que a diferença seja rigorosamente 40 anos e que o dia do mês e a feria (dia da semana) coincidam. Nesse ano de 1239, como vimos, aconteceu o impressionante eclipse que já referimos acima, profusamente documentado no sul da Europa ao longo percurso da totalidade. O único portento que responde a tão inusitados efeitos é (salvaguardando qualquer impressionante fenómeno atmosférico que pode mais tarde
ter sido entretanto "colado" a um eclipse), quanto a nós, o notável eclipse de sexta-feira, 3 de Junho de 1239, com quase 6 minutos de totalidade em Coimbra! Aconteceu, portanto, no reinado de D. Sancho II e não no de D. Sancho I. Estamos, decerto, perante um lapso que percorreu caminho nas ulteriores recolecções, gerando uma espécie de "doublet" cronístico.


O relato de outro eclipse (14 de Maio de 1371, i.e. 1333 AD) encontra-se, destarte em vulgar, no Livro da Noa (v. digitalizações m0039 e
m0040 do acervo digitArq):
 
Na era de mil.ccc.lxx e i año. xiiii dias andados do mes de mayo foy eclipsi do sol efoy tornado o sol tan somido que nõ parecia se nõ come luna nova muy peqnha de sy..." (relato completo fazendo o aggiornamento do Português: "Na era de mil trezentos e setenta e um ano, catorze dias andados do mês de Maio, foi eclipse do sol e foi tornado o sol tão sumido que não parecia senão como uma lua nova, muito pequena de si, e foi acrescentando em si, tornando-se em seu estado, e em crescença dele tornava-se de muitas cores, por tal guisa que o dia foi muito escuro e tirado de sua claridade. Isto foi à hora do meio-dia, e esteve assim o sol neste embargo uma hora e meia do dia.")

Na já mencionada compilação de Floréz (
que também inclui o Chronicon Conimbricense) voltamos a encontrar relato (segunda edición, Tomo XXIII, p.344; ler excerto). O fenómeno foi parcial em Portugal mas anular no extremo norte de Espanha e sul de França). Mesmo assim, apresentou a notável magnitude de 0.910 em Coimbra.

Eclipse 14 MAI 1333
Parte do percurso da anularidade do eclipse de 14 de Maio de 1333 (GUIDE9.1)

O Livro da Noa refere-se a esse difícil ano de 1371 (Era Hispânica, equivalente a 1333 AD), em que a fome grassou, houve mortandade e os ataques das forças muçulmanas reconquistaram o importante bastião de Gibraltar em Junho desse ano. Na sequência do texto, sem referir outra "era" (ano), reporta que na "f.vi" (feria vi, sexta-feira), vinte e nove dias andados do mes de Maio, a cor do sol mudou da manhã até ao poente, o ar foi espesso e escuro, o sol cinzento, etc. Não se refere a palavra "eclipse" e tudo indica que se tratou de impressionante fenómeno meteorológico. Todavia, esse dia (29 de Maio) somente foi uma sexta-feira, por essa altura, em 1327, 1332 ou 1338. Talvez o simbolismo Crístico, sacrificial, desse dia da semana "penetrasse" facilmente os relatos.

Noutro registo, das Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra (in: Portugaliae Monumenta Historica - ScriptoresOp. cit, pág. 25) lemos:
 
PMH p.25 (registo eclipse)
 
[N.B.: Alexandre Herculano designou as breves composições históricas do cod. 79 da "Bibliotheca Publica do Porto" como "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra". Cód. ctualmente possui a cota nº 103 na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Herculano afirmava (Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores,  Vol. I, Fasc. I, p.23) que os caracteres paleográficos indiciavam que as composições eram ao século XVI. Com uma parte de pergaminho e outra de papel, o manuscrito compreende 47 folhas, escritas por diversas mãos, na segunda metade do século XV.]

Segundo Coutinho (Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), este relato refere-se ao fenómeno de 3 de Junho de 1239 (v. supra), com "ligeira alteração" na data, Eis a nótula apensa:

"Cf. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTÓRICA, Scriptores, Olisipone, MDCCCLVI, p. 25, que refere nas Chronicas Breves e Memorias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra o mesmo acontecimento, com ligeira alteração da data."
(p.435, n.15)

Não é a explicação ideal pois a alteração não é "ligeira", bem pelo contrário. Torna-se complicado ancorar este suposto acontecimento (de sexta-feira, 30 de Maio de 1232) pois não corresponde a qualquer eclipse que tenha acontecido. Num intervalo alargado, verificou-se eclipse com magnitude superior a 0.700 (um limite tímido para tão notáveis efeitos) apenas na sexta-feira, 3 de Junho de 1239 (o mencionado fenómeno total e comprovadíssimo). Entretanto, noutra sexta-feira, 15 de Outubro de 1232 AD, houve um eclipse parcialmente observável com menor magnitude (0.560). Pouco impressionante e longe do mês indicado. De resto, 30 de Maio de 1232 foi um domingo. sexta-feira foi, por exemplo, nos anos 1225, 1231 ou 1236. Se considerarmos, no contexto do elenco cronológico adjacente (que privilegia acontecimentos do século XII), que se tratava do ano de 1132, os problemas perpetuam-se: 30 de Maio foi uma segunda-feira e não houve qualquer eclipse observável na península ao longo desse ano. Em resumo, a informação que temos nesta notícia, acreditando-a assertiva, é irreconciliável. Ou se trata, de facto, de um relato muito impreciso (no dia, no mês e também no ano) ou da memória de um qualquer fenómeno meteorológico que deixou forte impressão.


Mais tarde, na Chronica de El-Rei D. Fernando, cap. CX, Fernão Lopes (o eminente cronista, activo entre 1418 e 1459) descreve as peripécias da vida de
Henrique II (de Castela e Leão) no contexto das hostilidades internas e no âmbito alargado do antagonismo entre os reinos de França (que apoiava Henrique) e o de Inglaterra. Depois descreve as últimas horas de Henrique e o eclipse que antecedeu a sua morte:
 
"N'isto, afficando-se a alma para partir do corpo, vestiram-lhe um habito da ordem de S. Domingos, e sendo já duas horas andadas do dia acabou sua vida e deu o espirito, havendo quarenta e seis anos e cinco mezes de edade, e treze annos e dois mezes que fôra alçado por rei em Calahorra; e morreu na era [de César ou Hispânica] de mil e quatrocentos e dezeseis annos. E porquanto n'este mez que ele morreu, treze dias antes que finasse, aos dezeseis do dito mez, foi um grande eclipse depois do meio dia, que parecia a todos que era noite, de guisa que fugiam as gentes fóra dos muros dos logares onde viviam, disseram muitos que se fizera por sua morte; mas os entendidos mostravam que os eclipses se fazem por obra de natureza em certos tempos, e que aquelle eclipse não fôra feito por azo de sua morte, mas que elle acertara de se finar n'aquelle tempo que o eclipse havia de ser." (
Luciano Cordeiro (dir.), Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895, p.182)

Eclipse 16 MAI 1379
Parte do percurso da anularidade do eclipse de 16 de Maio de 1379 (GUIDE9.1)
 
Trata-se do maquiavélico Henrique II, "el Fratricida" ou "el de las Mercedes" (mercês), (Sevilha, 13 de Janeiro de 1334 - La Rioja, 29 de Maio de 1379), que inaugurou a dinastia de Trastâmara no trono de Castela e Leão. O eclipse, perfeitamente datado é o fenómeno de 16 de Maio de 1379 (utilizando ano da Era Cristã ou "Comum"). Foi total no sudoeste peninsular.
Repare-se que Fernão Lopes expende, no final, uma explicação racional para estes fenómenos astronómicos, ultrapassando as persistentes superstições.

Ainda em Fernão Lopes, podemos ler (Crónica de D. João I : Primeira Parte, Edição crítica de Teresa Amado, Imprensa Nacional, 2017):
"Seguio-se estonce que aos dez e nove dias do dito mês foi o sol eclipse ["criz", na transcrição da "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", vol.III, p.9)] ao meo-dia e perdeo sua claridade, estando entom em sino [signo] de leo, a qual cousa foi espanto a todos. E deziam os astrologos que senificava em casa real gram mortindade de gente honrada. E assi aconteceo depois nos grandes senhores delRei de Castela segundo adeante ouvirees." (cap. CXXXVIII, p.253)

Froissart - Cerco de Lisboa
O Cerco de Lisboa de 1384 (iluminura), Jean (Jehan) Froissart, Chroniques; Bruges, c.1475 (Bibliothèque nationale de France. Département des Manuscrits. Français; ms. fr. 2645)
 
Aconteceu em 1384 aquando do cerco de Lisboa pelas forças do rei de Castela. Para o fenómeno é indicado o dia 19 "d’agosto" (anteriormente mencionado) mas não o dia da semana. Somos informados de que o Sol estaria no signo Leo (o que nesse ano, segundo o zodíaco tropical, vinculado aos equinócios e solstícios, se verificou entre 14 de Julho e 14 de Agosto). Logo,
a longitude eclíptica do luminar já ultrapassava os 150º, i.e. já estaria em Virgo. O Equinócio Vernal era, nessa época, a 12 de Março (o "deslizamento" gradual relativamente às estações do ano foi um dos problemas que levou à posterior reforma do Calendário). Sideralmente o sol "estava" na constelação do Leão.

Fernão Lopes, eclipse de 1384 (Cod. 950)
Somente a relação estemática com eventuais registos do séc. XIV poderia esclarecer. O cronista não estava lá, acredita-se que terá nascido nessa década de 1380. Em todo o caso, o dia 19 já é referido nas cópias manuscritas, como aqui
("dezanove dias do dito mês", realçado por nós) na "Primera parte da coronica del Rey Dom João o primero desse nome" (Cod. 950; BNP)

A crónica é fiável nas datas de outras peripécias. Logo a seguir (cap. CXXXIX: "Como as galés de Castela quiserom tomar as de Portugal, e do que sobr’elo aconteceo") regista: "...aos vinte e sete dias daquel mês d’agosto que seriam as auguas vivas, e a maré chea na alva da manhã...". Foi um sábado, confirmando detalhe pouco adiante mencionado por Fernão Lopes.
Mas no caso do eclipse, o dia não pode estar correcto. O único plausível foi o de quarta-feira, 17 de Agosto de 1384 (Calendário Juliano, será redundante sublinhar; no Calendário gregoriano proléptico, i.e. estendido para este ano anterior à sua adopção, seria dia 25): um fenómeno anular, parcialmente observado em Lisboa entre as 11h 25m e as 14h 27m UT (vertendo para o actual Tempo Universal), com a generosa magnitude de 0.880. Fontes imprecisas, "clerical error"? A diferença de dois dias é dificilmente explicável num período tão escrutinado como o do cerco de Lisboa.

Chronologia catholica, fol 465
Referência ao eclipse de 17 de Agosto de 1384. Sol estaria no 3º grau de Virgo (Chronologia catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora editarum..., de Heinrico Buntingo, Magdeburgo, 1608, fol. 465). Buntingo baseou-se nas Tabelas Pruténicas (Lat. Tabulae prutenicae, de "Prutenia", i.e. Prússia), Al. Prutenische oder Preußische Tafeln, publicadas por Erasmus Reinhold em 1551 (reimpr. em 1562, 1571 e 1585)


No século XVIII, o Padre Baião (Jozé Pereira Bayão), refere com brevidade este eclipse enquanto procura defender o malogrado empreendimento de D. Sebastião com exemplos de outros notáveis que também perderam batalhas ou foram, de algum modo, mal pressagiados por sinais dos céus: "...expecialmente D. Joaõ I. o qual parece que o Ceo, e a terra se lhe oppunhaõ , pois o Sol fe ecclipsou de sorte que a terra ficou em trevas por duas horas; a Cidade de Lisboa, se vio aflicta de peste, e a Rainha, que era mulher santa, morreo della;" (Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, Lisboa Occidental, na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, 1737, p.736)


Passando a outro relato, no primeiro capítulo da Chronica d'El-Rei D. Duarte, Ruy de Pina descreve (no início),  as circunstâncias da morte de D. João I:
"...o dicto glorioso logo acabou sua bemaventurada vida com mui claros sinaaes de Salvaçam de sua alma, a quatorze dias d'Agosto, vespera d'Assumpçam da Virgem Maria Nossa Senhora, do anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesu Christo de mil quatrocentos e trinta e tres; (...) no qual dia do seu fallecimento ho Sol foi crys, ho dia que a Rainha Dona Felipa sua molher falleceo primeiro que elle em Sacavem [segundo outras fontes terá sido já em Odivelas, vinda de Sacavém]; e assi ho dia em que seu filho ElRey D. Duarte seu filho mayor, e herdeiro falleceo depois em Tomar." (Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.75; cf. fol. original (acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
 
Não houve qualquer eclipse solar. Parece haver aqui uma "apropriação" do eclipse total de 17 de Junho desse ano (1433), somente parcial no reino (pífia magnitude de  0.574 quando observado de Lisboa). Fenómeno mais conspícuo somente acontecerá a 5 de Abril de 1437. O mesmo se pode dizer relativamente ao "eclipse" da esposa, Filipa de Lencastre (falecida a 19 de Julho de 1415). Houve, por essa altura, um eclipse: em Lisboa o Sol já nasceu eclipsado  no dia 7 de Junho [decorria o Concílio de Constança, que acabou com o cisma papal que tinha resultado no Papado de Avignon, v. Calvisius,
Opus Chronologicum..., Editio Quarta, Francofurti..., Anthonius Hummius, MDCL, p.871]. Todavia, aconteceu quase um mês e meio antes do falecimento de Dª Filipa. Talvez estejamos, nestes casos, perante um expediente literário convencional, pelo seu poderoso simbolismo.

O eclipse que "assinalou" a morte do rei D. Duarte surge na mesma crónica. O escriba referiu o facto de grande parte do Sol ficar cris
, tal como em notícias anteriores desse jaez. Era o obscurecimento ou "acizentamento" do astro, através do qual, como o historiador Hugo Azevedo refere, "os astros manifestavam o luto pelo passamento prematuro do soberano." (Memórias melancólicas: a morte do Rei D. Duarte no discurso cronístico de Rui de Pina (1440-1522/1523), XXIX Simpósio Nacional de História, UnB, 2017, p.7). Para alguns, a causa da morte do soberano não havia sido a "pestenença" (peste), uma "febre muy aguda" ou um acidente em que se "desencaixára o braço", mas a "desigual tristeza e continoa paixaam que pela desaventura do socedimento do cerco de Tanger tomou", o falhanço da expedição no Norte de África, "...e dahy se foy a Tomar, e pousou nos Paços da Ribeyra, onde loguo adecêo de febre mortal, que doze dias nunqua o leixou: e entrando nos treze, que eram nove dias de Setembro, anno de mil quatrocentos trinta e oyto, em que grande parte do Sol foy cris, deu sua alma a Deos jaa nos Paços do Convento [em Tomar] a que foy levado." (Chronica d'El-Rei D. Duarte, Op. cit., 1914, cap. XLIII, p.205). Trata-se decerto do "eco" do eclipse anular ocorrido a 19 de Setembro de 1438 que atravessou o Norte de África, de nordeste para sudeste, "entrando" a sul de Çafim (Safi), em Marrocos. Somente parcial, todavia com razoável magnitude no Reino (0.796 máximo em Lisboa) e aqui associado ao recente decesso do monarca. Este "nexo" será divulgado pelos principais cronologistas, por exemplo Calvisius (Op. cit., p.881), respaldando-se em Juan de Mariana. George F. Chambers refere-o na conhecida obra The Story of Eclipses, de 1899.

Eclipse 19 SET 1438
Parte do percurso da anularidade do eclipse de 19 de Setembro de 1438, que aconteceu dez dias após a morte de D. Duarte (GUIDE9.1)

Continuando a compulsar fontes Portuguesas, encontramos no Obituário do Cabido da Sé do Porto (ADP, Ms. 1574, fol. 54) esta interessantíssima inscrição (transcrita por Mário Jorge Barroca na impressionante recolecção Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), vol. I, [col. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas], Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000, pág. 74, n.34):
 
"De Mil IIIIc LXXVIIJ . XXIX dias de Julho antre as onze e as doze horas do dia joy o ssol eclissy en tanto q a lua cobria o ssol de todo ponto e de todalas partes q do sol no parecia cousa algua. Efoy feita noute en tanta scuridom q dentro em casa se no podia leer hua carta sem candea. As estrelas apareçerom no çeeo. E durou este eclipssy per hua grande hora. E quando a lua cobrio o ssol ficou toda redonda e negra." (fl. 54). Trata-se do eclipse solar de 1478 cuja totalidade abrangeu, no oeste peninsular, toda uma faixa com limite sul a norte de Aveiro e limite norte a sul da Corunha (Galiza).

Eclipse 29 JUL 1478
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 29 de Julho de 1478 (GUIDE9.1)



Os reportórios que começaram a estar disponíveis com o advento da imprensa incluiam os eclipses para os anos abrangidos.

Reportorio - eclipses em 1534
Exemplo do Reportório dos Tempos (edição de 1528 do célebre almanaque de Valentim Fernandes, depois editado por Germão Galharde com licença de D. João III): "Neste anno [trata-se aqui de 1534] em janeyro a [i.e. "na"] luna nova sera sol crys. vi. partes [dígitos]. Em o dito mes de janeyro a luna chea sera luna crys ou eclypsi.". Houve eclipse parcial do sol no dia 14 de Janeiro; eclipse lunar a 29-30 desse mês (verificado c/ programa GUIDE9.1). O ano foi também confirmado através da data da Páscoa (que se pode ler no texto): 5 de Abril.


Em 23 de Janeiro de 1525 temos o chamado "eclipse de Camões". Nas elucubrações de Mário Saa (Memórias Astrológicas de Luís de Camões, Edições do Templo, Lisboa, 1978; publ. orig. "As Memórias Astrológicas de Camões..." Emprêsa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1940), cap. II, este eclipse está relacionado com o nascimento do poeta, que o autor situa em 1524. O ano para o qual os astrólogos previram a Grande Conjunção e um segundo Dilúvio. E Camões escreveu, num soneto, que o dia do seu nascimento se não deveria repetir:
 
O dia em que eu nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.
 
A luz lhe falte, o Céu se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar; ...


(Luís de Camões, Sonetos; Fixação do texto, paráfrases explicativas e notas de Maria de Lourdes Saraiva; Publicações Europa-América, 1990, p.243)
 
O poeta expende que caso esse dia retorne (com a revolução do ano, subentende-se), o astro "padeça" e "a luz lhe falte". Saberia do eclipse facilmente, em retrospectiva, consultando reportórios ou tabelas, e.g., as do Almanach Perpetuum. De facto, aconteceu um eclipse conspícuo nesse próprio dia ou "passo do sol" (entre o meio-dia e o meio-dia seguinte, segundo a convenção da época
), na tarde do dia 23 de Janeiro de 1525 (magnitude 0.841 em Lisboa, anular na região do Estreito de Gibraltar).

     Eclipse 23 JAN 1525    Mário Saa - As Memórias Astrológicas de Camões
Parte do percurso da anularidade do eclipse de 23 de Janeiro de 1525 (GUIDE9.1) e capa da edição original do livro de Mário Saa, (Edição da Emprêsa Nacional de Publicidade, 1940)
 
Na época, a Astrologia fazia parte do mapa do conhecimento. Como J. Pinharanda Gomes referiu, os camonistas nunca quiseram aceitar a ideia do recurso à astrologia para determinar a data do nascimento do poeta ou decifrar algumas passagens da lírica. O historiador confirma que o livro de Saa não foi recensionado pelas mais prestigiadas revistas literárias e não é citado pelas publicações de referência da história da nossa Literatura. Concluiu: "A argumentação astrológica suportada por uma interpretação plausível, e até razoável, dos poemas de Camões não foi levada em linha de conta pelos eruditos, talvez temerosos de darem acolhimento a um escritor considerado lírico-visionário, distante das exigências positivas do historicismo." (As memórias astrológicas de Camões - Uma Leitura aligeirada, in: "Mário Saa : poeta e pensador da razão matemática"; organiz, Manuel Cândido Pimentel e Teresa Dugos; Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012).

Almanach Perpetuum - eclipse 1525
O eclipse solar "camoniano" na "Tabela dos eclipses dos luminares no [para o] horizonte de Salamanca...", in: Opus Ephemeridium sive Almanach perpetuu Abraham zacuti..., Venetiis: per Petrum Liechtenstein Coloniensem, 1502. Esta tabela já surgia no f. 167r da versão Latina do Almanach, mas não na Castelhana. Como José Chabás e Bernard R. Goldstein referem em relação a esta mesma data numa edição diversa: "This date corresponds to Jan. 23, 1525 in the year that begins in January." (José Chabás and Bernard R. Goldstein, "Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print", Transactions of the American Philosophical Society, New Series, Vol. 90, No. 2, 2000, pp. 67,153). Ou seja, convencionando o início do ano em Janeiro e não em Março, este eclipse é, na realidade, o de 23 de Janeiro de 1225. Também se confirma que esse dia foi uma segunda-feira, como indicado pelo "2" na coluna "ferie" (feriae).



Voltando a Coimbra, assistimos a um notável eclipse em 21 de Agosto de 1560 A.D., aí testemunhado pelo jovem Christophorus Clavius enquanto estudante no Colégio das Artes (que frequentou entre 1555 e 1560). Como é sabido, o distinto jesuíta alemão será um divulgador da obra de Pedro Nunes e um dos principais responsáveis pela importante Reforma do Calendário promovida pelo Papa Gregório XIII, resultando no sistema que ainda hoje utilizamos. No seu comentário da Esfera de Sacrobosco (In sphaeram Ioannis de Sacro Bosco Commentarius, Clavius deixou (p.508 da edição expandida de 1593) um breve relato deste eclipse total (todavia enganando-se no ano que grafa), bem como de outro que observou sete anos mais tarde, em Roma. Quanto ao primeiro, escreveu:
 
"...relatarei dois notáveis Eclipses do Sol que aconteceram no meu tempo e [portanto] não há muito atrás. Um dos quais no ano de 1559 (sic) por volta do meio-dia em Coimbra, na Lusitânia, no qual a Lua se interpôs entre a vista e o Sol, cobrindo o Sol completamente por um não módico intervalo de tempo. A escuridão foi, de algum modo, maior do que a da noite. Ninguém conseguia ver bem onde deveria pisar. Estrelas apareceram no céu e (coisa maravilhosa de ver) os pássaros precipitavam-se do ar para o chão, horrorizados por tão terrível obscuridade." [trad. nossa; ler trecho original]. Podemos aqui consultar mais informação, bem como referências a observações noutras cidades europeias, como Roma, Viena ou Bruxelas (Riccioli, Almagestum Novum, [1651], Tomo I, Pars Prior, lib. V, p.372)

Na notícia de Riccioli, tal como na inclusa na Historia Coelestis
de Tycho Brahe, cola-se a referência à concomitante presença do P. Emanuel (ou Emmanuel) Vega que terá estimado a duração do eclipse em três horas, enquanto mulheres em pranto clamavam que o último dia do mundo havia chegado! Vega terá acrescentado que nunca as estrelas se haviam visto tão brilhantes e, debaixo de tecto, as pessoas mal se podia ver entre si, sendo necessária iluminação.


Eclipse 1560 Reportorio Andrés de Li
O eclipse solar de 21 de Agosto de 1560 (Quarta-Feira, luna 26), antecipado no Reportorio dos Tempos de Andrés de Li (Lixbõa : per Germão Galharde, 1552). Refere que no novilúnio de Agosto será "sol cris:ou esclipse". A data surge antes correctamente indicada, bem como o lugar zodiacal do eclipse: dia 21, grau 8 (viij) de Virgo. O Reportorio elenca, seguidamente, informação acerca do ano litúrgico, nomeadamente a data da Septuagésima (11 de Fevereiro) ou a fundamental data da Páscoa (14 de Abril). Há um lapso na data da Terça-Feira de Entrudo, que foi a 27 de Fevereiro (não a 28).


O relato de Clavius foi transcrito por Johannes Kepler na obra Astronomiæ Pars Optica... (Frankfurt, 1604), CAPVT VIII (De umbra Lunae et Tenebris diurnis). Adiante (sec. 3), Kepler destacou o cepticismo de Tycho Brahe quanto a este testemunho. O dinamarquês não admitia (erradamente) eclipses solares totais (i.e. que o diâmetro lunar pudesse em quaisquer circunstâncias tapar o Sol completamente), e terá, segundo Kepler, escrito a Clavius a este respeito em 1600 (Op. cit., p.285).

"Tycho était dans la ferme persuasion, que dans les conjunctions du soleil avec la lune, le diametre de ce dernier astre était toujours plus petit que celui du premier, et tel était sur ce point son entêtement, que non seulement il n'ajoutait aucune foi, aux recits des anciens historiens grecs et romains, mais il réfusait de croire des temoins oculaires de ces phénomènes, ses contemporains, tel que le jésuite Clavius, qui avait vu et observé une telle éclipse le 21 Août 1560 à Coimbre en Portugal, avec plusiers de ses confrères, et notamment avec le P. Emmanuel Vega..." (F. Xaver von Zach, Corr. astron., vol. 3, p.559). Compiladores mais recentes também salientam esta curiosidade, e.g., Samuel J. Johnson (Historical and Future Eclipses..., London: James Parker and Co., 1896, p.57).
O fenómeno é, portanto, particularmente conhecido pelo prestígio da testemunha principal e devido à "peculiar" opinião de Tycho. É um dos eclipses mais enfocados no livro de Kepler e, na conclusão acerca de alguns eclipses do Sol elencados (Corollaria aliquot de Solis eclipsibus), o autor afirma (sem a mínima dúvida) que sempre que um eclipse lançou uma escuridão semelhante à da noite, decerto todo o Sol estava escondido pela Lua: "Quotiescunque eclipsis aliqua Solis de die tenebras nocturnis similes offundit, totum solem à Luna absconditum fuisse, certum est".

Coimbra 1560 simul. GUIDE
Fazendo a simulação (programa GUIDE 9.1; projectpluto.com), verifica-se que, em 1560, Coimbra esteve perto da periferia da faixa de totalidade e que fenómeno aí durou ~2 minutos (118 segundos para as coordenadas indicadas na legenda; máx.: 11h 49m 47s). O mais célebre eclipse pré-telescópico "Português" pois foi o mais assiduamente mencionado na literatura.

No seu discurso acerca do domínio dos signos sobre as diversas regiões do mundo, o cosmógrafo Manoel de Figueiredo (Chronographia: Reportorio dos tempos..., Lisboa, 1603, fól. 68) descreveu os "efeitos" nefastos de outro eclipse:

"...no eclipse do sol que aconteceo em 1598. 17 dias de Março, o qual se fez em 16.graos do signo de pices [Pisces] hum sabbado as nove horas antes do meo dia & comessou seu effeito por septembro do mesmo anno, & vai em tres annos que dura a peste que entam comessou com tantas mortes como temos visto, por onde tem os signos dominio  nas terras, & regiões inferiores,& Lisboa principalmente a este signo de pices. & em arvores, plantas, terras, samenteiras..."

Houve lapso na impressão do dia (facilmente confirmável nos almanaques da época). Trata-se do eclipse de sábado, 7 de Março de 1598 (data do calendário Gregoriano, entretanto adoptado), Próximo da implementação da correcção do calendário, é muito interessante encontrá-lo datado nos almanaques em ambas as modalidades: juliana e gregoriana. 

Eclipse 1598, Reportorio... (Valentim Fernandes )
O mesmo eclipse (bem como dois lunares) elencado nos fenómenos para 1598 no Reportorio dos Tempos de Valentim Fernandes. 25 (xxv) de Fevereiro era a data correspondente no calendário Juliano, anterior à correcção Gregoriana (Reportorio dos Tempos..., Lisboa, Germão Galharde, 1552)

Foi fenómeno conspícuo (e.g., 0.938 em Lisboa, 0.960 em Braga), apesar da faixa de totalidade não ter percorrido território em Portugal. A informação astronómica está correcta, fenómeno aconteceu no intervalo mencionado, bem como nesse signo e grau (segundo a nossa simulação: longitude 346.6º = 16.6º de Pisces).

Eclipse Total - 07MAR1598
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 7 de Março de 1598 (GUIDE9.1)

Eclipse 07 MAR 1598 (Avelar)
Esquema e descrição do eclipse (André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos)

Segunda-feira, 10 de Julho de 1600: faixa de totalidade deste eclipse atravessou o centro do país.

Eclipse de 10 de Julho de 1600
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 10 de Julho de 1600 (GUIDE9.1)

Eclipse de 10 de Julho de 1600 (Avelar)
André do Avelar também elencou o fenómeno de 10 de Julho de 1600 no seu almanaque. Note-se a curiosa previsão cromática, associada, por correspondência, à natureza dos diversos planetas. A cor branca estava relacionada com Júpiter e a "açafroada" à natureza de Vénus. Este eclipse prognosticava "saude", "boa temperança do ar" e "abundancia". (lib. VI)


Este elenco contempla a maioria dos relatos que chegaram até nós nas fontes com maior visibilidade. Note-se que os relatos mais antigos combinam a "visibilidade" dos fenómenos com a "oportunidade", que envolve o diálogo com o momento histórico e social. Por isso, alguns dos mais divulgados relacionam-se com fenómenos astronómicos um pouco menos conspícuos (e.g., observados apenas parcialmente), que não estão na tabela que podemos consultar mais abaixo. Eventualmente verificam-se lapsos nas datas, pois os registos são amiudadamente  lavrados muito depois, e.g., Ruy de Pina (1440-1522) escreve acerca dos sucessos de séculos anteriores. A fiabilidade da cronologia abreviada das crónicas é, grosso modo, directamente proporcional à relevância histórica do sucesso ou da personalidade e, por exemplo, muito precisa na relação das datas dos nascimentos e óbitos dos eminentes do reino (rigorosamente preservadas nos registos eclesiásticos, etc.). É expectável que fenómenos paralelos inesperados, como as catástrofes naturais e as "extravagâncias" astronómicas e meteorológicas, estivessem sujeitas a um percurso de transmissão menos rigoroso e eventualmente corrompido.



Relação dos eclipses solares pré-telescópios "portucalenses" e "portugueses" anteriormente mencionados (fontes, edições consultadas):

29 de Junho de 1033 (
Chronicon Conimbricense, reprod. nos Portugaliae Monumenta Historica [PMH]: Scriptores, Olisipone, MDCCCLVI; Vol.I, Fasc.I, p.4). Confirmado e correctamente descrito; fenómeno anular, parcialmente observado na península.
01 de Julho de 1079 (
Chronicon Complutense, in Flórez, España Sagrada..., Tomo XXIII, p.317; PMH: Scriptores, vol.I, Fasc.I, p.4; Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introdução de António Cruz, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968, p.75. Fenómeno confirmado na data relatada, eclipse total.
03 de Junho de 1199 (
do acervo conimbricense, reprod. na compilação España Sagrada... de E. Flórez (Tomo XXIII, p.335 [336 na segunda edición]) e nos PMH (Scriptores, vol.I, Fasc.I, p.3)]; Crónica del rei D. Sancho deste nome o primeiro... de Ruy de Pina (transcrição de Miguel Lopes Ferreyra, 1727, pp.49-50), Crónica de Portugal de 1419, [Anón], ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Universidade de Aveiro, 1998, p.103; Chronicas dos reis de Portvgal... de Duarte Nunes de Leão, Lisboa, P. Crasbeeck, 1600, .61). Apesar da replicação dos registos e vivazes descrições, não se verificou qualquer eclipse nesta data. Radica decerto num erro na transcrição da data do "espantoso" eclipse de 1239 AD.
30 de Maio de 1232 (
PMH: Scriptores, vol.I, Fasc.I, p. 25, no âmbito da transcr. do acervo de breves composições históricas a que A. Herculano chamou "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra"); Cruz, A. (ed.), Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, Op. cit., 1968, p.98. Não se confirma qualquer fenómeno reconciliável com esta data (todavia, v. data seguinte).
03 de Junho de 1239 (Chronicon Conimbricense in: PMH: Scriptores, vol. I, p.3; Livro das Kalendas do Cabido da Sé de Coimbra, v. Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), p.435; segundo Coutinho, ibid., nota 15, as "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra" (PHM, Op. cit., p.25) expendem notícia deste acontecimento com "ligeira alteração" na data; v. eclipse de 1239). Confirmado pela simulação retrospectiva e profusamente documentado por registos coetâneos, nomeadamente monásticos, ao longo do caminho da totalidade (Stephenson, F. R.,
Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.397 et seq.).
14 de Maio de 1333 (Do acervo conimbricense, registado no códice conhecido como Livro da Noa
, reprod. no España Sagrada... de E. Flórez, (segunda edición, Tomo XXIII, p.344). Confirmado, anular no extremo norte de Espanha e parcial em Portugal.
16 de Maio de 1379 (Chronica de El-Rei D. Fernando, de Fernão Lopes, cap. CX; Luciano Cordeiro (dir.), "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895, p.182). Confirma-se eclipse total no sudoeste peninsular.
19 de Agosto de 1384 (Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, cap. CXXXVIII; Cf. Crónica de D. João I : Primeira Parte, edição crítica de Teresa Amado, Imprensa Nacional, 2017; "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", vol.III, p.9). Não confirmado nesse dia preciso, Trata-se, decerto, do fenómeno anular conspícuo do dia 17 desse mês (parcial em Lisboa, magn. 0.880).
14 de Agosto de 1433 (Chronica d'El-Rei D. Duarte, de Ruy de Pina; Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.75). Eclipse assinalaria o decesso de D. João I. Não confirmado, provável "apropriação" de um fenómeno próximo ou expediente literário. Vale o mesmo para o suposto eclipse do dia do falecimento de Dª Filipa de Lencastre.
09 de Setembro de 1438 (Chronica d'El-Rei D. Duarte, de Ruy de Pina, cap. XLIII; Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.205; diversos cronologistas e eclipsógrafos, de Calvisius a Chambers). Trata-se, decerto, do eclipse anular de 19 de Setembro, somente parcial no reino mas com magnitude (máxima) de 0.796 em Lisboa.
29 de Julho de 1478 (Obituário do Cabido da Sé do Porto (ADP, Ms. 1574, fol. 54), v. Barroca, Mário Jorge, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), vol. I, [col. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas], Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000, pág. 74, n.34). Confirmado sem ambages, eclipse total no Porto.
23 de Janeiro de 1525 (Luís de Camões, Sonetos [Fixação do texto, paráfrases explicativas e notas de Maria de Lourdes Saraiva], Publicações Europa-América, 1990, p.243; Saa, Mário, Memórias Astrológicas de Luís de Camões, Edições do Templo, Lisboa, 1978, cap. II (ed. orig.: "As Memórias Astrológicas de Camões..." Emprêsa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1940); Opus Ephemeridium sive Almanach perpetuu Abraham zacuti... (Venetiis: per Petrum Liechtenstein Coloniensem, 1502). Eclipse "literário" evocado retrospectivamente pelo vate. Anular, observável (enquanto fenómeno parcial) em Lisboa com magnitude 0.841.
21 de Agosto de 1560 (Clavius, In sphaeram Ioannis de Sacro Bosco Commentarius (p.508 da edição expandida de 1593), transcr. J. Kepler: Astronomiæ Pars Optica... (Frankfurt, 1604), CAPVT VIII: "De umbra Lunae et Tenebris diurnis"; Tycho Brahe, Historia Coelestis : ex libris commentariis manuscriptis..., lib. LXXII; Augsburg, 1666). Clavius comete um lapso no ano que menciona (1559) mas todas as referências paralelas confirmam o eclipse total a que assistiu em Coimbra.
07 de Março de 1598 (Figueiredo, Chronographia: Reportorio dos tempos, no qual se contem VI partes, scilicet dos tempos..., "Empresso em Lisboa por Jorge Rodriguez a custa de Pero Ramires. Anno de 1603", fól. 68. Esta fonte é somente um exemplo, aqui cit. porque perpetua uma leitura que podemos considerar astrológica. Por esta altura, a previsão destes fenómenos já era banal nos almanaques impressos. É relato respaldado em informação astronómica correcta desse jaez. O próprio tratado inclui, no final, um almanaque ("lunario") até ao ano de 1630.
10 de Julho de 1600 (Mais um eclipse antecipado nos reportorios e almanaques coetâneos e o último conspícuo no séc. XVI.)

Principais referências do âmbito cronístico:

Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introd. António Cruz, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968
Chronica de El-Rei D. Fernando [Fernão Lopes], "Bibliotheca de Classicos Portuguezes" (Luciano Cordeiro (dir.)), Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895
Chronica de El-Rei D. João I
[Fernão Lopes], "Bibliotheca de Classicos Portuguezes" (Luciano Cordeiro (dir.)), Lisboa, Escriptorio, vol.III, 1897
Chronica d'El-Rei D. Duarte [Rui de Pina], estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, Biblioteca Lusitana, Porto, Renascença Portuguesa, 1914
Chronicas dos reis de Portvgal, reformadas pelo licenciado Dvarte Nvnez do Lião... [Duarte Nunes de Leão], Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1600
Crónica de D. Fernando [Fernão Lopes], ed. crítica de Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1975
Crónica de D. João I : Primeira Parte [Fernão Lopes], edição crítica de Teresa Amado (c/ colaboração de Ariadne Nunes, Carlota Pimenta e Mário Costa), Centro de Estudos Comparatistas, Imprensa Nacional, 2017
Crónicas de D. Sancho I, de D. Afonso II, de D. Afonso III, de D. Dinis, de D. Afonso IV, de D. Duarte, de D. Afonso V e de D. João II [Rui de Pina], titulação e remissão de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1977
Crónica de Portugal de 1419 [Anón.], ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998
Livro da Noa (transcrição de D. Antonio Caetano de Sousa, Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Lisboa Occidental, Officina Sylviana da Academia Real, M.DCC.XXXIX;
Tomo I, Livro III, Num. 10., 375 et seq.)
Portugaliae Monumenta Historica – A Saecula Octavo post Christum usque ad quintumdecim: Scriptores, Volumen I, Fasciculum I, Olisipone, Typis Academicis, MDCCCLVI; Academia das Ciências de Lisboa, 1856). [Secção Scriptores ("autores"), composta por três fasciculi, foi compilada sob a direcção de Alexandre Herculano (J. da Silva Mendes Leal também responsável pela estruturação das compilações)]
Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), "Hvmanitas", vol. L (1998), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra
Melo, Arnaldo F. de Ataíde e, Inventário dos Códices Alcobacenses, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1930-32.


- Tabela dos eclipses solares cuja faixa de totalidade/anularidade percorreu o território do continente (nos limites actuais), intervalo: séculos XI-XIX. Tipos: (T)otal, (A)nular e (H)íbrido. Calendário Juliano ou Gregoriano, dependendo se ano é anterior ou posterior a 1582; anos da Era Cristã (ou "Comum")

TIPO DATA
REGIÕES NA FAIXA DE TOTALIDADE / ANULARIDADE
T 01 Jul. 1079 (Seg.)
De noroeste para sudeste, limite superior da faixa de totalidade abrangeu Coimbra e Castelo Branco; a sul incluiu Melides, Aljustrel e Mértola.
A 06 Dez. 1192 (Dom.)
Toda a região noroeste a norte de Aveiro. Abrangeu também quase metade do nordeste Transmontano.
A 27 Nov. 1201 (Ter.)
Praticamente todo o norte e centro. Limite sul numa linha desde a foz do Mondego até Elvas, inclusive.
T 03 Jun. 1239 (Sex.)
Imensa faixa com limite norte entre Guimarães e Bragança e limite sul entre Setúbal e Portalegre.
H 26 Jun. 1321 (Sex.)
Faixa estreita, como é comum nos fenómenos híbridos. Eclipse abrangeu o Porto e Guimarães (ao início da manhã), seguindo para nordeste na direcção de Bragança.
T 16 Mai. 1379 (Qui.)
Quase todo o sul do país, limite norte permitiu totalidade em Sintra, Lisboa e Beja.
T 16 Jun. 1406 (Dom.)
Todo o noroeste, limite sul numa diagonal entre Aveiro e Bragança, inclusive.
H 19 Out. 1408 (Sex.)
Estreita faixa noroeste-sudeste, entrando num ponto na costa a sul da foz do Mondego e passando em Portalegre.
T 07 Jun. 1415 (Sex.)
Sol já nasceu eclipsado. Ampla faixa sudoeste-nordeste com limite norte passando em Coimbra (mesmo sobre a linha) e abrangendo a Guarda. Limite sul a norte de Sagres, abrangendo quase todo o Alentejo.
A 05 Abr. 1437 (Sex.)
Ampla faixa que atravessou todo o centro. A norte, incluiu o Porto e quase abrangeu Vila Real, a sul foi tangencial em Lisboa e incluiu Évora.
T 29 Jul. 1478 (Qua.)
Todo o norte, limite sul permitiu incluir Ovar, Viseu e Guarda.
T 18 Abr. 1539 (Sex.)
Todo o sul; a norte incluiu Setúbal e Elvas.
T 21 Ago. 1560 (Qua.)
Faixa de noroeste para sudeste. Abrangeu todo o litoral norte e centro quase até à Figueira da Foz. Limite sul numa linha desse ponto até Portalegre, que já não ficou na faixa. Toda a região a nordeste de Vila Real também fora da totalidade.
A 25 Fev. 1579 (Qua.
Faixa pouco ampla, limite norte entre o sul da Nazaré, incluiu Tomar e Castelo Branco. A sul, abrangeu confortavelmente Setúbal e ainda Évora.
T 10 Jul. 1600 (Seg.)
Limite norte do percurso começou a sul de Aveiro e incluiu Coimbra e Castelo Branco. A sul, começou a norte da Nazaré, passou tangencialmente a norte de Tomar e também a norte de Portalegre.
A 27 Jan. 1683 (Qua)
Todo o noroeste peninsular. O limite sul desenhou-se entre um ponto da costa a norte da Figueira da Foz e seguiu para nordeste por Zamora (em Espanha), incluindo Aveiro, Viseu e praticamente toda a região Transmontana.
H 12 Jul. 1684 (Qua.)
Estreitíssima faixa que atravessou o Alentejo de noroeste para sudeste. Passou a norte de Santiago do Cacém e por Aljustrel.
H 26 Out. 1753 (Sex.)
Estreita faixa noroeste-sudeste, passou um pouco a norte de Viana do Castelo, bem como pouco a norte de Braga e Vila Real.
A 01 Abr. 1764 (Dom.)
Amplo, faixa percorreu boa parte do “rectângulo”, excepto o litoral de Sintra e Mafra para norte, bem como regiões do interior centro e noroeste. De fora ficaram Coimbra, Aveiro, Porto, Vila Real, todo o Minho. Viseu esteve no limite.
T 08 Jul. 1842 (Sex.)
Faixa atravessou o Algarve e Alentejo de sudoeste para nordeste. Entre Setúbal e Sagres, no litoral, subiu quase até Portalegre e deixou de fora, a sul, grosso modo, o sotavento Algarvio.
T 22 Dez. 1870 (Qui.)
Abrangeu parte do Alentejo e todo o Algarve. O limite norte passou a uma razoável distância a sul de Setúbal e também deixou Beja de fora.
T 28 Mai. 1900 (Seg.)
Faixa mediana, abrangeu o litoral entre o Porto e Aveiro, incluindo estas cidades. "Entrando" em Ovar, linha central passou por Viseu, Mangualde e perto da Guarda. Pinhel ficou no limite norte e o Fundão a sul, já fora da totalidade.
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- Eclipses solares com magnitude superior a 0.800 (fenómenos susceptíveis de constituirem objecto de registo) no intervalo 1000-1560 AD em Coimbra (escolhida pela localização geográfica e tradição cronística).

Coimbra - eclipses magn. superior a 0.800


Oppolzer - blatt nº132
Detalhe de uma das folhas (Blatt nº132) do monumental Canon der Finsternisse ("Cânone dos Eclipses") de Theodor von Oppolzer (Akademie der Wissenschaften, Kaiserlich-Königlichen Hof-und Staatsdruckerei, Wien, 1877), com cerca de 13000 fenómenos (solares e lunares) calculados. Infelizmente, os métodos aproximados usados por von Oppolzer na construção dos seus mapas representavam de modo impreciso as curvas, pois somente calculavam os pontos inicial, médio e final. (vide e.g., Todd, M. L., Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.199, n.15; Mitchell, S. A., Eclipses of the Sun, Columbia University Press, 1935 (1923) p.36). Mas incluía tabelas para extrapolar informação. Foi reeditado pela Dover em 1962 ("Unabridged and corrected republication of the German original") por Owen Gingerich. Todavia, o Canon também não tomava suficientemente em consideração a variabilidade da rotação da Terra.


Historiografia

Recuando pelo menos a Leovitius (Cyprian Karásek), 1514/1524?-1574, Tycho ou Kepler, a interpretação dos relatos (e a historiografia da mesma) constitui, por si, um estudo muito interessante. Antigas listagens e/ou relatos de supostos eclipses históricos podem ser encontrados na seguinte bibliografia muito resumida,
grosseiramente organizada por ordem cronológica (obras anteriores ao início do século passado):
 
Ricciolus (
Giovanni B. Riccioli), Almagestum Novum, Bologna, 1651
Johannes Kepler, Astronomies Pars Optica..., Frankfurt, 1604
Tycho Brahe, Historia Coelestis..., Augsburg, Simonem Utzschneiderum, 1666 (miscelânea de relatos e observações editada e impressa por Albert Curtz décadas após o decesso de Brahe)
Sethus Calvisius (Seth Kalwitz), Opus chronologicum ex autoritate s. scripturae ad motum luminarium coelestium contextum, Leipzig, 1605 (consultada a 4ª edição: Opus chronologicum ubi Tempus Astronomicum..., Editio Quarta, Francofurti ad Moenum & Embdae, Anthonius Hummius, MDCL)
Nicolaas Struyck, Inleiding tot de algemeene geographie, benevens eenige sterrekundige en andere verhandelingen ["Introdução à geografia geral, bem como alguns tratados astronómicos"], Amsterdam, Isaak Tirion, 1740
James Ferguson, Astronomy Explained upon Sir Isaac Newton's Principles, 2nd ed., pp. 167-79. London, 1757 (baseado nos catálogos de Struyck, Riccioli et al.)
Nicolas V. de Saint-Allais (ed.), L'Art de verifier les Dates, 1818-9 (1750); listas de eclipses por Alexandre Guy Pingré
Mabel L. Todd, Total Eclipses of the Sun, Boston, 1894
Samuel J. Johnson, Historical and Future Eclipses with notes on Planets, Double Stars, and other Celestial Matters, London: James Parker and Co., 1896 (edição pretérita com título Eclipses, Past and Future...,
1874)
George F. Chambers, Story of Eclipses, London, George Newnes, 1899 (teve diversas reedições)
 
Também interessantes: o artigo de G.B. Airy: On the Eclipse of Agathocles, the Eclipse at Larissa, and the Eclipse of Thales (Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, vol. 17, Issue 8, June 1857, pp. 243–244) e os contributos de John Russell Hind (1823-1895). A crença nas valências cronológicas fez com que alguns destes autores "ajustassem" cronologias estabelecidas, raramente com o respaldo necessário. A exegese dos relatos tornou-se gradualmente mais cautelosa e exigente.
 
Nos trabalhos acima, encontramos um amplo elenco de relatos de fenómenos célebres e supostamente confirmados. Alguns vão recorrendo, consoante a metodologia crítica em presença e a dinâmica intertextual. Primeiro os clássicos, os bíblicos e os medievais. Mais tarde, com Gaubil e outros jesuítas, chegam os extremo-orientais, com datações por vezes prodigiosas. Depois o contingente mesopotâmico entretanto desvelado nas placas cuneiformes.

Nos autores do século XIX encontramos, amiudadamente, um eclipse observado na China Antiga na constelação/asterismo Fang ou o famigerado episódio de Ho e Hi (ou Ho e Hsi). Da Bíblia, a profecia de Amos (VIII, 9) e uma duvidosa referência em Isaías, XIII, 10. Assistiu-se entretanto ao início da Assiriologia (com o estudo e tradução dos registos cuneiformes), com referências mais precisas, como a que respeita ao eclipse de Nínive em 783 a.C. Os registos dos eclipses lunares do Almagesto mereciam
destaque pela antiguidade e proveniência.

Os dez mais antigos eclipses lunares descritos no Almagesto são referidos como tendo sido observados na Babilónia (Steele, J., Observation and Predictions of Eclipse Times by Early Astronomers, (Archimedes, vol. 4), Kluwer Academic Publishers, 2000, p.93). O mais antigo possui data equivalente a 19 de Março de 720 a.C. (Toomer (trans.), Ptolemy's Almagest, 1984, p.191).

Entretanto, levantou perplexidade (pelo menos desde Tycho) o relato bíblico no 2º Livro de Reis, 20, 10-11, envolvendo Ezequias e um "milagre" com a sombra do relógio de sol de Acaz (Ahaz), que retrocedeu 10 graus, "atrasando o tempo". Todavia, não parece haver qualquer relação com eclipses. Sem demoras, os historiadores iniciam o desenrolar dos episódios clássicos incluindo o de Tales, o da captura de Larissa (Xenofonte, Anabasis, III, 4), o do exército de Xerxes em Sardes (Heródoto, VII, 37), os relatados por Tucídides na sua História da Guerra do Peloponeso (como o fenómeno supostamente "previsto" por Anaxágoras no primeiro ano das hostilidades, em Atenas, 431 a.C.) ou o eclipse lunar associado ao supersticioso Nícias no cerco de Siracusa (augúrio que determinou uma delonga na retirada e um desastroso resultado para este comandante e restante contingente ateniense). Em contraste, Péricles, na biografia dele lavrada nas Vidas Paralelas de Plutarco (XXXV, 1), mostrou presença de espírito para acalmar os seus subordinados embarcados numa frota prestes a zarpar, mostrando que, tal como a sua capa escondia o Sol (aqui tapando os olhos do aterrorizado capitão da sua armada), assim acontecia num eclipse, somente numa escala maior. Ainda podemos referir o eclipse de 310 a.C., quando Agátocles de Siracusa supostamente rompeu o bloqueio naval imposto pelos Cartagineses e, ao abrigo da escuridão, escapou e atacou território inimigo no Norte de África (vide e.g., Diod. Sículo, Bibl. Hist., lib. xx., cap. I), o de Pelópidas em Tebas, o de Arbela, supostamente antecedendo a decisiva batalha (conhecida como de Arbela ou Gaugamela) com a vitória de Alexandre Magno, o fenómeno lunar de Pidna (Pydna) na Macedónia (na vitória dos Romanos), que foi, segundo Tito Lívio, previsto pelo tribuno Sulpício Galo (Sulpicius Gallus), o que marcou a travessia do Rubicão por César (Dião Cássio, lib. XLI) ou o do cruel Herodes, relatado por Flávio Josefo (Ant. Jud., 17.6.4). Entre muitos outros, que se estendem pela Idade Média e envolvem a morte do Imperador Constantino, a chegada de Alarico às imediações de Roma, outro no ano da Hégira (
advento do Islão), mais um no ano em que Saladino conquistou Jerusalém aos Cruzados de Guy de Lusignan (Batalha de Hattin, 1187), o eclipse solar "Português" de 19 de Setembro de 1438 aquando (i.e. quase coincidente com a data) da morte de D. Duarte (v. supra) ou o célebre "Eclipse de Colombo". São centenas de relatos. Alguns relacionam eclipses e terramotos, uma ideia que persistiu demasiado tempo.

Terramotos, André do Avelar, cap.40
Eclipses e terramotos. (André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos..., 1602, L.III, cap. 40)

Em resumo, é tarefa complexa interpretar muitos dos relatos, particularmente os "literários", os isolados e os tecnicamente lacónicos ou incompletos. Podemos estar perante assimilações de fenómenos não relacionados, "colagens", ficções literárias, etc. Problemas recorrentes residem nos insuficientes detalhes, registos não coevos ou indirectos, transferências, interpolações, paráfrases, anacronismos, etc. Outros relatos, pelo contrário, constituem insubstituível ferramenta cronológica. Muitos continuam a fascinar e a ocupar a erudição de especialistas (astrónomos, arquivistas e historiadores). Por exemplo, um paper recente de Colin Humphreys e Graeme Waddington argumenta que a célebre passagem bíblica em que Josué orou e o Sol parou (Josué, 10:12–13) pode ser explicada pelo eclipse anular de 30 de Outubro de 1207 a.C. (Astronomy & Geophysics, vol. 58, Issue 5, October 2017, pp. 5.39–5.42).

Eclipsis solis - Sphaera mundi 1490
Eclipsis solis, xilogravura (Sphaera mundi, edição de Boneto Locatelli (Bonetus Locatellus) para Octavianus Scotus, Veneza, 1490)


Astrologia

"De longas obseruaçoes vieram os Astrologos aueriguar que os eclipses, & cometas significauam seus efeitos em diversas partes do mundo, conforme ao signo em que se faziam, ou appareciam, & e assi forão attribuindo a cada hum dos doze signos do Zodiaco, suas prouincias, & cidades, segundo acharam succedr os efeitos..." (Avelar, Op. cit., Tractado sexto, 16)

A preocupação com os eclipses estava, no passado, principalmente relacionada com a suposição de que estes, como as conjunções e oposições da Lua, eram determinantes das condições climáticas, atmosféricas, até de alguns eventos históricos, Como curiosidade, acreditava-se que os minerais conhecidos como glossopetra ("lingua de pedra", na realidade restos fósseis, nomeadamente dentes em forma de cúspide) caíam do céu durante os eclipses da Lua ("deficiente luna"): "Glossopetra, linguae similis humanae, in terra non nasci dicitur, sed deficiente luna caelo decidere, selenomantiae necessaria." (Plinius, Nat. Hist., XXXVII, 59). Outra interpretação muito disseminada prolongava os efeitos dos eclipses solares por tantos anos quantas as horas que o fenómeno demorava; a dos lunares por tantos meses quantas as horas: "...and the writers affirmed, that the effects of an Eclipse of the Sun continued as many years as the Eclipse lasted hours; and that of the Moon as many months." (James Ferguson, Astronomy Explained upon Sir Isaac Newton's Principles, 9th ed., 1794, p.273). A significação dos eclipses estava associada às coisas mais vastas, de ordem geral, cidades e nações:
 
“... the next task (is) to deal briefly with the procedure of the predictions, and first with those concerned with general conditions of countries and cities. The method of inquiry will be as follows: The first and most potent cause of such events lies in the conjunctions and oppositions of the sun and moon at eclipse and the movements of stars at that time.” (Tetrabiblos, II, 4; trans. Robbins (1940, p.161)).

Zacuto, num texto sobre a teoria da história na perspectiva Judaica*, já redigido no Norte de África após a expulsão, revela a convicção de que os eclipses e as conjunções planetárias desvelariam astrologicamente a "Salvação de Israel" e a vinda do Messias, que previa para 1503/4 (Chabás and Goldstein, "Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print", Transactions of the American Philosophical Society, New Series, Vol. 90, No. 2, 2000,  p.15).

* Goldstein, B. R. 1998. "Abraham Zacut and the Medieval Hebrew Astronomical Tradition", Journal for the History of Astronomy, 29:177-186; Beit-Arie, M., and M. Idel. 1979 (5739 A.M.). "Treatise on Eschatology and Astrology by R. Abraham Zacut," Kiryat Sefer, 54:174-194 [em Hebraico]



Contributos científicos

Os filósofos da Grécia Antiga utilizaram os eclipses e as ocultações para delinear a primeira concepção de um universo tridimensional. Pelos eclipses lunares, Aristóteles compreendeu a curvatura, logo a esfericidade, da Terra. Como Frank Close refere (Eclipses, Op. cit., 3.1) esta conclusão é brilhante pois demonstra 1) a compreensão de que a luz viaja em linha recta; 2) de que a Lua funciona como um "écran" sólido; 3) de que a  sombra é efectivamente a do nosso planeta.

Ptolomeu descreveu um método utilizado por Hiparco: se no ápice de um eclipse (lunar) a Lua se encontra diametralmente oposta ao Sol, então podemos determinar a longitude solar a partir da sua declinação (medindo a altura solar ao meio-dia); consequentemente, a distância de uma qualquer estrela à Lua em pleno eclipse permite conhecer a sua "longitude" (i.e. a sua distância relativamente ao equinócio vernal). Foi o método utilizado para a descoberta e cálculo do valor da
Precessão (comparando com estimativas de longitudes estelares feitas em gerações anteriores por Timocharis (320–260 a.C.) e Aristillus (~280 a.C.). Em 130 a.C., o mesmo Hiparco utilizou um eclipse solar para estimar a distância da Lua (utilizando trigonometria, a partir de observações simultâneas do mesmo fenómeno a partir de dois locais diferentes cuja distância entre si era previamente conhecida). O astrónomo e matemático já sabia reconhecia a utilidade da observação dos eclipses para determinar a diferença de longitude (distância leste-oeste) entre dois pontos geográficos, utilizando medições comparadas (Estrabão, Geog. I, 1, 12; Loeb). Os astrónomos Árabes serão pioneiros na implementação desta técnica, logisticamente exigente, que será utilizada na Europa até ao século XVIII. O próprio Ptolomeu, segundo a anotação de G. J, Toomer, teria apenas à disposição um único registo de observações simultâneas em lugares suficientemente separados: a do fenómeno de 20 de Setembro de 330 a.C., observado em Arbela e Cartago (Ptolemy's Almagest: Translated and Annotated, Duckworth, 1984, p.75). Debruçou-se, no seu importante tratado, sobre dezanove eclipses lunares (v. relação em Britton J. P., Models and Precision: The Quality of Ptolemy's Observations and Parameters, Garland Publishing, 1992, p.52). O alexandrino explicou que dez destes foram observados na Babilónia, cinco por astrónomos gregos anteriores à sua época (em Alexandria e Rodes), e outros quatro por si em Alexandria (J. M. Steele, Ptolemy, Babylon and the rotation of the Earth, Astronomy & Geophysics, vol. 46, issue 5, Oct. 2005, 5.11–5.15). Através dessas observações estudará (comparativamente) os parâmetros e movimentos lunares, incluindo as principais 'anomalias' do seu movimento.

O movimento da Lua é extremamente complexo, Cedo se reconheceu a não uniformidade do movimento no seu epiciclo. O problema é evidente até numa sequência de observações superficiais: o seu movimento em longitude é irregular, com uma velocidade angular que pode variar entre 10º e 14º por dia (Olaf Pedersen (Alexander Jones, ed.), A Survey of the Almagest: Revised Edition, Springer, 2008, p.160). Pode acontecer em
qualquer ponto da órbita. Esta irregularidade resulta, na realidade, da forma elíptica da órbita da Lua, com a Terra num dos focos. Hiparco estudou esta "anomalia" e Ptolomeu procurou melhorar a solução, A irregularidade obriga à definição de um novo período: o mês anomalístico, quando a Lua retorna à mesma velocidade (a variação em latitude da órbita lunar determina este período específico, no qual a Lua retorna à mesma latitude, i.e. ao mesmo nodo). A teoria lunar no Livro IV do Almagesto respalda-se no estudo de 15 eclipses espalhados por um período de quase 900 anos, o primeiro dos quais foi observado na Babilónia em 721 a.C. (ibid., p.169). Ptolomeu verifica os parâmetros de cada um e compara com as mais "fiáveis" posições do Sol, pois qualquer eclipse envolve sempre ambos os luminares. A Teoria Lunar de Ptolomeu responde às insuficiências da de Hiparco e, nesse processo, desvela e acautela uma segunda "anomalia" (que será muito mais tarde chamada evecção, que hoje sabemos dever-se à atracção solar) sendo a maior irregularidade periódica. Todavia, conduziu, por uma consequência lógica da solução geométrica encontrada (obviamente a combinação de movimentos circulares com diferentes raios e centros, como foi feito até à época de Newton e Kepler), ao desfasamento entre a variação expectável no diâmetro aparente da Lua (devido às diferentes distâncias do seu movimento no seu suposto epiciclo) e a que se verificava (quase diminuta) na realidade observacional. Será objecto de crítica por parte de ulteriores astrónomos. Uma terceira anomalia (variação) passará despercebida a Ptolomeu. (Vide Dreyer, J. L. E., A History of Astronomy from Thales to Kepler, Dover Books, 1953 (1906), p.193 et seq.)

Ptolomeu recorreu quase sempre, por comodidade, a uma contagem dos anos baseada no início do reinado babilónico de Nabu-nasir: a chamada "Era de Nabonassar" (nesta, o 1º dia do 1º mês (Thoth) corresponde a 26 de Fevereiro de 747 a.C.; ou 746 a.C. se utilizarmos, segundo o critério astronómico, um "ano zero"). Como o próprio astrónomo escreve, a partir dessa época há, no geral, registos ininterruptos de observações: "For that is the era beginning from which the ancient observations are, on the whole, preserved down to our own time." (Toomer, p.166). Quando se refere a observações noutros sistemas, elenca-os. Embora as datas originais dos exempla mesopotâmicos fossem registadas no calendário lunissolar de origem, Ptolomeu converte-as para os meses do eficiente calendário Egípcio, tendo o cuidado de utilizar datas "duplas"
para identificar os dias (somente necessário para as observações nocturnas), e.g. "Pachon 17/18", lit. "do décimo sétimo para o décimo oitavo" (Toomer, p.12), pois embora o dia começasse ao pôr do Sol para os povos da Mesopotâmia, no Egipto começava convencionalmente ao nascer do Sol do dia seguinte (tendo o astrónomo escolhido o meio-dia como ponto de partida convencional).

A Descrição Científica e os Fenómenos Observados (com destaque para a Corona)

A descrição propriamente científica dos eclipses totais do Sol e o eventual estudo dos relatos pretéritos parece começar apenas com Johannes Kepler e Giovanni D. Cassini (eclipse de 1706). Os primeiros registos detalhados da era telescópica devem-se a astrónomos como Don Antonio de Ulloa, militar, naturalista e escritor Espanhol (Observación en el mar de un eclipse de sol (1778)), José Joaquín de Ferrer (astrónomo Basco que foi eleito membro da American Philosophical Society) e que, no fenómeno total de 1806 observando em Kinderhook (Nova Iorque), cunhou o termo "corona". e Francis Baily, que observou o fenómeno anular de 15 de Maio de 1836 na Escócia (mencionando pela primeira vez o efeito de luz que ficará conhecido como "Baily's Beads"), bem como o total de 8 de Julho de 1842, observado em Pavia (Memoirs of the Royal Astronomical Society, vol.15, 1846).

Muito antes, Firmicus Maternus (séc. IV) parece ter sido o primeiro autor a referir incontestavelmente as protuberâncias solares, no eclipse de 334 A.D. na Sicília. Kepler (que estudou os testemunhos) referir-se-á a estas como "chamas vermelhas", designação utilizada até uma época recente.
A célebre corona parece estranhamente ausente da esmagadora maioria das antigas descrições. A primeira referência inequívoca e datável surge numa crónica de Constantinopla (Leonis Deaconis Historiae, lib. IV, cap. 11; Niebuhr (1828), p.72; orig. em Grego e vertido em Latim pelo ed.), descrevendo um eclipse ocorrido em Dezembro de 968 A.D.:

"...um certo brilho opaco e fraco, como uma faixa estreita brilhando em torno das partes extremas do limbo do disco." [trad. nossa]

Mas verifica-se uma breve referência literária pretérita na obra De facie quae in orbe lunae apparet ("Sobre a face visível no orbe da Lua") de Plutarco (Cherniss and Helmbold (eds., trans.), Moralia, vol. XII, Loeb, 1957; 932-B):
 
"Even if the moon, however, does sometimes cover the sun entirely, the eclipse does not have duration or extension; but a kind of light is visible about the rim which keeps the shadow from being profound and absolute."


Halley descreverá a notável e diáfana característica (que se tornará a mais apetecida nas ulteriores observações), como “a luminous ring of pale whiteness”. Pierre Guillermier e Serge KoUThmy (Eclipses Totales: Histoire, Decouvertes, Observations, Masson, 1998) referem como o sábio Inglês supunha que que esse "halo" seria resultante de uma suposta "atmosfera lunar". Segundo Arago, o astrónomo Maraldi, em 1724, verificou que não era concêntrico relativamente à Lua e conjecturou que seria somente fenómeno de difracção (Astronomie Populaire, vol. III, p.594).


O século XIX, em particular a segunda metade, com o seu desenvolvimento científico-tecnológico (também o exacerbar dos nacionalismos) assistiu a uma autêntica "corrida" aos eclipses e às descobertas que estes poderiam proporcionar, no estudo da física e química do Sol, recorrendo à fotografia e à fundamental espectroscopia (que está na origem da Astrofísica). É a partir de 1851 que as verdadeiras 'expedições' se começam a realizar assiduamente, percorrendo o mundo em busca de minutos de umbra
: únicas circunstâncias nas quais, não ofuscados pelo intenso brilho solar, seria possível estudar a ténue corona, as protuberâncias e filamentos, em que se procuravam planetas intra-mercuriais (como veremos adiante) ou até eventuais cometas de outro modo invisíveis.

O coronógrafo, instrumento que permite o estudo sistemático das mencionadas características sem a necessidade de um eclipse total, somente foi introduzido por Bernard Lyot, no Observatório de Meudon, em 1931 (pode ser interessante ler os comentários, cépticos, de Arago acerca de uma experiência de La Hire e Delisle, em 1715, que nos parece precursora; ibid., vol. III, pp.603 et seq.).

O eclipse de 1860 constituiu um ponto de viragem, sendo o primeiro no qual a fotografia teve um papel relevante. Há um antecedente em 8 de Julho 1842: daguerreótipo feito por Alessandro Majocchi que demorou 2 minutos a captar e somente registou a fase parcial, sem a corona. Todavia, a mais antiga imagem cientificamente relevante de um eclipse total do Sol foi o daguerreótipo (com exposição de 84 segundos) obtido por Julius Berkowski no Observatório Real de Königsberg (então na Prússia) em 28 de Julho de 1851. A partir do eclipse de
18 de julho de 1860, a fotografia torna-se uma tecnologia absolutamente incontornável. Warren de la Rue e Angelo Secchi utilizaram placas de colódio, que permitiam exposições mais curtas e eficientes. Eram revestidas de uma espécie de verniz que era aplicado líquido a placas fotográficas de vidro, sensibilizado com nitrato de prata; chamado "colódio húmido" porque a placa deveria permanecer húmida durante o procedimento.

Foi no eclipse de 1860, em Miranda de Ebro, Espanha, que foram obtidas as primeiras fotografias da corona, por de la Rue. Em 1870, aquando de mais um eclipse total, os peritos ainda discutiam se esta (
na realidade um envelope luminoso de plasma, a parte exterior da atmosfera solar) seria inteiramente solar (Charles A. Young), se se devia à atmosfera terrestre (Norman Lockyer, o fundador da revista Nature em 1869) ou se era efeito de ambas (Joseph Winlock)..

O termo específico ("corona") havia sido utilizado pela primeira vez, como mencionao, pelo astrónomo José Joaquín de Ferrer. Todavia, a sua natureza continuava a desafiar os cientistas. Em 1891, na Royal Institution em Londres, Arthur Schuster  elencava as alternativas (cit. por Zirker, Op. cit., pp.19-20):
 
It consists of matter either (1) forming a regular atmosphere around the Sun, or (2) matter projected from the Sun, or (3) matter falling into the Sun, or finally (4) matter circulating around the Sun with planetary velocity. We may at once reject the first and fourth, for it may be proved that the Sun could have no regular atmosphere to the extent indicated by the outlines of the corona, and spectroscopic results exclude the hypothesis that the bulk of its matter revolves with planetary velocity, though probably there is some meteoric material which does revolve around the Sun.

Mabel Todd (Op. cit., 1894, pp.73-4), baseada em Huggins (Proceedings of the Royal Society, xxxix. (1885), 120.) refere a diversidade de teorias em presença: "...that the corona is a gaseous atmosphere carried round with the Sun,— that it is gaseous matter ejected from the Sun or received by it, in motion from the forces of ejection, gravity, solar rotation, or perhaps repulsion of some kind, — that, like the ring of Saturn, it consists of swarms of meteoric particles too swiftly revolving to fall into the Sun, — or again, that it is due to the cease- less downfall of meteoric matter, and the debris of disintegrating comets.". Também são aí referidas a teoria mecânica de Schaeberle e a magnética de Bigelow. As hipóteses "lunar" e "atmosférica" só foram definitivamente abandonadas quando placas de um mesmo eclipse obtidas em diferentes localizações comprovaram que a corona(tal como as protuberâncias) não "seguia" a Lua e muito menos seria um efeito da nossa atmosfera. Era um fenómeno solar, como provado verificado por Deslandres nas observações do eclipse de 1893

O Coronium e o Hélio

Em 18 de Agosto de 1868, um eclipse total avançou pela Índia e Malásia. O espectroscópio foi utilizado pela primeira vez nestas circunstâncias. Na vanguarda da espectroscopia estiveram James Tennant, Norman Pogson, Georges Rayet, Jules Janssen e Norman Lockyer, entre outros. Doravante era possível identificar os elementos químicos e até a temperatura e densidade da fonte emissora.

A análise do espectro solar levou à ponderação da existência de um novo elemento químico, com uma emissão peculiar e "desconhecida" (associada à risca de emissão nos 530,3 nm no espectro), a que se chamou "Coronium". Somente nos anos 30 do século passado (a partir das investigações do alemão Walter Grotrian e das novae pelo sueco Bengt Edlen) é que se compreendeu que essa assinatura espectral resultava, em parte, das elevadíssimas temperaturas e consequentes alterações verificadas em elementos conhecidos, nomeadamente o átomo de ferro altamente ionizado (Fe13+) na zona da coroa solar (incidentalmente, também um novo "elemento" inexistente, o nebulium, foi ponderado como resposta a anomalias no espectro das nebulosas).


Pierre Jules Janssen foi o primeiro a usar um espectroscópio "no terreno" durante o mencionado eclipse (que observou na Índia). Percebeu que uma linha amarela do espectro não coincidia exactamente com as posições das linhas (D1 e D2) que denunciam a presença do Sódio. Designou-a D3 e o
gás até então desconhecido foi baptizado como Helium (Hélio). O já mencionado N. Lockyer descobriu-o simultaneamente de modo independente. Esse elemento foi, décadas mais tarde (1895), também encontrado na Terra e isolado em laboratório.

Proeminências

Quanto às proeminências solares, enormes e brilhantes estruturas que se destacam da superfície do Sol, geralmente em forma de laço, pareciam iguais observadas a partir de diferentes locais (i.e. através de diferentes zonas da atmosfera). Verificou-se que o espectro apresentava linha de hidrogénio, logo eram de natureza gasosa. Também se concluiu que eram fenómenos que aconteciam no próprio Sol.

Vulcano

Os eclipses solares também estiveram, no final do séc. XIX, ligados à busca do hipotético planeta "Vulcano" (ou de outros eventuais planetas intra-mercuriais), segundo a teoria de Urbain Le Verrier (o matemático que, estudando as perturbações da órbira de Úrano, determinou os parâmetros da órbita de Neptuno e indicou onde este novo planeta seria encontrado). O Francês verificou (em publicação datada de 1859) que erros nas posições assumidas no periélio e a lenta precessão na órbita de Mercúrio em torno do Sol era inexplicável segundo a mecânica newtoniana. Deveria pois existir um planeta interior responsável por esse efeito. Após a sua "localização" por um tal Edmond Lescarbault (médico de província e astrónomo amador), "validada" por Le Verrier mas sempre interpretada com enorme cepticismo por reputados astrónomos como E. Liais ou C. Flammarion, alguns observadores (e.g., James Craig Watson, Lewis Swift) ulteriormente confirmaram ter observado o esquivo planeta (todavia, observações eram discordantes entre si e, para mais, de múltiplos objectos, não apenas do suposto Vulcano). De facto, não há qualquer planeta intra-mercurial. A explicação científica para as perturbações orbitais de Mercúrio, insuspeitada na época, surgiu apenas quando Albert Einstein publicou a sua Teoria Geral da Relatividade em 1915 e está relacionada com a poderosa interferência do campo gravitacional do Sol.

Terramotos

No início do século XX, ainda se ponderava seriamente uma relação entre eclipses e terramotos, doravante numa correlação estatística que estaria "relativamente estabelecida", vide G. F. Chambers, The Story of Eclipses, D. Appleton and Company, 1912, p.65, onde se refere uma investigação (terramotos registados na Califórnia entre 1850 e 1888) de F. K. Ginzel (Die Californischen Erdbeben 1850-1888 in ihrer Beziehung zu den Finsternissen, 255-309; in: Meyer, M. W. (Redacteur), "Himmel und Erde", (vol.II), H. Paetel, 1890).

A Rotação da Terra e a Duração do Dia

A informação proveniente da observação dos eclipses foi (e ainda é) também extremamente útil no estudo da rotação da Terra (variações de longo prazo). As variações das velocidades orbitais (e.g., o "efeito de maré" dos oceanos) tem como consequência abrandar a rotação da Terra, determinando um aumento da duração do dia. A rotação não é constante (∆T é a diferença entre o "Tempo Terrestre" e o Tempo Universal, UT), existindo todavia outros factores complexos. O efeito da fricção é inferido a partir do desvio em longitude dos percursos dos eclipses e "calibrado" a partir de registos do passado. Existem evidências de factores de aceleração que contrabalançam o referido efeito (ou seja, existem factores que aceleram, em vez de travar, a rotação terrestre, talvez relacionados com o nível os oceanos, com a contracção do planeta ou com a expansão do seu núcleo).

Quanto aos testemunhos do passado, Stephenson afirma: "Ancient and medieval astronomers were in the habit of timing the various phases of eclipses to improve the accuracy of future prediction. Often astrology provided the ultimate impetus, although medieval Arab astronomers sometimes timed lunar eclipses to determine geographic longitude. Historians and annalists (especially in Europe) usually noted eclipses because of their spectacular nature." ("Historical eclipses and Earth's rotation" (Harold Jeffreys Lecture 2002), Astronomy & Geophysics, Volume 44, Issue 2, April 2003, Pages 2.22–2.27; p.2.24). Acrescenta que tendo sido quase todos registados por cronistas, a informação que encerram raramente é quantitativa.

Eclipses - rotação da Terra
Tomando apenas em consideração a desaceleração promovida na rotação da Terra pelo efeito de maré, o eclipse solar total de 136 a.C., cuidadosamente registado, devia ter acontecido com uma deslocação de 22º para Leste da Babilónia. Existem, pois, outros factores que tendem a acelerar, em vez de desacelerar, a rotação da Terra. O mapa representa o caminho (verificado) do eclipse de 136 a.C., linha 1, que passou na Babilónia (2); a linha da esquerda (3), desfasada cerca de 50 graus para Oeste representa o caminho caso a rotação da Terra fosse constante, uniforme (∆T=0); a da direita (4), deslocada 22 graus para Leste, o caminho que seria expectável tomando em conta apenas o aumento da duração do dia devido ao efeito de maré. (Retirado de Vanin, Gabriele, Les Eclipses: Comment les Observer et les Comprendre, Paris, Éditions Grund, 1999; orig. Arnoldo Mondadore Editore, Milan, 1997)

Como se pode ler no artigo Ocean Tides and the Earth's Rotation [Global Geophysical Fluid Center], as marés afectam a rotação do nosso planeta de duas maneiras contrastantes: uma e á fricção de maré [pela acção do torque de maré], determinando uma variação secular extremamente lenta; outra, determinada pelo contínuo movimento das marés, produz variações pequenas mas muito rápidas na rotação. A variação secular da rotação é um tópico clássico da Geofísica.

A especulação acerca do tema recua a 1695 quando Edmond Halley, nas páginas finais de "Some Account of the Ancient State of the City of Palmyra, with Short Remarks upon the Inscriptions Found there" (Phil. Trans., vol.19 (1695–1697), pp. 160–175), colocou a hipótese de a Lua estar a acelerar na sua órbita:
 
"And if any curious Traveller, or Merchant refiding there, would please to observe, with due care, the Phases of the Moons Eclipses at Bagdat, Aleppo and Alexandria, thereby to determine their Longitudes, they could not do the Science of Astronomy a greater Service. For in and near these Places were made all the Observations whereby the Middle Motions of the Sun and Moon are limited. And I could then pronounce in what Proportion the Moons Motion does Accelerate; which; if hat it does, I think I can demonstrate and shall (God willing) one day, make it appear to the Publick."
 
Na realidade, grande parte dessa "aceleração" era aparente. Era a rotação da Terra que desacelerava, fazendo com que a Lua parecesse acelerar. A causa mais importante é, como hoje sabemos, a "travagem" provocada primariamente pela "fricção" nos oceanos, um processo plural com um número diversificado de mecanismos (e.g., fricção induzida por correntes ao longo do leito dos mares, diversos e complexos efeitos da ondulação ou ondas de maré). Há ainda o contributo das alterações atmosféricas e dos movimentos no núcleo fluido do planeta. O diferencial vem sendo confirmado por comparação com a duração do dia medido por relógios atómicos (disponíveis desde 1955).
 
- Ver artigo Aceleração de Maré (Wikipedia)

A monitorização precisa é possível até cerca de 700 a.C. devido à mencionada interpretação dos relatos de eclipses. Equivale a cerca de 2.3 milissegundos por século: "Together with a further small solar contribution (the semi-diurnal atmospheric tide), these produce a steady increase in the LOD ["length of the day", duração do dia] of about 2.3 milliseconds per century (ms/cy)". (Stephenson, "Historical eclipses...", 2003, p.2.22)

Segundo o mesmo autor (ibid.), o desenvolvimento de relógios de pêndulo precisos constituiu um enorme avanço, levando à adopção do chamado "Tempo Médio" baseado no Dia Solar Médio e, em 1884, à escolha do Tempo Médio de Greenwich (GMT), do qual deriva o Tempo Universal (UT) que na prática utilizamos. Historicamente, a maioria dos astrónomos mostrava pouca empatia pela teoria do efeito de maré. Depois das abordagens de F. Ginzel, S. Newcomb e outros, Philip H. Cowell (em 1905) descobriu uma interessante "aceleração" solar e especulou se esta não seria somente aparente. Aoesar das conclusões não terem sido bem acolhidas na época, revelaram-se um passo importante para compreender e dirigir a atenção para o que efectivamente se verificava com a rotação do nosso planeta. O rácio da dissipação provocado pelas marés somente começou a ser quantificável a partir de 1920. Mais tarde, em 1939, na sequência de investigações pretéritas, Sir Harold Spencer Jones demonstrou que o Dia Solar Médio não era uma unidade de tempo "ideal", atendendo às flutuações em presença.


A Deflexão da Luz segundo Einstein

Numa outra contribuição decisiva, o eclipse de 1919 assinalou a primeira de diversas confirmações de uma das consequências previstas nas teorias de Albert Einstein; a deflexão da luz das estrelas (determinando pequenas alterações nas suas posições aparentes) provocada pela interposição do campo gravitacional do Sol. Como David H. Levy explica, a teoria de Einstein descreve a gravidade geometricamente: Any object moving in space follows a geometric path shaped by the unified effect of mass and energy. (David Levy's Guide to Eclipses, Transits, and Ocultations, Cambridge University Press, 2010, p.19). A dupla expedição, liderada por Arthur S. Eddington, fotografou o eclipse total na roça "Sundy" na ilha do Príncipe (arquipélago de São Tomé e Príncipe, na época uma colónia portuguesa), e em Sobral (no Brasil). Os resultados contribuiram para a aceitação e visibilidade da Teoria da Relatividade Geral. (Todavia, alguns especialistas actuais colocam em causa que os resultados devolvessem a enorme precisão exigida para as conclusões que foram extraídas, um exemplo típico de "predictor effect", v. Physics Today 62 (Issue 3), 37–42 (2009)). Novas experiências foram repetidas em eclipses ulteriores até aos anos setenta, confirmando as expectativas teóricas. Entretanto surgiram novos métodos, recorrendo a radiotelescópios e aos quasares (um quasar é um núcleo galáctico activo alimentado por um buraco negro de enorme massa rodeado por um disco de acreção gasoso), sendo possível medir a deflexão da luz a qualquer momento com maior eficácia.

No efeito previsto, a alteração na geometria do espaço circundante provocada pelo Sol deflecte a luz e as estrelas fotografadas durante o eclipse deverão aparecer ligeiramente mais afastadas entre si do que nas fotografias "normais" captadas no céu noturno. Ou seja, um raio de luz rasante ao limbo solar altera a sua direcção em 1.75" (i.e. o dobro do antecipado pela teoria newtoniana). Isto foi verificado por Arthur Eddington no célebre eclipse solar total de 1919, resultado das expedições Inglesas a terras lusófonas: à ilha do Príncipe e a Sobral, no Brasil.

Cometas

Refira-se, ainda, uma almejada possibilidade acarinhada na “golden age” de finais do séc. XIX e início do sequente: a possibilidade da descoberta de cometas durante a totalidade. Owen Gingerich documentou duas: em 1882 e em 1893 (“Eclipses”, in Collier's Encyclopedia, P. F. Collier & Macmillan Educational Company, 1990, vol. 8, p.513). Outras fontes, mais antigas e decerto menos rigorosas, referem mais "descobertas".


O Diâmetro do Sol

Outra potencial utilização científica dos eclipses seria a avaliação de variações no diâmetro do Sol. Em 1979, John Eddy e Aram Boornazian formularam a hipótese de o diâmetro estar a diminuir (supostamente 2 segundos de arco por século). As evidências, todavia, não confirmaram essa teoria. Outros investigadores continuam pesquisas afins ou relacionadas mas, neste momento, o máximo que podemos afirmar é que os resultados são inconclusivos.


Hoje, a Física Solar intersecta muitas disciplinas: dinâmica de fluidos, plasmas, partículas, espectroscopia, fotometria, processamento de sinais, física nuclear, computacional, magneto-hidrodinâmica, meteorologia,  sismologia, etc. O Sol é a única estrela ao alcance para uma abordagem tão completa. E assim chegámos ao estudo do Sol suportado por sofisticados observatórios e sondas em órbita (SOHO, HINODE, PSP, etc.).

Magnetismo Solar - Existe um ciclo (quase) periódico de 11 anos das manchas solares (ciclo solar, também conhecido como ciclo de atividade magnética solar, ou ciclo de Schwabe, em honra do astrónomo alemão que, após longas e persistentes observações, o anunciou em 1843). É obviamente muito importante para o nosso planeta (dos fenómenos naturais como as auroras até à interferência potencialmente disruptiva nas nossas tecnologias). Próximo do máximo desse ciclo, a corona solar é simétrica (tende a ser circular); próximo do mímimo apresenta-se ovalada e podemos esperar menos proeminências. A máxima actividade do ciclo corrente (nº 25) está prevista para Julho de 2025 (NOAA - National Oceanic and Atmospheric Administration).



ECLIPSES LUNARES

The mortal moon hath her eclipse endured...
(Shakespeare, Sonnet 107.5)


A inclinação da órbita da Lua e a proporção dos diâmetros (da Terra e da Lua) são determinantes. Como Hugh Thurston explica (Early Astronomy, Springer, 1994, p.18), "If the moon moved precisely along the ecliptic it would be eclipsed every month. It does not, however (...): it moves from about 5° north of the ecliptic to about 5° south, and the time for a complete cycle, say from furthest north to furthest south and back again, is about 27.2 days. This period is called a latitudinal period. The time for the moon to go from the ecliptic back to the ecliptic is, of course, half a latitudinal period. The apparent diameter of the moon is about 1/2°. The earth’s diameter is just under four times the size of the moon’s. Because the sun is so far away its rays are practically parallel, which means that the earth’s shadow is about the same size as the earth, and so, if there were a screen in the sky at the point occupied by the moon, the earth’s shadow on it would be a circle of apparent diameter 2°. This means that if the moon is 3/4° or less from the ecliptic at the time of opposition it will be totally eclipsed; if between 3/4° and 5/4º it will be partially eclipsed; if more than 5/4° it will not be eclipsed," Todos os períodos utilizados para prever eclipses lunares (e.g., 6 meses, 47 meses, 88 meses, 235 meses, 223 meses...) estão, de algum modo, relacionados com este "meio-período latitudinal".

LUNA Ms. VOSS F48 f.80v
Esquema de um eclipse lunar num manuscrito da época Carolíngia (
Leiden Universiteitsbibliotheek, S.C., ms. Voss. lat. F.48, f.80v)


Geralmente observáveis a olho nu,
ocorrem quando a Lua é parcial ou totalmente ocultada  pela sombra da Terra. Estes fenómenos são facilmente observáveis, visíveis a partir de qualquer ponto do planeta que esteja no hemisfério nocturno. Só pode acontecer um eclipse quando a fase de Lua Cheia coincide com a passagem da Lua pelo seu nodo orbital (intersecção da sua órbita com o plano de referência da translação do nosso planeta). Um eclipse lunar total pode ser observado de a partir de um qualquer local geográfico, em média, a cada 2 anos e meio.

Como o Sol está muito distante e é muito maior do que a Lua, o cone de sombra projectado pela Terra sobre a Lua num eclipse lunar pode, na prática, ser considerado um "cilindro". Se o eclipse for total e central, a base deste cilindro revela o diâmetro do nosso planeta. Seguindo estas premissas, Aristarco de Samos (c.310 - c.230 a.C.), decerto utilizando clepsidras, mediu o tempo durante o qual a Lua se mantinha na sombra durante um eclipse e determinou a razão entre os diâmetros dos dois astros: o da Lua seria 1/3 (c. 0.33) do da Terra (valor actualmente adoptado é de 0.27).


Eclipse Lunar (De Sphaera)
Descrição esquemática do fenómeno numa edição do ubíquo
De sphaera mundi

Regiomontanus - o "eclipse de Colombo"
Detalhe da página do Kalender de Regiomontanus (publicado em 1474) mostrando, à direita, a previsáo do eclipse lunar de 29 Fevereiro de 1504, o célebre "Eclipse de Colombo", que consegue atemorizar os nativos Arauaques da ilha a que mais tarde se chamará Jamaica, conseguindo os víveres de que a sua tripulação necessitava, capitalizando o prévio conhecimento de um eclipse lunar (prognosticado nos almanaques), e encenando intervenção divina.


- Eclipses totais e parciais 2023-2040 (data/hora para coordenadas de Aveiro, PT. Horas UT; export. COELIX APEX)

Eclipses Lunares - listagem

"Médio eclipse": ápice ou momento central

Tipo: Total ou Parcial, dependendo se a Lua entra totallmente ou apenas parcialmente na sombra (umbra) projectada pela Terra. Tabela limita-se aos fenómenos observáveis na localização geográfica indicada e NÃO inclui eclipses somente penumbrais (raramente detectados visualmente).

Magnitude: magnitude linear, i.e. fracção do diâmetro lunar abrangido pela sombra no momento médio do eclipse.

Visibilidade (nº de asteriscos indica o grau de visibilidade do eclipse no local de observação:
***  todas as fases são observáveis, incluindo as penumbrais;
**   pode observar-se pelo menos 50% da duração bem como o eclipse médio;
*    observa-se menos de 50% da duração do eclipse. O eclipse médio não é observável (Lua abaixo do horizonte).
(Nenhum asterisco significa que fenómeno NÃO é observável a partir desta localização)

Contactos: na tabela previamente disponibilizada, contactos #3 e #4 limitam o intervalo de totalidade, obviamente não acontecendo nos eclipses parciais.

Contactos eclipse lunar
Esquema dos contactos possíveis num eclipse lunar.
No centro vemos o lugar do "máximo eclipse". Designações U e P referem-se a "umbra" e "penumbra", respectivamente. Seguindo identificação adoptada: eclipses totais possuem todos os contactos, parciais não possuem os contactos U2 e U3 (que equivalem aos #3 e #4 da tabela anterior), penumbrais terão somente os contactos P1 e P4. (Fred Espenak, mreclipse.com)

Eclipse lunar - timings
Timings (valores médios) de um eclipse lunar central. O norte está no topo e o leste à esquerda (Wyatt, Stanley P., Principles of Astronomy, Boston, Allyn and Bacon, 1964, fig. 6.26:1)



ECLIPSES SOLARES

eclipse diagrama al-Qazwini
Ilustração dos fundamentos do eclipse solar numa cópia das Maravilhas da Criação de Zakariyyāʾ ibn Muhammad al­-Qazwīnī (MS Cambridge, Cambridge University Library, Nn. 3.74, fol. 15b)


What glory's like to thee?
Soule of this world, this universe's eye,
No wonder some made thee a deity.
(Anne Bradstreet, Contemplations)


É uma das grandes coincidências da natureza que a Lua seja cerca de 400 vezes mais pequena do que o Sol e esteja cerca de 400 vezes mais próxima, logo os diâmetros aparentes equivalem-se. A Lua Nova interpõe-se entre a Terra e o Sol, posicionamento adequado para projectar a sua sombra na Terra. Porém, como orbita o nosso planeta com uma inclinação de cerca de 5º, os três corpos só esporadicamente se alinham no mesmo plano proporcionando um eclipse.

Como François Arago referiu, Tycho Brahe teria estimado (obviamente sem ajuda óptica, indisponível na sua época) os diâmetros aparentes dos luminares e considerado que o da Lua nunca poderia ser tão grande como o do Sol, intempestivamente levantando dúvidas sobre a possibilidade dos eclipses totais e sobre os relatos publicados. (Astronomie Populaire, vol. III. 1854, pp.553-54). Ulteriores eclipses demonstraram como estava enganado.

Da pertinência da observação científica dos eclipses solares, que teve o seu auge entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, Mabel L. Todd salientava a importância para o estudo do clima e da física do nosso planeta e antecipava futuras aplicações tecnológicas: "The wide utility of all this research, in its bearing upon meteorology and terrestrial physics, not to say ultimately on the possible direct employ of solar heat for industrial purposes, is now so fully recognized that the astronomer devotes himself assiduously to the task of acquiring every possible fact about the Sun. and is rarely interrupted by the sordid inquiry, 'What's the use?'"  (Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.4)

Tipos de eclipse solar
Um eclipse é, tecnicamente, uma ocultação. No Eclipse Total, a sombra (umbra) da Lua toca a superfície do globo terrestre. No Eclipse Anular, o cone de sombra é demasiado curto e não alcança o globo terrestre (a primeira descrição clara da anularidade está documentada no eclipse de 28 de Julho de 873 A.D. em Nishapur, Irão, pelo relato de al-Biruni). Curiosamente, Ptolomeu deixou implícito que os eclipses anulares não seriam possíveis pois o diâmetro aparente da Lua quando esta está mais afastada (i.e. quando se vê mais pequena) seria, afirmava, equivalente ao diâmetro solar (Almagesto, V, 14*). Num Eclipse Parcial, somente a penumbra alcança a superfície terrestre (Chartrand, M. R., A Field Guide to the Heavens, Golden Press, Western Publishing Company, Inc., 1982).

O eclipse total mais longo, em circunstâncias ideais, ultrapassa os 7 minutos; o anular pode ultrapassar 12 minutos. Duração mais longa de um eclipse total (teórica): 7 minutos e 31 (ou 32) segundos (muda lentamente ao longo dos séculos e milénios com as variações na excentricidade da órbita da Lua), em condições ideais: Lua no perigeu, Sol no afélio, localização na Zona Tórrida (onde a rotação da Terra é mais veloz, "abrandando" a velocidade da sombra da Lua que se desloca na mesma direcção) e com a Lua no zénite.


* "However, once it was determined that the moon is at its greatest distance when it subtends the same angle at the eye as the sun, we computed the size of the angle it subtends from observations of lunar eclipses in which the moon was near that [greatest] distance, and thence obtained immediately the size of theangle subtended by the sun." (Toomer, G.J. [trad.], Springer-Verlag, 1984, p.253)


Sabemos desde Kepler que as órbitas são elípticas, logo a órbita da Lua não é circular. Nem a da Terra em torno do Sol. Assim, os diâmetros aparentes dos luminares são variáveis,
determinando o tipo de eclipse que se observa. Ver tabela com medidas angulares (Moore, P & Maunder, M, The Sun in Eclipse, Springer-Verlag, 1998, p.52):


Máximo Médio Mínimo
Sol 32' 35" 32' 01" 31' 31"
Lua 33' 31" 31' 05" 29' 22"

Quando o satélite está mais próximo de nós (no seu perigeu), dá-se um eclipse total (é, no fundo, uma variante de ocultação lunar). Se estiver no ponto mais distante (apogeu), o seu diâmetro aparente é menor e o eclipse será anular, deixando ver um anel da Fotosfera do Sol (annulus simétrico, centrado, só é observável na linha central do caminho do eclipse). Se os três astros não estiverem exactamente alinhados, o eclipse será parcial.

Os eclipses totais são absolutamente espectaculares e
mais raros do que os parciais ou anulares. Antes de mais, permitem observar a ténue corona (região exterior da atmosfera do Sol), de outro modo invisível sem recurso a instrumentação profissional, devido ao intenso brilho que emana da superfície da estrela. Um eclipse total do Sol pode ser visto apenas num "ponto", ou melhor, numa confinada região de sombra projectada na superfície da Terra, que se move devido à rotação do nosso planeta e à translação da Lua, criando o chamado caminho de totalidade (que somente cobre cerca de 0.5 % da superfície da Terra). Fora dessa estreita região, pode ser visto como fenómeno parcial na mais vasta região geográfica abrangida pela penumbra do satélite.

"Some people see a partial eclipse and wonder why others are so awestruck by a total eclipse. But the difference is like night and day. Since the photosphere is 1 million times brighter than the corona, even a 99% partial eclipse still leaves 1% of 1 million times, or 10,000 times, more light from the photosphere than there is from the corona. And so the sky is too bright to allow the corona to be seen during a partial eclipse. It is truly worth travelling to the zone of totality each time there is an eclipse. Seeing a partial eclipse and saying that you have seen an eclipse is like standing outside an opera house and saying that you have seen the opera; in both cases, you have missed the main event." (Jay M. Pasachoff, A Field Guide to Stars and Planets, (The Peterson Field Guide Series), Houghton Mifflin Co., 1997, pp.429-300)

A velocidade da Lua na sua rotação em torno da Terra é maior do que a da rotação do nosso planeta e a velocidade da sombra da Lua num eclipse tem o mesmo sentido do movimento (real) da Lua, ou seja, para Leste. A sombra da Lua desloca-se à velocidade da órbita do satélite (3683 km/h) mas a rotação da Terra (c. 1675 km/h no Equador) compensa. Por isso, a velocidade real da sombra através da superfície do nosso planeta é menor, variando consoante o eclipse/localização mas sempre ultrapassando os 1800 km/h.

Fases eclipse total do Sol
Os quatro contactos de um eclipse total do Sol (Encyclopaedia Britannica, Inc., 2012; editada)


Apesar de se repetirem aproximadamente a cada 18 meses, os eclipses totais demoram 375 anos (em média) a reincidir num local geográfico específico. No caso dos eclipses anulares, a média é de 224 anos (Jean Meeus, The Frequency of Total And Annular Solar Eclipses for a Given Place, Journal of the British Astronomical Association, vol.92, no.3, pp.124-126; aceder .PDF, 147KB). A próxima Totalidade no nosso país (com excepção da breve e periférica nos confins de Rio de Onor, Bragança, em Agosto de 2026) ocorrerá somente a 22 de Julho de 2205 no sudoeste do país (Algarve e parte do Alentejo). Em Lisboa apenas no séc. XXIV (2327).

Populares observando eclipse - Praça da República Ovar, 1912
Os últimos eclipses notáveis observados em Portugal (Continental) aconteceram a 28 de Maio de 1900 (total, ver mapa da parte para nós mais relevante do percurso) e 17 de Abril de 1912 (híbrido, i.e. total ou anular, dependendo da parte específica do seu percurso). A região de Aveiro (particularmente a então Vila de Ovar, na linha central de ambos os fenómenos) foi privilegiada, tendo acolhido diversas expedições estrangeiras. O próprio Astronomer Royal Inglês (William H. M. Christie) observou aí o eclipse de 1900 (v. fotografia da corona então captada, Preliminary Account of the Observations Made at Ovar, Portugal. Christie, W.; Dyson, F., Proc. R. Soc. London (1854-1905). 67:392–402), bem como Ernst Jost, de Heidelberg (que estudava o planeta Mercúrio) ou o conhecido divulgador George F. Chambers, autor de The Story of Eclipses. Acima, populares observando o eclipse de 1912 no centro de Ovar. Aparentemente, a maioria nem sequer recorreu a vidros fumados. (Recorte de reportagem da Ilustração Portugueza, Nº323, Lisboa, 29 de Abril de 1912). Ler um interessante relato acerca deste eclipse no jornal aveirense Campeão das Províncias, edição de Sábado, 20 de Abril de 1912, pp.1-2 (PDF, 78KB).

detalhe mapa eclipse 1912 - revista O Occidente
Parte relevante de mapa representando a linha central do eclipse de 1912 (revista O Occidente
, nº 1198, de 10 de Abril de 1912)


O importante eclipse de 1900

Samuel J. Johnson, no suplemento do seu Eclipses, Past and Future..., (Second Edition with Supplement, Parker and Co., 1889), elencando eclipses futuros, referia (p.163) este fenómeno: "Total across Portugal and Spain from Ovar to Alicante". George F. Chambers detalhou todas as informações necessárias (acessos, itinerários, alojamento, etc.) no Apêndice (Information Respecting the Total Eclipse of May 28, 1900, for travellers visiting Portugal and Spain) do seu The Story of Eclipses (London, George Newnes, Ltd., 1899). Escreveu: “The line of central eclipse passes across the Peninsula diagonally from N.W. to S.E. It enters Portugal on the coast not far from Oporto in latitude 40° 50′ N., longitude 8° 38′ W. of Greenwich. It quits Spain on the coast at Cape Santa Pola, not far from Alicante, in latitude 38° 13′ N., longitude 0° 30′ W. At Ovar in Portugal (pop. 11,000), 23m. S. of Oporto the duration of the total phase will be 1m. 331⁄2s., and the Sun’s altitude at totality will be 42°.”. Manifestando uma opinião pouco “lisonjeira”, recomendou os seguintes guias para estes "...somewhat benighted and untravelled countries of Portugal and Spain.":

Handbook for Spain, 2 vols. 20s. (J. Murray.)
Handbook to Spain and Portugal, Dr. Charnock. 7s. 6d. (W. J. Adams.)
Guide to Spain and Portugal, O’Shea and Lomas. 15s. (A. & C. Black.)
Handbook for Portugal. 12s. (J. Murray.)

O dicionário escolhido, para quem ousasse vir a Portugal, era o de [Levindo] Castro de La Fayette: “Novo “Diccionario Inglez-Portugueze (sic), 2 vols. 6s”. Não sabemos se o próprio Chambers fez bom uso deste recurso.

Este eclipse foi notável e não apenas enquanto fenómeno astronómico. Foi institucionalmente utilizado como pretexto para a projecção de uma imagem de dinamismo e desenvolvimento (o Diário do Governo publicou, em 3 de Abril desse ano, directivas respaldadas "...no interesse da sciencia e do paiz"), bem como para a promoção da cultura científica e afirmação da relevância das instituições cometidas à investigação. Constitui, por isso, um momento importante, entre nós, para o estudo da relação entre essas instituições e a sociedade como um todo. Foi, no caso do observatório da Tapada (o Real Observatório Astronómico de Lisboa), motivação para uma aproximação a instituições internacionais de vanguarda, abrindo novas perspectivas.

Para uma abordagem contextualizada com enfoque na utilização do fenómeno de 1900 na promoção internacional de uma imagem de modernidade, na divulgação científica enquanto complexo processo cultural, político e social e no papel fundamental de Frederico Thomaz Oom (1864-1930), astrónomo e futuro director do mencionado observatório, na organização e agilização dos preparativos e logística (desburocratização, facilitação das viagens por ferrovia, utilização do telégrafo para a indispensável comunicação de sinais da hora exacta, etc.) e interacção com instituições, cientistas e com o público em geral (e.g., comunicação com a imprensa, publicação de um livro de "astronomia popular" - como então se dizia - destinado a uma audiência ampla, não especializada mas interessada em assuntos científicos: O Eclipse de Sol de 1900 Maio 2o8 em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, Abril de 1900), vide Luís Miguel Carolino & Ana Simões (2012) The Eclipse, the Astronomer and his Audience: Frederico Oom and the Total Solar Eclipse of 28 May 1900 in Portugal, Annals of Science, 69:2, pp.215-238.

O texto do oportuno livro de Oom começa com as Noções Geraes, onde lemos:
"Depois de terem sido causa de immenso terror, mesmo na Europa e ainda no seculo XVIII, a ponto de se julgar necessario nas estações oficiaes recorrer aos parochos, afim de, nas aldeias, á missa conventual, annunciarem aos seus freguezes a proximidade de um d'esses temidos phenomenos, explicando-lhes a sua innocuidade, os eclipses de Sol, pela diffusão progressiva do ensino publico, vieram a tornar-se bastante conhecidos entre os povos civilisados, e de pavorosos converteram-se em attrahentes e sublimes, sendo hoje por assim dizer de todos sabida a sua explicação simplicissima nas suas linhas geraes..."

Livro Frederico Oom    Mapa eclipse 1900 - Oom
Frontispício do livro de Frederico Oom e páginas com mapa aí incluído descrevendo o caminho da totalidade, ângulos e timings previstos para o início do eclipse.

Oom - estampa V    Oom - Estampa VI (detalhe)
Do mesmo livro: previsão de algumas fases do eclipse em cidades fora do caminho da totalidade (Estampa V; clicar para ampliar) e, à direita, detalhe da Estampa VI com a previsão dos "logares de contacto" (i.e. da Lua com o limbo solar) em Aveiro e na Guarda.


A imprensa da época fez eco do fervilhar de actividade, nomeadamente o influente Diário de Notícias, um jornal de âmbito nacional, marco incontornável na nossa imprensa, assumindo uma linha editorial ampla e independente relativamente à tradição polemista dos jornais fortemente partidarizados, sectorizados ou ferozmente regionalistas. Transcreveu excertos do mencionado livro de Frederico Oom e fez uma cobertura muito completa de toda a envolvente (divulgação pedagógica de matérias científicas no contexto, informação meteorológica actualizada, elenco dos intervenientes, eventos sociais paralelos, etc.). Mas o interesse estendeu-se à generalidade dos jornais e periódicos
(estima-se que cerca de duzentos exemplares do livro tenham sido enviados à imprensa), que não ficou alheada do notável acontecimento. Nestas páginas d'O Occidente: Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro (nº 769, 10 de Maio de 1900; .PDF, 590KB), um pertinente texto de António A. O. Machado explica do que se trata, informa dos limites da zona de sombra (totalidade) e elenca os fenómenos observáveis na natureza. Também podemos ler um comentário de certo modo existencial acerca da experiência "única" que então se avizinhava, confrontando com a escassez de futuros eclipses (totais) previstos e observáveis do nosso país:

"Se este seculo, para nós, é pouco fertil em eclipses [totais] do sol, menos o serão, os seculos XXI e XXII em que não haverá nenhum que seja vizivel no nosso reino, nem tão pouco nas suas proximidades [o que não está correcto se considerarmos o todo peninsular, v. infra]. Poderemos, por conseguinte, dar-nos por felizes, por não abandonarmos este mundo sem ter assistido ao espectaculo que a natureza nos apresenta mais notavel."

Entretanto, Francisco da Costa Lobo* e a equipa do Observatório de Coimbra deslocaram-se a Viseu. O mesmo fizeram equipas da Escola Politécnica da capital, da Escola Naval e uma numerosa excursão da Sociedade de Geografia de Lisboa. Também escolas de nivel "liceal" como o prestigiado Collegio de S. Fiel (previamente frequentado, por exemplo, pelo mais tarde nobelizado Prof. Dr. Egas Moniz), instituição da Companhia de Jesus sediada em  Louriçal do Campo, nas imediações da Serra da Gardunha.

* Costa Lobo foi pioneiro da espectroscopia e será, a partir de 1910, um dos grandes responsáveis pela internacionalização científica e institucional da Astronomia Portuguesa, por muito tempo confinada apenas à astrometria e efemérides. Ao corrente das novas tecnologias disponíveis, publicando e palestrando internacionalmente, terá um papel fundamental na abertura à Astrofísica (nomeadamente no estudo da Física Solar), na indispensável inovação instrumental e no intercâmbio com importantes observatórios, como o de Meudon (v. Vitor Bonifácio, “Costa Lobo (1864-1945), the Coimbra Spectroheliograph and the Internationalisation of Portuguese Astronomy”, Cahiers François Viète [Online], III-3 | 20; aceder), No eclipse de 1912 organizou uma expedição com os seus alunos a Ovar. Apesar do modesto equipamento disponível nessa época, conseguiu filmar o eclipse.


Convém referir que tanto o dia do eclipse como o seguinte foram declarados "feriado", comprovando a suma importância institucional que envolveu o acontecimento.

Num delicioso registo, um jornal vareiro reproduz os comentários mordazes de um seu correspondente (em Oliveira de Azeméis) acerca da reacção popular ao fenómeno: "Lá vae o 'talipse', o horror das creadas de cosinha, o assumpto inexgotavel do jornalismo politico, o deus dos estudantes e a mina dos vidraceiros!". E adiante: "(...) A velha, de lagrimas nos olhos e resando a meia voz a 'magnificat', deu-me a diferença de 13 gráos que descera o thermometro, e o 'valet de chambre' notou-me que o quadrupede dos seus cuidados, tivera impaciencias, escarvara o solo, e abrira a bocca, somnolento. (...) Quasi aos pés da cadeira em que me deixava enlevar na inspiradora poesia d'aquelle phenomeno methereologico, veio caír um morcego, que batera rudemente n'um angulo da casa. O sol começou de emergir, suavemente, docemente, aos 'halalis'  da multidão que demorava, de face erguida para os astro, no largo de Santo Antonio. E a céga veio dizer-me que as pobres gallinhas, abrindo o bico, como na falta de hydrogenio. procuravam, cuidadosas, os poleiros em que fazem ó ó de noite; uma gallinha, mãe adoptiva de quantos ovos aqueceu ao seu calor maternal, abriu, cacarejando, as azas, sob cuja plumagem se aninharam os franguitos dos seus desvelos. A cosinheira fez-me notar que ao ultimo contacto, os 'pedreiros' voejavam alegres pelo espaço, como se fosse ás primeiras sombras do crepusculo; desappareceram depois, para dar logar ás aves da noite - como o morcego [sic], n'um cabecear de ebrio pelas esquinas das casas. Portaram-se todos à maravilha! Davam todos uns astrónomos decididos, se o venal das 'Novidades' se lembra de os empregar como pregoeiros no observatório da Tapada. Muitas mulheres gritaram, de mãos postas no ceu, Padre Nossos e Avé-Marias a dar-lhe com um pau. Outros, de discursos enormes sobre metheorologia, engatilhados nos labios risonhos, de vestes domingueiras percorriam as ruas, como em dias de festa. E realmente o 'talipse' foi uma festa para toda gente." (A Discussão, nº 254, Ovar, 3 de Junho de 1900). Num outro artigo, menos espirituoso, da mesma edição, afirma-se: "Este phenomeno, ha tanto tempo prophetizado, trouxe a Ovar uma concorrência desuzada e selecta", distinguindo evidentemente "Suas Altezas o Principe Real D. Luiz Filippe, e D. Manoel que, acompanhados de seus aios o major Mousinho de Albuquerque e D. Izabel de Menezes, chegaram á estação d'esta villa cêrca da 1 e meia horas da tarde...". Neste ficheiro (.PDF, 3MB), a 1ª página d'O Ovarense, também do dia 3 de Junho de 1900.

Equipa de Greenwich em Ovar - Maio 1900
A comitiva do Observatório Real de Greenwich nos preparativos para o eclipse de 28 de Maio de 1900, em Ovar (crédito: Centro Português de Fotografia); reproduzida no paper cit. de Carolino e Simões.


- Para uma resenha dos eclipses no nosso país entre 1900 e 1919 (data do chamado "Eclipse de Einstein", observado por Arthur Eddington no arquipélago de S, Tomé e Príncipe), ler o interessante artigo de Luís Tirapicos: Eclipses totais do Sol em Portugal: de 1900 a 1919 (Gazeta de Fisica, vol.42, nº2 (número especial dedicado à exposição "E3 - Einstein Eddington e o Eclipse", Maio 2019); .PDF, 163KB. Também muito interessante, de Henrique Leitão e Francisco Malta Romeiras: Jesuítas e Ciência em Portugal. III - As expedições científicas e as observações dos eclipses solares de 1900 e 1905 (Brotéria, 2012, pp.227-237).


Outros eclipses...
Tintin - eclipse
Um eclipse total do Sol salvará Tintin e os seus companheiros (Hergé, Le Temple du Soleil, Casterman, 1955; 14º album da série Les Adventures de Tintin, esta BD foi pré-publicada no recém-criado periódico Le Journal Tintin, entre 1946 e 1948 e em álbum, pela primeira vez, em 1949). A ideia já se encontra, grosso modo, numa aventura humorística publicada em 1889 por Mark Twain (A Connecticut Yankee in King Arthur's Court).


Concorde - Racing the Moon
  A fase de Totalidade do eclipse de 30 de Junho de 1973 teve uma duração acima dos 7 minutos
. Mas igualmente espectacular foi a experiência única (que hoje consideraríamos "energeticamente pouco sustentável") envolvendo o sofisticado Concorde. Tendo voado pela primeira vez em 1969, o velocíssimo avião de transporte supersónico não tinha ainda entrado em serviço comercial. Todavia, materializando uma ideia do astrofísico Pierre Léna, do Observatório de Paris, o protótipo foi adaptado e permitiu efectuar diversas experiências científicas levadas a cabo por equipas de vários países. Assim, o Concorde 001, comandado pelo piloto de testes André Turcat, levantou de Las Palmas (Canárias) às 10:08 UT e aterrou no Chade (em Fort Lamy, actual N’Djamena), entretanto fazendo "contacto" e seguindo com enorme precisão o caminho da sombra do eclipse durante 74 minutos (!), um recorde absoluto até hoje, somente possível a uma velocidade um pouco acima de Mach 2, sincronizado com a sombra da Lua que percorria o Sahara a mais de 2200 Km/h. Vide Léna, P., Concorde 001 et l’ombre de la Lune, Editions Le Pommier - Paris, 2014. (Ilustr.: "Racing the Moon", Don Connolly, concept by L. Robert Morris)

Próximos eclipses solares
Mapa eclipses vindouros
Eclipses solares 'centrais' (quando a linha central da sombra da Lua intersecta a superfície do nosso planeta), intervalo 2008-2030 (detalhe editado de mapa retirado de: Littmann, M., Espenak, F. & Willcox, K., Totality: Eclipses of the Sun (3rd Ed.), Oxford University Press, 2008). Eclipses Totais: linha carregada, Anulares: linha menos intensa.

Como interpretar um mapa
Eclipse
Mapa de um eclipse do Sol (exemplo simplificado) e delimitações geográficas das circunstâncias da observação. A faixa de umbra (sombra), a mais espessa no desenho, percorre as regiões geográficas onde a totalidade é observável, desde a região geográfica do avistamento do eclipse máximo ao nascer do Sol até à região da sua visibilidade máxima ao ocaso. Assinaladas ainda as linhas que demarcam o início e o final do eclipse nesses extremos do percurso do Sol acima do horizonte. Muitas vezes é assinalado o ponto geográfico de maior magnitude do eclipse, bem como as percentagens (graduais) observáveis na vasta área do globo abrangido pela penumbra (situadas entre os limites Norte e Sul no mapa). Mapa-exemplo (em Inglês) com maior detalhe (fonte: Littmann, M., Espenak, F. & Willcox, K., Totality: Eclipses of the Sun (3rd Ed.), Oxford University Press, 2008).


Óculos de eclipse
A segurança é absolutamente fundamental: os óculos adequados à observação solar directa filtram adequadamente as radiações ultravioleta, visível e infravermelha. Deverão respeitar a especificação ISO 12312-2 de 2015. Antes de cada utilização, verificar que não apresentam danos (furos, riscos ou arranhões). Testá-los de perto contra uma lâmpada eléctrica bem intensa (e.g., 100W): somente devemos ver, de modo ténue e confortável, os seus filamentos (óculos de eclipse garantem transmitância inferior a 0.001% na banda visível). NUNCA utilizar os óculos de eclipse combinados com binóculos ou telescópios, é PERIGOSO! Estes instrumentos amplificam imenso e exigem filtros especiais SEMPRE colocados à entrada do sistema óptico, i.e. na objectiva. (foto do autor)


Etapas da observação de um Eclipse Total do Sol


- Tudo começa com um pequeno entalhe no limbo solar. Todavia, somente cerca de 10 minutos antes da Totalidade é que se torna evidente o escurecimento e a estranha alteração das cores da envolvente. Nesta fase gradual (pré-totalidade), quando o brilho e o calor decrescem, parece surgir um amplo crepúsculo. Como referido, a observação directa, mesmo de um Sol parcialmente eclipsado, EXIGE protecção adequada. De resto, convém acautelar a nossa sensibilidade ocular para desfrutar convenientemente da Totalidade.

- As chamadas "gotas de Baily", fenómeno provavelmente já observado antes da célebre descrição de Francis Baily pelo astrónomo Samuel Williams em 27 de Outubro de 1780, na América do Norte, antecedem imediatamente a Totalidade e duram apenas alguns segundos. Como a superfície da Lua é rugosa e acidentada, a "última" luz solar passa pelos vales no seu limbo, sendo bloqueada nas zonas elevadas. Permanecendo somente um último "brilho", combinado com o finíssimo aro da cromosfera interior do Sol, estaremos perante um efeito conhecido como "anel de diamante" (que é melhor observar no final da fase total, quando é mais espectacular). Simultaneamente, com o aproximar do eclipse total, podemos perceber algumas ténues faixas de sombra no solo ou em paredes de edifícios, fenómeno atmosférico nem sempre observável. Entretanto, a rapidíssima sombra da Lua alcança-nos.

- TOTALIDADE! Acontece de modo súbito. O céu escureceu, a temperatura baixou, a Natureza reagiu, ludibriada pelas "inesperadas" trevas. O contraste do céu depende das condições atmosféricas, podendo, por vezes, observar-se estrelas ou planetas. No Sol, é possível (com a instrumentação adequada) observar a cromosfera e eventuais proeminências. Acima de tudo, é neste intervalo que se vê a espectacular corona; um "esplendor" rodeando o escuro disco lunar. Todavia, se houver uma camada alta e fina de nuvens (cirro-estratos), a corona pode ficar obscurecida e invisível. A observação desprotegida é completamente segura na fase total, até com ajuda óptica (e.g., binóculos) Todavia, cuidado! Termina rapidamente.

- 3º e 4º contactos. Com o 3º contacto termina a Totalidade (ATENÇÃO: a protecção ocular é doravante fundamental). Dá-se a inversão dos fenómenos luminosos observados antes da etapa total. O Sol ressurge num ponto que rapidamente se dilata num brilho imenso. No último contacto, disco solar ficará 100% desobstruído.

(N.B.: nos eclipses parciais e anulares a protecção ocular é SEMPRE necessária. O método indirecto é a opção mais segura, projectando a imagem do Sol com um binóculo ou telescópio (idealmente fixado num tripé) ou recorrendo ao princípio da câmara estenopeica (pinhole), v. guias infra. Nos eclipses totais somente se pode (e deve) observar directamente e sem filtro durante a curta etapa de Totalidade)


O Fim dos Eclipses Totais

A Lua está muito lentamente a afastar-se da Terra, consequência do efeito de maré. Como John Dvorak refere: "(…) There will be a last one. That is because the Moon is receding away from the Earth, a consequence of ocean tides. And so the day will come, hundreds of millions of year in the future, when the apparent size of the Moon will always be too small to completely cover the Sun. Whatever types of beings then inhabit the planet will not see one of nature’s most remarkable cosmic spectacles." (Mask of the Sun: The Science, History, and Forgotten Lore of Eclipses, Center Point Large Print, 2017, pp.379-80). Contudo, este autor refere que 1250000 anos passarão até que a Lua se afaste de nós o suficiente. Segundo Gabriele Vanin (Les Eclipses: Comment les Observer et les  Comprendre, Paris, Éditions Grund, 1999, p.33): "Si l'éloignement de la Lune se poursuit au même rythme que ces 400 derniers millions d'années (un peu moins de 4 cm par an), notre satellite ne sera plus en mesure de masquer le Soleil dans un peu plus de 600 millions d'années."
 
Segundo Littmann, Espenak & Willcox (Totality..., Op, cit., p.235): "With the Moon receding at 1½ inches a year [~3.8 cm], the last total solar eclipse visible from the surface of the Earth will take place 620 million years from now."

Os eclipses totais do Sol têm os dias (ou os milhões de anos!) contados.



- Fenómenos localmente
observáveis até 2030 (dados para Aveiro disponibilizando Hora Legal, mapas e guias):

- 29 de Março de 2025, Parcial, máximo às 10H35 (magn. 0,397);
mapa (Fred Espenak, NASA/GSFC)
- 12 de Agosto de 2026, Total, máximo às 19H33 (magn. 0,974); Totalidade observável principalmente no norte e noroeste de Espanha, v. mapa infra; guia (.PDF, 422KB)
- 02 de Agosto de 2027, Total, máximo às 09H46 (magn. 0,867); Totalidade observável no extremo sul da península: mapa; guia (.PDF, 430KB)
- 26 de Janeiro de 2028, Anular, máximo às 16H53 (magn. 0,845); anularidade observável no sul do nosso país: mapa; guia (.PDF, 290KB)
- 01 de Junho de 2030, Anular, máximo às 06H09 (magn. 0,678) e término às 07H07; tangencialmente observável ao início da manhã como fenómeno parcial; mapa (Fred Espenak, NASA/GSFC)

Simulação eclipse 12AGO2026
Eclipse solar de 12 de Agosto de 2026 observado a partir de Aveiro, magnitude 0.975 no seu máximo (Stellarium 1.1). Esta simulação é "enganadora" pois, apesar da magnitude do eclipse, o Sol será ainda excessivamente brilhante e não se verá a corona. Fenómeno somente poderá ser observado com protecção ocular adequada, sendo assim possível ver o fino "crescente" acima ilustrado)


Agendar! O próximo Eclipse Solar Total de fácil acesso (pois a faixa de umbra atravessa o país vizinho): 12 de Agosto de 2026. Observável (parcialmente) em Aveiro no intervalo 18H36-20H26; ocaso do Sol às 20H37. Máximo eclipse cerca das 19H33 locais, altura 10º, azimute 280º.
Ver detalhes (guia, mapa, horário em algumas cidades de Portugal e observação da Totalidade em Espanha; .PDF, 430KB) e página relevante do Fifty year canon of solar eclipses 1986-2035 (NASA, Scientific and Technical Information Office / Sky Publ. Corp., 1987); .PDF, 133KB.

Animação: eclipse de 12 Agosto de 2026 (Sonnenfinsternisse: https://www.youtube.com/watch?v=VOXGRxrMXNk)


Mapa Eclipse - Noroeste Península
Eclipse Total de 12 de Agosto de 2026: faixa de totalidade no norte e noroeste da península. Linha azul assinala a sua linha central
(Xavier Jubier/ Google Maps)

Eclipse - 12AGO26
Mapa do início da totalidade do eclipse observado a partir da Coruña (Galiza), 20h27m locais. Pela grelha altazimutal (e pelos círculos Telrad, o maior com diâmetro de 4º) verifica-se que esta etapa decorre a uma altura de apenas cerca de 12º, aproximadamente entre Regulus (Alpha Leonis, exactamente na direcção Oeste) e Júpiter (deverão, em condições normais, ser facilmente observados). Mercúrio estará mais próximo do horizonte [clicar para ampliar; export. GUIDE 9.1]

fractional Cloud Amount - Jay Anderson
Meteorologia: previsão da nebulosidade no mês de Agosto ("Fractional cloud amount", i.e. cobertura por cada pixel das imagens satélite). Estatística efectuada pelo meteorologista Jay Anderson com dados 2001-2021: Polar-satellite-derived cloud-cover estimates for August based on observations collected between 2001 and 2021. Data: CM SAF/EUMETSAT; fonte: eclipsophile.com; detalhe do mapa orig.). A época do ano é relativamente favorável mas um cenário nebuloso nunca pode ser descartado. O Anticiclone dos Açores, para sudoeste, minimiza a ameaça mas é, obviamente, uma formação intermitente.

Percentagem média de nuvens
Percentagem mediana de cobertura de nuvens em Agosto, a partir de dados de satélite (CM SAF/EUMETSAT), intervalo 2000-2020; Jay Anderson, eclipsophile.com; detalhe do mapa orig.)

Gráficos meteorologia eclipse 2026
Dados recolhidos no terreno (relativos ao mês de Agosto) para algumas cidades (asterisco assinala as que estão no caminho de totalidade):
% probabilidade de sol (1ª coluna); na última coluna, a probabilidade do número de dias com neve ou chuva durante o mês em causa. (Jay Anderson, eclipsophile.com). Neste outro gráfico (fonte: Solar Eclipses 2024-2017, Bradt Guides, 2023), temos as percentagens máximas de horas de Sol em Agosto para diversas cidades.


2 de Agosto de 2027 (Total)

Eclipse Total - 2 de Agosto de 2027
Eclipse Total de 2 de Agosto de 2027: faixa de totalidade no extremo sul da península. Linha azul assinala
a sua linha central (Xavier Jubier/ Google Maps)


26 de Janeiro de 2028 (Anular)

Eclipse Anular - 26JAN2028
Eclipse Anular de 26 de Janeiro de 2028: no nosso país, anularidade será observável em regiões do Alentejo e no Algarve, Linha central (anularidade concêntrica) passa por Sevilha e Córdoba (Xavier Jubier/ Google Maps)


TRÂNSITOS

- Um Trânsito é a passagem de um astro de dimensão menor em frente de outro maior. Mais especificamente, chamamos trânsito planetário à passagem de um planeta através do disco do Sol. Da Terra, conseguimos observar os trânsitos dos dois planetas interiores. Ocorrem, em média, 13 trânsitos de Mercúrio em cada século. Historicamente, a observação de um trânsito do diminuto Mercúrio precedeu a dos trânsitos de Vénus: em 1631, Pierre Gassendi observou um desses fenómenos, previsto nas Tabulae Rudolphinae, efemérides compiladas por Kepler. Como a órbita de Vénus é consideravelmente maior do que a do primeiro planeta, os seus trânsitos são muito mais raros: acontecem em pares (fenómenos separados 8 anos entre si) segundo um padrão de 243 anos, com longos intervalos de 121,5 e 105,5 entre cada par. Os últimos foram em 2004 e 2012, os próximos serão em 2117 e 2125. Os trânsitos de Vénus foram usados para medir distâncias astronómicas, como a distância ao Sol (v. infra).

A órbita de Vénus é quase circular (excentricidade de apenas 0,007). Atendendo a que oito anos terrestres equivalem, com aproximação, a treze translações ou "anos" de Vénus, a um trânsito segue-se outro após 8 anos, quando ambos os planetas e o Sol estão (quase) na mesma configuração. O primeiro trânsito de Vénus foi observado em 24 de Novembro de 1639 (data no calendário Juliano) por Jeremiah Horrocks (latiniz. Horrox), um jovem ligado à igreja do pequeno povoado de Hoole, Lancashire. Horrocks confrontou resultados das Tabelas de Lansberg (que eram pouco precisas) com as de "Rudolfinas" de Kepler. Ambas previam que Vénus estaria muito próximo do Sol. As primeiras indicavam que o planeta passaria na parte superior do disco e as de Kepler um pouco abaixo do disco solar. Esta "ambiguidade" e a sua experiência observacional do planeta permitiu-lhe refinar o resultado tabulado e ponderar que muito provavelmente aconteceria um trânsito. E assim foi, aconteceu! Foi observado projectando a imagem do Sol através de um telescópio num quarto obscurecido. O seu amigo William Crabtree, outro entusiasta da astronomia, foi avisado e também observou fugazmente o trânsito ("Venus in Sole Visa", escreveu) a partir de Broughton, próximo de Manchester.

Trânsito Vénus 1769 - diagrama Rittenhouse
Diagrama da observação do trânsito de Vénus de 1769, desenhado pelo pioneiro David Rittenhouse (1732-1796)

Trânsitos de Vénus - distância do Sol
A primeira constatação da existência da atmosfera de Vénus aconteceu, na sequência da observação do trânsito de 1761, por Mikhail Lomonosov (1711-1765), prolífico cientista Russo. Até ao advento da chamada Era Espacial acreditou-se que o planeta poderia ser semelhante ao nosso e talvez albergasse vida. Mas na realidade possui uma atmosfera de dióxido de carbono e um infernal efeito de estufa. Os trânsitos de Vénus foram utilizados nos séculos XVIII e XIX para estimar a distância da Terra ao Sol por meio dos dados resultantes de observações a partir de locais diferentes (sabendo a distância entre os pontos, comparando os timings, verificando a distância Terra-Vénus e recorrendo depois à terceira lei de Kepler), como no exemplo, um observador A no Hemisfério Norte e outro (B) no Hemisfério Sul. O método foi gizado por Edmond Halley. Joseph-Nicolas Delisle, contemporâneo de Halley, propôs uma variante simplificada, a partir de uma única medição do timing do ingresso (ou do egresso), em dois locais geográficos diferentes. Salientou que um observador que vê o planeta percorrer um trânsito mais longo deve assistir ao ingresso antes de um observador que vê o planeta efectuar um trânsito mais curto. Seguiam-se as deduções proporcionais das distâncias. Todavia,
não era possível na época estabelecer com precisão a fundamental longitude dos pontos geográficos de observação. Chambers transcreve a explicação simplificada da lógica do procedimento, por Lord Grimthorpe: "If two men stand before a post with a wall behind it, they will see different places on the wall eclipsed or hidden by the post; and if the post is as far from the two eclipsed places as it is from the men, the two eclipses will be exactly as far apart as the two men are; if the wall is twice as far from the post, the two eclipses will be twice as far apart, and so on." (A Handbook of Descriptive and Practical Astronomy (4th ed.), Clarendon Press, 1889, vol.1, p.338). Infelizmente, os resultados (cronometrados) eram pouco precisos, afectados pelas dificuldades em precisar os limites do limbo do planeta (devido ao efeito óptico de "gota" ou "lágrima" conhecido como ‘Black Drop’): o limbo verdadeiro difere do aparente. Em última análise, o método para medir a distância ao Sol (a que chamamos "Unidade Astronómica") recorrendo aos trânsitos, não teve êxito. (ilustração; Ronan, Colin A., Discovering the Universe, A History of Astronomy, Basic Books, Inc., Publishers, 1971)


Os próximos trânsitos serão mercuriais: 13 de Novembro de 2032, 7 de Novembro de 2039 e 7 de Maio de 2049. O diâmetro do planeta é muito pequeno, 10" (10 segundos de arco ou cerca de 1/200 do diâmetro solar) em Novembro e 12" (1/160 do diâmetro solar) em Maio. Impossível detectar sem magnificação telescópica. Convém recorrer a diagrama da previsão do trânsito. Acautelar a SEGURANÇA que a observação do Sol exige (com recurso a filtros específicos colocados na objectiva, à entrada do caminho da luz).

- 13 de Novembro de 2032: Sol nasce às 07H18 e Mercúrio já estará em trânsito. Ponto intermédio acontecerá às 08H55. Quarto contacto (término) às 11H08 (Aveiro, Horas UT, equiv. Hora Legal).

- 7 de Novembro de 2039: Sol nasce às 07H11. Intervalo do fenómeno: 07H19 - 10H15 (Aveiro, Horas UT, equiv. Hora Legal)

Trânsitos Mercúrio     Trânsito Mercúrio 13NOV32

Os Trânsitos de Mercúrio acontecem sempre em Maio ou em Novembro. O primeiro foi observado em 1631, por Pierre Gassendi. Esquema da esquerda inclui trânsitos recentes e futuros, até 2078 (Michael Maunder & Patrick Moore, Transit: When Planets Cross the Sun, Springer, 1999). Disponibilizamos esta imagem editada do esquema, apenas com os percursos dos dois próximos trânsitos (2032 e 2039), invertida para observação telescópica (.JPG, 87KB). À direita, o próximo trânsito (13 de Novembro de 2032) observado a partir de Aveiro, assinalando parte da corda percorrida pelo planeta e posições do planeta na hora a que o Sol nasce, no ponto intermédio e no final do trânsito; invertida para reproduzir habitual observação telescópica; horas UT, info exportada pelo programa COELIX APEX)

Trânsito Mecúrio - Maio 2016
Mercúrio em trânsito observa-se somente telescopicamente e, como se verifica nesta fotografia do fenómeno de Maio de 2016, como um pequeno ponto (v. quadrante superior esq.), todavia definido e diferente das irregulares manchas solares (crédito: Piotr Borasa)

A Terra passa pelos nodos da órbita de Mercúrio aproximadamente a 10 de Novembro e 9 de Maio (datas deslizam lentamente de século para século). Um trânsito é possível apenas quando o planeta chega a um dos nodos na proximidade dessas datas. Os trânsitos predominam em Novembro devido à proximidade do periélio na órbita mercurial, que é acentuadamente elíptica e inclinada 7º relativamente ao nosso plano orbital. Em Maio o planeta está próximo do afélio, mais perto da Terra, o que reduz a probabilidade de trânsito. Segundo Joseph Ashbrook (1970 Yearbook of Astronomy, Sidgwick & Jackson, London, 1969, p.113), o fenómeno recorre segundo um ciclo de aproximadamente 46 anos (porque este intervalo  é quase coincidente com 191 revoluções de Mercúrio) e outro, mais preciso, de 217 anos (equivalente a 901 revoluções do planeta).


OCULTAÇÕES LUNARES

Uma Ocultação é, por definição, um fenómeno que acontece quando um objecto é totalmente escondido (eclipsado) por outro que se interpõe entre este e o observador. O generoso tamanho aparente da Lua (~ 0.5º), a sua paralaxe mensurável e rápido movimento sobre o "pano de fundo" do céu propiciam numerosas ocultações lunares. A cada duas horas, a Lua percorre cerca de 1º do Zodíaco (13º por dia). Pode, neste seu percurso para Leste, ocultar qualquer objecto que (aparentemente) se encontre no seu caminho (uma faixa que se estende 6.5º para cada lado da eclíptica). São fenómenos dinâmicos que disponibilizam uma demonstração surpreendente do movimento orbital dos astros, tendo sido extremamente importantes no percurso da Astronomia (ocasiões privilegiadas de medida, teoria lunar, rotação do nosso planeta, verificação da precisão das efemérides, estudo do relevo lunar, identificação de estelas duplas, etc.) e da Geodésia.

Foi a partir de fenómenos de ocultação de Marte que Aristóteles concluiu que a Lua está mais perto de nós. O planeta não transita, é ocultado pela Lua. Provou assim que Marte estava mais longe do que a Lua.


As ocultações são fenómenos "locais", com "timings" calculados para a posição específica do observador. Uma vez que a Lua está muito próxima, verifica-se uma paralaxe assinalável; 57' em média no plano equatorial horizontal (1º era o valor de Ptolomeu). Este fenómeno é evidente nas ocultações observadas a partir de locais diferentes.

As ocultações duram até cerca de 1 hora. As observações são muito facilitadas quando o brilho lunar não é demasiado intenso, longe do plenilúnio. Particularmente interessantes quando acontecem no limbo não iluminado. Podemos observar a ocultação de imensas estrelas, nas quais se incluem algumas de 1ª grandeza (Regulus, Spica e Antares). A Lua pode ainda, mais raramente, ocultar corpos do Sistema Solar, como os planetas.


Ocultações lunares  Ocultações lunares
Os observadores em diferentes locais geográficos não vêem a ocultação em simultâneo. Na ilustração da esquerda, enquanto o observador A observa a Lua a uma determinada distância da estrela, o observador B já observa o momento da ocultação no limbo lunar não iluminado (Ronan, C., The Practical Astronomer, Pan Books Ltd., 1981). Ilustração da direita explica como a ocultação é observada em diferentes pontos geográficos ao longo da faixa abrangida. No ponto 4 é "rasante" e acontece no limbo escuro (ver inset), permitindo visualizar o revelo lunar (Chartrand, M. R., Amateur Astronomy Pocket Skyguide, Newnes Books, 1984; editada)


- Ocultações lunares dos planetas visíveis a olho nu (dados para os próximos anos, timings para coordenadas de Aveiro, PT. Horas UT; export. COELIX APEX)

Ocultações planetas mais brilhantes

Ocultação de Saturno (21 de Agosto de 2024)
Ocultação de Saturno pela Lua no dia 21 de Agosto de 2024 (03h 13m - 04h 20m UT). Início do ingresso (esboço do autor)


Muito raramente, os planetas ocultam estrelas conspícuas. O próximo fenómeno, no qual Vénus ocultará Regulus (α Leonis), acontecerá em 1 de Outubro de 2044 (22H02 UT), mas não será observável a partir do nosso país (mesmo onde "observável", será sempre difícil devido à posição do Sol). Para informação acerca de ocultações, nomeadamente fenómenos envolvendo asteróides, consultar a página da
IOTA (International Occultation Timing Association).


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