A S T R O N O M I A
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O Globo Terrestre

Globo de bolso
Globo de bolso (diâmetro: 70mm); Inglaterra, 1772 (National Maritime Museum, Londres); in: Stott, C., Cartas Celestes: Antigos Mapas do Céu; (trad. Máximo Ferreira), Dinalivro, 1992. Também disponibiliza um globo celeste no interior côncavo da "embalagem" esférica


Os primeiros globos foram, com notória anterioridade, globos celestes. Em relação ao nosso planeta, o processo de consolidação da esfericidade foi longo e complexo, principalmente pelas interpretações contraditórias em presença. Se a esfericidade do planeta há muito não oferecia dúvidas aos matemáticos (particularmente aos Antigos), ulteriormente muitos teólogos e filósofos medievais sentiram-se titubeantes quando confrontados com tradições contraditórias e difíceis hermenêuticas. Em particular, no confronto da tradição científica grega com o relato bíblico. A resistência, adaptação e perpetuação de algumas ideias pode parecer surpreendente. Existiriam outras terras para além da "nossa" ecúmena habitada? Como poderiam essas ser habitadas se as Escrituras afirmam que todos descendemos de Adão? Como conciliar a cosmogonia do Genesis (e.g., a "divisão" ou "separação" das águas, Gn 1:7) com as esferas concêntricas dos elementos do mundo sublunar e mutável de Aristóteles?

Procuraremos elucidar muito resumidamente alguns aspectos a partir, principalmente, dos estudos de W.G.L. Randles (Da Terra Plana ao Globo Terrestre (trad. Teresa Braga; rev. Joaquim Peixoto), Gradiva, 1990 (orig, publ. como De la Terre Plate au Globe Terrestre, Librairie Armand Colin, 1980) e Classical Models of World Geography and Their Transformation Following the Discovery of America, in: "Geography, Cartography and Nautical Science in the Renaissance" (Variorum Collected Studies Series: CS689), Ashgate, 2000; orig. publ. in: The Classical Tradition and the Americas, vol. I: "European Images of the Americas and the Classical Tradition", ed. W. Haase and M. Reinhold. Walter de Gruyter, 1994). O enfoque é na interpretação medieval e tardo-medieval, pois é então que a necessidade de acomodação se revela incontornável. A componente especificamente astronómica era, muitas vezes, ancilar.


Resumo

A perspectiva helénica arcaica era empírica e similar à de tantas outras culturas: segundo Homero e os "poetas antigos", a ecúmena (i.e. toda a terra habitada) era plana. Estava rodeada pelo grande rio Ōkeanós. Séculos mais tarde, interpretações baseadas em especulações carácter filosóficas ou hipotético-dedutivas a partir dos fenómenos celestes postularam uma terra esférica. De Pitágoras ou Platão a Aristóteles, a esfericidade torna-se consensual. Crates de Malo (gramático e filósofo Estóico do séc. II a.C.) pode ser interpretado como tendo procurado uma "síntese", ao avançar um modelo esférico com quatro pequenas "manchas" de terra emersa, uma das quais a nossa oikoumene (ecúmena), que podia para todos os efeitos práticos ser considerada "plana". Este modelo será divulgado pelos Neoplatónicos Macróbio (Macrobius) e Marciano Capela (Martianus Capella), séc. V, e será mais tarde modificado e adaptado ao dogma cristão. O modelo terá uma breve ressurgência na Renascença mas foi quase sempre preterido após a tradução dos textos e a disseminação da mundividência aristotélica no Ocidente Latino, nos séculos XII e XIII. Baseando-se na disposição concêntrica dos quatro elementos, segundo a sua densidade e peso, a doutrina de Aristóteles conduzia, na perspectiva dos seus intérpretes medievais, à conclusão da impossibilidade da existência das terras emersas (pois a terra, mais pesada e tendendo para o centro, ficaria sempre rodeada pelas esferas dos restantes elementos, incluíndo obviamente a da água). Confrontados com as evidências dos fenómenos, gizaram duas explicações: a primeira ("providencialista") faz agir a Divina Providência através do "milagre perpétuo" que afastou as águas e permitiu que as massas de terra emergissem; a segunda, um pouco mais tardia, é "naturalista" e recorre ao princípio do centro de gravidade de um corpo (de Arquimedes, que não conflitua com a física de Aristóteles), postulando dois centros na esfera da terra, um de gravidade e outro de magnitude (devido, argumenta-se, à densidade assimétrica inerente a este elemento). Imaginando que o centro de gravidade da respectiva esfera coincide com o centro de magnitude da esfera da água e também com o centro do Mundo (i.e. do Universo), resulta que a terra emerge da água como um disco circular ligeiramente convexo que podia até ser comparado à antiga representação homérica da ecúmena (vide Randles, Op. cit., 2000, p.75). Mas que era feito da sofisticada ciência dos Antigos?

A Geografia (Geōgraphikḕ Hyphḗgēsis) de Ptolomeu (séc. II), um dos incontornáveis textos científicos de todos os tempos, somente será "recuperada" na Renascença Italiana. O sábio Alexandrino respaldou-se nas metodologias de Marinus de Tiro (Μαρῖνος ὁ Τύριος, c.70-130), considerado o fundador da Geografia, rigorosa e com bases matemáticas. Todavia não é acrítico e corrige-o quando considera relevante. Edward Luther Stevenson escreveu no prefácio da sua edição desta obra:

"Marinus (ca. 70—130 A.D.) appears to have been regarded his most reliable source and inspiration, whom he praises for his diligence and sound judgment, and whom he seems to have followed closely; yet he points out his many defects." (Geography of Claudius Ptolemy. New York : New York Public Library, 1932, xiv).

Na Renascença, a influência do Ptolomeu redivivus, que trouxe o rigor da metodologia científica e a aplicação dos seus princípios matemáticos (medidas, sistema de coordenadas, articulação com a Astronomia), vai coincidir com a expansão europeia e a experiência resultante das viagens marítimas. A descrição de Ptolomeu decerto incluía equívocos (como assumir a predominância das terras e os mares "fechados") pois era datada e limitada pela escassez de dados concretos da geografia das regiões mais afastadas do mundo mediterrânico. Mas confirmava inequivocamente o conceito de uma superfície convexa contínua, plasmada numa esfera, que fará colapsar a importância da doutrina dos elementos concêntricos (que estava na origem das literalmente "excêntricas" soluções anteriores). Surge o conceito de "globo terráqueo", esfera única, que naturalmente aglutinava os tradicionais elementos. A partir daqui e apesar das "resistências", do peso da argumentação teológica e de algumas "nostalgias" (a realidade e o mito entrelaçavam-se), surgirá um novo quadro conceptual que, a seu tempo, acomodará as chamadas "descobertas" resultantes da expansão europeia, como a do Novo Mundo.

 
Teorias rivais nos finais do séc. XV

Tão tarde quanto os finais do século XV, algumas teorias e diferentes concepções quanto à forma, ordem e relação entre as massas de terra e as águas circulavam na literatura. Randles elenca-as:

 
- A primeira é arcaica e recua, em termos literários, a Homero: a terra habitada é representada como um simples disco plano (a oikoimene rodeada pelo rio Ὠκεανός, Ōkeanós).
- A segunda é aristotélica, uma Terra esférica organizada segundo as camadas concêntricas ocupadas pelos quatro elementos. 
- Na terceira existem quatro pequenas "oikoumenes" distribuídas simetricamente num globo, sendo o restante coberto por água. Recua a Crates de Malo ou Malos (Κράτης ὁ Μαλλώτης, Krátēs ho Mallotē), na Cilícia (Ásia Menor) século II a.C.
- A quarta, descrita na Geografia de Ptolomeu, interpreta os mares e oceanos como "lagos" nos vazios de uma Terra esférica. Como mencionado, o texto somente aflorou no ocidente latino nos princípios do século XV (1406), quando um manuscrito chegou a Florença proveniente de Constantinopla.

Teoria de Crates de Malo
Reconstituição da teoria de Crates de Malos, que terá imaginado a esfera com quatro "manchas" terrestres emersas (E. L. Stevenson), Crates terá construído o primeiro globo terrestre documentado. N.B.: Antecos são os que se encontram ou habitam na mesma longitude mas em latitudes opostas; Periecos são os que estão na mesma latitude mas em longitudes opostas; os antípodas são diametralmente opostos. Estamos na presença da aplicação de um princípio de simetria.
 
Estas teorias rivais articularam-se de modo variado, muitas vezes involuntariamente contraditório.
 
Segundo o texto da "Introdução aos Fenómenos" (Εἰσαγωγή εἰς τὰ Φαινόμενα) de Geminus, astrónomo e matemático do séc. I a.C., para Homero e restantes poetas antigos, a Terra era uma superfície circular plana rodeada pelo rio Ōkeanós (Introduction aux Phénomenes, texto e trad. Fr. de G. Aujac, Paris, 1975; lib. XVI, 27, p.81). Nesse residia a origem de todos os aquíferos. Todavia, D. R. Dicks salientou que Homero não especificou, não o disse ipsis verbis, somente inferimos a sua provável imagem do mundo: "...the earth (according to Homer) the shape of which is unspecified, is apparently surrounded by the Ocean river, although this is nowhere stated in so many words by Homer." (Early Greek Astronomy, Cornell University Press, 1970, p.29. A referência é da Ilíada, XVIII, 483-489 (Loeb ed.). Esta era a representação da ecúmena, i.e. toda a terra habitada. Para os romanos será o orbis terrarum, separado em "partes" e não continentes: Ásia, Europa e África, referidas, por exemplo, pelos gregos Dicaearchus (c.326-296 a.C.), Eratóstenes (c.275-194 a.C.) e pelo mencionado Geminus, bem como pelos romanos Salústio (Salustius, 86-35 a.C.) ou Pompónio (Pomponius) Mela, já no século I AD.
 
O quase mítico Pitágoras (séc. VI a.C.) foi, segundo a tradição, o primeiro a postular a esfericidade da Terra. Decerto por motivos matemáticos e estéticos ou talvez (com menor probabilidade) pela observação astronómica do movimento diurno das estrelas na abóbada celeste. Será Aristóteles a fundamentar essa ideia (o argumento da sombra projectada pela Terra na Lua durante um eclipse lunar é uma evidência avançada pelo Estagirita) e a sistematizar segundo princípios claros, nomeadamente pela hierarquia dos elementos: "For each element to be in its proper place undergoing no violence (and violence according to Aristotle cannot endure), not only must the centre of each sphere coincide with the centre of the universe, but the outer surface of the sphere of each element must also be tightly lodged! within the inner surface of the element coming immediately after it in accordance with the hierarchy of their respective densities." (Randles, Classical Models of World Geography..., Op. cit., p.8). A partir de alguns comentários (e.g., o de Olimpiodoro, o Jovem, gr. Ὀλύμπιόδωρος ὁ Νεώτερος, sec. VI), uma hipotética relação sugerida entre o volume e a densidade dos elementos em Aristóteles transforma-se numa certeza e "regra": o volume da água supera dez vezes o da Terra e assim sucessivamente para os restantes elementos.

Quanto a Crates, conhecemos o seu trabalho geográfico mormente através de Estrabão (Στράϐων; romaniz. Strábōn, geógrafo e historiador grego do séc. I a.C.). Segundo o que este autor escreve, podemos inferir que Crates idealizou e construiu o primeiro globo terrestre
, que teria cerca de 3 metros de diâmetro (Geography, ii.5.10, H. L. Jones (trans.), Loeb Classical Library, vol. I, 1917). Adoptando a teoria das zonas (que encontraremos adiante), considerou que a chamada "Zona Tórrida" era ocupada pelo Oceano e, por analogia com a ecúmena temperada, imaginou simetricamente habitantes para além da região tórrida:
 
"For Crates, following the mere form of mathematical demonstration, says that the torrid zone is "occupied" by Oceanus and that on both sides of this zone are the temperate zones, the one being on our side, while the other is on the other side of it. Now, just as these Ethiopians on our side of Oceanus, who face the south throughout the whole length of the inhabited land, are called the most remote of the one group of peoples, since they dwell on the shores of Oceanus, so too, Crates thinks, we must conceive that on the other side of Oceanus also there are certain Ethiopians, the most remote of the other group of peoples in the temperate zone, since they dwell on the shores of this same Oceanus; and that they are in two groups and are "sundered in twain" by Oceanus." (Estrabão, Op. cit., i.2.24).

A impressão em 1498 (em Veneza) de uma edição latina do De motu circulari corporum caelestium de Cleómedes (gr. Κλεoμήδης, datas desconhecidas mas que situamos num intervalo entre Posidónio e Ptolomeu), vai esclarecer e relançar o modelo cratesiano, que será por vezes usado para explicar ou enquadrar as novas terras descobertas (entre nós especialmente pelo jurista, teólogo e cosmógrafo Pedro Margalho, 1474-1556).

 

A síntese bíblico-aristotélica

Esta síntese, não directamente retirada do filósofo de Estagira, baseia-se na disposição das quatro esferas dos elementos no mundo sublunar, ordenando-os segundo as respectivas densidades e 'gravidades' (Terra-Água-Ar-Fogo, do mais pesado para o mais diáfano). Ptolomeu inverte as proporções Terra-Água de Aristóteles e concebe os mares como "lagos" ou mares fechados (stagnon) entre massas de terra firme. Mostra-se indiferente ao problema aristotélico das esferas concêntricas dos elementos, partindo de uma perspectiva astronómica que perspectiva o globo como um todo esférico:
 

"In his Geography, Ptolemy’s representation of the relation of the land masses to the seas was exactly the reverse of Aristotle’s. Where Aristotle had insisted that the earth lay within the water, Ptolemy envisaged the oceans as lakes separated from one another, lying in hollows over the earth surface. Ptolemy looked at geography and the relation between land and sea strictly from an astronomer’s point of view and he appeared totally indifferent to Aristotle’s concern to integrate them into his theory of the concentric ordering of the elements in which the latter’s densities were in inverse proportion to their volumes." (Randles, Op. cit., 2000. p.16) 
 
Mas como sabemos, o texto da Geografia chegará à Europa somente no início do séc. XV (e a primeira impressão data de 1470). Mas Ptolomeu forneceu evidências astronómicas para a esfericidade da Terra como um todo, aliás uma das suas premissas no incontornável Almagesto:

"That the earth, too, taken as a whole, is sensibly spherical can best be grasped from the following considerations. We can see again that the sun, moon and other stars do not rise and set simultaneously for everyone on earth, but do so earlier for those more to the east, later for those towards the west. For we find that the phenomena at eclipses, especially lunar eclipses, which take place at the same time [for all observers] are nevertheless not recorded as occurring at the same hour (that is at an equal distance from noon) by all observers. Rather, the hour recorded by the more easterly observers is always later than that recorded by the more westerly. We find that the differences in the hour are proportional to the distances between the places [of observation]. Hence one can reasonably conclude that the earth’s surface is spherical, because its evenly curving surface (for so it is when considered as a whole) cuts off [the heavenly bodies] for each set of observers in turn in a regular fashion. [...] In fact, the farther we travel toward the north, the more of the southern stars disappear and the more of the northern stars appear. Hence it is clear that here too the curvature of the earth cuts off [the heavenly bodies] in a regular fashion in a north-south direction, and proves the sphericity [of the earth] in all directions. There is the further consideration that if we sail towards mountains or elevated places from and to any direction whatever, they are observed to increase gradually in size as if rising up from the sea itself in which they had previously been submerged: this is due to the curvature of the surface
of the water." (Toomer, G. J. (trans., annot.), Ptolemy's Almagest, 1984, pp.40-41). Estrabão promoveu uma definição semelhante mas era desconhecido na Idade Média. Para Ptolomeu, os mares, sem comunicação entre si, estendem-se à superfície da Terra. As massas de terra prevalecem e não assentam na água, como na tradição bíblico-aristotélica.
 
Mapa-mundi de Ptolomeu (Schnitzer, 1482)
Mapa-mundi de Ptolomeu (Insculptum est per Johanne Schnitzer de Artmszheim [i.e Johannes Schnitzer von Armsheim]" Ulm: Lienhart Holle, 1482). Baseado num manuscrito de 'Donnus' Nicolaus Germanus, que modernizou os mapas ptolomaicos influenciando a cartografia renascentista.


A ecúmena de Ptolomeu, que será muito influente, é científica e baseia-se em coordenadas: estende-se em largura cerca e 180º a partir do Meridiano de referência das "Ilhas Afortunadas", que serão as Ilhas Canárias (que os árabes conhecerão como al-Jazāʾir al-Khālidāt) e, em altura, cerca de 63º. O seu centro é cosmográfico: situa-se em Siena (actual Assuão). Forma um todo não fragmentado e, acima de tudo, está plasmada na superfície de uma esfera. Uma antecipação do que virá a ser o Globo Terrestre. A integração não é casuística (como na Idade Média) mas matemática.

 
Contudo, na Μετεωρολογικά (Lat. Meteorologica ou Meteora), Aristóteles havia expendido uma outra teoria (atribuída a Parménides, o que é sempre incerto pois na realidade nada de concreto e coetâneo sabemos desses filósofos de antanho) que contradizia a anterior, dividindo a Terra em cinco zonas (limitadas pelos círculos árctico, antárctico e pelos trópicos): duas frígidas, uma tórrida (confinada entre os dois trópicos) e duas temperadas, estas últimas as únicas que seriam habitáveis.

As 5 zonas - Apianus 
As cinco zonas. Apianus, Cosmographicus liber, Landshut, 1524

Acerca da austral nada refere (
Virgílio e Ovídio julgavam-na inabitável, Ptolomeu e, muito mais tarde, Avicena (Ibn Sina) manifestaram opinião contrária). A região boreal era obviamente a ecúmena conhecida, entre os chamados Pilares de Herácles (extremo ocidental navegável, actual estreito de Gibraltar) e a misteriosa Índia, a oriente. Este esquema já insinua a mais sofisticada divisão em klimata (climas), todavia esta última será definitivamente astronómica (como Otto Neugebauer salientou), em função das horas de luz solar no dia maior do ano (o solstício de Verão no Hemisfério Norte), em intervalos regulares segundo os diferentes paralelos de latitude.

As cinco Zonas, Figueiredo, 1603 
De novo as cinco zonas, destarte num tratado de
Manoel de Figueiredo (Chronographia: Reportorio dos tempos, no qual se contem VI partes, scilicet dos tempos..., "Empresso em Lisboa por Jorge Rodriguez a custa de Pero Ramires. Anno de 1603")
 
A consequência "extrema" mas lógica da disposição baseada nos elementos seria a impossibilidade da existência de "terra firma", enxuta, pois a água cobriria esse elemento mais "pesado" (Duhem, P., Le système du monde, vol. 9, Paris, 1958, pp.88-91). Somente no século XIII se tentará contornar definitivamente essa lógica implacável. Sacrobosco, autor da Sphaera, é um dos raros autores que procurará explicações naturais para a terra firme deixada a descoberto pelas águas. Quase todos os restantes, procurando conciliar esta representação com a narração da Criação Divina, fazem intervir o milagre da "congregatio aquae" num mesmo local, onde as águas deverão ficar para sempre. "Afastam-se pois da representação geométrica e aristotélica na sua perfeição circular, mas para se aproximarem da evidência imediata, devida a um milagre perpétuo." (Da Terra Plana ao Globo Terrestre, Op. cit., 1990, p.14). Surgem assim ilustrações como as seguintes, onde a Terra emerge na água como se nela flutuasse. A primeira numa gravura da Sphaera de Sacrobosco (impressa em Veneza nas edições de 1485 e 1490); a segunda, também da Sphaera, é de um manuscrito do séc. XIII, circa 1240 (Ms NKS 275a 4º, f.11v, Det Kongelige Bibliotek, Copenhaga).

Sacrobosco - Terra emersa    Sphaera Ms_NKS_275a - Copenhaga    


Num exemplo interessante, Pablo de Santa Maria, judeu convertido conhecido como "O Burguense"  (m. 1435) procurou "aristotelizar" o Genesis imaginando um Deus "desalojador": antes da congregação das águas, ordenada por Deus no terceiro dia, os elementos de Aristóteles formavam esferas efectivamente concêntricas. Então, por intervenção divina, os centros (das "esferas" dos mencionados elementos) afastaram-se e uma parte da terra surgiu à superfície. Uma parte pequena pois deve prevalecer a doutrina "dos "filósofos" que estabelece que o volume da terra é somente um décimo do da água. Não poderia pois haver qualquer margem inclinada para a parte inferior (austral) da esfera. Isto contrariava os testemunhos decorrentes das graduais incursões dos marinheiros Ibéricos nos mares do sul. Já Alberto Magno (c.1200–1280), por exemplo, havia argumentado que se se diz que a água ocupa mais espaço do que a terra é porque possui menos matéria, sendo menos densa, e não porque assim acontece efectivamente (in effectu); apenas se afirma ser essa a sua proporção em relação à terra (sed quod ita est proportione aquae ad terram).
 
A partir do século XII e até às navegações do século XV, assiste-se a uma hábil síntese do mito cristão e da teoria aristotélica, em geral com a ideia grega de uma Terra esférica. Sofismando e escamoteando as contradições, conseguiu-se conciliar uma Terra plana ao nível da ecúmena habitada (totam Terrae humanae compaginem, como a definiu o franciscano Nicolaus Lyranus, c.1270-1349) com a versão esférica, apenas ao nível da astronomia. (vide Randles, 1990, p.11). Ambas as sínteses medievais que procuram conciliar as versões se respaldam em Crates de Malo: "A síntese bíblico-cratesiana era certamente bem conhecida na Idade Média através das obras de Marciano Capela (século V) e de Macróbio (século V) e, mais tarde, da do escolástico Guilherme de Conches (De philosophia mundi, meados do século XII). Sobre uma esfera coberta na sua maior parte por água, representavam-se quatro pequenas "ilhas" (Macróbio, na esteira de Cícero, fala em "maculae" ["manchas"] diametralmente opostas)." (ibid., pp.12-3). Devido ao argumento teológico da unicidade da descendência da humanidade a partir de Adão, a perspectiva adoptada circunscrevia os humanos a somente uma destas "manchas", negando a possibilidade que as restantes fossem habitadas. E a pequena ecúmena até podia assim parecer plana.

Congregatio aquae
As esferas da água e da terra antes e depois da Congregatio Aquae do terceiro dia da Criação (Additiones in: "Nicolai de Lyre super totum bibliam cum additionibus", Nuremberga, 1481).
 
Entretanto, sob a influência da teoria das zonas, a hipótese de Crates sofre eventualmente na Idade Média uma simplificação: as maculae são reduzidas a duas, uma boreal e uma austral (que podia ou não ser habitada). O continente antípoda incomoda os eclesiásticos que retornam aos antigos argumentos de Santo Agostinho (354-430), que concorda com a esfericidade da Terra e com a queda dos graves (de Aristóteles) mas recusa a existência dos antípodas habitados, e Lactâncio (c-250-c.325), que rejeita a Física aristotélica (que conhecia), defendendo ferozmente que a Terra é plana:

"Os que defendem a existência dos antípodas defenderão um sentimento razoável? Existe alguém suficientemente extravagante para se convencer de que existem homens que têm os pés para cima e a cabeça para baixo? De que tudo o que está ditado nesta região está suspenso na outra? De que as ervas e as árvores crescem aí descendo e a chuva e o granizo caem subindo?..." (De Divinis Institutionibus, III, 24). Copérnico, em 1543, ainda considerou necessário rebater os argumentos de Lactâncio no De revolutionibus..., lib.IV.
 
A ecúmena medieval é graficamente representada de maneira muito esquemática nos chamados mapas "T e O". A vertical do "T" representa o Mediterrâneo e separa a Europa da África; as duas metades da perpendicular (transversal) representam os rios Tanais (Don) e Nilo, que separam a Ásia do resto da ecúmena.

T-O mapa
Mapa-mundo "T-O" (Lilius, Zacharias: Orbis breviarium (Florença, 1493)

Jerusalém situa-se no centro. O teólogo francês Petrus Comestor (séc. XII) comenta uma engenhosa "colagem" de Jerusalém à geografia Helenística:
 

"Alguns dizem que este lugar [Jerusalém] é o umbigo da Terra habitável, porque todos os anos, num certo dia de Verão, ao meio-dia, o Sol desce até à água no fundo de um poço sem fazer sombra onde quer que seja, fenómeno que os filósofos dizem ocorrer em Siena" (Hist. Schol., cap 58, in: Migne, Jacques Paul, "Patrol. Lat.", vol.198, co. 1567). Siena, no Alto Egipto, é célebre pela experiência de medição da circunferência da Terra por Eratóstenes e o seu paralelo é uma das referências na teoria dos klimata.
 
Extravagâncias pontuais configuram uma abordagem totalmente alegórica, por exemplo a da Topografia Cristã do monge alexandrino Cosmas (Κοσμᾶς) Indicopleustes (lit. "viajante das Índias", nome que parece uma ironia atendendo ao desprezo pelas evidências fenomenológicas), tendo como modelo a forma do venerável Tabernáculo vetero- testamentário. Mas há decerto toda uma "geografia sagrada". Jerusalém é um "omphalos", a Ásia confunde-se com o reino do mítico do supostamente poderoso Preste João (uma utopia teocrática, como sugerido pelo filólogo Leonardo Olschki, originada numa série de missivas fabricadas no séc. XII e que vai deambular geograficamente por diferentes regiões, tal como "as Índias" deambulavam ou estavam em geografias incertas). Como Randles refere, a partir das referências do itinerário da peregrinação à Terra Santa, ver-se-á elaborar, desde o século XIV, uma estrutura de narrativa de viagem em que se misturam o verdadeiro e o fantástico, e em que o viajante, depois de ter visitado o Santo Sepulcro se dirige para o Preste João, testemunha as riquezas e prodígios do seu reino e chega ao sopé da montanha do Paraíso Terrestre. O ciclo literário é iniciado com as célebres aventuras de Mandeville e dele faz parte, por exemplo, a Historia del infante Don Pedro de Portugal, el cual anduvo las siete partidas del mundo (1520), de Gómez de Santisteban. Acrescente-se o paradeiro das hordas de Gog e Magog (forças do caos referidas nas Escrituras) que são incluídas nos mapas medievais, bem como a "muralha de Alexandre" que confina e isola essas forças disruptivas. [Para uma exposição do florilégio de referências simbólicas que se entrecruzam vide, por exemplo, Delumeau, Jean, Uma História do Paraíso: o Jardim das Delícias, Terramar,  1994 (Fayard, Paris, 1992) e Silverberg, Robert, The Realm of Prester John,  Ohio University Press, 1992 (Doubleday and Company, 1972)]

Segundo Jean Delumeau, na Idade Média o Paraíso continuava a existir: "Era decerto inacessível, cingido de fogo, guardado por um querubim portador de uma espada, mas não tinha desaparecido. Nos mapas não se hesitava em localizá-lo num recanto longínquo do Oriente. Viajantes tentavam aproximar-se dele e os descobridores da Renascença creram ter aportado a territórios que conservavam alguns aspectos, traços e privilégios do maravilhoso jardim do Éden" (Uma História do Paraíso: o Jardim das Delícias, Terramar, 1994 (Fayard, 1992) p.277). Antes, refere-se como é espantoso que a narrativa do Genesis tenha investido e informado fortemente as representações geográficas apesar da multiplicação das viagens a regiões distantes, da intensificação das relações marítimas e de uma vontade crescente de precisão na confecção dos mapas: "Um mapa-mundí da Biblioteca do Vaticano, publicado pelo visconde de Santarém e remontando ao princípio do século XV, coloca o Meridião [sul] ao alto, à maneira dos Árabes, e o oriente à esquerda. Mas não se esquece de incluir na extremidade oriental da Índia oHortus Deliciarum separado do resto da terra por uma barreira de fogo." (ibid., p.82). Acrescenta que a célebre carta de Andrea Bianco (1436) é precisa no que respeita ao Mediterrâneo mas integra numerosas "bizarrias", como colocar o Oriente no topo, o Paraíso com os seus quatro rios e até o "hospício de S. Macário" (onde o santo havia sido supostamente detido pelo querubim após tentar alcançar o Éden). Fra Mauro não inclui o "Paraíso" no seu mapa de 1459.

Cristóvão (Cristoforo) Colombo é paradigmático. O explorador genovês acreditava que o Paraíso existia: "Colombo (...) crê como um homem da Idade Média, quer isto dizer que crê em tudo, sem discernimento, sem distinguir entre uma opinião e um artigo de fé. A sua crença não é unicamente um sentimento religioso, mas também um método que se aplica indistintamente a todos os domínios do espírito: ele crê no paraíso terrestre como crê na autoridade dos antigos, na produção do ouro pelo efeito dos raios do sol, na montanha de água que forma o umbigo da terra ou nas narrativas de Marco Polo" (Cioranescu, Alexandre (ed., trad.), Œuvres de Christophe Colomb, présentées et traduites..., Paris, Gallimard, 1961, pp.233-5).

Preste João - mapa de Diogo Homem
"Preste" enquanto Negus, o Imperador da Etiópia, onde os Portugueses o julgaram identificar (atlas de Diogo Homem, circa 1555–1559, British Library)


A influência da Geografia de Ptolomeu e da experiência concreta, o conceito de "Globo Terráqueo" e a nova mundividência: o "Globo Terrestre"


A teoria bíblico-aristotélica será ultrapassada, gradualmente e com ambiguidades, pela "recuperação" da Geografia de Ptolomeu e pela experiência concreta. Surgirá então o conceito de "globo terráqueo" (v, definição infra). Mas se, por um lado, a explicação física patente no Mundus Novus atribuído a Vespúcio (Amerigo Vespucci) abre perspectivas baseadas na experiência, na Margarita Philosophica de Gregor Reisch, que surge no mesmo ano (1503), ainda podemos ler (no capítulo acerca da "disposição da água"):
 

"No princípio da criação das coisas, a água cercava toda a superfície da Terra como se fosse uma nuvem muito ligeira, e ela atingia as regiões mais altas. Mas, por ordem do Criador, o firmamento separou as águas das águas, e as que ficaram por baixo do firmamento juntaram-se num só lugar, a saber, as concavidades da Terra,a fim de os seres animados poderem habitar a sua superfície. E, assim, a totalidade da substância da terra e da água constituiu um único corpo esférico ao qual os filósofos marcaram um duplo centro, um de gravidade e outro de grandeza. Com efeiro, o centro de grandeza divide em duas partes iguais o eixo no centro do Mundo. Mas o centro o centro de gravidade está colocado fora deste, a saber, encontra-se sobre o diâmetro da Terra. que é necessariamente maior do que o raio da esfera composta de água e terra, porque, se não fosse assim, nenhuma qualidade que lhe é própria manteria a terra no centro do Mundo e, quer nas ciências naturais quer na astronomia, dificilmente se poderia dizer algo mais absurdo do que isso. A necessidade de admitir uma diversidade de centros decorre de que a terra que não está coberta pelas águas é mais ligeira do que a parte da terra que está coberta pelas águas. E a terra emersa, se for humidificada, seca de novo e torna-se mais ligeira. É por isso que o seu centro de gravidade não pode ser o mesmo que o seu centro de grandeza. Mas, colocado sobre o diâmetro da Terra, o centro de gravidade tende mais para a circunferência e a parte coberta pelas águas. Porque as águas estão mais congregadas para esta parte, na medida em que ela está mais perto do centro do Mundo. A partir disto, pode concluir-se que a Terra está em movimento local contínuo, pelo qual as partes mais afastadas do seu centro de gravidade se esforçam por se tornar iguais às outras. A superfície de todo o conjunto é uma superfície convexa, e a água não invade a superfície da Terra mas banha-a e rodeia-a quase no meio dela [da água] como numa concavidade, como o atestam as Sagradas Escrituras: «O Oceano cobriu-a como um manto» mas ao contrário [por outro lado] «Impuseste às águas um limite que elas não ultrapassarão e elas não voltarão a cobrir a Terra»" (Margarita Philosophica, lib. VII, tract I, cap. xlij; cit. in: Da Terra Plana ao Globo Terrestre. pp.55-7)

 Reisch - esferas elementos terra e água
Esferas da água e da terra segundo Reisch. Como a terra não tem densidade uniforme, o centro de gravidade da Terra (1) não coincide com o seu centro de grandeza (2), mas o centro do agregado terra-água coincide com o centro do Mundo (3) e aqui também com o centro de grandeza da esfera da água. Números foram acrescentados para facilitar identificação (Margarita Philosophica, Estrasburgo, 1504 (editio princeps: 1503)). Tanto na interpretação de Buridano como na "releitura" de Reisch, a teoria deixava todo o hemisfério sul submerso.


Trata-se, apesar de tudo, de uma explicação mais "naturalista" do que a do já mencionado Pablo de Burgos, mas anacrónica e fortemente respaldada na física parisience de Buridanus e Oresme (séc. XIV), que expande. Buridanus (c.1300-c.1358) apresentara diversas teorias, referira a erosão e a excentricidade dos centros das esferas da terra e da água (referindo obviamente as diferentes densidades) mas acabou por acomodar os princípios de centralidade, todavia deixando três quartos da terra submersa (eliminando assim as dificuldades teológicas) e mantendo apenas um quarto habitável.

Sphaera Clavius - teorias contraditórias
Gravura do In Sphaeram Ioannis de Sacrobosco Commentarius de Clavius (Lyon, 1593). O gravador mistura aqui duas teorias conflituantes: a das duas esferas (excêntricas) e a dos Antípodas
 

No Esmeraldo de Situ Orbis (c.1508), Duarte Pacheco Pereira escreve acerca das zonas (climáticas) e da experiência concreta,
"madre das cousas":
 

"Donde parece que segundo sua tençam [Pompónio Mela e Sacrobosco] aquella torrida zona por esta causa se nam podia nauguar, poys a fortaleza do sol inpedia nam hauer hy habitaçam de jente; o que tudo isto he falso; certamente teemos muita Razam de nos espantar de tam excelentes homees, como estes foram (...) cayrem em tamanho erro como neste caso diseram (...). Craramente se mostra ser falso o que escrevêram; poys debaixo da mesma equinocial há tanta habitaçam de jente quanto teemos sabida e praticada; e como quer que a experiencia he madre das cousas, por ella soubemos rradicalmente a verdade" (Esmeraldo de Situ Orbis, ed. Augusto Epifânio da Silva Dias, 1905; reprod. fac-similada, 1975, p.152) 
 
E, como Robert Recorde salientava:
 "Who is it that hathe not hearde of the isles of Molucca, and of Samatra, where the Portingales [i.e. Portugueses] gette the greate plentye of riche drugges and fine spices. And all that haue been there, confesse that those places ar right vnder the Equinoctiall line: and Calecut is but little from it..." (
The Castle of Knowledge, containing the Explication of the Sphere both Celestiall and Materiall, etc. (London, 1556, 2nd Treat.).

Em 1581, o célebre Clavius (matemático jesuíta intimamente envolvido na reforma do calendário implementada pelo Papa Gregório XIII) ainda considerava tempestivo explicar que, baseando-nos em muitas observações dos astrónomos, deveremos concluir que a terra e a água têm uma e a mesma superfície convexa, e, consequentemente, o mesmo centro. (In Sphaeram Ioannis de Sacrobosco commentarius (
1ª ed. aument.), Roma, 1581, p. 123).

Mas até na vertente "científica", e mesmo depois da descoberta de tantas novas costas, o peso da tradição será evidente na tentativa de acomodação com o mundo descrito por Ptolomeu (e.g., as costas da América poderiam, para alguns, ser uma continuação da Ásia), inventam-se penínsulas de ligação e utiliza-se, pelo menos temporariamente, nomenclatura da Geografia do sábio alexandrino (como Promontório Prasso ou Taprobana).

Colombo, de novo, julgou ter chegado "às Índias" enquanto procurava a deslumbrante Cipangu, aquela ilha riquíssima em ouro de que Marco Polo havia falado (seria o Japão, a partir do nome usado em mandarim pelos Chineses; aliás, o ouro abundava nas descrições: a península da Malásia era "dourada" (Chrysḗ Chersónēsos em Ptolomeu; Lat. Chersonesus Áurea, i.e. "península dourada"). Noutro registo, até a uma época relativamente recente, em plena "Era da Razão", prevaleceu a crença num princípio de simetria na distribuição das massas de terra. A busca por um hipotético "Continente Austral", que compensasse as massas do Hemisfério Norte, ainda era considerada pertinente e foi uma das missões confiadas a James Cook, na segunda metade do século XVIII.

Segundo W.G.L. Randles, será o suiço Joachim von Watt, latiniz. "Vadianus" (1484-1551) quem bem cedo retirou ilacções do confronto do aristotelismo com a experiência dos marinheiros e a formular o conceito ao qual só se dará um nome no século XVII: o "globo terráqueo", caracterizado por uma única rotundidade (i.e. um globo único). Recorde explicava a ordem dos elementos nesta perspectiva: "...the foure elementes succede: first the fire, then the ayer: next foloweth the water: which with the earth ioyntlie [jointly] annexed, maketh as it were, one sphere onIy." (The Castle of Knowledge, Op. cit., 1st Treat,).

Todavia o conceito não é completamente original pois actualiza, em certa medida, o esquema de Crates. numa época de novos mapas ainda sem pontos de referência suficientes para um cabal enquadramento epistemológico. Procurava-se, enquanto a realidade não se impunha definitivamente, enquadrar o novo, o desvelado, no quadro conceptual preexistente, por exemplo recorrendo a uma mescla que integrava terras e reinos "lendários",
identificação de certas regiões da cosmogonia bíblica ou o acordo das novas geografias com a descrição ptolomaica. Demais, num registo lateral, também se perpetuam até muito tarde as referências cartográficas a algumas Ilhas míticas do Atlântico (e.g., "Antilia", "Brazil", "São Brandão"). 

 
No século XVIII, "terráqueo" (i.e. globo resultante da mistura da terra e a da água) será substituído por "terrestre". Bruzen de la Martière registou num verbete do seu Grand Dictionnaire (1726-1739):
 

"Terráqueo ou Terráquea - Esta palavra é tomada do latim Terraqueus e só se diz do globo terrestre para exprimir a mistura de terra e água de que a superfície é composta. Diz-se mais comummente o Globo Terrestre. mas estas palavras Terráqueo e Terrestre, que significam o mesmo globo, não dão dele inteiramente a mesma noção. O Globo Terrestre é chamado assim em oposição ao Globo Celeste, no qual estão ordenadas as constelações para o estudo da astronomia. O Globo Terráqueo é assim chamado porque serve para dar a conhecer a situação dos continentes, das ilhas e dos mares que os rodeiam para o estudo da geografia. Embora esta diferença de aspecto pareça estabelecer uma diferença de uso entre estas duas expressões, é necessário, no entanto, confessar que muito poucos autores dizem Globo Terráqueo; quase todos dizem Globo Terrestre". (Antoine Augustin Bruzen de la Martière, Le Grand Dictionnaire géographique, historique et critique, Haia. t. VIII, 1738, p.393). Eis um resumo das subtilezas desta longa tradição e o seu "desenlace".

O termo parece "terráqueo" ter sido utilizado pela primeira vez por Philipp Labbé na sua Géographie Royale, Paris, 1646 (Randles, 2000, p.74). Labbé referiu o “Globe terraqué” como sendo "a terra e a água unidas no centro do Universo". E Riccioli refere no seu Almagestum Novum (1651) o "terráqueo elemento" que habitamos: "Terraqueum hoc, in quo degimus Elementum; hoc est Terra et Aqua compositum."

Behaim globo  Behaim globo  Behaim globo
O globo terrestre feito por Martin Behaim (o "Martinho da Boémia" que esteve em Portugal ao serviço de D. João II), datado de 1492. Considerado um dos globos terrestres mais antigos a ser construído e provavelmente o mais antigo que ainda persiste. É conhecido como Erdapfel ("batata"), (Germanisches Nationalmuseum, Nuremberga, inv. WI1826). A 1ª fotografia é de Alexander Franke)


No que diz respeito às "traduções" cartográficas, os mappaemundi medievais, habitualmente circulares, dão lugar a uma nova estrutura de carta, nomeadamente a marítima, que denuncia e permite visualizar a maior proporção das áreas dos mares e oceanos relativamente às terrestres, permitindo noção de escala e contradizendo as proporções pseudo-aristotélicas, bem como outras interpretações Antigas.

Na perspectiva  antropológico-cultural, verifica-se uma mudança de paradigma desde a adopção dos sistemas de coordenadas: o espaço deixará de ser simbólico e passará a estar "desencantado", doravante conceptualizado respeitando princípios científicos. Como Jo Marchant resume: "By drawing lines of longitude and latitude around our planet, we changed our relationship with the space that we inhabit. The medieval mappae mundi were crammed with not just places but people, creatures and events, both real and mythical. Time and space were blended; the prominence given to each location depended on its perceived importance: scenes were painted as they would appear to the human eye. With the switch to Ptolemaic maps, this moral and historical framework was replaced by a mathematical one.The newcharts - compiled according to astronomical observations - were constructed to represent not a human viewpoint but a geometric projection, and were proportioned not according to myth or whim but a regular scale. In other words, they treated each location equally, as a simple pair of coordinates, regardless of its cultural significance. It’s a change that seems natural and obvious today, but it had fundamental implications. Our subjective experience of the world was no longer the “truth.” (The Human Cosmos: Civilization and the Stars, Dutton, 2020. pp.145-6). O processo não foi assim tão linear, como vimos. Mas em termos gerais o comentário é tempestivo.

Coronelli - Globo Terrestre

Sabemos que os globos terrestres, a partir do século XVI, apelaram a uma vasta e culta audiência. Segundo Gemma Frisius (Principiis de astronomiae et cosmographiae, 1530), os globos são apreciados por todos, "não apenas pela sua beleza mas pela sua indescritível utilidade". O veneziano Vincenzo Coronelli (1650–1718) elevará o ofício da construção dos globos ao seu apogeu (vide exemplo acima).


Loxodromia e ortodromia: qual o menor percurso entre dois pontos no globo?

loxodrome vs orthodrome   Perelman - globe

Loxodromia ou loxódroma é uma linha recta faz um ângulo constante com todos os meridianos. Todavia, é através de uma curva ortodrómica que se representa o percurso mais curto entre dois pontos na superfície da Terra. Em navegação, o trajecto planeado segundo a ortodromia é decomposto em pequenos segmentos de loxodromia, cada um dos quais com rumo corrigido. Estendendo um fio sobre um globo permite compreender facilmente a diferença entre estas linhas.(Perelman, Y., Shkarowski, A. (trad.), Astronomy for Entertainment, Foreign Languages Publishing House, Moscow, 1958; Fig.1 e Fig.3)



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