Cronologias

Calendarium significava "livro de contas", "registo". As Calendas, entre os romanos, eram o primeiro dia de cada mês; este vocábulo provém do verbo calare (latim), que significa "chamar", "convocar", "anunciar". A palavra calendário passou, depois, a designar o livro litúrgico onde está inscrita a cronologia das solenidades eclesiásticas.(in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa). A origem do nosso calendário radica nas implementações romanas, a partir do Calendário Juliano e da posterior correção gregoriana. O calendário primitivo de Roma legou-nos os nomes dos meses mas a sua origem é nebulosa e mergulhada na lenda.


A contagem dos anos é, em todos os calendários, efectuada a partir de acontecimentos considerados de suprema importância. A chamada Aera ou Epocha define um ponto específico no tempo a partir do qual a contagem começa. Este ponto convencional investe e qualifica um momento decisivo, a proclamação de um novo contexto cultural/político ou ainda um evento religioso com profundo significado para uma cultura (e.g., o Cristianismo é uma religião ancorada a uma circunstância "histórica" particular). Noutros casos é a própria data da Origo Mundi, extraída por exegese dos "Textos Sagrados".

Eras históricas - listagem das mais relevantes e anotações. É fornecido o início convencional, enquadrando a data na Era Cristã ou Vulgar (aerae vulgaris, "da era vulgar", designação já encontrada em Kepler em 1615 e adotada mais tarde, a partir do século XIX, numa perspetiva secularizadora e académica)

 

(Imagem de edição pós-incunábulo da História de Roma, "Ab Urbe Condita", de Titus Livius, impresso em Paris por Jodocus Badius para Jean Petit, 1513)

 

Era Cristã

Guiado provavelmente pela cronologia de Eusebius de Cesareia, algumas coincidências com a convergência dos ciclos disponíveis ou mera conveniência, a cronologia de Dyonisus Exiguus chegou ao ano (equivalente a) 1 a.C. como ponto de partida de uma série, acreditando aí ter ocorrido a Anunciação (a 25 de março). Estavam na época exaradas opiniões divergentes, e.g., de Cassiodorus, Orígenes, Tertulianus ou Hieronymus (S. Jerónimo).

Quando elaborou a sua tabela e cronologia, os anos do Calendário Juliano eram identificados através dos anos dos consulados concomitantemente exercidos. Dionysius refere o consulado de Probus Junior, definindo-o, sem explicar, como o ano 525 desde a Encarnação de Jesus Cristo.


N.B.: A fórmula para a contagem dos anos em Roma (datas consulares e data pós-consulares) era assim identificada: N. (Nomen) V. (viro) C. (clarissimo) COS. (consuli) S. (sub) D. (die). Continuou após o colapso do Império. O último exemplar de documentação com a data pós-consular é do ano 904 e tem a assinatura do papa Sergius III (904-911). Contudo, nenhuma notação cronológica foi suficientemente utilizada de modo a ter uma utilização generalizada.

Dionisius, Exiguus considerou o dia 25 de dezembro do ano de Roma 753 como sendo a data de nascimento de Jesus Cristo, fazendo coincidir o primeiro ano da era cristã com o ano de Roma 754, o segundo no nascimento de Cristo. Estabeleceu-se, na prática, o ponto de partida da Era Cristã com o ano seguinte aao nascimento (no início do novo ano juliano), supostamente o primeiro ano completo da vida de Jesus Cristo (coincidindo com o ano 753 A.U.C., Ab Urbe Condita, a Epocha da fundação de Roma, provavelmente uma inferência mais tardia). Deste modo algo "retroativo" e controverso se instituíram os Anni Domini Nostri Jesu Christi, abreviado "A.D.". O Venerável Beda será promotor e advogado da sua utilização através da sua Tabela Pascal e dos seus escritos históricos e cronológicos. A contagem dos Anos de Cristo disseminou-se principalmente após o ano 'milésimo', e por isso ficou conhecida por esse nome (ou mīlliārium, como então se dizia). Independentemente da adopção dessa contagem (Anno Domini, ab Incarnatione, etc.), existia a complexidade inerente aos diferentes estilos adoptados para o início do ano (v. infra).

Todavia, nem as tabelas nem a nova Era foram imediatamente adotadas por Roma. Será gradual (em Portugal a adoção oficial da Era Cristã acontece somente em 1422, substituindo a Hispânica, ver eras históricas).

 

 

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O Venerável Beda, Schedel, Hartmann, Weltchronik [Liber chronicarum] Nürnberg: 1493 (incunábulo conhecido como "Crónica de Nuremberga".


Cronologia e estilos de datação

No paper Josephus and New Testament Chronology in the Work of Joseph Scaliger (Springer, 2016), C. Philipp E. Nothaft refere dois autores responsáveis por "momentos" fundamentais na génese dos estudos cronológicos, o precursor Paulus Crusius (1525-72) e Joseph Justus Scaliger (Scaligerus): "Although the philological and astronomical techniques that Scaliger and others brought to bear on chronological issues were in many ways characteristic of the increasing scholarly sophistication of the late Renaissance, the discipline’s conceptual roots can be traced back much further, to the valiant attempts of medieval monks to locate the birth and death of Jesus Christ on the timeline of ancient history. That this concern was still very much at the centre of the discipline. Anthony Grafton has shown in his magnificent intellectual biography of the man [Joseph Scaliger, II: Historical Chronology, Oxford, 1993], Scaliger was indebted to the pioneering work of Paul Crusius (1525–1572), a Lutheran theologian and professor of mathematics at the University of Jena, for many of his more successful reconstructions. In his Liber de epochis, published posthumously in 1578, Crusius embarked on a systematic reconstruction of the major epoch-dates of antiquity. A cronologia de Scaligerus respalda-se numa persistente confiança nos textos do historiador Flavius Josephus (c.37-100 AD).

Refira-se que na contagem não há “ano zero” (utilizam-se os números naturais), e isto tem consequências nos estudos cronológicos. Outra complexidade está relacionada com a escolha do 1º dia do ano. O sistema romano previa duas possibilidades, 1 de janeiro e 1 de setembro, sendo a primeira o início do ano civil, 1º dia do ano no Calendário Juliano. Bizâncio utilizava o início em Setebro. Também se pode referir o aequinoctium, início do círculo zodiacal em 21-22 de Março (vide R. Dean Ware, Medieval Chronology: Theory and Practice, in Powell, J. M. (ed.), "Medieval Studies: An Introduction", Syracuse University Press, 1976, ch.6), Quando a contagem a partir dos anos de Cristo se começa a implantar (Anno Domini e também, mais tarde, Anno Salutis, "Ano da Graça" ou "Ano da Salvação"), duas celebrações concitam favoritismo como ponto de partida para a contagem medieval dos dias do ano: Natal e Anunciação (Assumptae humanitatis filii Dei festum, Incarnatio, Conceptio Domini, distando 9 meses, i.e. o período de uma gestação, do Natal). Esta última celebração, cujas antiquíssimas raízes evocam particularmente a Virgem Maria, é hoje chamada "Anunciação do Senhor".

Até à normalização (séculos XVI e XVII) que generalizará a utilização do dia 1 de janeiro, verificam-se, dependendo do lugar e da época, ligeiras diferenças na cronologia. O próprio Papado utilizará, entre outros sistemas dependendo da época e tipologia dos documentos, o chamado calculus Fiorentinus, sistema vinculado à data da Anunciação e divulgado pelos Cistercienses, adotado com visibilidade em Florença e Roma, com epocha vinculada ao dia 25 de março de 753 AUC ((ab urbe condita, "da data da fundação da cidade (Roma)", equivalente a A.D. 1) e significando que os dias até 25 de março pertenciam ao ano precedente. Início estava desfasado 2 meses e 24 dias do início do ano Juliano. Em Portugal também se utilizou extensivamente este estilo baseado na Anunciação, ao modo do norte de Itália. Entretanto, o chamado calculus Pisanus (assim chamado pela demorada implantação na cidade italiana) iniciava o ano de modo talvez mais lógico na Anunciação antes do Natal (a partir de 1 A.C., na contagem atual), resultando na diferença de 1 ano relativamente ao outro cálculo respaldado na mesma celebração. Entretanto, a data de 1 de março era usada em Veneza e em França disseminou-se um estilo que ficou conhecido como estilo Francicus ou mos Gallicanus, "costume" ou "modo" Francês, relacionado, de modo pouco conveniente, com a celebração "móvel" da Páscoa (Pascha, o Paschalis dies, Resurrectio). Instituído no início do século XIII, talvez por motivos políticos. Podia estar desfasado do início do ano Juliano entre 2 meses e 22 dias a 3 meses e 14 dias; o ano podia ter entre 330 e 400 dias, devido ao intervalo admitido para a data da Páscoa (22 de mar. - 25 de abr.). Foi muito utilizado em diversas regiões de França até 1564.

A contagem a partir da Natividade foi utilizada e divulgada por Beda, juntamente com a nova Era Cristã. Comum no ocidente europeu até aos séculos XII e XIII, foi paulatinamente substituída pelas referidas contagens a partir da Anunciação, ab Incarnatione. Mais tarde prevalecerá o dia 1 de Janeiro, coincidente com a celebração litúrgica da Circuncisão do Senhor (Circuncisio, Circuncisio Agni) e, deste modo, conhecido por esse nome. É o estilo que hoje utilizamos.

Em resumo:

O Anno Domini começava na Anunciação (havendo dois estilos distintos), a 25 de Dezembro (Estilo do Nascimento) ou a 1 de Janeiro (Estilo da Circuncisão), contagem que prevaleceu. Quanto aos cômputos de Pisa e Florença, o P. Avelino de Jesus da Costa explicou:

"... o cômputo de Pisa antecipa-se nove meses ao Nascimento de Cristo e o cômputo de Florença começa três meses depois do Nascimento. (...) o estilo de Pisa leva nove meses de avanço em relação ao ano do Nascimento (25 de Março - 25 de Dezembro) e nove meses e sete dias em relação ao ano da Circuncisão (25 de Março - 1 de Janeiro). O estilo de Florença tem, por sua vez, um atraso de três meses quanto ao ano do Nascimento (25 de Dezembro - 25 de Março) e dois meses e vinte e quatro dias relativamente ao ano da Circuncisão (1 de Janeiro - 25 de Março)." (Normas Gerais de Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos, 2ª ed., Braga, 1982, p.24).

Outros estilos: 
- O Veneziano, usado pela "Sereníssima República" até 1797, começava o ano em 1 de março;
- O Bizantino "da Encarnação", iniciava o novo ano a 1 de setembro e, tal como o Pisano, considerava I a.C. o primeiro ano da sua Era, o que significa que
entre os dias compreendidos entre 1 de setembro e 31 de dezembro, o ano vertido para o cômputo actual  precise ser reduzidos em uma unidade.
- O Gálico (mos Gallicanus) ou "da Páscoa" iniciava o seu ano na celebração (móvel) da Ressurreição, exigindo assim a consulta de Tabelas Pascais ou de um calendário perpétuo.
(vide também Manuel Romero Tallafigo et al., Arte de leer Escrituras Antiguas: Paleografía de lectura, [3ª edición aumentada], 2003, p.75)

Estilo Início do Ano
Pisano (Anunciação) 25 de março do ano precedente
Grego/Bizantino 1 de setembro do ano precedente
Natividade (Natal) 25 de dezembro do ano precedente
Circuncisão (também chamado "moderno") 1 de janeiro do ano corrente
Veneziano
1 de março do ano corrente
Florentino (Anunciação) 25 de março do ano corrente
Pascal (Gallicanus) Data da Páscoa do ano corrente

Pelo menos até ao século XIV, encontramos em Itália, em Espanha e no Sul de França, um costume por vezes denominado Bolonhês, que consistia fazer a contagem decrescente dos dias para toda a segunda quinzena do mês. Por exemplo "dies XII mensis Ianuarii exeuntis" ou "...exitus mensis Ianuarii" seria 20 de janeiro (calcula-se, neste caso, 31 - 12 + 1; 31 [nº de dias de janeiro] - 12 [neste exemplo] + 1 [pois contagem era inclusiva]). É, tão somente, uma sobrevivência do sistema romano, onde as datas posteriores aos Idos se exprimiam em relação às Calendas do mês seguinte.


Ante Christum: a.C.

Embora A.D. fosse comummente utilizado a partir do século IX, "Antes de Cristo" ou o equivalente não se tornou comum tão cedo. Beda utilizou anno igitur ante incarnationem Dominicam ("ano antes da Encarnação do Senhor"). Documenta-se um ou outro exemplo semelhante até chegarmos ao teólogo jesuíta Denis Pétau (Dionysius Petavius) que no De doctrina temporum (1627), popularizou a utilização da expressão ante Christum.

 

O CALENDÁRIO GREGORIANO

Em 1582, devido ao desfasamento com o ano astronómico, nomeadamente o ciclo das estações, o Papa Gregório XIII reajustou o Calendário, através da Bula Inter gravissimas (o título deve-se às palavras iniciais do texto, como é convencional).

O documento ditava que o dia imediato à quinta-feira, 4 de outubro, fosse sexta-feira, 15 de outubro, corrigindo o desfasamento de 10 dias verificado em relação à natureza (pois a data do equinócio vernal é fundamental na determinação da data da Páscoa).

- Os anos seculares só são considerados bissextos se forem divisíveis por 400. Deste modo, a diferença (atraso) de três dias em cada quatrocentos anos observada no Calendário Juliano desaparece. Detalhou-se ainda a medição do ano solar.

- Para garantir a precisão e acautelar o desfasamento lunar decorrente da imprecisão da implementação metónica, utiliza-se doravante um novo Cyclus epactarum (a nova Epacta).

As expressões vetus (antigo) e novum (novo) encontradas na literatura equivalem a Juliano e Gregoriano, respetivamente. O novo calendário é por vezes utilizado "prolepticamente" para assinalar datas anteriores à sua instauração.

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Edição coimbrã do novo calendário (1583)

Bula Inter gravissimas (incluída no Calendarium Gregorianum Perpetuum de Christophorus Clavius), col. Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze

O calendário para outubro de 1582, excluíndo os dias suprimidos


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Milénio

Gerou-se alguma confusão quanto ao início do novo Milénio: 2000 ou 2001? Convém referir que nestas coisas do tempo não há 'anos zero'. A contagem começa em 1, segundo os números naturais e não segundo os números inteiros, que se iniciam com a referida abstração matemática.  Por comparação, se contarmos os dedos das mãos de duas pessoas, quando é que passamos para a segunda pessoa? (século, milénio, tanto faz!). Pelo facto de ter sido instituída sem o recurso a um "ano zero", a série que se inicia com o primeiro ano da Era Cristã  determina que o ano 2001 constitua o 1º do século XXI e, por consequência, do Terceiro Milénio.