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Eclipses, trânsitos e ocultações "...quod luce inter horam tertiam ferme et quartam tenebrae obortae fuerant." (T. Livius, Ab urbe cond., XXXVIII, 36, 4) "Quando a Lua está em eclipse, deverás observar com exactidão o mês, dia, o turno da noite [i.e. a hora], o vento, direcção, a posição das estrelas em cuja região o eclipse acontece. Os augúrios relacionados com esse mês, esse dia, essa hora, esse vento, essa direcção e essa(s) estrela(s) deverás indicar." (Charles Virolleaud, L’Astrologie Chaldéenne, Paris, 1908-12, "Sin" [a Lua] XIX, pp.19-20; v. também E. F. Weidner, Alter und Bedeutung der babylonischen Astronomie..., Leipzig, 1914, p.23 [trad. nossa]) “The impression is singularly vivid and quieting for days, and can never be wholly lost. A startling nearness to the gigantic forces of nature and their inconceivable operation seems to have been established. Personalities and towns and cities, and hates and jealousies, and even mundane hopes, grow very small and very far away." (Mabel L. Todd, Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.25)
introdução | mito e ciência | cronologias | contributos científicos | eclipses lunares | eclipses solares | eclipses "portugueses" | próximos (solares) | trânsitos | ocultações lunares
Introdução: o
fundamental, ciclos
Um eclipse solar só pode acontecer na Lua Nova; um eclipse lunar acontece sempre na Lua Cheia. Os planos da órbita da Terra e da Lua não coincidem (ou teríamos sempre um eclipse solar em cada Lua Nova e um eclipse lunar total em cada Lua Cheia). Assim seria se as órbitas da Lua e da Terra fossem complanares (i.e. se desenvolvessem exactamente no mesmo plano). Mas ambos estão desafasados cerca de 5º (em rigor 5.145°), o que faz que em cada metade do seu período orbital, a Lua esteja acima ou abaixo da Eclíptica, não se verificando o alinhamento exigido entre o Sol, a Terra e a Lua. As órbitas dos luminares intersectam-se em dois pontos chamados nodos. São os pontos (historicamente designados Caput e Cauda Draconis) onde a órbita lunar cruza a Eclíptica (literalmente "o lugar dos eclipses"). O período que o Sol (no seu movimento aparente) demora a voltar ao mesmo nodo é o chamado "ano de eclipse" (ou "dracónico"), equivalendo a cerca de 346.6 dias. Os eclipses somente acontecem quando o Sol e a Lua estão nesses pontos (um eclipse solar acontece quando ambos os luminares estão no mesmo nodo; um eclipse lunar quando cada qual está num dos nodos. i.e. a 180º, ou muito perto). A Eclíptica, percurso do Sol, era, desde a Antiguidade, acima de tudo definida (como o seu nome indica) pela sua relação com os eclipses. No séc. XVI, Robert Recorde explicava: "bicause there can be no eclipse of Sonne or Moone, onles [unless] the Moone be vnder that lyne" (The Castle of Knowledge, 1556). Como o Sol não é um ponto mas sim um objecto extenso, a sombra produzida consiste em dois círculos concêntricos: a umbra ("sombra", círculo interior) e a penumbra (círculo exterior). Diagrama
representando um "ano de eclipse". Somente quando os nodos
se "alinham" pode acontecer eclipse, o que se verifica duas vezes neste
ciclo (proporcionando dois ou mais fenómenos). (Diagrama original in:
Harrington, Philip S., Eclipse!,
John Wiley & Sons, 1997). O
chamado "ano de eclipse" é o intervalo entre duas passagens sucessivas
do Sol por um dos nodos e, como o nodo se vai deslocando ao encontro do
avanço do Sol, esse intervalo é 18.6 dias menor do que o ano tropical (o das estações, ou
comum). Por isso, num ano comum podem acontecer não apenas dois mas até
5 eclipses. Dois
eclipses solares são inevitáveis, um em cada nodo.
Por efeito das forças gravitacionais, a linha dos nodos desloca-se lentamente, fazendo com que os alinhamentos se verifiquem a cada 173 dias. É a chamada "temporada dos eclipses". Como Kepler de Souza Oliveira Filho & Maria de Fátima Oliveira Saraiva explicam: "Se o plano orbital da Lua coincidisse com o plano da eclíptica, um eclipse solar ocorreria a toda Lua nova e um eclipse lunar a toda Lua cheia. Entretanto, o plano está inclinado 5,2° e, portanto, a Lua precisa estar próxima da linha de nodos (cruzando o plano da eclíptica) para que um eclipse ocorra. Como o sistema Terra-Lua orbita o Sol, aproximadamente duas vezes por ano a linha dos nodos está alinhada com o Sol e a Terra. Estas são as temporadas dos eclipses, quando os eclipses podem ocorrer. Quando a Lua passar pelo nodo durante a temporada de eclipses, ocorre um eclipse. Como a órbita da Lua gradualmente gira sobre seu eixo (com um período de 18,6 anos de regressão dos nodos*), as temporadas ocorrem a cada 173 dias, e não exatamente a cada meio ano. A distância angular da Lua do nodo precisa ser menor que 4,6° para que ocorra um eclipse lunar, e menor que 10,3 ° para um eclipse solar, o que estende a temporada de eclipses para 31 a 38 dias, dependendo dos tamanhos aparentes e velocidades aparentes do Sol e da Lua, que variam porque as órbitas da Terra e da Lua são elípticas, de modo que pelo menos um eclipse ocorre a cada 173 dias." (http://astro.if.ufrgs.br/eclipses/eclipse.htm; aced. em 16 de Julho de 2024). * i.e. no sentido contrário relativamente ao movimento directo dos luminares ao longo do Zodíaco. A órbita da Lua desloca-se devido ao efeito de maré combinado da Terra e do Sol. A linha dos nodos regride por ano 19.4° para Oeste. Devido a esta "precessão" dos nodos, os eclipses acontecem nos anos sequentes com um avanço de 18.52 dias relativamente ao ano anterior. (vide Vanin, Gabriele, Les Eclipses: Comment les Observer et les Comprendre, Paris, Éditions Grund, 1999, p.34). Probabilidade
de ocorrência de um eclipse solar,"danger zone" (Littmann,
Espenak & Willcox, Totality:
Eclipses of the Sun (3rd ed.),
p.13)
Portanto, como Littmann, Espenak e Willcox explicam, duas vezes por ano, grosso modo, acontece o "período perigoso", a mencionada "temporada" quando o Sol atravessa a região dos nodos e um eclipse é possível. Acontece um qualquer tipo de eclipse solar se, na Lua Nova, a distância do Sol a um nodo lunar for: 18°31' (máx.), 15°21' (mínimo), 16°56 (médio). Será central (i.e. os centros dos dois luminares vão coincidir) se estas distâncias estiverem nos intervalos: 11°50' (máx.), 9°55' (mínimo), 10°52 (médio). Estes limites são, como sabemos, variáveis devido a variações aparentes nos diâmetros angulares e velocidades do Sol e da Lua devido às órbitas elípticas da Terra e da Lua. (Totality: Eclipses of the Sun, 3rd ed.,, Oxford University Press, 2008, p.14). "Um alerta de eclipse começa quando o Sol entra na zona perigosa, 15 graus e 1/3 a Oeste de um dos nodos da Lua, e não termina enquanto este não escapar para além de 15 graus e 1/3 a Leste desse nodo. Viajando 1 grau por dia, o Sol estará na zona perigosa por cerca de 31 dias. Uma vez que a Lua completa o seu circuito (com todas as fases) alcançando o Sol a cada 29,53 dias, o Sol não consegue percorrer toda a zona perigosa antes que a Lua aí chegue. Um eclipse solar deve acontecer, sensivelmente a cada meio ano, sempre que o Sol se aproxime de um nodo e entre numa destas zonas perigosas."(ibid.; trad. nossa). O Saros A sequência mais ampla dos eclipses obedece a um período chamado Saros (i.e. "repetição"), perfazendo 223 meses sinódicos (mês sinódico: lunação, tempo transcorrido entre duas luas novas consecutivas) e aproximadamente equivalente ao ciclo de regressão dos nodos da órbita lunar, no qual os centros dos dois luminares e a linha dos nodos quase voltam às mesmas posições relativas. Traduz-se num intervalo de quase 19 anos solares: 18 anos, 11 dias (ou melhor, entre 10 e 12 dias, variação dependendo da hora específica do fenómeno e do nº de anos bissextos [diz-se "bissexto", i.e. Bis VI Kal. Martii, pois no sistema de contagem romano era repetido o sexto dia das Calendas de Março] que acontecem nesse período de dezanove anos no nosso calendário Gregoriano (e.g., 10 dias se acontecerem 5 bissextos) e cerca de 8 horas (7 horas e 42 minutos). Os eclipses assim separados pertencem a um mesmo saros e todos os ciclos são, hoje, astronomicamente numerados, Convencionou-se que os eclipses com número ímpar (na sua série) são os que acontecem no nodo ascendente; atribui-se número par aos que acontecem no nodo descendente. Utilizando o exemplo dos eclipses solares, como um saros não corresponde exactamente a 18 anos, a data de cada um dos eclipses de uma "série" deve avançar os referidos 11 dias suplementares. Mas como a diferença é, em rigor, de 11 dias e 8 horas, estas horas "a mais" traduzem-se numa deslocação rotacional do nosso planeta debaixo da umbra (sombra) lunar que equivale a cerca de 1/3 de um dia ou 120º de longitude (1h=15º). Logo, o eclipse vai acontecer noutra região do globo, deslocada cerca de 120º para Oeste (v. mapa com exemplo infra nesta pág., onde também se explica a evolução dos eclipses de uma "série" no longo prazo). Há outros ciclos, como o "inex" de cerca de 29 anos, relacionando 358 meses sinódicos com 388.5 meses dracónicos, i.e., dos nodos, retorno da Lua ao mesmo nodo da sua órbita. Foi detectado por van den Bergh na sua análise dos dados coligidos no vasto Canon der Finsternisse de Oppolzer (vide G. van den Bergh: Periodicity and Variations of Solar and Lunar Eclipses, T. Jeenk Willink & Zoon N. V., Haarlem, 1955). Em resumo, o Saros é um período que equivale ao ciclo de regressão dos nodos da órbita lunar. Esta propriedade advém de ser um múltiplo inteiro tanto da lunação como do período dracónico (ou "draconítico"). Após três períodos, o eclipse repete-se aproximadamente na mesma localização geográfica. Permitia apenas saber se aconteceria um eclipse num determinado dia, sem definitivamente classificar se seria parcial, total ou anular (não tinha em consideração as distâncias do Sol e da Lua), ou se podia ser observado da mesma localização que o seu antecessor. Não se sabia a razão da recorrência ou da periodicidade específica, apenas compeendida após o detalhado estudo dos movimentos lunares. Já não é usado há muito tempo. A complexa mecânica (relacionada com o célebre "problema dos três corpos", que ocupou matemáticos como d’Alembert, de Clairaut ou Leonhard Euler, em Setecentos), bem como a ponderação de outras eventuais e minuciosas interacções gravitacionais, permite actualmente prever estes fenómenos com enorme precisão, i.e. ao segundo. A designação
nasceu de um equívoco (como procuraremos elucidar mais adiante): "It
is common in 20th century literature to say that this cycle is the
interval that the Babylonians or other ancients called the Saros, and
it is probably hopeless to try to correct this error. Sarton [1952, p.
119] and Neugebauer [1957, p.142] point out that the mistake arose in
the 17th century. Halley started it by misreading a poorly edited text
of Pliny's Natural History." (Newton, R. R., Ancient Astronomical Observations...,
The Johns Hopkins Press, 1970, p.94).
A
magnitude dos eclipses era medida em dígitos ("dedos") ou "pontos" (doze avos do
diâmetro), como se pode ver na fig. 6, representação do eclipse lunar.
Em baixo, tipologia
dos eclipses do Sol (Asa Smith, Smith's
Illustrated Astronomy, Cady & Burgess, 1849)
Ekleipsis Esta palavra, que foi transliterada do Grego como "eclipse", significa abandono ou falha (no sentido de algo "disfuncional"); defectus solis, dizia-se em Latim, "desfallecimento ou ausencia", como explicava Frederico Oom no seu livro acerca do eclipse de 28 de Maio de 1900 (v. infra). Num passado remoto, sem entendimento da mecânica celeste ou tecnologia adequada, seria extremamente difícil compreender a causa dos inusitados fenómenos. Num eclipse solar, os nossos antepassados remotos observavam o Sol a ser lentamente reduzido mas o brilho intenso não permitiria facilmente perceber que se tratava da Lua, apesar da sua fase permitir suspeitar da proximidade. É necessário "esquecer" o que conhecemos (as órbitas, a interacção Sol-Terra-Lua) para procurar imaginar as interpretações míticas, que coincidiam na ideia-base de que a ordem e a regularidade eram seriamente ameaçadas. Nas mais disseminadas tradições, encontramos o mitema do "monstro que devora o luminar": um dragão no Extremo Oriente, um demónio chamado Rahu na Índia (que se disseminou para o sudeste asiático, bem como para nordeste, até à Mongólia e Sibéria, e.g., através do Arakho do folclore dos Buriates), na Mitologia Nórdica eram dois infatigáveis lobos gigantes criados por Loki, rei das artimanhas (Hati perseguia a Lua e Skoll perseguia o Sol); no Egipto, a enorme serpente Apep atacava a barca do Sol (Rá), tema provavelmente relacionável com os eclipses solares, etc. Na indonésia
chama-se Kala Rau ao asura Rahu, referido no Mahabharata. Na tradição Hindu, os Asuras são demónios antagonistas
dos benevolentes Devas,
ou deuses. O arteiro Rahu terá sido rapidamente decapitado por Vishnu
(enquanto Narayana) após
cometer o sacrilégio de beber do elixir da
imortalidade reservado aos deuses. O corpo pereceu mas a sua cabeça
tornou-se imortal. O demónio vinga-se perseguindo o Sol e a Lua, que o
terão denunciado. Por vezes "engole" um destes (eclipse) mas o luminar
acaba por sair pela goela cortada. (Desenho efectuado a partir de
pintura tradicional Balinesa por Joseph Bientasz, Griffith Observatory,
in: Krupp. E. C., Beyond the Blue
Horizon..., Oxford University Press, 1992 (1991), p.168)
Um
eclipse lunar em 16 de Dezembro de 1880 (data Gregoriana) foi recebido
ruidosamente em Tashkent (Uzbequistão) com tambores e címbalos (gravura
recolhida numa edição de 1900, em Russo, da célebre Astronomie
Populaire de C. Flammarion)
Fontenelle (1657-1757), escritor e pensador Iluminista, expôs diversas superstições e medos relacionados com os eclipses em algumas culturas extra-europeias, mas também ironizou com pretéritas superstições dos "refinados" (raffinés) gregos e com o pânico ainda recente dos seus contemporâneos franceses, quando, durante um eclipse, muitos se trancaram em caves e porões: "Ah! vraiment, répondis-je, il y a bien des peuples qui, de la manière dont ils s’y prennent, ne la devineront encore de longtemps. Dans toutes les Indes orientales on croit que quand le Soleil et la Lune s’éclipsent, c’est qu’un certain dragon* qui a les griffes fort noires, les étend sur ces astres dont il veut se saisir ; et vous voyez pendant ce temps-là les rivières couvertes de têtes d’Indiens qui se sont mis dans l’eau jusqu’au col, parce que c’est une situation très dévote selon eux, et très propre à obtenir du Soleil et de la Lune qu’ils se défendent bien contre le Dragon*. En Amérique on était persuadé que le Soleil et la lune étaient fâchés quand ils s’éclipsaient, et Dieu sait ce qu’on ne faisait pas pour se raccommoder avec eux. Mais les Grecs qui étaient si raffinés n’ont-ils pas cru longtemps que la Lune était ensorcelée, et que des magiciennes la faisaient descendre du ciel pour jeter sur les herbes une certaine écume malfaisante? Et nous, n’eûmes-nous pas belle peur il n’y a que trente-deux ans, à une certaine éclipse de soleil [refere-se a 1654], qui à la vérité fut totale? Une infinité de gens ne se tinrent-ils pas enfermés dans des caves, et les philosophes qui écrivirent pour nous rassurer n’écrivirent-ils pas en vain ou à peu près? Ceux qui s’étaient réfugiés dans les caves en sortirent-ils?" (Bernard Le Bouyer de Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes, "second soir", 1742 (1686); excerto é do texto-base, a última edição revista pelo autor; seguimos a Edição Crítica de Alexandre Calame, Paris, Librairie Marcel Didier, 1966, pp.56-57) * "Demon" nas edições de 1886 e 1724. Numa tradução deste trecho em Português (baseada noutra edição): "Ah! respondi eu, quantos povos ha ainda que pela sua maneira de discorrer sobre os Eclipses estarao longo tempo ainda sem adivinha-la. Em todas as Indias Orientaes se crê que, quando o Sol, e a Lua se eclipasam, é porque um certo Demonio, que tem as Garras muito negras, se estende sobre estes Astros, quaes pretende apossar-se; e, se alli podesseis transportar-vos, verieis em todo o tempo que dura o Eclipse os rios coalhados de cabeças de Indios [i.e. hindus], que se mettem na agua até ao pescoço, por ser esta uma situação muito devota, segundo a sua crença, e muito propria para obter do Sol, e da Lua que se defendam bem do Demonio, que procura agarra-los. Na America persuadem-se que o Sol, e a Lua estão enfadados, quando se eclipsam, e Deos sabe o que aquelles povos são capazes de fazer para se reconciliarem com elles! E os Gregos, que eram tão subtis nas suas pesquizas, não acreditaram longo tempo que a Lua cedia aos encantos, e feitiços com que algumas Magicas a faziam descer do Ceo para espalhar sobre as ervas certa espuma venenosa? E entre nós mesmos não se experimentou, haverá talvez sessenta anos, o maior susto occasionado por um Eclipse do Sol? não se conservaram uma infinidade de pessoas encerradas em subterraneos, a pezar de tudo quanto os Philosophos escreveram para destruirem tão ridiculo susto?" (Conversações sobre a Pluralidade dos Mundos: Vertidas de Francez em Vulgar pela Senhora D. Francisca de Paula Possóllo da Costa. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1841, pp.75-6). O pânico foi descrito na gazeta burlesca semanal de Jean Loret, do dia 15 de agosto. Eis as últimas rimas: "Beaucoup de gens, et des plus braves, Se cachèrent au fond des caves, Et tel fut au grenier exprés Pour voir le soleil de plus prés..." O Eclipse é, na alargada abordagem antropológica resumida por Jean-Pierre Verdet (Le Ciel: Ordre et Désordre, Gallimard, 1988), um culminar da desordem cósmica: "...cas extrême des phases de la lune ou de la disparition quotidienne du soleil - est celui du grand désordre cosmique." (p.76). Os valores simbólicos do eclipse e os do incesto, tabu universal ("le signe même du désordre social") são também relacionáveis e surgem em algumas interpretações (ibid.). Na arte, na literatura, na Sci-Fi (ficção científica) ou na BD, o interesse pelos eclipses é evidente, da Odisseia de Homero a Tintin, passando por Shakespeare e Asimov (Nightfall, 1941), pela pintura de Taddeo Gaddi, Rafael (Raffaello Sanzio) ou Hendrick ter Brugghen. Os portentos disseminaram o seu fascínio. Taddeo Gaddi, L'Apparizione dell'angelo ai pastori
(pormenor); fresco, Cappella Baroncelli, Santa Croce, Florença (década
de 1330). Gaddi representou os efeitos luminosos que observou no
eclipse de 16 de Julho de 1330 (Pasachoff, J., Olson, R. Astronomy: Art of the eclipse.
Nature 508, 314–315 (2014); à direita: Isacco e Rebecca spiati da Abimelech
(Gn:26); fresco de Rafael,
Logge di Raffaello, Vaticano, 1518–19
Historicamente, a confirmação de padrões significativos na recorrência e tipologia dos eclipses da Lua foi muito facilitada pelo facto de estes serem sempre observáveis a partir de todo um hemisfério do nosso planeta (na verdade, em mais de metade do planeta devido ao movimento de rotação), enquanto os eclipses solares estão confinados a restritas regiões geográficas, afastadas entre si. O registo cuidadoso dos fenómenos permitiu antecipar os eclipses lunares, reconhecer repetições e, provavelmente, as "lacunas" (eclipses não observados). Os povos da Mesopotâmia foram os primeiros a compreender que os eclipses (lunares) se manifestavam num ritmo próprio. Obedeciam a ciclos. E o saros, já mencionado acima, será o mais importante: "(,,,) As time passed and they accumulated more records, the Chaldeans and other ancient peoples recognized that a specific eclipse occurred a precise number of days after a previous eclipse and before a subsequent one. Eclipses had a long-term rhythm of their own. The most famous and, perhaps, most useful of these eclipse rhythms was the saros, discovered by the Chaldeans and inscribed on clay tablets in their cuneiform writing. The Chaldeans noticed that 6,585 days (18 years 11 days) after virtually every lunar eclipse, there was another very similar one. If the first was total, the next was almost always total." (Littmann, Espenak & Willcox: Totality: Eclipses of the Sun (3rd ed.), Oxford University Press, 2008, p.21). É um múltiplo quase exacto de vários outros períodos: 18 anos e onze dias perfazem 6585 dias, representando 223 lunações (retorno da mesma fase da Lua à mesma data do calendário solar (Juliano), i.e. o chamado Ciclo Metónico*), 242 revoluções dracónicas (cada uma é o retorno ao mesmo nodo, 27,21 dias) e 238 revoluções anomalísticas (cada uma é o intervalo entre duas passagens da Lua pelo seu perigeu, o ponto mais próximo da Terra, 27,55 dias). Está atestado num texto babilónico encontrado em duas placas cuneiformes identificadas e coligidas por Abraham Sachs em 1953 (Olaf Pedersen (Alexander Jones, ed.), A Survey of the Almagest..., Springer, 2008, p.162, n.1). * Ou Enneadecaeteris: mínimo múltiplo comum (aproximado) da duração, em número de dias, do ano trópico (o das Estações) e do mês sinódico lunar (o das lunações). Ciclo tradicionalmente utilizado na “harmonização” dos ritmos convencionais do Sol e da Lua no Calendário Litúrgico, com a sua gestão do excesso de dias do ano solar sobre o lunar - a Epacta). Uma
serpente emplumada engole o Sol. É um tema recorrente em diversas
mitologias
dos eclipses, protagonizado por dragões (no Extremo Oriente), lobos
(entre os povos nórdicos), jaguares (em algumas culturas
Pré-Colombianas),
demónios de toda a espécie. O eclipse solar assume,
na
perspectiva antropológica, uma ideia de perigo, desordem (cósmica,
social),
desequilíbrio e caos. A técnica para afastar a "ameaça" e acabar com o
momento disruptivo era, em quase todas as culturas, fazer o maior
barulho possível. Na ilustração, desenho de detalhe da tabela de eclipses do chamado Códice de Dresden
(Akademische Druck- u. Verlagsanstalt Graz; p. 57b). Os Maias
utilizaram
calendários complexos, tendo enorme
abrangência na Mesoamérica um ano ritual de 260 dias. Respaldavam-se em
ciclos diferentes dos utilizados no chamado "Velho Mundo", com
abordagens
e interpretações simbólicas específicas. Reconheciam o
período de 177 (ou 178) dias que intervalava os eclipses. Sabiam,
empiricamente, que os eclipses somente se podiam repetir em semestres,
ou ocasionalmente em cinco meses (porque, como hoje diremos, o Sol e a
Lua precisam estar situados nos nodos,
onde ambas as órbitas, i.e. a
Eclíptica e a órbita da Lua, se intersectam)
Também os Maias, na Mesoamérica, após registarem um número suficiente de eclipses, verificaram recorrências, nomeadamente que os fenómenos de maior magnitude se verificavam apenas em intervalos de seis meses lunares ou cinco meses lunares. Descobriram empiricamente a duração aproximada do "ano de eclipse", bem como do meio-ano de 173.3 dias. Recorrendo à data de um eclipse lunar ou solar observado, existia a possibilidade de nova ocorrência, embora em muitos casos o eclipse não acontecesse ou não fosse observável a partir da localização geográfica habitada por estes povos. Todavia, não existia ainda, em qualquer civilização, uma teoria que explicasse o padrão. No caso dos eclipses solares, confinados na área que abrangem e (numa mesma série) "reincidindo" em regiões geográficas afastadas, é provável que, no máximo, num ou outro caso particular, se pudesse inferir uma vaga "possibilidade" de recorrência. Mas seria inexequível antecipar. Com os Gregos desenvolve-se uma perspectiva geométrica na qual os "planetas" (no sentido lato tradicional, que incluía os luminares) descreviam órbitas, e estas eram circulares. Com Hiparco, e depois com Ptolomeu, desenvolve-se um conhecimento mais aprofundado das peculiaridades dos movimentos aparentes do Sol e da Lua. As ulteriores tabelas medievais, respaldadas no legado ptolomaico e com refinamentos promovidos pelos astrónomos das regiões islamizadas, permitiam antecipar os eclipses lunares com notável precisão (~1 hora). Mas o verdadeiro salto qualitativo, definitivo no que diz respeito aos eclipses do Sol, só acontecerá mais tarde com as leis da mecânica celeste de Newton. Edmond Halley (1656-1742) foi o primeiro astrónomo a calcular e antecipar com precisão as localizações, "timings" e percursos dos eclipses. Fê-lo para os eclipses solares de 1715 e 1724, cuja totalidade percorreu a Inglaterra. O primeiro eclipse cronometrado por um grupo de astrónomos foi, justamente o de 3 de Maio 1715, data Gregoriana (Stephenson, F. Richard (1982). "Historical Eclipses". Scientific American. vol.247, no.4. pp. 154–163). A partir daí, tornou-se também exequível calcular (retrospectivamente) fenómenos no passado e conhecer a sua cronologia. O
mapa desenhado por Halley para o eclipse de 1715 foi um dos primeiros
do seu
género (o primeiro parece ter sido desenhado pelo astrónomo Alemão
Erhard Weigel em 1654, vide
Kanas, Nick, Solar System Maps: From
Antiquity to the Space Age, Springer/Praxis Publishing, 2024,
p.224). Após o eclipse, foi corrigido e republicado, adicionando o caminho do futuro eclipse de 1724
que também atravessaria a Inglaterra
A recorrência lunar reconhecida na antiga Mesopotâmia também acomoda os eclipses solares. Normalmente, cada ciclo inclui 70 eclipses (41 solares e 29 lunares). Dado um determinado eclipse, decorrido um destes intervalos assiste-se a outro eclipse com geometria similar (duração, tipo, configuração do percurso de sombra, etc.), todavia observável noutra região geográfica devido ao facto de os períodos relacionados não serem exactamente múltiplos. Em causa está a dinâmica do sistema Sol-Terra-Lua. Como já vimos acima, antes de mais, atendendo a que um saros não corresponde exactamente a 18 anos, a data de cada um dos eclipses do "grupo" vai avançar os 11 dias em excesso. Mas como a diferença é, em rigor, de 11 dias e 8 horas, as horas "remanescentes" traduzem-se na deslocação rotacional do nosso planeta sob a umbra (sombra) lunar que equivale a cerca de 1/3 de um dia ou 120º de longitude (1h=15º). Logo, o eclipse vai acontecer noutra região do globo, deslocada cerca de 120º para Oeste. Logo, é necessário completar 3 saros (669 meses sinódicos, período designado Exeligmos (aparentemente favorecido pelos Gregos) que encontramos mencionado no Isagoge de Geminus (XVIII) ou no Almagesto (IV, 2) de Ptolomeu) para que o eclipse atinja aproximadamente a mesma região do globo, "voltando" à mesma longitude. Porque já se verificou um diferencial de 33 dias (11x3), o Sol estará, todavia, um pouco mais alto (ou baixo), dependendo da estação do ano e do movimento ascendente ou descendente da Lua através do nodo (i.e. deslocamento gradual do nodo lunar, cerca de 0.5º entre eclipses sucessivos), determinando uma faixa e totalidade geograficamente deslocada para norte ou para sul. Caminho de Totalidade de nove eclipses pertencentes ao saros nº 136, no intervalo 1901-2045 (Espenak, F. & Meeus, J., Five Millennium Canon of Solar Eclipses: –1999 to +3000 (2000 BCE to 3000 CE), NASA/TP–2006–214141, p.38). Eclipses sucessivos dos saros com nº par acontecem deslocados para Oeste e Norte; dos saros com nº ímpar para Oeste e Sul. Todos os eclipses de uma
mesma série acontecem no mesmo nodo
lunar (ascendente ou descendente).
A longo prazo, uma
série (ou "família") saros
começa com um conjunto de eclipses parciais observáveis em
latitudes muito elevadas, seguido de um conjunto de eclipses anulares,
totais ou híbridos (nestes, o cone de sombra não toca a superfície do
nosso planeta nos extremos do seu percurso mas somente numa fase
intermédia devido à curvatura terrestre) em latitudes geográficas
medianas (N.B.: embora existam saros sem eclipses totais, ou sem
eclipses anulares, nenhum tem somente eclipses parciais).
Em resumo, o ciclo começa de modo incipiente, somente penumbral, Após
um intervalo aproximado de dois séculos, a umbra começa a tocar a
superfície do nosso planeta e a proporcionar eclipses mais notáveis
durante cerca de 950 anos. Finalmente,
espiralando ao
longo do globo, e tendo entretanto atravessado o Equador, a série sai
de cena com um conjunto de modestos eclipses parciais próximos do pólo
geográfico oposto, após um intervalo médio de 1300
anos. [Mobberley, M., Total Solar Eclipses and How to Observe
Them, Springer, 2007, pp.15-17): Zirker, J. B., Total Eclipses
of the Sun (Expanded ed.), Princeton University Press, 1995,
pp.37 et seq.; Nordgren, T., Sun, Moon, Earth: The History of Solar
Eclipses..., Basic
Books, 2016, ch. 2]
Como acontecem muitos e não apenas um único eclipse em cada período de (quase) 19 anos, há sempre vários ciclos saros a decorrerem em simultâneo (~40 em curso a qualquer momento). A
interpretação do nome Saros
(Gr. σάρος) é de origem moderna (Neugebauer, O., A History of Ancient Mathematical Astronomy,
Springer, 1995, vol.1, p.497 n.2). Terá sido pela
primeira vez utilizado
(neste contexto) por Edmond
Halley em finais do séc. XVII, enquanto comentava passagens de uma
edição da Naturalis Historia
de Plínio (Emendationes & Notae in tria
loca vitiose edita in textu vulgato Naturalis Historiae C. Plinii).
A palavra foi, supostamente, retirada do "Suda" (ou "Suidas"), um
extenso lexicon
(dicionário) Bizantino do séc. XI (v. trad. entrada relevante
em Inglês, .PDF, 20KB; 1ª nota
denuncia a extrapolação para o tema dos
eclipses, 2ª nota é
pertinente e corrige lapso no original). Otto Neugebauer
procurou descrever o turbulento percurso deste conceito (The Exact Sciences in Antiquity, 2nd ed.,
Dover Publications, 1969, pp.141-2): associado à Astronomia pela
primeira vez no referido dicionário, não tinha qualquer ligação aos
eclipses (mas sim com uma relação trivial entre o ano e o número de
meses do ano). Com suposta origem na Suméria, relacionava-se
primitivamente, segundo Ideler (Handbuch
der Mathematischen und Technischen Chronologie,
I, 1825, p.213), com conceitos como "universo" ou "pluralidade" e, mais
tarde, com o número 3600 (expressão concreta de uma elevada
quantidade). É, de facto, usado por Berossus (circa 290 A.C) como
sinónimo de "3600 anos". Edmond Halley lê em Plínio a descrição da
recorrência
dos eclipses (que sabia serem 223 meses), numa edição que
indicava "222" (edições diferentes grafavam números diversos, incluindo 235, obviamente sugerido pelo Ciclo Metónico, que é diferente,
ainda hoje usado no nosso Calendário Litúrgico).
Presumindo que o texto do séc. XI se baseara em Plínio, decide aplicar
a
"correcção" a ambas as fontes, relacionando erradamente a mais recente
com a temática dos eclipses (não tendo em conta contexto original, que
não faz sentido com a alteração). Esta conjectura (embora criticada por
alguns autores na época) foi todavia publicada por Montucla na
sua célebre Histoire des
mathematiques (1758) e o mito "Saros" não mais se desfez. Em
resumo, Halley interpretou
incorrectamente a descrição original mas a terminologia perpetuou-se no
uso astronómico. Em rigor,
segundo Franz Xaver Kugler (Die
babylonische mondrechnung,
1900), no período Selêucida (mais tardio) os
eclipses eram calculados medindo
cuidadosamente a latitude lunar relativa às sizigias (Lua Nova e Lua Cheia), existindo contudo
indicações da utilização. num período anterior, de um ciclo de
cerca de 18 anos para determinar a sua recorrência (bem como a de
diversos outros fenómenos lunares).
Conhecida
ilustração oitocentista de uma batalha entre Lídios e Medos, relatada
por
Heródoto, supostamente
interrompida por um
eclipse total que motivou a celebração da paz entre os antagonistas
(reproduzida por Todd, Mabel L., Total
Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.95).
Proveniente de
fonte francesa (autoria do artista Georges
Rochegrosse, 1859-1938)
Cronologias Uma vertente interessante consiste no recurso aos eclipses do passado como ferramenta cronológica. Neste âmbito, onde a Astronomia, a História e a Cronologia, se encontraram, há alguns nomes do passado que são referência. No primeiro quartel do séc. XIX, o Barão Franz Xaver von Zach (1754-1832) elencava diversos "éclipsographes": "Scaliger, Petau, Riccioli, Calvisius, Struyck, Ferguson, Lambert, Pingré, etc." (Correspondance Astronomique, vol.3 (1819), p.560). Os académicos do final do século XIX e início do XX (Friedrich Karl Ginzel, John Knight Fotheringham et al.) procuraram interpretar os vagos relatos clássicos, quase sempre literários, presentes em resumos históricos, biografias e até poemas (como um conhecido exemplo de Arquíloco (séc. VII a.C.), fragm. 122, v. Barron and Easterling, 1985, p.125) porque não havia nada mais 'técnico' à disposição. Com a descoberta e tradução de parte dos registos cuneiformes encontrados na Mesopotâmia (quase todos arquivados no Museu Britânico), consegue-se amiudadamente obter informação muito mais precisa. É muitas vezes possível fazer a relacionação com os antigos calendários, em paralelo com as listas disponíveis de reis e soberanos (como o "Canon Basileon" que encontramos nas tabelas de Ptolomeu), e.g., o eclipse ocorrido na data equivalente a 15 de Junho de 763 a.C. surge na chamada "Crónica Assíria", sendo relevante para a cronologia desta civilização. Na tradução fidedigna de Alan R. Millard: (Eponym of) Bur-Saggile of Guzana. Revolt in the citadel; in (the month) Siwan, the Sun had an eclipse (samas attalu). [Assyrian Chronicle; trans. Millard (1994, p.58)] O 'epónimo' ("limmu" no original) refere-se ao governador provincial ou magistrado cujo nome identificava o ano para o qual estava mandatado (comparável aos "arcontes" Gregos e aos cônsules que encontraremos em Roma). Neste caso o seu nome era Bur-Saggile. A partir do "Cânone dos Reis" que Ptolomeu transcreveu (vide G. J. Toomer, Ptolemy's Almagest. Translated and annotated, Duckworth, 1984, p.11), foi possível (nas listagens de eclipses retrospectivamente calculados) localizar o que responde ao ano, mês e localização. Pela tradução de Millard percebemos que o eclipse, sendo na região de Assur, não se refere obrigatoriamente à capital, como é habitual encontrar noutras referências. A sua magnitude também não foi sugerida no registo original. Outro exemplo é o eclipse no dia do novilúnio do mês de Hiyar, equivalendo (numa pesquisa retrospectiva) a de 3 de Maio de 1375 a.C. em Ugarit (antiga cidade do norte da Síria): o Sol foi humilhado e apagou-se em pleno dia ("The sun was put to shame and went down in daytime", vide J. B. Zirker, Total Eclipses of the Sun, Princeton University Press, 1995, chapter 1; a fonte original é a placa cuneiforme KTU 1.78, encontrada em 1948). A verificação das datas cronológicas tem em conta a aceleração orbital da Lua e desaceleração da rotação da Terra (resultado das forças em presença nas marés oceânicas, que em pequenos incrementos se tornam influentes a longo prazo). A primeira explicação matemática detalhada do efeito foi feita pelo notável matemático Pierre-Simon de Laplace (1749-1827) no último quartel do séc. XVIII. Na realidade há múltiplos factores, nomeadamente climáticos, que criam pequenas variações na rotação da Terra, nem todos ainda completamente compreendidos. As cronologias são constantemente ajustadas e refinadas em função do conhecimento destas variáveis e com nova informação de antigos relatos entretanto descobertos. Segundo F. Richard Stephenson, os eclipses cronologicamente válidos enquadram-se em três categorias (por ordem de relevância decrescente): os que também incluem a hora do dia, os que foram relatados como acontecendo próximo do orto ou do ocaso do Sol e, por fim, os que não relatam os "timings" mas são considerados conspícuos, i.e. totais ou quase totais. ("Historical Eclipses". Scientific American. Vol. 247, no. 4., pp.173-74). Refira-se que, curiosamente, não há, aparentemente, qualquer evidência de registos relacionados com eclipses nas fontes do Antigo Egípto. Seria tabu? Segundo os editores da Encyclopedia Britannica: "Some scholars have suggested that perhaps eclipses were highly distressing and were deliberately left unrecorded so as to not "endow the event with a degree of permanence" or tempt the sun god Re (Ra). One Egyptologist has suggested that various references to an apparently metaphorical form of blindness align with historical eclipse dates and may be symbolic records of these events. Or perhaps papyrus records were simply lost to time." (Petruzzello, Melissa. "The Sun Was Eaten: 6 Ways Cultures Have Explained Eclipses". Encyclopedia Britannica, 1 Aug. 2017, https://www.britannica.com/list/the-sun-was-eaten-6-ways-cultures-have-explained-eclipses. Accessed 30 October 2023) A leitura histórica não está, porém, isenta de dificuldades, atendendo à complexidade da interpretação de muitas das fontes, com testemunhos imprecisos, ficcionados ou, de algum modo, "falsificados" (e.g., fenómenos "transladados" para coincidirem com eventos históricos ponderosos). Muitos astrónomos e divulgadores reputados repetem até à saciedade relatos com pífia credibilidade, porque insuficientemente ou equivocamente documentados. Exemplos: o célebre episódio Chinês dos astrónomos Hsi e Ho (nomes que remetem para a antiga mitologia astronómica solar, com ulterior materialização "histórica" na lenda; podemos encontrar um bom resumo em Littmann et al.: Totality: Eclipses of the Sun (3rd ed.), Op. cit., pp.33 et seq.; a fonte confucionista original (uma compilação de diversos discursos antigos e registos de eventos) foi ed./trad. por James Legge: The Chinese Classics, vol. 3, The Shoo King [Shu Ching], Hong Kong University Press, 1960). Fenómeno dataria da (debatida) dinastia Hsia ou Xia e chegou à Europa num tratado de 1732 da autoria do jesuíta Antoine Gaubil. A lenda refere um eclipse que ocorreu supostamente em 2137 a.C. Aos negligentes astrónomos incumbentes, Hsi e Ho, foi prometida severa (capital) punição por não terem antecipado a ocorrência, episódio que J. Needham (na senda de outros autores) considera obviamente espúrio e uma interpolação relativamente recente (Mathematics and Science in China and the West, vol.3, Cambridge University Press, 1959, p.189). Outro célebre fenómeno foi supostamente "previsto" por Tales de Mileto e interrompe uma batalha entre Lídios e Medos (Heródoto, I, 74), Plínio (Nat. Hist. II, 9) ou Cícero (De Divinatione, 49), Foi "validado" no séc. XIX pelo astrónomo G. B. Airy como sendo o eclipse ocorrido na data equivalente a 28 de Maio de 585 a.C. O próprio sítio da batalha, nas margens do rio Halys, é somente mais uma suposição. A polémica começa pela (im)possibilidade de previsão das circunstâncias locais ou geográficas na época de Tales (para os eclipses solares não bastaria conhecer o ciclo saros, seria necessário recorrer a um vasto acervo de datas de eclipses observados na região, dos diversos saroi em curso, para uma estimativa minimamente informada baseada nos pares ou trios ocasionais), De resto, se o filósofo milesiano utilizou um ciclo, convém esclarecer que os ciclos contêm um número integral de meses e a predição apontaria necessariamente o dia, não o ano, como descrito no relato. Simon Newcomb (1835-1909) cedo sugeriu cautelas na leitura crédula destes antigos "relatos" de supostos eclipses. Salientou o facto de Tales apenas ter "previsto" um único eclipse (demais total, na sua região geográfica) e a enorme improbabilidade inerente: "That he predicted only a single eclipse is highly improbable; that, in addition, this one should prove to be total within a hundred miles of his birthplace transcends all reasonable probability" (Researches on the Motion of the Moon..., Washington, Government Printing Office, 1878, p.30). Convém lembrar que Tales ou Pitágoras pertencem a uma categoria de "heróis sapientes" mitificados, aos quais tudo era (e foi sendo) atribuído, muitas vezes anacronicamente (a cosmologia de Tales era ainda muito rudimentar, concebendo uma Terra plana que flutuava numa vasta extensão de água). Para Otto Neugebauer (The Exact Sciences in Antiquity, 2nd ed.. Dover Publications, 1969, pp.142-3) a realidade de tal previsão é liminarmente recusada e a "ligação" babilónica não colhe pois entre estes não existia, na época, qualquer teoria para prever eclipses solares. nem os Babilónios alguma vez desenvolveram uma teoria que tomasse em consideração a latitude do lugar. Citamos da 1ª edição de 1952, p.136: "The myth of the Saros is often used as an 'explanation' of the alleged prediction by Thales of the solar eclipse of -584 May 28. There exists no cycle for solar eclipses visible at a given place; all modern cycles concern the earth as a whole. No Babylonian theory for predicting a solar eclipse existed at 600 B.C., as one can see from the very unsatisfactory situation 400 years later; nor did the Babylonians ever develop any theory which took the influence of geographical latitude into account. One can safely say that the story about Thales’s predicting a solar eclipse is no more reliable than the other story about his predicting the fall of meteors." O ano específico (4º ano da 48ª Olimpíada), muito mais tarde indicado por Plínio (que teria acesso às datas dos eclipses mais conspícuos), coaduna-se, de facto, com o de uma totalidade que se observou na Ásia Menor em 585/4 a.C., v. mapa (F. Espenak, NASA/GSFC, editado). Todavia, neste caso o eclipse teria sido somente observado ao final da tarde, hora pouco usual para este tipo de confronto bélico. De resto, como Ronald R. Newton salienta, a fonte Heródoto (séc. V a.C.) faz numa outra passagem (VII, 37) a clara descrição de um eclipse comprovadamente inexistente, supostamente observado de Sardes circa 446 a.C. pelas forças militares de Xerxes, que se preparavam para atacar os gregos (datação é, neste caso, verificável através de diversas outras fontes fidedignas). Se Heródoto se "enganou" aí, com um intervalo de somente uma década, como acreditar nesse outro relato (mais de um século anterior ao historiador) de um fenómeno concomitante com uma batalha não datável entre Lídios e Medos? (Ancient Astronomical Observations..., Op. cit., 1970, pp.97-9). Newton também refere (p.44): "Since an eclipse was often regarded as an omen, an imaginative writer could place an eclipse before or at the beginning of a great event, such as a military campaign, and interpret it to suit the course of history. This procedure perhaps accounts for the remarkable tendency of people to fight battles during a solar eclipse. The death of a king or an eminent person is often accompanied by prodigies or marvels. A well known example is given by Plutarch [ca 100; Life of Caesar]: The most signal preternatural appearances were the great comet, which shone very bright for seven nights after Caesar's death, and then disappeared, and the dimness of the sun, whose orb continued pale and dull for the whole of that year ...'' Also the fruits dia not ripen properly and a phantom appeared to Brutus." Ainda acerca do "eclipse de Tales", citamos a opinião lúcida de Sir H. C. Rawlinson, em 1858: "The prediction of this eclipse by Thales may fairly be classed with the prediction of a good olive crop, or the fall of an aerolite [predição atribuída a Anaxágoras]. Thales, indeed, could only have obtained the requisite knowledge for predicting eclipses from the Chaldeans; and that the science of these astronomers, although sufficient for the investigation of lunar eclipses, did not enable them to calculate solar eclipses—dependent as such a calculation is, not only on the determination of the period of recurrence, but on the true projection also of the track of the Sun's shadovv along a particular line over the surface of the earth—may be inferred from our finding that in the astronomical canon of Ptolemy, which was compiled from the Chaldean registers, the observations of the Moon's eclipse are alone entered." (Month. Not., Royal Astr. Soc., vol. xviii. p. 148; March 1858) - Excerto (.PDF, 690KB) do estudo de Jack B. Zirker (Total Eclipses of the Sun), que se respalda na opinião de alguns especialistas, transcrevendo a pertinente tipologia de relatos espúrios de R. R. Newton (Op. cit.) e um paper de Miguel Querejeta (de 2011) que resume abordagens pretéritas e analisa mais duas propostas quanto à possibilidade de Tales ter utilizado ciclos para prever um eclipse, concluindo e demonstrando estatisticamente a impossibilidade do procedimento. Já as referências de Tucídides (c. 400 a.C.) são fidedignas e expostas numa linguagem precisa. Na sua História da Guerra do Peloponeso (nomeadamente em II.XXVIII, IV.LII e VII.L) encontramos algumas referências facilmente confirmadas pelos cálculos astronómicos retrospectivos: "Durante este mesmo Verão no princípio do mês lunar, no único momento em que isto pode acontecer, houve um eclipse do Sol depois do meio-dia; tomou a forma dum crescente e depois de novo ficou cheio e algumas estrelas tornaram-se visíveis." (História da Guerra do Peloponeso (trad. Raul M. Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwher), Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 2013; II.XXVIII) A Literatura Clássica associou amiudadamente os eclipses a acontecimentos históricos ou míticos considerados importantes, como por exemplo ao nascimento e morte de Romulus e à fundação de Roma. A Bíblia parece incluir pelo menos um relato explícito de um eclipse do Sol, em Amos, VIII.9. Já os portentos que nos Evangelhos acompanharam o nascimento e a morte de Jesus Cristo (da estrela de Belém às "trevas" da crucificação) são hoje teologicamente considerados engenhosas narrativas que ilustram ensinamentos religiosos, como acontece amiudadamente na tradição da midrash talmúdica, e não "relatórios" de eventos cósmicos ou de outro tipo. Na crucificação, um eclipse solar teria sido impossível pois o plenilúnio vernal assinalava a Pesah (Páscoa) Judaica (e, como sabemos, não há eclipses do Sol na Lua Cheia). Demais, as "trevas" duraram três horas, segundo três dos Evangelhos, e.g., "E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona." (Mateus, 27:45), Contudo, segundo algumas exegeses, poderá ter acontecido um eclipse lunar pois alguns comentários referem uma Lua "vermelha" ou "cor de sangue". A
"Figura" do céu aquando da Crucificação na "Cronologia Universal" de
Heirico Buntingo (Heinrich
Bünting). O
autor explica: o sol perdeu a sua luz no meio do céu de modo
contranatura (i.e. milagrosa),
não muito longe da cabeça do dragão
[caput draconis, o nodo lunar
ascendente], "de onde naturalmente não podia estar longe". Foi,
portanto, um eclipse sobrenatural: "Hyperphysica
igitur & praeternaturalis fuit haec defectio solis". A Lua,
sem receber luz deste sol "naturaliter
deficere", estava no imum
coeli, nos Antípodas, perto da cauda
do dragão
[cauda draconis, o nodo
lunar descendente]. Acresce que Saturno [a Infortuna maior], emergindo sobre o
horizonte, esteve em quadratura [aspecto astrológico maléfico], e
"olhou" para o Sol e para a Lua ("...solis
et lunae aspexit"), estando estes eclipsados. Termina a
exposição salientando quão terrível foi esta configuração do céu: "Vides ergo quam terribilis haec fuerit
facies coeli." (Chronologia
catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora
editarum, ultima & absolutissima demonstrata. Omnium gentium et
temporum, tam sacris quam alias probatis scriptis. Calculo quoque
astronomico prutenico vt laboriosissimo ita certissimo. Ecclipsium,
stellarum, & calendariorum: Ebræorum, Græcorum, Ægytiorum &
latinorum: vsque ad ipsum mundi initium. Historia item..., Salomon Richtzenhan, Magdebvrgi,
1608, fol.237v.). Uma abordagem horoscópica deste jaez seria,
claramente, censurada pela Igreja de Roma.
Os antigos Chineses foram pródigos no relato de eclipses bem como no de todos os fenómenos relacionados com a regularidade (ou o distúrbio da regularidade) no céu e, consequentemente (por correspondência), no vasto Império do Meio. Os eclipses faziam parte da "astrologia política". Segundo Littmann et al. (Op. cit., p.35), desconheceram todavia as causas concretas destes fenómenos até uma época relativamente tardia: The Chinese were early in recording eclipses but late in recognizing their cause. Not until the third or fourth century a.d. did they understand solar and lunar eclipses well enough to be able to predict them accurately. Utilizavam métodos divinatórios complementares, por exemplo ossos oraculares (também designados "ossos de dragão") e pedaços de carapaças de tartaruga estaladas por aquecimento no fogo, nas quais se observavam e interpretavam as fendas resultantes. Apesar da longa tradição, o primeiro registo fiável é relativamente tardio: "For all its ancient historical tradition China is without a single reliable eclipse record before 720 B.C." (Stephenson, "Historical Eclipses", Scientific American. Vol. 247, no. 4, 1982, p.175) . O conhecimento (entretanto alcançado) de que que um eclipse solar seria causado pela interposição da Lua, mereceu resistência por parte de alguns sábios. O astrónomo Wang Chong (séc. I) questionava, filosoficamente, como seria possível a Lua, que era Yin, causar o obscurecimento do Sol, Yang (i.e. mais forte)? Preferiu acreditar que estava na natureza do próprio Sol "minimizar-se" ou "apagar-se" durante a ocorrência do fenómeno. (Thurston, H., Early Astronomy, Springer-Verlag, 1994, p.85). Num registo Chinês de (i.e. reduzido a) 17 de Julho de 709 a.C. e presumidamente observado em Ch'u-fu (Qufu), "...o Sol foi eclipsado e foi total.": "Duke Yuan, 3rd year, 7th month, day jen-ch'en [cyclical day number = 29], de first day (of the month). The Sun was eclipsed and it was total." (Ch'un-ch'iu, I). Segundo Stephenson, que citamos (1997, p.226), trata-se da primeira referência explícita à totalidade, em qualquer civilização. Shih ("comer", "consumir") é, da dinastia Shang em diante, uma palavra relacionada com os eclipses, revelando a persistência no imaginário tradicional do dragão que abocanhava o luminar. A associação entre eclipses e dragões presidiu ao desenho da insígnia da Dinastia Qing (ou Ch'ing, de origem Manchú), a última dinastia imperial Chinesa. Será insígnia e a primeira Bandeira Nacional. Esta versão rectangular (aqui ilustrada em escala de cinzentos) foi adoptada em 1889 (Close, Frank, Eclipses ["What Everyone Needs to Know" Series], Oxford University Press, 2019) Por seu lado, as observações árabes medievais são, segundo F. Richard Stephenson (Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.456), das mais rigorosas de todo o período pré-telescópico. Ibn Yunus (m. 1009 A.D.), que viveu no Cairo (al-Qahirah), compilou num único tratado (al-Zij al-Kabir al-Hakimi, um manual com tabelas dedicado ao Califa al-Hakim), cerca de trinta observações de eclipses lunares e solares ocorridos no período 829-1004 A.D. Os astrónomos sabiam dos perigos da observação do Sol e al-Biruni (no Kitab Tahdid Al-Amakin..., tratado de geografia matemática do séc. XI) aconselha a observação por intermédio do reflexo na água. No contexto Islâmico, as horas eram muitas vezes identificadas aproximadamente pelas orações diárias: Fajr (amanhecer), Zuhr (meio-dia), 'Asr (tarde), Maghrib (poente) e 'Isha (noite). Num exemplo relatado por Ibn Hayyan em Córdova, data equivalente a 17 de Junho de 912 A.D. (299 da Era Islâmica, A.H.), num eclipse vespertino, as pessoas acreditaram tratar-se do ocaso do Sol (cit. por Stephenson, 1997, p.438; trad. nossa): "Neste ano, o Sol foi eclipsado e dele tudo desapareceu na quarta-feira (arbe'a) quando faltava uma noite para completar [o mês de] Shawwal. As estrelas apareceram e a escuridão cobriu o horizonte. Julgando que era o pôr-do-sol, quase toda a gente rezou a oração do Maghrib ["poente"]. Depois disso, a escuridão dissipou-se, o Sol reapareceu por meia hora e depois pôs-se." (al-Muqtabis fi Tarikh al-Andalus (vol. III, p.147; Paris, 1937) John Steele refere (Observation and Predictions of Eclipse Times by Early Astronomers, ("Archimedes", vol. 4), Kluwer Academic Publishers, 2000, p.107) que os registos são escassos para o contexto, situam-se todos entre os séculos. IX-XI e foram observados por apenas seis fontes: "All of these date from the ninth to the eleventh centuries AD, and were observed by only six different people: Habash, al-Mahani, al-Battani, the Banu Amajur [um grupo de astrónomos que observou em Bagdad e, talvez, Shiraz], Ibn Yunus and al-Biruni." Quanto ao período europeu medieval, o mesmo Stephenson (1997, ch. 11), considera as crónicas em geral elucidativas na descrição e datação dos fenómenos (acautelando qual a era cronológica utilizada, vide p.378 et seq.). Lavraram-se muitas crónicas monásticas, tão numerosas que raramente foram editadas em compilações e por isso permanecem "escondidas". Na Europa, antes do séc. XVII e da utilização do telescópio, encontramos poucos registos cronometrados: "Indeed, before the beginning of the seventeenth century AD, only seven astronomers are known to have made detailed timed observations of eclipses: Isaac ben Sid, Levi ben Gerson, Jean de Murs, Regiomontanus, Bernard Walther, Nicholas Copernicus, and Tycho Brahe. This trend was radically reversed during the seventeenth century AD, in particular after the invention of the telescope." (John Steele, Op. cit., p.133) Eclipses Medievais observados no Noroeste Peninsular e "Portucalenses/Portugueses" em particular Segundo F. Richard Stephenson (1997, p.385), os registos (chronicas, annales) identificam, por regra, a feria (dia da semana), obscurecimento e visibilidade eventual de estrelas (por vezes reportando-as "atrás e à frente do Sol", ou seja, a leste e a oeste do luminar). Também se encontra adjectivação expressiva mas vaga, e.g., maximus, universalis, terribilis ou horribilis. As expressões "sol obscuratus est" ou "sol defectus est" são comuns. A duração da obscuridade é muitas vezes exagerada nestes relatos, talvez por inspiração da narrativa da Paixão nos Evangelhos sinópticos (i.e. os que revelam paralelismos e estrutura comum). O de Lucas, em particular, parece atribuir as "trevas" a um eclipse (XXIII, 45). Alguns registos emulam a própria escolha de palavras da Vulgata (ibid.). Um dos exemplos é o notável eclipse que pode ser vinculado com toda a certeza à data equivalente a sexta-feira, 3 de Junho de 1239 A.D. referido no Livro das Kalendas do Cabido da Sé de Coimbra, cujo códice original recua aos séculos XIII e XIV (v. Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra). Coutinho transcreve (pág. 435): "Eodem die tunc feria VI.ª obscuratus est sol et nigerfactus est et in meridiefacta est nox et stelle apparuerunt in ceio sicut solent apparere in nocte, sub era M.ª CCªLXX-ª VIIª (IIIº Nonas Iunii"): "No mesmo dia de sexta-feira, o sol obscureceu-se e enegreceu-se e ao meio-dia fez-se noite e as estrelas apareceram no céu como costumam aparecer de noite, na era [=ano] de 1277, 3º dia das Nonas de junho.” [trad. nossa]. Importante: o cômputo dos anos usava, na Península, a Era Hispânica (v. infra), com início em –38, em vigor em Portugal até 1422 e abolida por carta régia de D. João I, sendo então adoptada oficialmente a (já antes eventualmente usada em paralelo) Era de Cristo. Neste caso: 1277 – 38 = 1239 (AD). O eclipse aconteceu durante o conturbado reinado de D. Sancho II, reinava Fernando III em Leão e Castela e Luís IX (São Luís), rei de França, estava prestes a encetar a Sétima Cruzada. Existem diversos relatos contemporâneos (e.g., de Toledo, Montpellier, Cesena, Siena, Florença, Arezzo, Spalato, i.e. Split, na Croácia) ao longo do percurso da totalidade (alguns destes transcritos por Stephenson, Op. cit., 1997, p.397 et seq.). O seguinte relato, em Castelhano, surge nos Annales Toledanos segundos (transcr. Enrico Flórez, España Sagrada: Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII, p.409): "Escurecio el Sol Viernes hora de VI. è duro una pieza entre VI. è IX. é perdió toda su fuerza, è fizóse como noche, è parecieron Estrellas y a quantas, è de si clareció el Sol luego, mas á grand pieza no tornó en su fuerza. Despues cobró su fuerza como la solie aver, Era MCCLXXVII." O
mais espantoso eclipse da nossa Idade Média. 5 minutos e 56 segundos de
"trevas" em Coimbra. Percurso da totalidade do eclipse de 3 de Junho de 1239. A "idade" da lua era de 28 dias, luna 28 (GUIDE9.1)
Testemunhos diversos também foram coligidos por G. Celoria (Sull'Eclissi Solare Totale del 3 Giugni 1239; Memoria del S. C. ing. Giovanni Celoria, presentata nell'adunanza del 7 gennajo 1875, in: "Memorie del Reale Istituto Lombardo di Scienze e Lettere. Classe di scienze matematiche e naturali", 3, vol. 13, fasc. 2, 1877, pp. 275-302). Eis alguns: «Et sane proditum memoria est, consequenti anno millesimo dugentesimo trigesimo nono solis defectionem conti[gi]sse IIIº Nonas Junii, qui dies Veneris fuit, horâ sexta densissimis tenebris luce commutata, quae defecto solis nobilissima fuit.» (Io. Marianae [Juan de Mariana, 1536-1624], Historiae de rebus Hispaniae Libri XXX, lib. XIII, cap. I) Excerto da p.540 de edição de Mogúncia de 1605 da obra de Juan de Mariana, onde se menciona o esclipse de 1239. O autor refere dois ("bis") fenómenos, referindo depois, na sequência, uma informação (atribuida a um Bernardo Guido Aragonius) acerca de outro suposto eclipse no dia 25 de Julho. Reconhece-a espúria, explicando que isso "não podia estar de acordo com as revoluções dos astros". «Entrò el Rey (don Jayme el Conquistador) en la ciudad de Montpellier, jueves a dos de junio del ano de M.CC.XXXIX, y otro dia viernes entre el medio dia y hora de nona escrive el Rey, que se eclipsò el Sol de tal manera, que no se acordavan averie visto tal, porque del todeo fue cubierto de la Luna y se escurecio el die de tal suerte, que se vieron las estrellas nel cielo» (Zurita, Anales de la Corona de Aragon, lib. III, cap.36) «Annis ter denis bis centum mille novenis Junius intrabat; cuius lux tertia stabat: Sol obscuratus fuit, orbis obtenebratus, In media luce coepit fore Sol sine luce. In horâ totus fuit moeror a Sole remotus, Sub feria sexta sunt hec miracula gesta.» (Annales Caesenates [i.e. de Cesena], Muratori, Rer. Ital. Script., Tomus XIV. p. 1097) «E stando noi nella città di Arezzo, nella quale noi fummo nato, nella quale noi facemmo questo libro, nel convento nostro, la qual cittate è posta verso la fine del quinto climate, e la sua latitudine dall'equatore del die è 42 gradi e quarto, e la sua longitude da occidente è 32 e terzo, uno Venerdi [sexta-feira], nella sesta ora del die, stando il Sole venti gradi [20º] in Gemini, stando il tempo sereno e chiaro, incominciò l'áire a ingiallare [a "amarelar"], e vedemmo coprire a passo a passo tutti il corpo del Sole, e fecesi notte; e vedemmo Mercurio presso al Sole, e vedeansi tutte le stelle, le quali erano sopra quello horizonte : e li animali si spaventarono tutti e li uccelli [pássaros]: e le beste salvatiche si potevano prendere agevolmente [facilmente]: e tali furo che presero delli uccelli e delli animali, a cagione ch'erano ismarriti [estavam perdidos]; e vedemmo stare il Sole tutto coperto per spazio, che l'uomo potesse bene andare 250 passi: e l'aria e la terra si comenciò a raffreddare [arrefecer]; e cominciossi a coprire e discoprire dal lato d'occidente.» (Ristoro d'Arezzo, Della composizione del mondo, lib. I, cap. XVI) N. Struyck elencou este eclipse no seu tratado de 1740: "...à hora sexta o Sol escureceu, de tal modo que o dia se tornou noite e as estrelas apareceram no céu." (Inleiding tot de algemeene geographie, benevens eenige sterrekundige en andere verhandelingen, Amsterdam, 1740, p.130). Acrescenta prolixas referências bibliográficas.
Uma história fascinante relaciona a pequena capela de Sainte-Madeleine, Mirabeau, Provence-Alpes-Côte d'Azur (pesquisável na mediateca POP: "plateforme ouverte du patrimoine", Ministère de la Culture) e este fenómeno (documentado nessa região, por exemplo em Digne, actual Digne-les-Bains, numa anotação marginal num martirológio coetâneo, v. Celoria, Sull'Eclissi Solare Totale del 3 Giugni..., Op. cit., p.278). A austera construção, muito tempo abandonada, possuiu, numa das pedras do lado esquerdo do arco da porta ("lapis ad laevam arcum portae"), uma breve inscrição (em Latim e antigo Provençal) que assinalava o notável fenómeno, acrescentando uma frase de teor moralista. Mencionada por Pierre Gassendi na biografia de Peiresc (Fabricii de Peiresc, Senatoris Aquisextiensis Vita), lib. IV, p.136 na 3ª edição, Haia [Hagae-Comitis], 1555). Aí, Gassendi refere como Peiresc foi informado da existência desse memorial por um seu amigo, Joannes Gallaupius Castuellis (i.e. Jean Gallaup de Chasteuil), que referiu a existência de registos, nomeadamente eclesiásticos. Foi transcrita pelo mesmo Gassendi na Opera Omnia, Tomo IV, p.373, (Ed. Florentiae), que descreveu o local e o conteúdo da inscrição detalhadamente. Foi mais tarde lida pelo Barão von Zach que publicou essa investigação na sua Correspondance astronomique. A sua visita à capela, então em ruínas, aconteceu na Primavera de 1811 e a respectiva memória publicou-se em 1819 (Corr. Astron., vol.3, p.563; A Gênes [Génova], A. Ponthenier, imprimeur-fondeur); este astrónomo também reacendeu, na época, o interesse na antiga notícia de Gassendi, divulgando-a noutros arquivos, nomeadamente no renomado periódico astronómico do Barão de Lindenau (vol.II, p.490). Vestígios da
antiga inscrição (fotografia de S. Dumont, 1988). À direita, fotografia recente da capela (fonte: provenceguide.co.uk), sendo destacado por nós o lugar onde esteve registo epigráfico; em baixo, a cópia da
inscrição feita em 1811 pelo secretário de von Zach. Numa tradução
contemporânea, em Francês: "L'an
du Seigneur 1239, le 3 des nones du mois de juin, le soleil s'est
obscurci. Réfléchis, prends garde, si tu commences, comment tu finiras.
Qui bien fera, bien (trouvera)."
A capela foi classificada em 1928 e intervencionada em 1948. O que aconteceu é pouco claro. O tempo, a erosão ou um "restauro" apagaram o registo? Segundo Simone Dumont e Jean Meeus (Sur les Traces d'une Éclipse (1988), "Astronomie", vol. 102, pp.365-371), o testemunho epigráfico (que acreditam ser original do séc. XIII), terá sido irreparavelmente vandalizado no início dos anos 70 do século passado. Já não existe e não nos foi possível encontrar qualquer estudo, registo gráfico ou fotográfico recente da inscrição, anterior à suposta mutilação.
[Na aferição cronológica e astronómica foram utilizados os programas GUIDE 9.1 (projectpluto.com) e Clock 1.2 (conversor de datas incluído no pacote SkyClock - "An electronic ephemeris" -, 1991, de Pierre Brind'Amour - Departmento de Estudos Clássicos da Universidade de Ottawa); em linha: Millesimo (Denis Muzerelle, IRHT - Institut de recherche et d’histoire des textes) e o sítio EclipseWise.com, de Fred Espenak] Na investigação dos "nossos" eclipses, vamos recorrer principalmente à tradição dos annales, relatos em forma de seriação anual dos acontecimentos, numa lógica memorialística. As origens da tradição remontam, pelo menos, ao século VIII e às notícias anuais inscritas em tabelas de cômputo pascal. Segundo Pierre David (1947), Annales Portugalenses Veteres, Revista Portuguesa de História 3, p.87: "Les chroniques continuent ou du moins imitent la Chronique universelle d’Eusèbe de Césarée (324) portée jusqu’à 378 par saint Jérôme". Os diferentes relatos revelam frequentemente muitas coincidências na descrição e vocabulário, o que é apanágio da prática analística e, posteriormente, cronística. Séculos mais tarde, com o advento dos modernos estudos paleográficos e historiográficos, surgem úteis compilações. Os conhecidos Portugaliae Monumenta Historica [PMH], coligidos sob a orientação de Alexandre Herculano, resultaram da recolha e publicação de fontes e documentos dispersos pelos cartórios conventuais do país, em abandono desde que em 1834 fora ordenada a extinção das Ordens religiosas. Incluem um conspícuo contributo conimbricense. De facto, nos registos analísticos portucalenses e portugueses destacam-se os dos cónegos crúzios do scriptorium do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Quando aqui mencionamos o chamado "Chronicon Conimbricense" (o acervo que ao longo dos séculos dimanou de Santa Cruz e dependências) respaldamo-nos principalmente nas compilações posteriores, como as incluídas no España Sagrada... de Enrique Flórez (no séc. XVIII) ou mais tarde, nos PMH. Na compilação España Sagrada: Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII (pp.301-4 da "segunda edición" de 1799), Flórez é muito crítico, referindo que o acervo conimbricense se trata de cópia de várias cópias, fragmentado e coligido sem diferenciação nos títulos ou sequência. Problemas que Antonio Caetano de Sousa não havia resolvido na sua recolecção (integrada na obra Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Lisboa, 1739, Tomo I, Livro III, Num. 10., 375 et seq). O historiador e teólogo espanhol também aponta lapsos nas datas (que compara com as exaradas noutras fontes), inversão de acontecimentos, "desordem" no uso do Latim e do vulgar (Português) e o que considera um "erro persistente" da utilização do romano "X" por "XL" (F. desconhecia o X aspado). Mas reconhece que o chronicon possui coisas notáveis que não se encontram noutros textos. Por seu lado, na introdução (em Latim) aos PMH, Alexandre Herculano refere o MS. autógrafo a que se intitula "Chronicon Conimbricense" e que chegou até nós arquivado de várias maneiras. Depois refere o "evasivo" livro dito "das nonas" ou "da sacristia", anexado a um saltério (livro litúrgico com salmos e sermões) que, após separado, foi pelos próprios monges tão cuidadosamente guardado (no séc. XVI) que se chegou a acreditar perdido para a posteridade (perditum posteri crediderint). Adiante refere que a crónica conimbricense deve ser entendida como uma colecção ou quadro de crónicas diversas e dispersas que foram transmitidas por registos, ou por tradição, ou mesmo pelos escritores que as recolheram pela fé da memória. Mas acredita que, considerada na plenitude, possui estrutura enquanto recolecção, desde o material mais antigo até aos fragmentos coligidos e integrados no séc. XIV: "Chronicon Conimbricense, si univeraliter consideretur, variarum, ac dispersarum rerum chronicorum, quae a monumentis, vel traditione, vel etiam scriptorum eas res colligentium fide memoriae mandata sunt, collectio potius vel compages credendum est: in cuius tamen non solum prima parte, quam antiquius scriptam diximus, sed etiam in illa saeculo XIV collecta, nec fragmenta, quae promiscue complectitur nec articuli, vel versiculi invicem dividuntur." Vetusto exemplo do edifício cronístico conimbricense, o códice conhecido como "Livro da Noa" (Libri Nonae, saeculo XII vel ab initio XV), "Livro das Eras do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra" ou "Livro da Sacristia" (que no formato actual resulta de uma encadernação, feita no séc. XVII, de livretes previamente apensos a um um saltério) é considerado a mais antiga crónica medieval com entradas em Português. As suas entradas relatam sucintamente o que foi acontecendo de notável e relevante. Escrito em Latim e em Português, os registos-base mais antigos podem recuar ao séc. IX. Entradas foram depois copiadas ou redigidas entre o início do séc. XIII e os XIV e XV (o último registo data de 1406: "Era 1444"). Muitos registos replicam-se noutras compilações, outros são exclusivos. É conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (AN-TT): Cónegos Regulares de Santo Agostinho, Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, liv. 99 (refª PT/TT/MSCC/L099), v. digitalizações. Segundo a ficha técnica do Arquivo Nacional, o primeiro registo reporta-se ao ano 317; o último registo do f.27 refere-se a 1406 (1444 da Era Hispânica), Como Antonio Caetano de Sousa (que o transcreveu) explicou, designa-se "...Livro das heras [eras] de Santa Cruz de Coimbra, chamado vulgarmente das Noas, o qual antiguamente estava na Sachristia, e se rezava por elle a Noa [Nona], por estar junto com o Psalterio desta hora, q[ue] no fim tinha as heras, que se seguem , escrittas em vinte e oito folhas de Pergaminho de Flandes antiguo, encadernado em duas taboas, das quais metade estâ coberta de carneira, que parece vermelha." [D. Antonio Caetano de Sousa, Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo I, Lisboa Occidental, Na Officina Sylviana da Academia Real, M.DCC.XXXIX (Livro III, Num. 10., p.375) Os seus textos foram copiados, total ou parcialmente, desde o século XV, e mais tarde publicados em formato impresso por António Caetano de Sousa, Enrique Flórez, Alexandre Herculano (nos PMH) e por outros editores mais próximos de nós (Alfredo Pimenta, Pierre David ou António Cruz, que eventualmente citaremos). Voltando aos fenómenos que nos ocupam, recuemos até ao séc. V através dos registos de um bispo cronista do noroeste peninsular, Idácio ou Hidácio (latiniz. Hydatius) de Chaves (Aquæflaviensis) ou de Limica (na região de Ourense na Galiza). Hydatii Gallaeciae episcopi Chronicon: narração da desagregação do poder romano e das invasões germânicas entre 379 e 468. Foi mencionado no Agiólogo Lusitano de Jorge Cardoso, estudado e editado, entre outros, pelo historiador Marcelo Macías y García e o seu chronicon pode ser encontrado na Patrologia Latina (Tomus 51) de Jacques-Paul Migne. Edições mais recentes por J. Cardoso (Crónica de Idácio: Descrição da invasão e conquista da Península Ibérica pelos Suevos (Séc. V), versão e anotações de José Cardoso, Braga: Universidade do Minho, 1982), J. Campos (O bispo de Chaves, su cronicón. Introducción, texto crítico, versión española y comentario por Julio Campos. Salamanca: Ed. Calasancias, 1984) e César C. Colodrón (Cronicón de Hidácio, Editorial Toxosoutos, Galiza, 2004). Utilizou-se aqui a excelente edição bilingue (Latim-Francês) de Marc Szwajcer, disponível no sítio de Philippe Remacle). É o Cronicón mais antigo desta região e recorre a três cronologias: - a Era das Olimpíadas (suputação de períodos de quatro anos que começava na primeira Lua Cheia depois do Solstício de Verão, ou seja, por volta do dia 1 de Julho, data habitualmente considerada pelos cronologistas, v. Louis de Mas Latrie, Trésor de Chronologie d'Histoire et de Géographie pour l'étude et emploi des documents du Moyen Age, Paris, Victor Palmé, 1889, pp.4 et seq.); na prática a contagem foi ajustada pelos cronologistas ao início do ano civil (1 de Setembro no ano Grego). O sistema foi oficialmente abolido por Teodósio, o Grande, em 395 d.C.); - a Era Hispânica; - eventualmente, a do paradigmático Eusébio de Cesareia, circa 265-339, o primeiro historiador do Cristianismo (baseada na data do nascimento de Abraão, com início a 1 de Outubro de 2015 a.C.), Seguem-se os eclipses solares mencionados (quatro foram totais e o último anular), geralmente com informações relativamente precisas. A equivalência aos anos da era comum foi feita pelo editor a partir da sequência disponível no texto, informações acerca da feria (dia da semana) e cruzando datações. N.B.: na simulação astronómica dos fenómenos recorreu-se ao programa GUIDE 9.1 (projectpluto.com) reflectindo a maior precisão que actualmente podemos conseguir. - "Solis facta defectio tertio idus Novembris feria secunda". 11 de Novembro de 402 AD (na 295ª Olimpíada), no terceiro dia dos Idos de Novembro, segunda-feira. Relato correcto, excepto na feria: foi uma terça-feira. Mas houve eclipse, faixa de totalidade sobre os Pirinéus, sudoeste de França, Sardenha, Cirenaica e Egipto. - "Solis facta defectio die decimo quarto kal. Augusti, qui fuit quinta feria.". 19 de Julho de 418 AD (na 299ª Olimpíada). No décimo quarto dia das Calendas de Agosto. Confirma-se, excepto na feria: foi uma sexta-feira. Faixa do eclipse atravessou a península na direcção da Córsega, Itália e Balcãs. - "Solis facta defectio die nono kal. Januarias, qui fui tertia feria", 23 de Dezembro de 447 AD (na 306ª Olimpíada), Nono dia das Calendas de Janeiro, terça-feira. Confirma-se, faixa percorreu a península, grosso modo a norte do Tejo, seguindo para a Biscaia, França e Alemanha (ou Gália e Germânia se preferirmos). - "Quinto idus Junias die, quarta feria, ab hora quarta in horam sextam, ad speciem lunae quintae vel sextae, sol de lumine orbis sui minoratus apparuit" (No quinto dia dos idos de Junho, quarta-feira, da quarta à sexta hora, o sol apareceu diminuído com apenas uma parte do seu disco luminoso, como uma lua no quinto ou sexto dia). A comparação com a dimensão em dias ("idade") do crescente lunar constitui um paralelo interessante. Fenómeno seria a 9 de Junho de 459 AD (na 309ª Olimpíada) mas esta data está errada. Como o editor judiciosamente sugere, só poderá tratar-se do fenómeno de 28 de Maio de 458. Neste caso será o quinto dia, não dos Idos mas das Calendas de Junho, uma quarta-feira. Foi parcial na Hispania como relatado, faixa percorreu a Inglaterra a caminho da Dinamarca e do Báltico. - "Decimo tertio kalend. Augusti die, secunda feria, in speciem lunae quintae sol de lumine suo ab hora tertia in horam sextam cernitur minoratus." (No décimo terceiro dia das Calendas de Agosto, segunda-feira, o sol foi visto diminuído na sua luz, da hora terceira até à hora sexta, aparecendo como uma lua de cinco dias). 20 de Julho de 464 AD (na 311ª Olimpíada), Confirma-se, fenómeno anular, faixa "entrou" na Bretanha e continuou para a Europa Central e de Leste. Idatii Episcopi Chronicon..., numa edição parisiense de 1619 Von Zach (Corr. Astron., vol.3, p.560) assinala uma totalidade na Península, já no séc. VII. Descreve como Joannes Vasaeus Brugensis (João Vaseu entre nós, humanista Flamengo), após compulsar registos de uma antiga crónica do "Bispo Isidorus Pacensis" [trata-se da chamada Crónica de 754 ou Continuatio Hispana...; anón., atribuída no passado a um suposto bispo de Beja, Pax Julia (daí "Pacensis"), personalidade de outro modo desconhecida], transcreveu um eclipse nestes termos: "Eodem anno solis eclipsis, & stellae in meridie visae, Hispaniam omnem territaverunt" (No mesmo ano, eclipse do sol e as estrelas viram-se ao meio-dia, e toda a Espanha ficou aterrorizada). A breve notícia de Vasaeus no seu Rerum Hispaniæ Memorabilium Annales (livro dedicado ao Cardeal D. Henrique), Colónia, 1577, p.427. Previamente editado em Salamanca em 1552. A data específica não é mencionada mas a crónica é sequencial, sendo fácil circunscrever intervalo em causa. Os cálculos retrospectivos (von Zach refere os de um tal Wurm, de Estugarda) comprovaram que só pode ter acontecido no dia 12 de Abril, cedo, durante a manhã (talvez meridie esteja aqui no sentido retórico de "em pleno dia", pondera o barão). O mapa seguinte permite confirmar que, no que virá a ser território português, totalidade abrangeu (grosso modo) as actuais regiões da Estremadura, Ribatejo e Beira Interior. Parte do percurso da totalidade do eclipse de domingo, 12 de Abril de 655 (GUIDE9.1) Seguidamente, o mesmo von Zach acrescenta outro relato que afirma ter encontrado no De Rebus Hispaniae (lib. II, cap. XXII) de Roderico [Rodrigo Jiménez de Rada], Arcebispo de Toledo: "hujus temporibus eclipsi solis, stellae meridie apparentibus omnis Hispania territarum". A compilação é da primeira metade do séc. XIII, em nove livros, e colige informações de diversas fontes, desde as góticas até outras provenientes do Al-Andalus. Quanto ao eclipse, os detalhes são escassos e von Zach infere que tenha acontecido "vers l'an 695" (em torno do ano 695). O nosso autor cometeu um erro de palmatória; tomou a data de DCLXXXXV no início desse capítulo como sendo da Era Cristã e não, como se usava, da Era Hispânica. Os cronologistas já o sabiam e explicavam. Segundo Calvisius: "Datis igitur annis ad æram Hispanicam numeratis, si anni 38. ipsis subtrahantur, siunt anni æræ Christianæ" (Calvisius, Op. chron., cap. XLIV). Scaliger [Escalígero] (De Emendatione Temporum [edição final de 1592]) referiu que basta acrescentar 38 anos aos anos de Cristo (Epocha estabelecida por Dionisius "Exiguus" e disseminada graças à obra do Venerável Beda): "Itaque annis Christi Dionysianis semper addenda 38, vt habeas eram Hispanicam" (p.446), ou, o que significa o mesmo, que a Hispânica antecede a de Cristo 38 anos: "quae cum triginta octo annis Computum Christi Dionysianum antecesserit" (p.448). O jesuíta Hadrian Daude também explica nos mesmos termos (Historia universalis et pragmatica Romani Imperii, regnorum..., Tomo I, 1748, p.15). Todos anteriores ao Barão. Consultando a fonte, seguimos a edição de Juan Fernández Valverde, Brepols, Editores Pontificii, 1987, pp.71-72 (ler acima um excerto da pág. 72). Relato surge, como referido, no cap. XXII: "De recensuindo et concilis eius tempore celebratis et de sacto ildefonso". A morte do rei Quindasvinto, pai de Recesvinto (Lat. Reccesvinthus, chamado "Recensuyndus" nesta crónica) foi, segundo outras fontes, no ano 653, mas aqui regista-se DCLXXXXV (i.e. 657 da Era de Cristo). Realizou-se então o VII Concílio de Toledo. Crónica elenca sucessivos concílios até ao décimo, que sabemos ter acontecido em 656 (era [Hispânica] de DCXCIII segundo diversos códices, ver e.g., Juan Tejada y Ramiro, Coleccion de cánones y de todos los concilios de la Iglesia Espanola, Madrid, 1850, cap. LV; G. Martinez Diez, (S.J.), Los Concilios de Toledo, in: Anales Toledanos, Toledo, n.3, 1971, 119-138). É neste contexto que surge o relato do eclipse, seguindo-se, na mesma frase, uma referência às incursões dos Bascos (que apoiavam um rival de Recesvinto chamado Froia ou Froya) que o rei repeliu. Contudo, estas incursões e o cerco a Saragoça pelos rebeldes parecem ter acontecido pouco depois da morte do antigo rei, pai de Recesvinto. Portanto, lemos neste trecho notícias num pequeno intervalo entre 653 e 656. Com maior segurança, podemos assumir que intenção do cronista era certamente situar o eclipse no reinado (autónomo e pleno, pois antes coadjuvou o seu pai) de Recesvinto: 653-672. A crónica conclui que Recesvinto foi um rei muito estimado e que morreu nas Calendas de Setembro, sendo sepultado na sua terra, Gerticos, "...nunc Bamba dicitur" (agora chamada Bamba), i.e. Wamba, no ano DCCXIII (675 AD). Data mais consensual é a de 672. Digladiam-se datas, como sempre, e parece haver um pequeno desfazamento de 3 ou 4 anos na cronologia (em relação a outras fontes). Não é relevante neste contexto astronómico e podemos tomar como garantido o mencionado intervalo para o eclipse. Neste, encontramos os seguintes fenómenos Ibéricos com magnitude, dois dos quais foram decerto notáveis: 12 de Abril de 655 (eclipse total, v. supra) 28 de Janeiro de 659 (eclipse híbrido e apenas parcial na Península) 4 de Setembro de 666 (eclipse total) Conclusão: esta data dos tempos visigóticos nunca poderá ter solução definitiva por falta de elementos na sua raíz mas a forte impressão que o fenómeno imprimiu ("...omnis Hispania territatur"), a sequência cronística com relato imediatamente antecedido pela notícia do X Concílio de Toledo (656) durante o curto pontificado do Papa Eugénio (654-657), bem como a referência adjacente à exigente defesa militar perante a incursão Basca, leva-nos a acreditar numa data precoce e de que se trata exactamente do mesmo eclipse de 12 de Abril de 655 acima referido e cujo mapa se disponibilizou. Ademais, o vocabulário utilizado nas descrições revela notáveis semelhanças: "...Hispaniam omnem territaverunt" no pseudo-Isidoro, "...omnis Hispania territatur" em Rodrigo. Não há coincidências. Voltando a J. Vasaeus ("Hispaniae Chronicon", na colectânea Rerum Hispanicarum scriptores aliquot..., Tomus prior. Ex bibliotheca cl. viri Dn. Roberti Beli Angli, Francofurti, Andreae Wecheli, 1579, p.582), encontramos outro relato segundo "Isidorus Pacensis": O cronista converte (à partida correctamente) o ano original no de 719 da Era de Cristo, cujos acontecimentos elencava. Na realidade, relato provavelmente refere um eclipse que aconteceu antes, no dia 3 de Junho de 718, uma sexta-feira. Foi total e, de facto, vespertino na Península, como as últimas opiniões expenderam (pois, como se lê, não houve consenso quanto à hora do fenómeno). Parte do percurso da totalidade do eclipse de 3 de Junho de 718 (GUIDE9.1) Lemos ainda outro relato transcrito por Vasaeus na já mencionada edição de Colónia da obra Rerum Hispaniæ memorabilium....: "Hoc tempore fuit eclipsis solis per horã integrã"
(p.512). Na sequência cronológica, só pode ser uma
referência ao eclipse total de quarta-feira, 17 de Junho de 912 AD.
Parte do percurso da totalidade do eclipse de 17 de Junho de 912 (GUIDE9.1) Excluíndo os mencionados, e até ao fenómeno de 939 AD cujo relato leremos adiante, houve outros eclipses notáveis que provavelmente mereceram notícia. Verificaram-se os seguintes fenómenos com totalidade ou anularidade sobre a Península (com duas excepções, acrescentadas pela sua magnitude): Eclipse anular - 8 de Dezembro de 698 (totalidade não abrangeu a Península, somente parcial mas com elevada magnitude) Eclipse anular - 14 de Julho de 706 Eclipse anular - 14 de Julho de 708 Eclipse anular - 9 de Janeiro de 753 Eclipse total - 16 de Agosto de 779 Eclipse anular - 16 de Setembro de 787 Eclipse total - 17 de Setembro de 833 Eclipse total - 5 de Maio de 840 Eclipse total - 27 de Junho de 903 (totalidade não abrangeu a Península mas quase alcançou o Cabo S. Vicente, no sudoeste) Avançando, encontramos a seguinte notícia do século X nos anónimos Anales castellanos primeros ou Annales Castellani Antiquitores, provenientes da basílica de San Isidoro de León que cobrem os anos 618-939. Eis o relatado (Madrid, BN, mss. V.4,I, fol. I; M. Gómez-Moreno (ed.): Anales castellanos, in "Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia", Madrid, 1917): "In era DCCCCLXXVII videlicet die II feria ora IIII sic demonstrabit Deus signum in celum et versus est sole in tenebris in universum mundum quasi ora una. Post inde ad XVIIII dies quod est VIIII idus augustus · in diem quod celebratur christianis Sancti Iusti et Pastoris die III feria sic venerunt cortoveses ad Septemmankas..." (Na era de 977 [939 A.D.], uma segunda-feira, hora quarta, quando Deus mostrou sinais no céu e transformou o sol em escuridão em todo o mundo durante cerca de uma hora. Dezanove dias mais tarde, que é o nono [oitavo, recte] dos idos de Agosto, em que os cristãos celebram os santos Justo e Pastor* [6 de Agosto], terça-feira, os cordoveses chegaram a Simancas...). A feria indicada para a relatada chegada das forças sarracenas está correcta: dia 6 de Agosto foi uma terça-feira. Há, como assinalado, um pequeno lapso implícito no cômputo do dia 6 a partir dos idos de Agosto (dia 13): seria o oitavo dia "dos idos" e não o nono. Quanto ao eclipse, data não é directamente grafada mas contando (inclusivamente, como era norma) XVIIII dias para trás a partir de 6 de Agosto chega-se ao dia 19 de Julho (data inequívoca, astronomicamente comprovada). O eclipse total de 19 de Julho de 939 foi decerto notável mas parcial na região em causa (e.g., 0.966 em Valladolid, 0.935 em León) e o ápice aconteceu, de facto, durante a manhã. A feria está aqui incorrecta: foi sexta-feira. Faixa de totalidade "percorreu" a península de sudoeste para nordeste. Eclipse é provavelmente assinalado na crónica pela sua proximidade em relação à importante Batalha de Simancas, travada, segundo se acredita, no início de Agosto. * Segundo a tradição foram dois irmãos martirizados em Complutum, actual Alcalá de Henares, em 304 A.D., cf. Claude Chastelain, Martyrologe Universel, Paris, Frederic Leonard, 1709, p.390 (v. infra); p.301 na edição de 1823 de M. de Saint-Allais. A lenda dos dois mártires no elenco do dia 6 de Agosto (Martyrologe Universel..., Paris, 1709, p.390) Parte do
percurso da totalidade do eclipse de sexta-feira, 19 de Julho de 939 (GUIDE9.1)
Ainda antes da fundação do reino
encontramos os dois relatos seguintes, ambos registados na
secção "Chronicon Conimbricense Pars I" incluída nos Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores [escritores e monumentos narrativos]
(Volumen. I, Fasciculum I, 1856, p.4):
"Era M.ª LXX.ª I.ª III Kalendas Julii oscuratus [grafado "osculatus"] est sol et cotremuit terra" (Na era [ano] de 1071, no 3º dia das Calendas de Julho o Sol foi obscurescido e a terra tremeu). Trata-se do eclipse anular de 29 de Junho de 1033 AD. A data está correcta pois o ano referido é o da Era Hispânica ou de César e trata-se do 3º dia (contado para trás, inclusivamente, i.e. contando também o primeiro à maneira romana), a partir de 1 de Julho. Fenómeno parcial na península, linha central passou a norte da Galiza na região do golfo da Biscaia. Um "portento" é associado a outro: o estremecimento da terra. Breve notícia do eclipse de 1033 no Livro da Noa (AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0024 no acervo "digitArq") Parte do percurso da anularidade do eclipse de 29 de Junho de 1033 (GUIDE9.1) Seguidamente, na mesma pág. dos PMH, o relato de um fenómeno datado das Calendas (o primeiro dia) de Julho da "era de MCXVII" (1 de Julho de 1079, ano equivalente na Era Cristã ou "Comum"): "Era M.ªC.ªX.ª.VIIª Kalendas Julii hora VI.ª oscuratus est sol et stelit ipsa obscuritas per duas horas donce apparuerunt stelle in celo et quase media nox effectus est." (o sol obscureceu-se e o próprio ficou escuro durante duas horas, depois apareceram as estrelas no céu como se fosse meia noite), cf. Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introdução de António Cruz, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968, p.75. Este testemunho, de 1 de Julho de 1079 A.D., foi elencado por Paul M. Muller* (v. Zirker, Op. cit., 1995, Table 1.1: referência a "Alcobaca"). * An Analysis of the Ancient Astronomical Observations with the Implications for Geophysics and Cosmology, Newcastle, Fiddes Litho Press, 1975 O eclipse das Calendas ("Kl's") de Julho de 1117 (1079 AD) no Livro da Noa (AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0026 no acervo digitArq) O mesmo eclipse no Chronicon complutense sive alcobacense, aqui recolhido da colectânea de E. Flórez (Tomo XXIII, p.317) Este fenómeno também surge elencado no Chronicon Complutense (i.e. de Complutum, actual Alcalá de Henares, mas decerto com origem em Alcobaça: Chronicon complutense sive [ou] alcobacense). Breve chronicon manuscrito cujo conteúdo foi inserido na compilação de Enrique Flórez (Tomo XXIII, segunda edición de 1799) e, no século passado, incorporando uma recensão conhecida como Chronicon conimbrigense, foi publicada por Pierre David com o título Annales Portugalenses veteres (1945). Provavelmente o mais antigo sumário de acontecimentos Galaico-Portugueses. Parte do percurso da totalidade do eclipse de 1 de Julho de 1079 (GUIDE9.1) O excerto seguinte é da crónica anónima [a identidade do autor é debate polémico que atravessa gerações de especialistas] conhecida como "Crónica de Portugal de 1419" (previamente editada a partir de um Ms. incompleto como "Crónica de Cinco Reis de Portugal" em 1945 e, com novas fontes, como "Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal" em 1952). Como o seu último editor, Almeida Calado, referiu (1998, Introd., p.XLI): "Visto que em toda a sua extensão é um texto independente das crónicas oficiais conhecidas - as de Duarte Galvão e Rui de Pina -, às quais é muito anterior, a Crónica de Portugal de 1419 vale por si própria como monumento da historiografia quatrocentista, quer seja ou não atribuível a Fernão Lopes." [Fernão Lopes é uma das tradicionais atribuições, "quase segura" segundo Lindley Cintra no seu artigo no Dicionário de Literatura (dir. Jacinto do Prado Coelho), Porto, Figueirinhas, 1992 (4ª ed.), vol. 1, p.238] Rui [Ruy] de Pina (Cronista-mor do reino) é responsável por um corpus de crónicas (redigidas entre 1513 e 1522) dos primeiros soberanos da Dinastia de Avis. Na Chronica de D. Sancho I (título formal: "Crónica del rei D. Sancho deste nome o primeiro e dos reis de Portugal o segundo...") encontramos (na transcrição de Miguel Lopes Ferreyra) este expressivo relato, com informações que parecem "refundidas" do exemplo precedente: "E na era de Nosso Senhor de mil cento e noventa e nove annos, entre ha Sexta, e Noa do dia foy grande, e muito espantozo Cris* [cris, crys, solcrys eram vocábulos comummente usados; eclipsi ou eclypsi começa a surgir gradualmente, a partir do séc. XIV] do Sol, que por todos aquelles que escreviam has couzas maravilhosas de seus tempos, asáas memorado, porque ho Sol foy negro todo como pez, e ho dia que era craro, se tornou muy escura noyte, e nos Ceos sendo de dia pareceu ha Lua, muittas Estrellas, por cujo nome, e espanto, e mortal temor, os homens, e molheres de todo ho estado, e condiçam, crendo que ho mundo se acabava, e vinha ho dia do derradeyro juizo, temendo a morte, e por acabarem has vidas, em tantos luguares leyxavam has casas, e fazendas, e desacordadas se acolhiam às Egrejas, e Cazas piedosas, e depois que has trevas se começaram a derramar, e ho Sol cobrando sua claridade, foy ha Lua vista em desvayradas maneyras, como nunqua fora vista, e viam estes sinais serem tam fóra do regulado curso da natureza, como hos que tiveram a Payxam de N. Senhor, e este dia deste Cris assi foy nomeado, e assi ficou lembrado nas memorias dos homens, especialmente de Portugal, que quando depois pessoas antiguas se perguntavam por cousas de tempos passados, de que queriam saber a verdade, e as testemunhas para certidam das suas idades, e tempos referiam seus ditos, e mores lembranças, ha este dia que se tornàra noyte..." (Chronica do Muito Alto, e Muito Esclarecido Principe D. Sancho I, Segundo Rey de Portugal; composta por Ruy de Pina...; fielmente copiada do seu original por Miguel Lopes Ferreyra. - Lisboa Occidental : na Officina Ferreyriana, 1727, pp.49-50). * "Cris, s. Eclipse. Do gr. ékleipsis, «acto de abandonar, abandono, deserção; defecção, desaparição; eclipse (do sol, da lua); cessação ou desaparição (das forças), enfraquecimento», pelo lat. eclipse-, «eclipse (do sol, da lua)». Séc. XV: «...no qual dia do seu fallecimento ho Sol foi crys em grande parte de sua claridade; e assi tambem foi ho Sol crys, ho dia que a Rainha Dona Felipa sua molher falleceo...», Rui de Pina, Crónica de D, Duarte, cap. I, nos Inéd. Hist. I, p.73. O cultismo eclipse no séc. XVI: «...e não per situação geografica de eclipses . e outras observações de oposição e conjunção de outros planetas com o Sol e com a Lua», Déc., III, 5, cap. 5, p.257" (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (7ª edição), Segundo Volume (C-E), Livros Horizonte, 1995 (1952), p.253) Na sequência do relato (a seguir ao transcrito), parece implícita a opinião de que as vicissitudes sofridas com intermináveis chuvas e seu efeito nas sementeiras (e consequente fome), no ano de 1201, estariam, de algum modo, ainda relacionadas com o assustador fenómeno anteriormente testemunhado. Também no chamado "Livro da Noa" se encontram os fenómenos insólitos do dia "iii.nñs.junii" (terceiro das nonas de Junho, por nós destacado na imagem seguinte) de "m.cc.xxx.vii" (1237, i.e. 1199 AD, destaque seguinte), "Sub era millesima ducentesima trigesima septima..." na transcrição de Antonio Caetano de Sousa (1739). Relato nesse fólio refere mais tarde: "...congregata in Eclesia Sanctae Crucis Colimbriae maxima multitudine hominum, et mulierum tam saecularium quam Religiosorum...", entre outras peripécias similares às que encontramos noutras crónicas. Início do relato do suposto eclipse de 1199 no Livro da Noa (AN-TT: PT-TT-MSCC-L099_m0018 no digitArq) Duarte Nunes de Leão, 1530-1608, (na primeira parte das Chronicas dos reis de Portvgal, reformadas pelo licenciado Dvarte Nvnez do Lião..., Lisboa: por Pedro Crasbeeck, 1600, .61) replica o relato com muitas coincidências, acrescentando que o momento se havia até tornado marco cronológico: "Correndo depois o anno de MCXCIX [utiliza aqui a Era de Cristo]. foi aquelle grande & memorauel eclypse do Sol, que começando entre a sexta & noa, se fez todo negro como pez, & de dia mui claro que era, se tornou noite apparecendo a Lua & as strellas. Por cujo espanto os homees & molheres de todo stado, cuidando que era o fim do mundo, deixando suas casas & fazendas, se acolherão aas igrejas querendo nellas acabar. E depois que a luz se restituiu, foi a Lua vista em tam desvairadas maneiras, q causou outro espanto não menor. E foi tam grande & desacostumado eclypse, que da hi em diante como cousa notauel, referião os homees os annos & conta do tempo a este acontecimeto, como se referia ao nascimento de nosso Senhor IESV Christo, ou aa era de Cesar." Notícia no texto de Ruy de Pina afirma: "E na era de mil duzentos e xxxbij [xxxvii], que era do ano de Cristo
de mil e
cento e noventa e nove..." (fonte: Arquivo Nacional da Torre do
Tombo - DigitArq)
A data do mesmo eclipse num códice do séc. XVI da crónica de Ruy de Pina. Anteriormente no acervo do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (antiga cota: CDLXIII; cota actual na Biblioteca Nacional: ALC 295). Destacamos: "...na era de N.S. Jesus Cristo de mil e cento e noventa entre a sexta e nona [horas] do dia foi o grande e espantoso eclipse..." (ler relato completo, PDF, 260KB). Aqui o ano indicado é 1190 (e não 1199) AD. Na sequência, parece existir uma informação incompatível (pelo recurso a um ano diferente do de outras cópias, numa era diferente): "na era de César de mil e duzentos" (acerca das chuvas e da impossibilidade das sementeiras). Mereceu apostila posterior que parece limitar-se a referir qual seria o ano equivalente a 1200 na era de Cristo (1162). Enfim, talvez uma cópia desleixada, pouco incomum. Também não aconteceu qualquer eclipse "espantoso" em 1190. Note-se o desenho curvilíneo da conjunção "e", comum na época. Encontramos o fenómeno na transcrição de materiais conimbricenses inserida nos Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores (Volumen. I, Fasciculum I, 1856, p.3; ler relato). No eloquente testemunho, muita gente piedosa se juntou na Igreja de Santa Cruz na sequência deste fenómeno: "...sinal como não havia acontecido desde a Paixão de Nosso Senhor até ao presente". Aconteceu "no terceiro dia antes das Nonas de Junho" (i.e. dia 3; nonas de Junho eram a 5) e "...houve mesmo noite entre a sexta e a nona hora (...)". O testemunho salienta que foi "...no mesmo dia em que Cristo sofreu" (sexta-feira) e "à mesma hora". O relato parece, no final, referir o que hoje podemos designar 'efeito pinhole' (i.e. de câmara estenopeica), referindo o aparecimento de "signa lunarum". Tratava-se, na realidade, de projecções do "crescente" solar (característico das fases parciais de um eclipse): ...ubi cumque solis radii per foramen aliquod subitrabant (...sempre que os raios do sol entravam por alguma abertura). Acontecimento foi registado, acompanhando o arquivo coimbrão, por Enrique Floréz et al. na compilação España Sagrada. Theatro, geographico-historico de la iglesia de España, Tomo XXIII, 1767, p.335 (p.336 na "segunda edición" de 1799; ver pág., PDF, 100KB). Sabemos como a tradição cronística se respaldava em relatos pretéritos, quase replicando informação verbatim. As crónicas resultam habitualmente de séries de cópias com colagens e interpolações (e até "contaminações"), amiudadamente grafadas a várias mãos num persurso complexo. As datas erradas coincidem, o que não deve causar admiração: as crónicas baseiam-se sempre em fontes comuns ou preexistentes, perpetuando-as. Os lapsos também eram comuns no processo manual de replicação e escrevia-se amiudadamente muito depois dos acontecimentos (são geralmente "tardias" e baseadas em fontes escritas que se perderam). Trata-se, quanto a nós, do grande mistério dos eclipses "portugueses". Este fenómeno, propiciador "de noyte e trevas", no qual o sol enegreceu ("...sol factus fuit nigrior") será, depois, "classificado" por de Pina e Leão como "Cris" e "eclypse", respectivamente. Repetidamente documentado (mas com segurança associado somente a uma única proveniência: Coimbra). Talvez tenha prevalecido o fascínio de um ano "terminal": "E na era de Nosso Senhor de mil cento e noventa e nove annos...". Contudo, não se assistiu em 1199 AD a qualquer eclipse (v. Total and Annular Solar Eclipse Paths: 1181-1200 - Eclipse Predictions by Fred Espenak [NASA's GSFC]), nem sequer parcialmente observável. Acontecera um pífio eclipse em Abril de 1194 AD (magn. 0.226 em Coimbra, que nem merece referência e pode ter passado despercebido). Demais, dia mencionado foi uma quinta-feira e não uma sexta. É verdade que a Crónica de 1419, por exemplo, segue nesta parte do "percurso" uma sequência datada com uma cadência regular. Da conquista de Tuy e outras praças por D. Sancho I avança um ano para este relato (sem permitir qualquer pista quanto à localização). Segue, no ano sequente, para uma notícia acerca das chuvas e dificuldades nas sementeiras e depois, no ano seguinte, para a decisão régia da contrução de um castelo em Montemor, no bispado de Évora. Ficamos com a impressão de que algo justificou aquele lugar na sequência, mesmo que simplesmente interpolado. Curiosamente, crónica não menciona o confirmadíssimo eclipse de 3 de Junho de 1239 quando elenca os acontecimentos do reinado do outro Sancho (neste caso o segundo). É curiosa a repetição desta data de 3 de Junho, encontrada no eclipse total de 1239 (aí justamente uma sexta-feira). O intervalo de horas também coincide. Qual a probabilidade? Houve um eclipse anular a 6 de Dezembro de 1192 AD (no noroeste e parte do nordeste do país) e acontecerá outro (também anular) em 27 de Novembro de 1201 AD (v. mapas seguintes). São péssimos candidatos: o primeiro é demasiado periférico; o de 1201 (magn. 0.951 em Coimbra) pode ter impressionado, embora por si dificilmente justificasse semelhante comoção e jamais as trevas descritas ou as estrelas avistadas. Este "grande & desacostumado eclypse" exige mais do que uma anularidade. Eclipses anulares de domingo, 6 de Dezembro de 1192 e terça-feira, 27 de Novembro de 1201 (GUIDE9.1) As crónicas a que temos acesso são, como é sabido, posteriores. Vamos especular e supor que as sucessivas transcrições a partir de suposta notícia "original", coetânea (a que já não temos acesso), não reconheceram a eventual presença de um X (dez) aspado (=40) antes de "XXX" ou, talvez mais lógico, se tomou um "L" ou um "2" (L uncial = numeral 50) por um simples X. Sabemos quantos erros aconteceram nesse passado de cópias manuscritas, muitas vezes ainda a pequena distância cronológica dos acontecimentos relatados. Os próprios historiadores cometeram depois erros de leitura não despiciendos. M. J. Barroca, Op. cit., vol. I, p.228 escreve: "De pouco valeram as advertências de D. José de Cristo, de Fr. António Brandão e de outros historiadores. Na realidade, o X aspado tem conduzido desde sempre a erros. Já João Pedro Ribeiro se lamentava dos erros de datação na leitura de muitos documentos, que muitos dos seus antecessores haviam cometido por não reconhecerem a presença do X aspado e do L uncial". Segue-se a citação de Ribeiro: "...os tenho reconhecido por mal lidos nas suas datas, v.g. por se ter dado ao 2, ou L, o valor de 20, ou X aspado o valor somente de 10." (1811, Tomo II, p. 28). No fenómeno em causa, m.cc.xxx.viji seria talvez m.cc.2xx.vij (1277, i.e. 1239 AD). É "suspeito" que a diferença seja rigorosamente 40 anos e que o dia do mês e a feria (dia da semana) coincidam. Nesse ano de 1239, como vimos, aconteceu o impressionante eclipse que já referimos acima, profusamente documentado no sul da Europa ao longo percurso da totalidade. O único portento que responde a tão inusitados efeitos é (salvaguardando qualquer impressionante fenómeno atmosférico que pode mais tarde ter sido entretanto "colado" a um eclipse), quanto a nós, o notável eclipse de sexta-feira, 3 de Junho de 1239, com quase 6 minutos de totalidade em Coimbra! Aconteceu, portanto, no reinado de D. Sancho II e não no de D. Sancho I. Estamos, decerto, perante um lapso que percorreu caminho nas ulteriores recolecções, gerando uma espécie de "doublet" cronístico. O relato de outro eclipse (14 de Maio de 1371, i.e. 1333 AD) encontra-se, destarte em vulgar, no Livro da Noa (v. digitalizações m0039 e m0040 do acervo digitArq): Na era de mil.ccc.lxx e i año. xiiii dias andados do mes de mayo foy eclipsi do sol efoy tornado o sol tan somido que nõ parecia se nõ come luna nova muy peqnha de sy..." (relato completo fazendo o aggiornamento do Português: "Na era de mil trezentos e setenta e um ano, catorze dias andados do mês de Maio, foi eclipse do sol e foi tornado o sol tão sumido que não parecia senão como uma lua nova, muito pequena de si, e foi acrescentando em si, tornando-se em seu estado, e em crescença dele tornava-se de muitas cores, por tal guisa que o dia foi muito escuro e tirado de sua claridade. Isto foi à hora do meio-dia, e esteve assim o sol neste embargo uma hora e meia do dia.") Na já mencionada compilação de Floréz (que também inclui o Chronicon Conimbricense) voltamos a encontrar relato (segunda edición, Tomo XXIII, p.344; ler excerto). O fenómeno foi parcial em Portugal mas anular no extremo norte de Espanha e sul de França). Mesmo assim, apresentou a notável magnitude de 0.910 em Coimbra. Parte do percurso da anularidade do eclipse de 14 de Maio de 1333 (GUIDE9.1) O Livro da Noa refere-se a esse difícil ano de 1371 (Era Hispânica, equivalente a 1333 AD), em que a fome grassou, houve mortandade e os ataques das forças muçulmanas reconquistaram o importante bastião de Gibraltar em Junho desse ano. Na sequência do texto, sem referir outra "era" (ano), reporta que na "f.vi" (feria vi, sexta-feira), vinte e nove dias andados do mes de Maio, a cor do sol mudou da manhã até ao poente, o ar foi espesso e escuro, o sol cinzento, etc. Não se refere a palavra "eclipse" e tudo indica que se tratou de impressionante fenómeno meteorológico. Todavia, esse dia (29 de Maio) somente foi uma sexta-feira, por essa altura, em 1327, 1332 ou 1338. Talvez o simbolismo Crístico, sacrificial, desse dia da semana "penetrasse" facilmente os relatos. Noutro registo, das Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra (in: Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores, Op. cit, pág. 25) lemos: [N.B.: Alexandre Herculano designou as breves composições históricas do cod. 79 da "Bibliotheca Publica do Porto" como "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra". Cód. ctualmente possui a cota nº 103 na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Herculano afirmava (Portugaliae Monumenta Historica - Scriptores, Vol. I, Fasc. I, p.23) que os caracteres paleográficos indiciavam que as composições eram ao século XVI. Com uma parte de pergaminho e outra de papel, o manuscrito compreende 47 folhas, escritas por diversas mãos, na segunda metade do século XV.] Segundo Coutinho (Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), este relato refere-se ao fenómeno de 3 de Junho de 1239 (v. supra), com "ligeira alteração" na data, Eis a nótula apensa: "Cf. PORTUGALIAE MONUMENTA HISTÓRICA, Scriptores, Olisipone, MDCCCLVI, p. 25, que refere nas Chronicas Breves e Memorias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra o mesmo acontecimento, com ligeira alteração da data." (p.435, n.15) Não é a explicação ideal pois a alteração não é "ligeira", bem pelo contrário. Torna-se complicado ancorar este suposto acontecimento (de sexta-feira, 30 de Maio de 1232) pois não corresponde a qualquer eclipse que tenha acontecido. Num intervalo alargado, verificou-se eclipse com magnitude superior a 0.700 (um limite tímido para tão notáveis efeitos) apenas na sexta-feira, 3 de Junho de 1239 (o mencionado fenómeno total e comprovadíssimo). Entretanto, noutra sexta-feira, 15 de Outubro de 1232 AD, houve um eclipse parcialmente observável com menor magnitude (0.560). Pouco impressionante e longe do mês indicado. De resto, 30 de Maio de 1232 foi um domingo. sexta-feira foi, por exemplo, nos anos 1225, 1231 ou 1236. Se considerarmos, no contexto do elenco cronológico adjacente (que privilegia acontecimentos do século XII), que se tratava do ano de 1132, os problemas perpetuam-se: 30 de Maio foi uma segunda-feira e não houve qualquer eclipse observável na península ao longo desse ano. Em resumo, a informação que temos nesta notícia, acreditando-a assertiva, é irreconciliável. Ou se trata, de facto, de um relato muito impreciso (no dia, no mês e também no ano) ou da memória de um qualquer fenómeno meteorológico que deixou forte impressão. Mais tarde, na Chronica de El-Rei D. Fernando, cap. CX, Fernão Lopes (o eminente cronista, activo entre 1418 e 1459) descreve as peripécias da vida de Henrique II (de Castela e Leão) no contexto das hostilidades internas e no âmbito alargado do antagonismo entre os reinos de França (que apoiava Henrique) e o de Inglaterra. Depois descreve as últimas horas de Henrique e o eclipse que antecedeu a sua morte: "N'isto, afficando-se a alma para partir do corpo, vestiram-lhe um habito da ordem de S. Domingos, e sendo já duas horas andadas do dia acabou sua vida e deu o espirito, havendo quarenta e seis anos e cinco mezes de edade, e treze annos e dois mezes que fôra alçado por rei em Calahorra; e morreu na era [de César ou Hispânica] de mil e quatrocentos e dezeseis annos. E porquanto n'este mez que ele morreu, treze dias antes que finasse, aos dezeseis do dito mez, foi um grande eclipse depois do meio dia, que parecia a todos que era noite, de guisa que fugiam as gentes fóra dos muros dos logares onde viviam, disseram muitos que se fizera por sua morte; mas os entendidos mostravam que os eclipses se fazem por obra de natureza em certos tempos, e que aquelle eclipse não fôra feito por azo de sua morte, mas que elle acertara de se finar n'aquelle tempo que o eclipse havia de ser." (Luciano Cordeiro (dir.), Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895, p.182) Parte do percurso da anularidade do eclipse de 16 de Maio de 1379 (GUIDE9.1) Trata-se do maquiavélico Henrique II, "el Fratricida" ou "el de las Mercedes" (mercês), (Sevilha, 13 de Janeiro de 1334 - La Rioja, 29 de Maio de 1379), que inaugurou a dinastia de Trastâmara no trono de Castela e Leão. O eclipse, perfeitamente datado é o fenómeno de 16 de Maio de 1379 (utilizando ano da Era Cristã ou "Comum"). Foi total no sudoeste peninsular. Repare-se que Fernão Lopes expende, no final, uma explicação racional para estes fenómenos astronómicos, ultrapassando as persistentes superstições. Ainda em Fernão Lopes, podemos ler (Crónica de D. João I : Primeira Parte, Edição crítica de Teresa Amado, Imprensa Nacional, 2017): "Seguio-se estonce que aos dez e nove dias do dito mês foi o sol eclipse ["criz", na transcrição da "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", vol.III, p.9)] ao meo-dia e perdeo sua claridade, estando entom em sino [signo] de leo, a qual cousa foi espanto a todos. E deziam os astrologos que senificava em casa real gram mortindade de gente honrada. E assi aconteceo depois nos grandes senhores delRei de Castela segundo adeante ouvirees." (cap. CXXXVIII, p.253) O Cerco de Lisboa de 1384 (iluminura), Jean (Jehan) Froissart, Chroniques; Bruges, c.1475 (Bibliothèque nationale de France. Département des Manuscrits. Français; ms. fr. 2645) Aconteceu em 1384 aquando do cerco de Lisboa pelas forças do rei de Castela. Para o fenómeno é indicado o dia 19 "d’agosto" (anteriormente mencionado) mas não o dia da semana. Somos informados de que o Sol estaria no signo Leo (o que nesse ano, segundo o zodíaco tropical, vinculado aos equinócios e solstícios, se verificou entre 14 de Julho e 14 de Agosto). Logo, a longitude eclíptica do luminar já ultrapassava os 150º, i.e. já estaria em Virgo. O Equinócio Vernal era, nessa época, a 12 de Março (o "deslizamento" gradual relativamente às estações do ano foi um dos problemas que levou à posterior reforma do Calendário). Sideralmente o sol "estava" na constelação do Leão. Somente a relação estemática com eventuais registos do séc. XIV poderia esclarecer. O cronista não estava lá, acredita-se que terá nascido nessa década de 1380. Em todo o caso, o dia 19 já é referido nas cópias manuscritas, como aqui ("dezanove dias do dito mês", realçado por nós) na "Primera parte da coronica del Rey Dom João o primero desse nome" (Cod. 950; BNP) A crónica é fiável nas datas de outras peripécias. Logo a seguir (cap. CXXXIX: "Como as galés de Castela quiserom tomar as de Portugal, e do que sobr’elo aconteceo") regista: "...aos vinte e sete dias daquel mês d’agosto que seriam as auguas vivas, e a maré chea na alva da manhã...". Foi um sábado, confirmando detalhe pouco adiante mencionado por Fernão Lopes. Mas no caso do eclipse, o dia não pode estar correcto. O único plausível foi o de quarta-feira, 17 de Agosto de 1384 (Calendário Juliano, será redundante sublinhar; no Calendário gregoriano proléptico, i.e. estendido para este ano anterior à sua adopção, seria dia 25): um fenómeno anular, parcialmente observado em Lisboa entre as 11h 25m e as 14h 27m UT (vertendo para o actual Tempo Universal), com a generosa magnitude de 0.880. Fontes imprecisas, "clerical error"? A diferença de dois dias é dificilmente explicável num período tão escrutinado como o do cerco de Lisboa. Referência ao eclipse de 17 de Agosto de 1384. Sol estaria no 3º grau de Virgo (Chronologia catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora editarum..., de Heinrico Buntingo, Magdeburgo, 1608, fol. 465). Buntingo baseou-se nas Tabelas Pruténicas (Lat. Tabulae prutenicae, de "Prutenia", i.e. Prússia), Al. Prutenische oder Preußische Tafeln, publicadas por Erasmus Reinhold em 1551 (reimpr. em 1562, 1571 e 1585) No século XVIII, o Padre Baião (Jozé Pereira Bayão), refere com brevidade este eclipse enquanto procura defender o malogrado empreendimento de D. Sebastião com exemplos de outros notáveis que também perderam batalhas ou foram, de algum modo, mal pressagiados por sinais dos céus: "...expecialmente D. Joaõ I. o qual parece que o Ceo, e a terra se lhe oppunhaõ , pois o Sol fe ecclipsou de sorte que a terra ficou em trevas por duas horas; a Cidade de Lisboa, se vio aflicta de peste, e a Rainha, que era mulher santa, morreo della;" (Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, Lisboa Occidental, na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, 1737, p.736) Passando a outro relato, no primeiro capítulo da Chronica d'El-Rei D. Duarte, Ruy de Pina descreve (no início), as circunstâncias da morte de D. João I: "...o dicto glorioso logo acabou sua bemaventurada vida com mui claros sinaaes de Salvaçam de sua alma, a quatorze dias d'Agosto, vespera d'Assumpçam da Virgem Maria Nossa Senhora, do anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesu Christo de mil quatrocentos e trinta e tres; (...) no qual dia do seu fallecimento ho Sol foi crys, ho dia que a Rainha Dona Felipa sua molher falleceo primeiro que elle em Sacavem [segundo outras fontes terá sido já em Odivelas, vinda de Sacavém]; e assi ho dia em que seu filho ElRey D. Duarte seu filho mayor, e herdeiro falleceo depois em Tomar." (Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.75; cf. fol. original (acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Não houve qualquer eclipse solar. Parece haver aqui uma "apropriação" do eclipse total de 17 de Junho desse ano (1433), somente parcial no reino (pífia magnitude de 0.574 quando observado de Lisboa). Fenómeno mais conspícuo somente acontecerá a 5 de Abril de 1437. O mesmo se pode dizer relativamente ao "eclipse" da esposa, Filipa de Lencastre (falecida a 19 de Julho de 1415). Houve, por essa altura, um eclipse: em Lisboa o Sol já nasceu eclipsado no dia 7 de Junho [decorria o Concílio de Constança, que acabou com o cisma papal que tinha resultado no Papado de Avignon, v. Calvisius, Opus Chronologicum..., Editio Quarta, Francofurti..., Anthonius Hummius, MDCL, p.871]. Todavia, aconteceu quase um mês e meio antes do falecimento de Dª Filipa. Talvez estejamos, nestes casos, perante um expediente literário convencional, pelo seu poderoso simbolismo. O eclipse que "assinalou" a morte do rei D. Duarte surge na mesma crónica. O escriba referiu o facto de grande parte do Sol ficar cris, tal como em notícias anteriores desse jaez. Era o obscurecimento ou "acizentamento" do astro, através do qual, como o historiador Hugo Azevedo refere, "os astros manifestavam o luto pelo passamento prematuro do soberano." (Memórias melancólicas: a morte do Rei D. Duarte no discurso cronístico de Rui de Pina (1440-1522/1523), XXIX Simpósio Nacional de História, UnB, 2017, p.7). Para alguns, a causa da morte do soberano não havia sido a "pestenença" (peste), uma "febre muy aguda" ou um acidente em que se "desencaixára o braço", mas a "desigual tristeza e continoa paixaam que pela desaventura do socedimento do cerco de Tanger tomou", o falhanço da expedição no Norte de África, "...e dahy se foy a Tomar, e pousou nos Paços da Ribeyra, onde loguo adecêo de febre mortal, que doze dias nunqua o leixou: e entrando nos treze, que eram nove dias de Setembro, anno de mil quatrocentos trinta e oyto, em que grande parte do Sol foy cris, deu sua alma a Deos jaa nos Paços do Convento [em Tomar] a que foy levado." (Chronica d'El-Rei D. Duarte, Op. cit., 1914, cap. XLIII, p.205). Trata-se decerto do "eco" do eclipse anular ocorrido a 19 de Setembro de 1438 que atravessou o Norte de África, de nordeste para sudeste, "entrando" a sul de Çafim (Safi), em Marrocos. Somente parcial, todavia com razoável magnitude no Reino (0.796 máximo em Lisboa) e aqui associado ao recente decesso do monarca. Este "nexo" será divulgado pelos principais cronologistas, por exemplo Calvisius (Op. cit., p.881), respaldando-se em Juan de Mariana. George F. Chambers refere-o na conhecida obra The Story of Eclipses, de 1899. Parte do percurso da anularidade do eclipse de 19 de Setembro de 1438, que aconteceu dez dias após a morte de D. Duarte (GUIDE9.1) Continuando a compulsar fontes Portuguesas, encontramos no Obituário do Cabido da Sé do Porto (ADP, Ms. 1574, fol. 54) esta interessantíssima inscrição (transcrita por Mário Jorge Barroca na impressionante recolecção Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), vol. I, [col. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas], Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000, pág. 74, n.34): "De Mil IIIIc LXXVIIJ . XXIX dias de Julho antre as onze e as doze horas do dia joy o ssol eclissy en tanto q a lua cobria o ssol de todo ponto e de todalas partes q do sol no parecia cousa algua. Efoy feita noute en tanta scuridom q dentro em casa se no podia leer hua carta sem candea. As estrelas apareçerom no çeeo. E durou este eclipssy per hua grande hora. E quando a lua cobrio o ssol ficou toda redonda e negra." (fl. 54). Trata-se do eclipse solar de 1478 cuja totalidade abrangeu, no oeste peninsular, toda uma faixa com limite sul a norte de Aveiro e limite norte a sul da Corunha (Galiza). Parte do percurso da totalidade do eclipse de 29 de Julho de 1478 (GUIDE9.1) Os reportórios que começaram a estar disponíveis com o advento da imprensa incluiam os eclipses para os anos abrangidos. Exemplo do Reportório dos Tempos (edição de 1528 do célebre almanaque de Valentim Fernandes, depois editado por Germão Galharde com licença de D. João III): "Neste anno [trata-se aqui de 1534] em janeyro a [i.e. "na"] luna nova sera sol crys. vi. partes [dígitos]. Em o dito mes de janeyro a luna chea sera luna crys ou eclypsi.". Houve eclipse parcial do sol no dia 14 de Janeiro; eclipse lunar a 29-30 desse mês (verificado c/ programa GUIDE9.1). O ano foi também confirmado através da data da Páscoa (que se pode ler no texto): 5 de Abril. Em 23 de Janeiro de 1525 temos o chamado "eclipse de Camões". Nas elucubrações de Mário Saa (Memórias Astrológicas de Luís de Camões, Edições do Templo, Lisboa, 1978; publ. orig. "As Memórias Astrológicas de Camões..." Emprêsa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1940), cap. II, este eclipse está relacionado com o nascimento do poeta, que o autor situa em 1524. O ano para o qual os astrólogos previram a Grande Conjunção e um segundo Dilúvio. E Camões escreveu, num soneto, que o dia do seu nascimento se não deveria repetir: O dia em que eu nasci moura e pereça, não o queira jamais o tempo dar; não torne mais ao mundo e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. A luz lhe falte, o Céu se lhe escureça, mostre o mundo sinais de se acabar; ... (Luís de Camões, Sonetos; Fixação do texto, paráfrases explicativas e notas de Maria de Lourdes Saraiva; Publicações Europa-América, 1990, p.243) O poeta expende que caso esse dia retorne (com a revolução do ano, subentende-se), o astro "padeça" e "a luz lhe falte". Saberia do eclipse facilmente, em retrospectiva, consultando reportórios ou tabelas, e.g., as do Almanach Perpetuum. De facto, aconteceu um eclipse conspícuo nesse próprio dia ou "passo do sol" (entre o meio-dia e o meio-dia seguinte, segundo a convenção da época), na tarde do dia 23 de Janeiro de 1525 (magnitude 0.841 em Lisboa, anular na região do Estreito de Gibraltar). Parte do
percurso da anularidade do eclipse de 23 de Janeiro de 1525 (GUIDE9.1) e capa da
edição original do livro de Mário Saa, (Edição da Emprêsa Nacional de Publicidade,
1940)
Na época, a Astrologia fazia parte do mapa do conhecimento. Como J. Pinharanda Gomes referiu, os camonistas nunca quiseram aceitar a ideia do recurso à astrologia para determinar a data do nascimento do poeta ou decifrar algumas passagens da lírica. O historiador confirma que o livro de Saa não foi recensionado pelas mais prestigiadas revistas literárias e não é citado pelas publicações de referência da história da nossa Literatura. Concluiu: "A argumentação astrológica suportada por uma interpretação plausível, e até razoável, dos poemas de Camões não foi levada em linha de conta pelos eruditos, talvez temerosos de darem acolhimento a um escritor considerado lírico-visionário, distante das exigências positivas do historicismo." (As memórias astrológicas de Camões - Uma Leitura aligeirada, in: "Mário Saa : poeta e pensador da razão matemática"; organiz, Manuel Cândido Pimentel e Teresa Dugos; Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012). O eclipse solar "camoniano" na "Tabela dos eclipses dos luminares no [para o] horizonte de Salamanca...", in: Opus Ephemeridium sive Almanach perpetuu Abraham zacuti..., Venetiis: per Petrum Liechtenstein Coloniensem, 1502. Esta tabela já surgia no f. 167r da versão Latina do Almanach, mas não na Castelhana. Como José Chabás e Bernard R. Goldstein referem em relação a esta mesma data numa edição diversa: "This date corresponds to Jan. 23, 1525 in the year that begins in January." (José Chabás and Bernard R. Goldstein, "Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print", Transactions of the American Philosophical Society, New Series, Vol. 90, No. 2, 2000, pp. 67,153). Ou seja, convencionando o início do ano em Janeiro e não em Março, este eclipse é, na realidade, o de 23 de Janeiro de 1225. Também se confirma que esse dia foi uma segunda-feira, como indicado pelo "2" na coluna "ferie" (feriae). Voltando a Coimbra, assistimos a um notável eclipse em 21 de Agosto de 1560 A.D., aí testemunhado pelo jovem Christophorus Clavius enquanto estudante no Colégio das Artes (que frequentou entre 1555 e 1560). Como é sabido, o distinto jesuíta alemão será um divulgador da obra de Pedro Nunes e um dos principais responsáveis pela importante Reforma do Calendário promovida pelo Papa Gregório XIII, resultando no sistema que ainda hoje utilizamos. No seu comentário da Esfera de Sacrobosco (In sphaeram Ioannis de Sacro Bosco Commentarius, Clavius deixou (p.508 da edição expandida de 1593) um breve relato deste eclipse total (todavia enganando-se no ano que grafa), bem como de outro que observou sete anos mais tarde, em Roma. Quanto ao primeiro, escreveu: "...relatarei dois notáveis Eclipses do Sol que aconteceram no meu tempo e [portanto] não há muito atrás. Um dos quais no ano de 1559 (sic) por volta do meio-dia em Coimbra, na Lusitânia, no qual a Lua se interpôs entre a vista e o Sol, cobrindo o Sol completamente por um não módico intervalo de tempo. A escuridão foi, de algum modo, maior do que a da noite. Ninguém conseguia ver bem onde deveria pisar. Estrelas apareceram no céu e (coisa maravilhosa de ver) os pássaros precipitavam-se do ar para o chão, horrorizados por tão terrível obscuridade." [trad. nossa; ler trecho original]. Podemos aqui consultar mais informação, bem como referências a observações noutras cidades europeias, como Roma, Viena ou Bruxelas (Riccioli, Almagestum Novum, [1651], Tomo I, Pars Prior, lib. V, p.372) Na notícia de Riccioli, tal como na inclusa na Historia Coelestis de Tycho Brahe, cola-se a referência à concomitante presença do P. Emanuel (ou Emmanuel) Vega que terá estimado a duração do eclipse em três horas, enquanto mulheres em pranto clamavam que o último dia do mundo havia chegado! Vega terá acrescentado que nunca as estrelas se haviam visto tão brilhantes e, debaixo de tecto, as pessoas mal se podia ver entre si, sendo necessária iluminação. O eclipse solar de 21 de Agosto de 1560 (Quarta-Feira, luna 26), antecipado no Reportorio dos Tempos de Andrés de Li (Lixbõa : per Germão Galharde, 1552). Refere que no novilúnio de Agosto será "sol cris:ou esclipse". A data surge antes correctamente indicada, bem como o lugar zodiacal do eclipse: dia 21, grau 8 (viij) de Virgo. O Reportorio
elenca, seguidamente, informação acerca do ano litúrgico, nomeadamente
a data da Septuagésima (11 de Fevereiro) ou a fundamental data da
Páscoa (14 de Abril). Há um lapso na data da
Terça-Feira de Entrudo, que foi a 27 de Fevereiro (não a 28).
O relato de Clavius foi transcrito por Johannes Kepler na obra Astronomiæ Pars Optica... (Frankfurt, 1604), CAPVT VIII (De umbra Lunae et Tenebris diurnis). Adiante (sec. 3), Kepler destacou o cepticismo de Tycho Brahe quanto a este testemunho. O dinamarquês não admitia (erradamente) eclipses solares totais (i.e. que o diâmetro lunar pudesse em quaisquer circunstâncias tapar o Sol completamente), e terá, segundo Kepler, escrito a Clavius a este respeito em 1600 (Op. cit., p.285). "Tycho était dans la ferme persuasion, que dans les conjunctions du soleil avec la lune, le diametre de ce dernier astre était toujours plus petit que celui du premier, et tel était sur ce point son entêtement, que non seulement il n'ajoutait aucune foi, aux recits des anciens historiens grecs et romains, mais il réfusait de croire des temoins oculaires de ces phénomènes, ses contemporains, tel que le jésuite Clavius, qui avait vu et observé une telle éclipse le 21 Août 1560 à Coimbre en Portugal, avec plusiers de ses confrères, et notamment avec le P. Emmanuel Vega..." (F. Xaver von Zach, Corr. astron., vol. 3, p.559). Compiladores mais recentes também salientam esta curiosidade, e.g., Samuel J. Johnson (Historical and Future Eclipses..., London: James Parker and Co., 1896, p.57). O fenómeno é, portanto, particularmente conhecido pelo prestígio da testemunha principal e devido à "peculiar" opinião de Tycho. É um dos eclipses mais enfocados no livro de Kepler e, na conclusão acerca de alguns eclipses do Sol elencados (Corollaria aliquot de Solis eclipsibus), o autor afirma (sem a mínima dúvida) que sempre que um eclipse lançou uma escuridão semelhante à da noite, decerto todo o Sol estava escondido pela Lua: "Quotiescunque eclipsis aliqua Solis de die tenebras nocturnis similes offundit, totum solem à Luna absconditum fuisse, certum est". Fazendo a simulação (programa GUIDE 9.1; projectpluto.com), verifica-se que, em 1560, Coimbra esteve perto da periferia da faixa de totalidade e que fenómeno aí durou ~2 minutos (118 segundos para as coordenadas indicadas na legenda; máx.: 11h 49m 47s). O mais célebre eclipse pré-telescópico "Português" pois foi o mais assiduamente mencionado na literatura. No seu discurso acerca do domínio dos signos sobre as diversas regiões do mundo, o cosmógrafo Manoel de Figueiredo (Chronographia: Reportorio dos tempos..., Lisboa, 1603, fól. 68) descreveu os "efeitos" nefastos de outro eclipse: "...no eclipse do sol que aconteceo em 1598. 17 dias de Março, o qual se fez em 16.graos do signo de pices [Pisces] hum sabbado as nove horas antes do meo dia & comessou seu effeito por septembro do mesmo anno, & vai em tres annos que dura a peste que entam comessou com tantas mortes como temos visto, por onde tem os signos dominio nas terras, & regiões inferiores,& Lisboa principalmente a este signo de pices. & em arvores, plantas, terras, samenteiras..." Houve lapso na impressão do dia (facilmente confirmável nos almanaques da época). Trata-se do eclipse de sábado, 7 de Março de 1598 (data do calendário Gregoriano, entretanto adoptado), Próximo da implementação da correcção do calendário, é muito interessante encontrá-lo datado nos almanaques em ambas as modalidades: juliana e gregoriana. O mesmo eclipse (bem como dois lunares) elencado nos fenómenos para 1598 no Reportorio dos Tempos de Valentim Fernandes. 25 (xxv) de Fevereiro era a data correspondente no calendário Juliano, anterior à correcção Gregoriana (Reportorio dos Tempos..., Lisboa, Germão Galharde, 1552) Foi fenómeno conspícuo (e.g., 0.938 em Lisboa, 0.960 em Braga), apesar da faixa de totalidade não ter percorrido território em Portugal. A informação astronómica está correcta, fenómeno aconteceu no intervalo mencionado, bem como nesse signo e grau (segundo a nossa simulação: longitude 346.6º = 16.6º de Pisces). Parte
do percurso da totalidade do eclipse de 7 de Março de 1598 (GUIDE9.1)
Esquema e descrição do eclipse (André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos) Segunda-feira, 10 de Julho de 1600: faixa de totalidade deste eclipse atravessou o centro do país. Parte
do percurso da totalidade do eclipse de 10 de Julho de 1600 (GUIDE9.1)
André do Avelar também elencou o fenómeno de 10 de Julho de 1600 no seu almanaque. Note-se a curiosa previsão cromática, associada, por correspondência, à natureza dos diversos planetas. A cor branca estava relacionada com Júpiter e a "açafroada" à natureza de Vénus. Este eclipse prognosticava "saude", "boa temperança do ar" e "abundancia". (lib. VI) Este elenco contempla a maioria dos relatos que chegaram até nós nas fontes com maior visibilidade. Note-se que os relatos mais antigos combinam a "visibilidade" dos fenómenos com a "oportunidade", que envolve o diálogo com o momento histórico e social. Por isso, alguns dos mais divulgados relacionam-se com fenómenos astronómicos um pouco menos conspícuos (e.g., observados apenas parcialmente), que não estão na tabela que podemos consultar mais abaixo. Eventualmente verificam-se lapsos nas datas, pois os registos são amiudadamente lavrados muito depois, e.g., Ruy de Pina (1440-1522) escreve acerca dos sucessos de séculos anteriores. A fiabilidade da cronologia abreviada das crónicas é, grosso modo, directamente proporcional à relevância histórica do sucesso ou da personalidade e, por exemplo, muito precisa na relação das datas dos nascimentos e óbitos dos eminentes do reino (rigorosamente preservadas nos registos eclesiásticos, etc.). É expectável que fenómenos paralelos inesperados, como as catástrofes naturais e as "extravagâncias" astronómicas e meteorológicas, estivessem sujeitas a um percurso de transmissão menos rigoroso e eventualmente corrompido. Relação dos eclipses solares pré-telescópios "portucalenses" e "portugueses" anteriormente mencionados (fontes, edições consultadas): 29 de Junho de 1033 (Chronicon Conimbricense, reprod. nos Portugaliae Monumenta Historica [PMH]: Scriptores, Olisipone, MDCCCLVI; Vol.I, Fasc.I, p.4). Confirmado e correctamente descrito; fenómeno anular, parcialmente observado na península. 01 de Julho de 1079 (Chronicon Complutense, in Flórez, España Sagrada..., Tomo XXIII, p.317; PMH: Scriptores, vol.I, Fasc.I, p.4; Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introdução de António Cruz, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968, p.75. Fenómeno confirmado na data relatada, eclipse total. 03 de Junho de 1199 (do acervo conimbricense, reprod. na compilação España Sagrada... de E. Flórez (Tomo XXIII, p.335 [336 na segunda edición]) e nos PMH (Scriptores, vol.I, Fasc.I, p.3)]; Crónica del rei D. Sancho deste nome o primeiro... de Ruy de Pina (transcrição de Miguel Lopes Ferreyra, 1727, pp.49-50), Crónica de Portugal de 1419, [Anón], ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Universidade de Aveiro, 1998, p.103; Chronicas dos reis de Portvgal... de Duarte Nunes de Leão, Lisboa, P. Crasbeeck, 1600, .61). Apesar da replicação dos registos e vivazes descrições, não se verificou qualquer eclipse nesta data. Radica decerto num erro na transcrição da data do "espantoso" eclipse de 1239 AD. 30 de Maio de 1232 (PMH: Scriptores, vol.I, Fasc.I, p. 25, no âmbito da transcr. do acervo de breves composições históricas a que A. Herculano chamou "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra"); Cruz, A. (ed.), Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, Op. cit., 1968, p.98. Não se confirma qualquer fenómeno reconciliável com esta data (todavia, v. data seguinte). 03 de Junho de 1239 (Chronicon Conimbricense in: PMH: Scriptores, vol. I, p.3; Livro das Kalendas do Cabido da Sé de Coimbra, v. Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), Hvmanitas, vol. L (1998), p.435; segundo Coutinho, ibid., nota 15, as "Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra" (PHM, Op. cit., p.25) expendem notícia deste acontecimento com "ligeira alteração" na data; v. eclipse de 1239). Confirmado pela simulação retrospectiva e profusamente documentado por registos coetâneos, nomeadamente monásticos, ao longo do caminho da totalidade (Stephenson, F. R., Historical Eclipses and Earth's Rotation, Cambridge University Press, 1997, p.397 et seq.). 14 de Maio de 1333 (Do acervo conimbricense, registado no códice conhecido como Livro da Noa, reprod. no España Sagrada... de E. Flórez, (segunda edición, Tomo XXIII, p.344). Confirmado, anular no extremo norte de Espanha e parcial em Portugal. 16 de Maio de 1379 (Chronica de El-Rei D. Fernando, de Fernão Lopes, cap. CX; Luciano Cordeiro (dir.), "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895, p.182). Confirma-se eclipse total no sudoeste peninsular. 19 de Agosto de 1384 (Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, cap. CXXXVIII; Cf. Crónica de D. João I : Primeira Parte, edição crítica de Teresa Amado, Imprensa Nacional, 2017; "Bibliotheca de Classicos Portuguezes", vol.III, p.9). Não confirmado nesse dia preciso, Trata-se, decerto, do fenómeno anular conspícuo do dia 17 desse mês (parcial em Lisboa, magn. 0.880). 14 de Agosto de 1433 (Chronica d'El-Rei D. Duarte, de Ruy de Pina; Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.75). Eclipse assinalaria o decesso de D. João I. Não confirmado, provável "apropriação" de um fenómeno próximo ou expediente literário. Vale o mesmo para o suposto eclipse do dia do falecimento de Dª Filipa de Lencastre. 09 de Setembro de 1438 (Chronica d'El-Rei D. Duarte, de Ruy de Pina, cap. XLIII; Chronica d'El-Rei D. Duarte, estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, "Biblioteca Lusitana", Porto, Renascença Portuguesa, 1914, p.205; diversos cronologistas e eclipsógrafos, de Calvisius a Chambers). Trata-se, decerto, do eclipse anular de 19 de Setembro, somente parcial no reino mas com magnitude (máxima) de 0.796 em Lisboa. 29 de Julho de 1478 (Obituário do Cabido da Sé do Porto (ADP, Ms. 1574, fol. 54), v. Barroca, Mário Jorge, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), vol. I, [col. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas], Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2000, pág. 74, n.34). Confirmado sem ambages, eclipse total no Porto. 23 de Janeiro de 1525 (Luís de Camões, Sonetos [Fixação do texto, paráfrases explicativas e notas de Maria de Lourdes Saraiva], Publicações Europa-América, 1990, p.243; Saa, Mário, Memórias Astrológicas de Luís de Camões, Edições do Templo, Lisboa, 1978, cap. II (ed. orig.: "As Memórias Astrológicas de Camões..." Emprêsa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1940); Opus Ephemeridium sive Almanach perpetuu Abraham zacuti... (Venetiis: per Petrum Liechtenstein Coloniensem, 1502). Eclipse "literário" evocado retrospectivamente pelo vate. Anular, observável (enquanto fenómeno parcial) em Lisboa com magnitude 0.841. 21 de Agosto de 1560 (Clavius, In sphaeram Ioannis de Sacro Bosco Commentarius (p.508 da edição expandida de 1593), transcr. J. Kepler: Astronomiæ Pars Optica... (Frankfurt, 1604), CAPVT VIII: "De umbra Lunae et Tenebris diurnis"; Tycho Brahe, Historia Coelestis : ex libris commentariis manuscriptis..., lib. LXXII; Augsburg, 1666). Clavius comete um lapso no ano que menciona (1559) mas todas as referências paralelas confirmam o eclipse total a que assistiu em Coimbra. 07 de Março de 1598 (Figueiredo, Chronographia: Reportorio dos tempos, no qual se contem VI partes, scilicet dos tempos..., "Empresso em Lisboa por Jorge Rodriguez a custa de Pero Ramires. Anno de 1603", fól. 68. Esta fonte é somente um exemplo, aqui cit. porque perpetua uma leitura que podemos considerar astrológica. Por esta altura, a previsão destes fenómenos já era banal nos almanaques impressos. É relato respaldado em informação astronómica correcta desse jaez. O próprio tratado inclui, no final, um almanaque ("lunario") até ao ano de 1630. 10 de Julho de 1600 (Mais um eclipse antecipado nos reportorios e almanaques coetâneos e o último conspícuo no séc. XVI.) Principais referências do âmbito cronístico: Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introd. António Cruz, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968 Chronica de El-Rei D. Fernando [Fernão Lopes], "Bibliotheca de Classicos Portuguezes" (Luciano Cordeiro (dir.)), Lisboa, Escriptorio, vol.II, 1895 Chronica de El-Rei D. João I [Fernão Lopes], "Bibliotheca de Classicos Portuguezes" (Luciano Cordeiro (dir.)), Lisboa, Escriptorio, vol.III, 1897 Chronica d'El-Rei D. Duarte [Rui de Pina], estudo crítico, notas e glossário de Alfredo Coelho de Magalhães, Biblioteca Lusitana, Porto, Renascença Portuguesa, 1914 Chronicas dos reis de Portvgal, reformadas pelo licenciado Dvarte Nvnez do Lião... [Duarte Nunes de Leão], Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1600 Crónica de D. Fernando [Fernão Lopes], ed. crítica de Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1975 Crónica de D. João I : Primeira Parte [Fernão Lopes], edição crítica de Teresa Amado (c/ colaboração de Ariadne Nunes, Carlota Pimenta e Mário Costa), Centro de Estudos Comparatistas, Imprensa Nacional, 2017 Crónicas de D. Sancho I, de D. Afonso II, de D. Afonso III, de D. Dinis, de D. Afonso IV, de D. Duarte, de D. Afonso V e de D. João II [Rui de Pina], titulação e remissão de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1977 Crónica de Portugal de 1419 [Anón.], ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998 Livro da Noa (transcrição de D. Antonio Caetano de Sousa, Provas da Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Lisboa Occidental, Officina Sylviana da Academia Real, M.DCC.XXXIX; Tomo I, Livro III, Num. 10., 375 et seq.) Portugaliae Monumenta Historica – A Saecula Octavo post Christum usque ad quintumdecim: Scriptores, Volumen I, Fasciculum I, Olisipone, Typis Academicis, MDCCCLVI; Academia das Ciências de Lisboa, 1856). [Secção Scriptores ("autores"), composta por três fasciculi, foi compilada sob a direcção de Alexandre Herculano (J. da Silva Mendes Leal também responsável pela estruturação das compilações)] Coutinho, José Eduardo Reis, Introdução Geral ao Líber Anniversariorum Ecclesiae Cathedralis Colimbriensis (Livro das Kalendas), "Hvmanitas", vol. L (1998), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra Melo, Arnaldo F. de Ataíde e, Inventário dos Códices Alcobacenses, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1930-32.
Detalhe de uma das folhas (Blatt nº132) do monumental Canon der Finsternisse ("Cânone dos Eclipses") de Theodor von Oppolzer (Akademie der Wissenschaften, Kaiserlich-Königlichen Hof-und Staatsdruckerei, Wien, 1877), com cerca de 13000 fenómenos (solares e lunares) calculados. Infelizmente, os métodos aproximados usados por von Oppolzer na construção dos seus mapas representavam de modo impreciso as curvas, pois somente calculavam os pontos inicial, médio e final. (vide e.g., Todd, M. L., Total Eclipses of the Sun, Boston, Roberts Brothers, 1894, p.199, n.15; Mitchell, S. A., Eclipses of the Sun, Columbia University Press, 1935 (1923) p.36). Mas incluía tabelas para extrapolar informação. Foi reeditado pela Dover em 1962 ("Unabridged and corrected republication of the German original") por Owen Gingerich. Todavia, o Canon também não tomava suficientemente em consideração a variabilidade da rotação da Terra. Historiografia Recuando pelo menos a Leovitius (Cyprian Karásek), 1514/1524?-1574, Tycho ou Kepler, a interpretação dos relatos (e a historiografia da mesma) constitui, por si, um estudo muito interessante. Antigas listagens e/ou relatos de supostos eclipses históricos podem ser encontrados na seguinte bibliografia muito resumida, grosseiramente organizada por ordem cronológica (obras anteriores ao início do século passado): Ricciolus (Giovanni B. Riccioli), Almagestum Novum, Bologna, 1651 Johannes Kepler, Astronomies Pars Optica..., Frankfurt, 1604 Tycho Brahe, Historia Coelestis..., Augsburg, Simonem Utzschneiderum, 1666 (miscelânea de relatos e observações editada e impressa por Albert Curtz décadas após o decesso de Brahe) Sethus Calvisius (Seth Kalwitz), Opus chronologicum ex autoritate s. scripturae ad motum luminarium coelestium contextum, Leipzig, 1605 (consultada a 4ª edição: Opus chronologicum ubi Tempus Astronomicum..., Editio Quarta, Francofurti ad Moenum & Embdae, Anthonius Hummius, MDCL) Nicolaas Struyck, Inleiding tot de algemeene geographie, benevens eenige sterrekundige en andere verhandelingen ["Introdução à geografia geral, bem como alguns tratados astronómicos"], Amsterdam, Isaak Tirion, 1740 James Ferguson, Astronomy Explained upon Sir Isaac Newton's Principles, 2nd ed., pp. 167-79. London, 1757 (baseado nos catálogos de Struyck, Riccioli et al.) Nicolas V. de Saint-Allais (ed.), L'Art de verifier les Dates, 1818-9 (1750); listas de eclipses por Alexandre Guy Pingré Mabel L. Todd, Total Eclipses of the Sun, Boston, 1894 Samuel J. Johnson, Historical and Future Eclipses with notes on Planets, Double Stars, and other Celestial Matters, London: James Parker and Co., 1896 (edição pretérita com título Eclipses, Past and Future..., 1874) George F. Chambers, Story of Eclipses, London, George Newnes, 1899 (teve diversas reedições) Também interessantes: o artigo de G.B. Airy: On the Eclipse of Agathocles, the Eclipse at Larissa, and the Eclipse of Thales (Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, vol. 17, Issue 8, June 1857, pp. 243–244) e os contributos de John Russell Hind (1823-1895). A crença nas valências cronológicas fez com que alguns destes autores "ajustassem" cronologias estabelecidas, raramente com o respaldo necessário. A exegese dos relatos tornou-se gradualmente mais cautelosa e exigente. Nos trabalhos acima, encontramos um amplo elenco de relatos de fenómenos célebres e supostamente confirmados. Alguns vão recorrendo, consoante a metodologia crítica em presença e a dinâmica intertextual. Primeiro os clássicos, os bíblicos e os medievais. Mais tarde, com Gaubil e outros jesuítas, chegam os extremo-orientais, com datações por vezes prodigiosas. Depois o contingente mesopotâmico entretanto desvelado nas placas cuneiformes. Nos autores do século XIX encontramos, amiudadamente, um eclipse observado na China Antiga na constelação/asterismo Fang ou o famigerado episódio de Ho e Hi (ou Ho e Hsi). Da Bíblia, a profecia de Amos (VIII, 9) e uma duvidosa referência em Isaías, XIII, 10. Assistiu-se entretanto ao início da Assiriologia (com o estudo e tradução dos registos cuneiformes), com referências mais precisas, como a que respeita ao eclipse de Nínive em 783 a.C. Os registos dos eclipses lunares do Almagesto mereciam destaque pela antiguidade e proveniência. Os dez mais antigos eclipses lunares descritos no Almagesto são referidos como tendo sido observados na Babilónia (Steele, J., Observation and Predictions of Eclipse Times by Early Astronomers, (Archimedes, vol. 4), Kluwer Academic Publishers, 2000, p.93). O mais antigo possui data equivalente a 19 de Março de 720 a.C. (Toomer (trans.), Ptolemy's Almagest, 1984, p.191). Entretanto, levantou perplexidade (pelo menos desde Tycho) o relato bíblico no 2º Livro de Reis, 20, 10-11, envolvendo Ezequias e um "milagre" com a sombra do relógio de sol de Acaz (Ahaz), que retrocedeu 10 graus, "atrasando o tempo". Todavia, não parece haver qualquer relação com eclipses. Sem demoras, os historiadores iniciam o desenrolar dos episódios clássicos incluindo o de Tales, o da captura de Larissa (Xenofonte, Anabasis, III, 4), o do exército de Xerxes em Sardes (Heródoto, VII, 37), os relatados por Tucídides na sua História da Guerra do Peloponeso (como o fenómeno supostamente "previsto" por Anaxágoras no primeiro ano das hostilidades, em Atenas, 431 a.C.) ou o eclipse lunar associado ao supersticioso Nícias no cerco de Siracusa (augúrio que determinou uma delonga na retirada e um desastroso resultado para este comandante e restante contingente ateniense). Em contraste, Péricles, na biografia dele lavrada nas Vidas Paralelas de Plutarco (XXXV, 1), mostrou presença de espírito para acalmar os seus subordinados embarcados numa frota prestes a zarpar, mostrando que, tal como a sua capa escondia o Sol (aqui tapando os olhos do aterrorizado capitão da sua armada), assim acontecia num eclipse, somente numa escala maior. Ainda podemos referir o eclipse de 310 a.C., quando Agátocles de Siracusa supostamente rompeu o bloqueio naval imposto pelos Cartagineses e, ao abrigo da escuridão, escapou e atacou território inimigo no Norte de África (vide e.g., Diod. Sículo, Bibl. Hist., lib. xx., cap. I), o de Pelópidas em Tebas, o de Arbela, supostamente antecedendo a decisiva batalha (conhecida como de Arbela ou Gaugamela) com a vitória de Alexandre Magno, o fenómeno lunar de Pidna (Pydna) na Macedónia (na vitória dos Romanos), que foi, segundo Tito Lívio, previsto pelo tribuno Sulpício Galo (Sulpicius Gallus), o que marcou a travessia do Rubicão por César (Dião Cássio, lib. XLI) ou o do cruel Herodes, relatado por Flávio Josefo (Ant. Jud., 17.6.4). Entre muitos outros, que se estendem pela Idade Média e envolvem a morte do Imperador Constantino, a chegada de Alarico às imediações de Roma, outro no ano da Hégira (advento do Islão), mais um no ano em que Saladino conquistou Jerusalém aos Cruzados de Guy de Lusignan (Batalha de Hattin, 1187), o eclipse solar "Português" de 19 de Setembro de 1438 aquando (i.e. quase coincidente com a data) da morte de D. Duarte (v. supra) ou o célebre "Eclipse de Colombo". São centenas de relatos. Alguns relacionam eclipses e terramotos, uma ideia que persistiu demasiado tempo. Eclipses e terramotos. (André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos..., 1602, L.III, cap. 40) Em resumo, é tarefa complexa interpretar muitos dos relatos, particularmente os "literários", os isolados e os tecnicamente lacónicos ou incompletos. Podemos estar perante assimilações de fenómenos não relacionados, "colagens", ficções literárias, etc. Problemas recorrentes residem nos insuficientes detalhes, registos não coevos ou indirectos, transferências, interpolações, paráfrases, anacronismos, etc. Outros relatos, pelo contrário, constituem insubstituível ferramenta cronológica. Muitos continuam a fascinar e a ocupar a erudição de especialistas (astrónomos, arquivistas e historiadores). Por exemplo, um paper recente de Colin Humphreys e Graeme Waddington argumenta que a célebre passagem bíblica em que Josué orou e o Sol parou (Josué, 10:12–13) pode ser explicada pelo eclipse anular de 30 de Outubro de 1207 a.C. (Astronomy & Geophysics, vol. 58, Issue 5, October 2017, pp. 5.39–5.42). Eclipsis solis, xilogravura (Sphaera mundi, edição de Boneto
Locatelli (Bonetus Locatellus)
para Octavianus Scotus,
Veneza, 1490)
Astrologia "De longas obseruaçoes vieram os Astrologos aueriguar que os eclipses, & cometas significauam seus efeitos em diversas partes do mundo, conforme ao signo em que se faziam, ou appareciam, & e assi forão attribuindo a cada hum dos doze signos do Zodiaco, suas prouincias, & cidades, segundo acharam succedr os efeitos..." (Avelar, Op. cit., Tractado sexto, 16) A preocupação com os eclipses estava, no passado, principalmente relacionada com a suposição de que estes, como as conjunções e oposições da Lua, eram determinantes das condições climáticas, atmosféricas, até de alguns eventos históricos, Como curiosidade, acreditava-se que os minerais conhecidos como glossopetra ("lingua de pedra", na realidade restos fósseis, nomeadamente dentes em forma de cúspide) caíam do céu durante os eclipses da Lua ("deficiente luna"): "Glossopetra, linguae similis humanae, in terra non nasci dicitur, sed deficiente luna caelo decidere, selenomantiae necessaria." (Plinius, Nat. Hist., XXXVII, 59). Outra interpretação muito disseminada prolongava os efeitos dos eclipses solares por tantos anos quantas as horas que o fenómeno demorava; a dos lunares por tantos meses quantas as horas: "...and the writers affirmed, that the effects of an Eclipse of the Sun continued as many years as the Eclipse lasted hours; and that of the Moon as many months." (James Ferguson, Astronomy Explained upon Sir Isaac Newton's Principles, 9th ed., 1794, p.273). A significação dos eclipses estava associada às coisas mais vastas, de ordem geral, cidades e nações: “... the next task (is) to deal briefly with the procedure of the predictions, and first with those concerned with general conditions of countries and cities. The method of inquiry will be as follows: The first and most potent cause of such events lies in the conjunctions and oppositions of the sun and moon at eclipse and the movements of stars at that time.” (Tetrabiblos, II, 4; trans. Robbins (1940, p.161)). Zacuto, num texto sobre a teoria da história na perspectiva Judaica*, já redigido no Norte de África após a expulsão, revela a convicção de que os eclipses e as conjunções planetárias desvelariam astrologicamente a "Salvação de Israel" e a vinda do Messias, que previa para 1503/4 (Chabás and Goldstein, "Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print", Transactions of the American Philosophical Society, New Series, Vol. 90, No. 2, 2000, p.15). * Goldstein, B. R. 1998. "Abraham Zacut and the Medieval Hebrew Astronomical Tradition", Journal for the History of Astronomy, 29:177-186; Beit-Arie, M., and M. Idel. 1979 (5739 A.M.). "Treatise on Eschatology and Astrology by R. Abraham Zacut," Kiryat Sefer, 54:174-194 [em Hebraico] Contributos científicos Os filósofos da Grécia Antiga utilizaram os eclipses e as ocultações para delinear a primeira concepção de um universo tridimensional. Pelos eclipses lunares, Aristóteles compreendeu a curvatura, logo a esfericidade, da Terra. Como Frank Close refere (Eclipses, Op. cit., 3.1) esta conclusão é brilhante pois demonstra 1) a compreensão de que a luz viaja em linha recta; 2) de que a Lua funciona como um "écran" sólido; 3) de que a sombra é efectivamente a do nosso planeta. Ptolomeu descreveu um método utilizado por Hiparco: se no ápice de um eclipse (lunar) a Lua se encontra diametralmente oposta ao Sol, então podemos determinar a longitude solar a partir da sua declinação (medindo a altura solar ao meio-dia); consequentemente, a distância de uma qualquer estrela à Lua em pleno eclipse permite conhecer a sua "longitude" (i.e. a sua distância relativamente ao equinócio vernal). Foi o método utilizado para a descoberta e cálculo do valor da Precessão (comparando com estimativas de longitudes estelares feitas em gerações anteriores por Timocharis (320–260 a.C.) e Aristillus (~280 a.C.). Em 130 a.C., o mesmo Hiparco utilizou um eclipse solar para estimar a distância da Lua (utilizando trigonometria, a partir de observações simultâneas do mesmo fenómeno a partir de dois locais diferentes cuja distância entre si era previamente conhecida). O astrónomo e matemático já sabia reconhecia a utilidade da observação dos eclipses para determinar a diferença de longitude (distância leste-oeste) entre dois pontos geográficos, utilizando medições comparadas (Estrabão, Geog. I, 1, 12; Loeb). Os astrónomos Árabes serão pioneiros na implementação desta técnica, logisticamente exigente, que será utilizada na Europa até ao século XVIII. O próprio Ptolomeu, segundo a anotação de G. J, Toomer, teria apenas à disposição um único registo de observações simultâneas em lugares suficientemente separados: a do fenómeno de 20 de Setembro de 330 a.C., observado em Arbela e Cartago (Ptolemy's Almagest: Translated and Annotated, Duckworth, 1984, p.75). Debruçou-se, no seu importante tratado, sobre dezanove eclipses lunares (v. relação em Britton J. P., Models and Precision: The Quality of Ptolemy's Observations and Parameters, Garland Publishing, 1992, p.52). O alexandrino explicou que dez destes foram observados na Babilónia, cinco por astrónomos gregos anteriores à sua época (em Alexandria e Rodes), e outros quatro por si em Alexandria (J. M. Steele, Ptolemy, Babylon and the rotation of the Earth, Astronomy & Geophysics, vol. 46, issue 5, Oct. 2005, 5.11–5.15). Através dessas observações estudará (comparativamente) os parâmetros e movimentos lunares, incluindo as principais 'anomalias' do seu movimento. O movimento da Lua é extremamente complexo, Cedo se reconheceu a não uniformidade do movimento no seu epiciclo. O problema é evidente até numa sequência de observações superficiais: o seu movimento em longitude é irregular, com uma velocidade angular que pode variar entre 10º e 14º por dia (Olaf Pedersen (Alexander Jones, ed.), A Survey of the Almagest: Revised Edition, Springer, 2008, p.160). Pode acontecer em qualquer ponto da órbita. Esta irregularidade resulta, na realidade, da forma elíptica da órbita da Lua, com a Terra num dos focos. Hiparco estudou esta "anomalia" e Ptolomeu procurou melhorar a solução, A irregularidade obriga à definição de um novo período: o mês anomalístico, quando a Lua retorna à mesma velocidade (a variação em latitude da órbita lunar determina este período específico, no qual a Lua retorna à mesma latitude, i.e. ao mesmo nodo). A teoria lunar no Livro IV do Almagesto respalda-se no estudo de 15 eclipses espalhados por um período de quase 900 anos, o primeiro dos quais foi observado na Babilónia em 721 a.C. (ibid., p.169). Ptolomeu verifica os parâmetros de cada um e compara com as mais "fiáveis" posições do Sol, pois qualquer eclipse envolve sempre ambos os luminares. A Teoria Lunar de Ptolomeu responde às insuficiências da de Hiparco e, nesse processo, desvela e acautela uma segunda "anomalia" (que será muito mais tarde chamada evecção, que hoje sabemos dever-se à atracção solar) sendo a maior irregularidade periódica. Todavia, conduziu, por uma consequência lógica da solução geométrica encontrada (obviamente a combinação de movimentos circulares com diferentes raios e centros, como foi feito até à época de Newton e Kepler), ao desfasamento entre a variação expectável no diâmetro aparente da Lua (devido às diferentes distâncias do seu movimento no seu suposto epiciclo) e a que se verificava (quase diminuta) na realidade observacional. Será objecto de crítica por parte de ulteriores astrónomos. Uma terceira anomalia (variação) passará despercebida a Ptolomeu. (Vide Dreyer, J. L. E., A History of Astronomy from Thales to Kepler, Dover Books, 1953 (1906), p.193 et seq.) Ptolomeu recorreu quase sempre, por comodidade, a uma contagem dos anos baseada no início do reinado babilónico de Nabu-nasir: a chamada "Era de Nabonassar" (nesta, o 1º dia do 1º mês (Thoth) corresponde a 26 de Fevereiro de 747 a.C.; ou 746 a.C. se utilizarmos, segundo o critério astronómico, um "ano zero"). Como o próprio astrónomo escreve, a partir dessa época há, no geral, registos ininterruptos de observações: "For that is the era beginning from which the ancient observations are, on the whole, preserved down to our own time." (Toomer, p.166). Quando se refere a observações noutros sistemas, elenca-os. Embora as datas originais dos exempla mesopotâmicos fossem registadas no calendário lunissolar de origem, Ptolomeu converte-as para os meses do eficiente calendário Egípcio, tendo o cuidado de utilizar datas "duplas" para identificar os dias (somente necessário para as observações nocturnas), e.g. "Pachon 17/18", lit. "do décimo sétimo para o décimo oitavo" (Toomer, p.12), pois embora o dia começasse ao pôr do Sol para os povos da Mesopotâmia, no Egipto começava convencionalmente ao nascer do Sol do dia seguinte (tendo o astrónomo escolhido o meio-dia como ponto de partida convencional). A Descrição Científica e os Fenómenos Observados (com destaque para a Corona) A descrição propriamente científica dos eclipses totais do Sol e o eventual estudo dos relatos pretéritos parece começar apenas com Johannes Kepler e Giovanni D. Cassini (eclipse de 1706). Os primeiros registos detalhados da era telescópica devem-se a astrónomos como Don Antonio de Ulloa, militar, naturalista e escritor Espanhol (Observación en el mar de un eclipse de sol (1778)), José Joaquín de Ferrer (astrónomo Basco que foi eleito membro da American Philosophical Society) e que, no fenómeno total de 1806 observando em Kinderhook (Nova Iorque), cunhou o termo "corona". e Francis Baily, que observou o fenómeno anular de 15 de Maio de 1836 na Escócia (mencionando pela primeira vez o efeito de luz que ficará conhecido como "Baily's Beads"), bem como o total de 8 de Julho de 1842, observado em Pavia (Memoirs of the Royal Astronomical Society, vol.15, 1846). Muito antes, Firmicus Maternus (séc. IV) parece ter sido o primeiro autor a referir incontestavelmente as protuberâncias solares, no eclipse de 334 A.D. na Sicília. Kepler (que estudou os testemunhos) referir-se-á a estas como "chamas vermelhas", designação utilizada até uma época recente. A célebre corona parece estranhamente ausente da esmagadora maioria das antigas descrições. A primeira referência inequívoca e datável surge numa crónica de Constantinopla (Leonis Deaconis Historiae, lib. IV, cap. 11; Niebuhr (1828), p.72; orig. em Grego e vertido em Latim pelo ed.), descrevendo um eclipse ocorrido em Dezembro de 968 A.D.: "...um certo brilho opaco e fraco, como uma faixa estreita brilhando em torno das partes extremas do limbo do disco." [trad. nossa] Mas verifica-se uma breve referência literária pretérita na obra De facie quae in orbe lunae apparet ("Sobre a face visível no orbe da Lua") de Plutarco (Cherniss and Helmbold (eds., trans.), Moralia, vol. XII, Loeb, 1957; 932-B): "Even if the moon, however, does sometimes cover the sun entirely, the eclipse does not have duration or extension; but a kind of light is visible about the rim which keeps the shadow from being profound and absolute." Halley descreverá a notável e diáfana característica (que se tornará a mais apetecida nas ulteriores observações), como “a luminous ring of pale whiteness”. Pierre Guillermier e Serge KoUThmy (Eclipses Totales: Histoire, Decouvertes, Observations, Masson, 1998) referem como o sábio Inglês supunha que que esse "halo" seria resultante de uma suposta "atmosfera lunar". Segundo Arago, o astrónomo Maraldi, em 1724, verificou que não era concêntrico relativamente à Lua e conjecturou que seria somente fenómeno de difracção (Astronomie Populaire, vol. III, p.594). O século XIX, em particular a segunda metade, com o seu desenvolvimento científico-tecnológico (também o exacerbar dos nacionalismos) assistiu a uma autêntica "corrida" aos eclipses e às descobertas que estes poderiam proporcionar, no estudo da física e química do Sol, recorrendo à fotografia e à fundamental espectroscopia (que está na origem da Astrofísica). É a partir de 1851 que as verdadeiras 'expedições' se começam a realizar assiduamente, percorrendo o mundo em busca de minutos de umbra: únicas circunstâncias nas quais, não ofuscados pelo intenso brilho solar, seria possível estudar a ténue corona, as protuberâncias e filamentos, em que se procuravam planetas intra-mercuriais (como veremos adiante) ou até eventuais cometas de outro modo invisíveis. O coronógrafo, instrumento que permite o estudo sistemático das mencionadas características sem a necessidade de um eclipse total, somente foi introduzido por Bernard Lyot, no Observatório de Meudon, em 1931 (pode ser interessante ler os comentários, cépticos, de Arago acerca de uma experiência de La Hire e Delisle, em 1715, que nos parece precursora; ibid., vol. III, pp.603 et seq.). O eclipse de 1860 constituiu um ponto de viragem, sendo o primeiro no qual a fotografia teve um papel relevante. Há um antecedente em 8 de Julho 1842: daguerreótipo feito por Alessandro Majocchi que demorou 2 minutos a captar e somente registou a fase parcial, sem a corona. Todavia, a mais antiga imagem cientificamente relevante de um eclipse total do Sol foi o daguerreótipo (com exposição de 84 segundos) obtido por Julius Berkowski no Observatório Real de Königsberg (então na Prússia) em 28 de Julho de 1851. A partir do eclipse de 18 de julho de 1860, a fotografia torna-se uma tecnologia absolutamente incontornável. Warren de la Rue e Angelo Secchi utilizaram placas de colódio, que permitiam exposições mais curtas e eficientes. Eram revestidas de uma espécie de verniz que era aplicado líquido a placas fotográficas de vidro, sensibilizado com nitrato de prata; chamado "colódio húmido" porque a placa deveria permanecer húmida durante o procedimento. Foi no eclipse de 1860, em Miranda de Ebro, Espanha, que foram obtidas as primeiras fotografias da corona, por de la Rue. Em 1870, aquando de mais um eclipse total, os peritos ainda discutiam se esta (na realidade um envelope luminoso de plasma, a parte exterior da atmosfera solar) seria inteiramente solar (Charles A. Young), se se devia à atmosfera terrestre (Norman Lockyer, o fundador da revista Nature em 1869) ou se era efeito de ambas (Joseph Winlock).. O termo específico ("corona") havia sido utilizado pela primeira vez, como mencionao, pelo astrónomo José Joaquín de Ferrer. Todavia, a sua natureza continuava a desafiar os cientistas. Em 1891, na Royal Institution em Londres, Arthur Schuster elencava as alternativas (cit. por Zirker, Op. cit., pp.19-20): It consists of matter either (1) forming a regular atmosphere around the Sun, or (2) matter projected from the Sun, or (3) matter falling into the Sun, or finally (4) matter circulating around the Sun with planetary velocity. We may at once reject the first and fourth, for it may be proved that the Sun could have no regular atmosphere to the extent indicated by the outlines of the corona, and spectroscopic results exclude the hypothesis that the bulk of its matter revolves with planetary velocity, though probably there is some meteoric material which does revolve around the Sun. Mabel Todd (Op. cit., 1894, pp.73-4), baseada em Huggins (Proceedings of the Royal Society, xxxix. (1885), 120.) refere a diversidade de teorias em presença: "...that the corona is a gaseous atmosphere carried round with the Sun,— that it is gaseous matter ejected from the Sun or received by it, in motion from the forces of ejection, gravity, solar rotation, or perhaps repulsion of some kind, — that, like the ring of Saturn, it consists of swarms of meteoric particles too swiftly revolving to fall into the Sun, — or again, that it is due to the cease- less downfall of meteoric matter, and the debris of disintegrating comets.". Também são aí referidas a teoria mecânica de Schaeberle e a magnética de Bigelow. As hipóteses "lunar" e "atmosférica" só foram definitivamente abandonadas quando placas de um mesmo eclipse obtidas em diferentes localizações comprovaram que a corona(tal como as protuberâncias) não "seguia" a Lua e muito menos seria um efeito da nossa atmosfera. Era um fenómeno solar, como provado verificado por Deslandres nas observações do eclipse de 1893 O Coronium e o Hélio Em 18 de Agosto de 1868, um eclipse total avançou pela Índia e Malásia. O espectroscópio foi utilizado pela primeira vez nestas circunstâncias. Na vanguarda da espectroscopia estiveram James Tennant, Norman Pogson, Georges Rayet, Jules Janssen e Norman Lockyer, entre outros. Doravante era possível identificar os elementos químicos e até a temperatura e densidade da fonte emissora. A análise do espectro solar levou à ponderação da existência de um novo elemento químico, com uma emissão peculiar e "desconhecida" (associada à risca de emissão nos 530,3 nm no espectro), a que se chamou "Coronium". Somente nos anos 30 do século passado (a partir das investigações do alemão Walter Grotrian e das novae pelo sueco Bengt Edlen) é que se compreendeu que essa assinatura espectral resultava, em parte, das elevadíssimas temperaturas e consequentes alterações verificadas em elementos conhecidos, nomeadamente o átomo de ferro altamente ionizado (Fe13+) na zona da coroa solar (incidentalmente, também um novo "elemento" inexistente, o nebulium, foi ponderado como resposta a anomalias no espectro das nebulosas). Pierre Jules Janssen foi o primeiro a usar um espectroscópio "no terreno" durante o mencionado eclipse (que observou na Índia). Percebeu que uma linha amarela do espectro não coincidia exactamente com as posições das linhas (D1 e D2) que denunciam a presença do Sódio. Designou-a D3 e o gás até então desconhecido foi baptizado como Helium (Hélio). O já mencionado N. Lockyer descobriu-o simultaneamente de modo independente. Esse elemento foi, décadas mais tarde (1895), também encontrado na Terra e isolado em laboratório. Proeminências Quanto às proeminências solares, enormes e brilhantes estruturas que se destacam da superfície do Sol, geralmente em forma de laço, pareciam iguais observadas a partir de diferentes locais (i.e. através de diferentes zonas da atmosfera). Verificou-se que o espectro apresentava linha de hidrogénio, logo eram de natureza gasosa. Também se concluiu que eram fenómenos que aconteciam no próprio Sol. Vulcano Os eclipses solares também estiveram, no final do séc. XIX, ligados à busca do hipotético planeta "Vulcano" (ou de outros eventuais planetas intra-mercuriais), segundo a teoria de Urbain Le Verrier (o matemático que, estudando as perturbações da órbira de Úrano, determinou os parâmetros da órbita de Neptuno e indicou onde este novo planeta seria encontrado). O Francês verificou (em publicação datada de 1859) que erros nas posições assumidas no periélio e a lenta precessão na órbita de Mercúrio em torno do Sol era inexplicável segundo a mecânica newtoniana. Deveria pois existir um planeta interior responsável por esse efeito. Após a sua "localização" por um tal Edmond Lescarbault (médico de província e astrónomo amador), "validada" por Le Verrier mas sempre interpretada com enorme cepticismo por reputados astrónomos como E. Liais ou C. Flammarion, alguns observadores (e.g., James Craig Watson, Lewis Swift) ulteriormente confirmaram ter observado o esquivo planeta (todavia, observações eram discordantes entre si e, para mais, de múltiplos objectos, não apenas do suposto Vulcano). De facto, não há qualquer planeta intra-mercurial. A explicação científica para as perturbações orbitais de Mercúrio, insuspeitada na época, surgiu apenas quando Albert Einstein publicou a sua Teoria Geral da Relatividade em 1915 e está relacionada com a poderosa interferência do campo gravitacional do Sol. Terramotos No início do século XX, ainda se ponderava seriamente uma relação entre eclipses e terramotos, doravante numa correlação estatística que estaria "relativamente estabelecida", vide G. F. Chambers, The Story of Eclipses, D. Appleton and Company, 1912, p.65, onde se refere uma investigação (terramotos registados na Califórnia entre 1850 e 1888) de F. K. Ginzel (Die Californischen Erdbeben 1850-1888 in ihrer Beziehung zu den Finsternissen, 255-309; in: Meyer, M. W. (Redacteur), "Himmel und Erde", (vol.II), H. Paetel, 1890). A Rotação da Terra e a Duração do Dia A informação proveniente da observação dos eclipses foi (e ainda é) também extremamente útil no estudo da rotação da Terra (variações de longo prazo). As variações das velocidades orbitais (e.g., o "efeito de maré" dos oceanos) tem como consequência abrandar a rotação da Terra, determinando um aumento da duração do dia. A rotação não é constante (∆T é a diferença entre o "Tempo Terrestre" e o Tempo Universal, UT), existindo todavia outros factores complexos. O efeito da fricção é inferido a partir do desvio em longitude dos percursos dos eclipses e "calibrado" a partir de registos do passado. Existem evidências de factores de aceleração que contrabalançam o referido efeito (ou seja, existem factores que aceleram, em vez de travar, a rotação terrestre, talvez relacionados com o nível os oceanos, com a contracção do planeta ou com a expansão do seu núcleo). Quanto aos testemunhos do passado, Stephenson afirma: "Ancient and medieval astronomers were in the habit of timing the various phases of eclipses to improve the accuracy of future prediction. Often astrology provided the ultimate impetus, although medieval Arab astronomers sometimes timed lunar eclipses to determine geographic longitude. Historians and annalists (especially in Europe) usually noted eclipses because of their spectacular nature." ("Historical eclipses and Earth's rotation" (Harold Jeffreys Lecture 2002), Astronomy & Geophysics, Volume 44, Issue 2, April 2003, Pages 2.22–2.27; p.2.24). Acrescenta que tendo sido quase todos registados por cronistas, a informação que encerram raramente é quantitativa. Tomando apenas em consideração a desaceleração promovida na rotação da Terra pelo efeito de maré, o eclipse solar total de 136 a.C., cuidadosamente registado, devia ter acontecido com uma deslocação de 22º para Leste da Babilónia. Existem, pois, outros factores que tendem a acelerar, em vez de desacelerar, a rotação da Terra. O mapa representa o caminho (verificado) do eclipse de 136 a.C., linha 1, que passou na Babilónia (2); a linha da esquerda (3), desfasada cerca de 50 graus para Oeste representa o caminho caso a rotação da Terra fosse constante, uniforme (∆T=0); a da direita (4), deslocada 22 graus para Leste, o caminho que seria expectável tomando em conta apenas o aumento da duração do dia devido ao efeito de maré. (Retirado de Vanin, Gabriele, Les Eclipses: Comment les Observer et les Comprendre, Paris, Éditions Grund, 1999; orig. Arnoldo Mondadore Editore, Milan, 1997) Como se pode ler no artigo Ocean Tides and the Earth's Rotation [Global Geophysical Fluid Center], as marés afectam a rotação do nosso planeta de duas maneiras contrastantes: uma e á fricção de maré [pela acção do torque de maré], determinando uma variação secular extremamente lenta; outra, determinada pelo contínuo movimento das marés, produz variações pequenas mas muito rápidas na rotação. A variação secular da rotação é um tópico clássico da Geofísica. A especulação acerca do tema recua a 1695 quando Edmond Halley, nas páginas finais de "Some Account of the Ancient State of the City of Palmyra, with Short Remarks upon the Inscriptions Found there" (Phil. Trans., vol.19 (1695–1697), pp. 160–175), colocou a hipótese de a Lua estar a acelerar na sua órbita: "And if any curious Traveller, or Merchant refiding there, would please to observe, with due care, the Phases of the Moons Eclipses at Bagdat, Aleppo and Alexandria, thereby to determine their Longitudes, they could not do the Science of Astronomy a greater Service. For in and near these Places were made all the Observations whereby the Middle Motions of the Sun and Moon are limited. And I could then pronounce in what Proportion the Moons Motion does Accelerate; which; if hat it does, I think I can demonstrate and shall (God willing) one day, make it appear to the Publick." Na realidade, grande parte dessa "aceleração" era aparente. Era a rotação da Terra que desacelerava, fazendo com que a Lua parecesse acelerar. A causa mais importante é, como hoje sabemos, a "travagem" provocada primariamente pela "fricção" nos oceanos, um processo plural com um número diversificado de mecanismos (e.g., fricção induzida por correntes ao longo do leito dos mares, diversos e complexos efeitos da ondulação ou ondas de maré). Há ainda o contributo das alterações atmosféricas e dos movimentos no núcleo fluido do planeta. O diferencial vem sendo confirmado por comparação com a duração do dia medido por relógios atómicos (disponíveis desde 1955). - Ver artigo Aceleração de Maré (Wikipedia) A monitorização precisa é possível até cerca de 700 a.C. devido à mencionada interpretação dos relatos de eclipses. Equivale a cerca de 2.3 milissegundos por século: "Together with a further small solar contribution (the semi-diurnal atmospheric tide), these produce a steady increase in the LOD ["length of the day", duração do dia] of about 2.3 milliseconds per century (ms/cy)". (Stephenson, "Historical eclipses...", 2003, p.2.22) Segundo o mesmo autor (ibid.), o desenvolvimento de relógios de pêndulo precisos constituiu um enorme avanço, levando à adopção do chamado "Tempo Médio" baseado no Dia Solar Médio e, em 1884, à escolha do Tempo Médio de Greenwich (GMT), do qual deriva o Tempo Universal (UT) que na prática utilizamos. Historicamente, a maioria dos astrónomos mostrava pouca empatia pela teoria do efeito de maré. Depois das abordagens de F. Ginzel, S. Newcomb e outros, Philip H. Cowell (em 1905) descobriu uma interessante "aceleração" solar e especulou se esta não seria somente aparente. Aoesar das conclusões não terem sido bem acolhidas na época, revelaram-se um passo importante para compreender e dirigir a atenção para o que efectivamente se verificava com a rotação do nosso planeta. O rácio da dissipação provocado pelas marés somente começou a ser quantificável a partir de 1920. Mais tarde, em 1939, na sequência de investigações pretéritas, Sir Harold Spencer Jones demonstrou que o Dia Solar Médio não era uma unidade de tempo "ideal", atendendo às flutuações em presença. A Deflexão da Luz segundo Einstein Numa outra contribuição decisiva, o eclipse de 1919 assinalou a primeira de diversas confirmações de uma das consequências previstas nas teorias de Albert Einstein; a deflexão da luz das estrelas (determinando pequenas alterações nas suas posições aparentes) provocada pela interposição do campo gravitacional do Sol. Como David H. Levy explica, a teoria de Einstein descreve a gravidade geometricamente: Any object moving in space follows a geometric path shaped by the unified effect of mass and energy. (David Levy's Guide to Eclipses, Transits, and Ocultations, Cambridge University Press, 2010, p.19). A dupla expedição, liderada por Arthur S. Eddington, fotografou o eclipse total na roça "Sundy" na ilha do Príncipe (arquipélago de São Tomé e Príncipe, na época uma colónia portuguesa), e em Sobral (no Brasil). Os resultados contribuiram para a aceitação e visibilidade da Teoria da Relatividade Geral. (Todavia, alguns especialistas actuais colocam em causa que os resultados devolvessem a enorme precisão exigida para as conclusões que foram extraídas, um exemplo típico de "predictor effect", v. Physics Today 62 (Issue 3), 37–42 (2009)). Novas experiências foram repetidas em eclipses ulteriores até aos anos setenta, confirmando as expectativas teóricas. Entretanto surgiram novos métodos, recorrendo a radiotelescópios e aos quasares (um quasar é um núcleo galáctico activo alimentado por um buraco negro de enorme massa rodeado por um disco de acreção gasoso), sendo possível medir a deflexão da luz a qualquer momento com maior eficácia. No efeito previsto, a alteração na geometria do espaço circundante provocada pelo Sol deflecte a luz e as estrelas fotografadas durante o eclipse deverão aparecer ligeiramente mais afastadas entre si do que nas fotografias "normais" captadas no céu noturno. Ou seja, um raio de luz rasante ao limbo solar altera a sua direcção em 1.75" (i.e. o dobro do antecipado pela teoria newtoniana). Isto foi verificado por Arthur Eddington no célebre eclipse solar total de 1919, resultado das expedições Inglesas a terras lusófonas: à ilha do Príncipe e a Sobral, no Brasil. Cometas Refira-se, ainda, uma almejada possibilidade acarinhada na “golden age” de finais do séc. XIX e início do sequente: a possibilidade da descoberta de cometas durante a totalidade. Owen Gingerich documentou duas: em 1882 e em 1893 (“Eclipses”, in Collier's Encyclopedia, P. F. Collier & Macmillan Educational Company, 1990, vol. 8, p.513). Outras fontes, mais antigas e decerto menos rigorosas, referem mais "descobertas". O Diâmetro do Sol Outra potencial utilização científica dos eclipses seria a avaliação de variações no diâmetro do Sol. Em 1979, John Eddy e Aram Boornazian formularam a hipótese de o diâmetro estar a diminuir (supostamente 2 segundos de arco por século). As evidências, todavia, não confirmaram essa teoria. Outros investigadores continuam pesquisas afins ou relacionadas mas, neste momento, o máximo que podemos afirmar é que os resultados são inconclusivos. Hoje, a Física Solar intersecta muitas disciplinas: dinâmica de fluidos, plasmas, partículas, espectroscopia, fotometria, processamento de sinais, física nuclear, computacional, magneto-hidrodinâmica, meteorologia, sismologia, etc. O Sol é a única estrela ao alcance para uma abordagem tão completa. E assim chegámos ao estudo do Sol suportado por sofisticados observatórios e sondas em órbita (SOHO, HINODE, PSP, etc.). Magnetismo Solar - Existe um ciclo (quase) periódico de 11 anos das manchas solares (ciclo solar, também conhecido como ciclo de atividade magnética solar, ou ciclo de Schwabe, em honra do astrónomo alemão que, após longas e persistentes observações, o anunciou em 1843). É obviamente muito importante para o nosso planeta (dos fenómenos naturais como as auroras até à interferência potencialmente disruptiva nas nossas tecnologias). Próximo do máximo desse ciclo, a corona solar é simétrica (tende a ser circular); próximo do mímimo apresenta-se ovalada e podemos esperar menos proeminências. A máxima actividade do ciclo corrente (nº 25) está prevista para Julho de 2025 (NOAA - National Oceanic and Atmospheric Administration).
Animação:
eclipse de 12 Agosto de 2026 (Sonnenfinsternisse: https://www.youtube.com/watch?v=VOXGRxrMXNk)
Percentagem mediana de cobertura de nuvens em Agosto, a partir de dados de satélite (CM SAF/EUMETSAT), intervalo 2000-2020; Jay Anderson, eclipsophile.com; detalhe do mapa orig.)
26 de Janeiro de 2028 (Anular)
- Um Trânsito é a
passagem de um astro de dimensão menor
em frente de outro maior. Mais especificamente, chamamos trânsito planetário à passagem de um
planeta através do disco do Sol. Da Terra, conseguimos
observar os trânsitos dos
dois planetas interiores. Ocorrem, em média, 13 trânsitos de Mercúrio
em cada século.
Historicamente,
a
observação de um trânsito do diminuto Mercúrio precedeu a dos trânsitos
de Vénus: em 1631, Pierre Gassendi observou um desses fenómenos,
previsto nas Tabulae Rudolphinae,
efemérides compiladas por Kepler. Como a órbita de Vénus
é consideravelmente maior do que a do primeiro planeta, os seus trânsitos
são muito
mais raros: acontecem em pares (fenómenos separados 8 anos entre si)
segundo um padrão de
243 anos, com longos intervalos de 121,5 e 105,5 entre cada par. Os
últimos foram em 2004 e 2012, os próximos serão em 2117 e 2125. Os
trânsitos de Vénus foram usados para medir distâncias astronómicas,
como a distância ao Sol (v. infra).
A órbita de Vénus é quase circular (excentricidade de apenas 0,007). Atendendo a que oito anos terrestres equivalem, com aproximação, a treze translações ou "anos" de Vénus, a um trânsito segue-se outro após 8 anos, quando ambos os planetas e o Sol estão (quase) na mesma configuração. O primeiro trânsito de Vénus foi observado em 24 de Novembro de 1639 (data no calendário Juliano) por Jeremiah Horrocks (latiniz. Horrox), um jovem ligado à igreja do pequeno povoado de Hoole, Lancashire. Horrocks confrontou resultados das Tabelas de Lansberg (que eram pouco precisas) com as de "Rudolfinas" de Kepler. Ambas previam que Vénus estaria muito próximo do Sol. As primeiras indicavam que o planeta passaria na parte superior do disco e as de Kepler um pouco abaixo do disco solar. Esta "ambiguidade" e a sua experiência observacional do planeta permitiu-lhe refinar o resultado tabulado e ponderar que muito provavelmente aconteceria um trânsito. E assim foi, aconteceu! Foi observado projectando a imagem do Sol através de um telescópio num quarto obscurecido. O seu amigo William Crabtree, outro entusiasta da astronomia, foi avisado e também observou fugazmente o trânsito ("Venus in Sole Visa", escreveu) a partir de Broughton, próximo de Manchester. Diagrama da
observação do trânsito de Vénus de 1769, desenhado pelo pioneiro David
Rittenhouse (1732-1796)
- 13 de Novembro de 2032: Sol nasce às 07H18 e Mercúrio já estará em trânsito. Ponto intermédio acontecerá às 08H55. Quarto contacto (término) às 11H08 (Aveiro, Horas UT, equiv. Hora Legal). - 7 de Novembro de 2039: Sol nasce às 07H11. Intervalo do fenómeno: 07H19 - 10H15 (Aveiro, Horas UT, equiv. Hora Legal)
Os
Trânsitos de Mercúrio acontecem sempre em Maio ou em Novembro. O
primeiro foi observado em 1631, por Pierre Gassendi. Esquema
da esquerda inclui trânsitos recentes e futuros, até 2078 (Michael
Maunder &
Patrick Moore, Transit: When Planets
Cross the Sun, Springer, 1999). Disponibilizamos esta imagem editada
do esquema, apenas com os percursos dos dois próximos trânsitos (2032 e
2039), invertida para observação telescópica (.JPG, 87KB). À direita, o
próximo trânsito (13 de Novembro de 2032) observado a partir de Aveiro,
assinalando parte da corda percorrida pelo planeta e posições do
planeta na hora a que o Sol nasce,
no ponto intermédio e no final do trânsito; invertida para reproduzir
habitual observação telescópica; horas UT, info exportada pelo
programa COELIX APEX)
A Terra
passa pelos nodos da órbita
de Mercúrio aproximadamente a 10 de
Novembro e 9 de Maio (datas deslizam lentamente de século para século).
Um trânsito é possível apenas quando o planeta chega a um dos nodos na
proximidade dessas datas. Os trânsitos predominam em Novembro devido à
proximidade do periélio na
órbita mercurial, que é acentuadamente elíptica e inclinada 7º
relativamente ao nosso plano orbital. Em Maio o planeta está próximo do
afélio, mais perto da
Terra, o que reduz a probabilidade de trânsito. Segundo Joseph Ashbrook
(1970 Yearbook of Astronomy,
Sidgwick & Jackson, London, 1969, p.113), o fenómeno recorre
segundo um ciclo de aproximadamente 46 anos (porque este
intervalo é quase coincidente com 191 revoluções de Mercúrio) e
outro, mais preciso, de 217 anos (equivalente a 901 revoluções do
planeta).
Uma Ocultação
é, por definição, um fenómeno que acontece quando um objecto é
totalmente escondido (eclipsado) por outro que se interpõe entre este e
o
observador. O
generoso tamanho aparente da Lua (~ 0.5º), a sua paralaxe mensurável e
rápido
movimento sobre o "pano de fundo" do céu propiciam numerosas ocultações
lunares. A cada duas horas, a Lua percorre cerca de 1º do Zodíaco (13º
por dia). Pode, neste seu percurso para Leste, ocultar qualquer objecto
que (aparentemente) se encontre no seu caminho (uma faixa que se
estende 6.5º para cada lado da eclíptica). São fenómenos dinâmicos que
disponibilizam uma demonstração surpreendente do movimento orbital dos
astros, tendo sido extremamente importantes no percurso da Astronomia
(ocasiões
privilegiadas de medida, teoria lunar, rotação do nosso planeta,
verificação da precisão das efemérides,
estudo do relevo lunar, identificação
de estelas duplas, etc.) e da Geodésia.
Foi a partir de fenómenos de ocultação de Marte que Aristóteles concluiu que a Lua está mais perto de nós. O planeta não transita, é ocultado pela Lua. Provou assim que Marte estava mais longe do que a Lua. As ocultações são
fenómenos
"locais", com "timings" calculados para a posição específica do
observador. Uma
vez que a Lua está muito próxima, verifica-se uma paralaxe assinalável;
57' em média no plano equatorial horizontal (1º era o valor de
Ptolomeu). Este fenómeno é evidente nas ocultações observadas a partir
de locais diferentes.
As ocultações duram até cerca de 1 hora. As observações são muito facilitadas quando o brilho lunar não é demasiado intenso, longe do plenilúnio. Particularmente interessantes quando acontecem no limbo não iluminado. Podemos observar a ocultação de imensas estrelas, nas quais se incluem algumas de 1ª grandeza (Regulus, Spica e Antares). A Lua pode ainda, mais raramente, ocultar corpos do Sistema Solar, como os planetas. Os observadores em diferentes locais geográficos não vêem a ocultação em simultâneo. Na ilustração da esquerda, enquanto o observador A observa a Lua a uma determinada distância da estrela, o observador B já observa o momento da ocultação no limbo lunar não iluminado (Ronan, C., The Practical Astronomer, Pan Books Ltd., 1981). Ilustração da direita explica como a ocultação é observada em diferentes pontos geográficos ao longo da faixa abrangida. No ponto 4 é "rasante" e acontece no limbo escuro (ver inset), permitindo visualizar o revelo lunar (Chartrand, M. R., Amateur Astronomy Pocket Skyguide, Newnes Books, 1984; editada) - Ocultações lunares dos planetas visíveis a olho nu (dados para os próximos anos, timings para coordenadas de Aveiro, PT. Horas UT; export. COELIX APEX)
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