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Alguns cometas "portugueses" históricos

Cometas "portugueses"

"Levantem pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se os virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam."
(Padre António Vieira, História do Futuro, cap. VIII)
 
A designação komếtês [astếr] ("estrela com cabeleira") já surge em Aristóteles (Meteorologica, lib. I, 6.) e nos Phainómena de Aratus. Chegou-nos do Latim. Como Vasco Jorge Rosa da Silva refere (Breve estudo sobre os cometas em Portugal. Revista de Guimarães (Sociedade Martins Sarmento), 113-114, Jan.-Dez. 2003-2004, pp.231-252), os cometas eram, no passado, interpretados como augúrios da convencional trilogia de catástrofes medievais: a fome, a guerra e a peste.

Exalações-cometas (Avelar)
"Da exalaçam", André do Avelar, Chronographia ou Reportorio dos Tempos..., 1602 L.III, cap. 6

No
início do período moderno, como explica Luís Miguel Carolino, a tese mais divulgada e consensual concebia estes fenómenos como exalações terrestres que ascendiam à suprema região do ar e eram provocadas, na linha de Abu Mas'shar, pela conjunção dos três planetas superiores. Assim, a maioria dos cometas apresentava qualidades semelhantes a estes corpos celestes (Ciência, Astrologia e Sociedade: a Teoria da Influência Celeste em Portugal (1593-1755), Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, Novembro de 2003, p.337).

- Para o período medieval, ler a introdução de Nerea Maestu Fonseca: Atravesando el cosmos: astronomía, historia y el estudio de cometas en época medieval, in María Jesús Fuente & Inés Monteira Arias (eds.), "Enanos sobre gigantes en el siglo XXI: La Herencia Medieval en España", Universidad Carlos III de Madrid, 2023, pp.71-85). As mais interessantes listagens "clássicas" de cometas históricos são: Johann Hevelius (Prodromus cometicus, 1665 e Descriptio cometae..., 1666); Stanisław Lubieniecki [ou Lubienetzky, Lubienietz] (Theatrum Cometicum, 1666-68): Joseph Cassani, Tratado de la Naturaleza, Origen, y causas de los Cometas, Madrid, M. Fernández, 1737; Caps. VIII-XI; Nicholaas Struyck (Inleiding tot de Algemeene Geographie, Benevens Eenige Sterrekundige en andere Verhandelingen ("Introdução à Geografia geral, para além de alguns tratados de astrónomos..., 1740; foi editada uma continuação em 1753); Alexandre Guy Pingré (Cométographie ouTraité Historique et Théorique des Comètes, 1783-4).


Os cometas, criações novas e sobrenaturais, "estrelas criadas e dissolvidas por Deus", operavam, de facto, em oposição às naturais leis dos céus. Tal como as grandes conjunções e os eclipses, foram por vezes interpretados como "balizas" numa perspectiva apocalíptica e teleológica da História, numa "cronologia do divino" que abria espaço para a profecia e para a prognosticação. Exemplificada no Livro do Apocalipse, a intervenção divina é eventualmente anunciada por portentos celestes:
"E o terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu na terça parte dos rios, e nas fontes das águas." (8, 10) ou "E o quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo." (9, 1).

Cometas - Lunario perpetuo
A explicação prevalecente era veiculada no popular Lunário de Jeronymo Cortez (O Nec Plus Ultra do Lunario e Progostico Perpetuo...; trad. A. da Silva de Brito; s.n., p.141)
 

Cometas "portugueses"

Segundo a
Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques, antes da tomada de Santarém (1147), foi visto um synal de "mau presságio" (para adversários sarracenos, esclareça-se), que, pela descrição, parece ter sido um impressionante meteoro ou bólide, "bola de fogo": 
 
"Passado assi esto com outras muitas palavras, e praticas sobre o caso, aparelharam todo o que fazia mister, para tal obra, e leixando alli as tendas, e todo o al que traziam, cavalgaram em seus cavallos, e chegaram aos olivaes de Santarém, de noite. Esto era em vespora de S. Miguel de Maio sete dias andado do mez, na era de mil cento e quorenta e sete annos (1147), e chegados alli viram um sinal, que lhes esforçou muito mais os corações; viram uma estrella grande ardente com graude raio correndo pelo Ceo, da parte da Serra, que alumiava a terra, e foi ferir no mar. Vendo esto disseram logo todos. Senhor Deos todo poderoso a Villa è em vossas mãos. Esso mesmo no dia que El-Rei mandou notificar aos Mouros o britamento [invalidação, anulação] das tréguas, que acima dissemos aos da Villa, appareceo outro sinal mui espantoso pronostico de sua mortindade, que foi na terceira noite seguinte, viram no Ceo a horas do meio dia semelhança de um Touro ir por meio do Ceo, levando chamas de fogo acezas, desde o cabo até á cabeça. O que esses mais sabedores antre os Mouros, intrepetáram que Santarém haveria cedo Rei novo, e seria o filho dei Rei de Sevilha Mouro, cujo Santarém, e Lisboa, e parte da Estremadura era." (Chronica de El-Rei D. Affonso Henriques por Duarte Galvão, Bibliotheca de Classicos Portugueses, LI, Lisboa, Escriptorio, 1906; cap. XXXI, pp.103-4)
 
O segundo fenómeno noutra fonte: "meyo-dia asy como hum touro que ya per meyo do Ceeo, que levava como as asas de foguo des o cabo ate à cabeça" (Crónica de Portugal de 1419, estudo crítico de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, p.42)

Descrições não referem que foi um cometa e, de facto, não são compagináveis com a observação de cometas. Algo luminoso "correndo pelo Ceo" e um ígneo touro alado?
Não se estabelecia então uma diferenciação tipológica clara entre estes fenómenos. Cometas, meteoros, bólides, halos..., todos eram descodificados num quadro conceptual que observava "sinais" em todas as manifestaçõe atípicas da natureza. Vale a pena ler, pela vivacidade da reportagem, mas o único potencial cometa no catálogo de Gary W. Kronk (Cometography: A Catalog of Comets, vol. I, Cambridge University Press, 1999, p.203) é o objecto C/1147 A1 que foi somente observado entre Dezembro de 1146 A.D. e o Fevereiro sequente.

Outro fenómeno, em 1437, foi avistado a caminho do malogrado cerco a Tânger, tristemente célebre pelo destino do depois chamado "Infante Santo", D. Fernando. A empresa foi liderada pelo infante D. Henrique, era então a praça controlada por ibne Sale, o "Çallabençalla" nas nossas crónicas. Zurara, na Chronica do Conde D. Duarte de Menezes, Cap. CXLVI (Como o Infante Dom Fernando cometeo o escalamento de Tanger, e como se deu ao reves do que elle quisera), relata:

"E em huma vespora de Sam Sebastiaõ [19 de Janeiro] partio assi o Infante com aquella gente Dalcacer[-Ceguer] sendo já ácerca da noite, levando sua via dereita, ca hi nom havia guardas de que se houvesse de temer. Diz aqui o author que logo aquella partida mostrou aaquelles que o bem quisessem esguardar, quejanda sua fim havia de ser, ca logo o ardil que os homens traziam em concertar suas cousas era pesado, e com vontades carregadas, falla pouca, c contenenças tristes, porque as almas per intrinsico segredo lhe revelavaõ o que lhe em breve havia dacontecer. E Gomez Freire, nobre Fidalgo, e homem de grande coraçom, dixe em voz  alta indo per aquelle caminho; Ó maa noite pera quem te aparelhas! E sendo já no cabeço Dalmenar, pareceo aquella Cidade humma muy  grande cometa feita à maneira de dragão espargendo feus rayos que nom pareciaõ senaõ vivas chamas de fogo, o que aos entendidos acrescentou mais ao carregamento das vontades."

Também Rui de Pina descreve o episódio na sua crónica do reinado de D. Afonso V: "Na tristeza e pezo que todos levavam pello caminho, logo pera bem do feito pareceo desaventurado pronostico, especialmente que sendo sobre o cabeço, que dizem d'Almenar, pareceo no Ceo à vista de todos huum espantoso cometa, que lençava de sy muitos rayos de fogo em figura de dragam." ("Chronica do Senhor Rey D. Afonso V" in: Crónicas de Rui de Pina, introdução e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão Editores, 1977
, p. 305).
 
Na edição da Bibliotheca de Classicos Portugueses; Lisboa, Escriptorio, 1902, vol. III, cap. CLIII, pp.37-38) lemos: "E na tristeza e pezo que todos levavam pelo caminho, logo para bem do feito pareceu desaventurado prognostico, especialmente que sendo sobre o cabeço, que dizem d'Almenar, pareceu no ceu á vista de todos um espantoso cometa, que lançava de si muitos raios de fogo em figura de dragão."
 
O citado catálogo de Gary W. Kronk não inclui qualquer fenómeno conspícuo nesse ano. Tânger cairá em mãos portuguesas apenas em 1471, ano no qual um cometa (C/1471 Y1, designação actual) foi descoberto.

Este cometa foi geralmente observado em 1472. Inicialmente "ad oriente nel primo grado della costellazione della Bilancia", segundo um relato italiano;
"...idibus Januarii visus est nobis Cometa sub Libra cum stellis Virginis..." registou o matemático Regiomontanus (Johannes Müller, de Königsberg, 1436–1476), que o observou detalhada e sistematicamente fornecendo preciosa informação posicional. Ou seja, estava, a 13 de Janeiro (idus), no signo Libra e sideralmente, em corpo, em Virgo (consequência da precessão). Numa simulação retrospectiva (recorrendo ao programa informático GUIDE 9.1), verificamos que estaria então observável aproximadamente entre Spica e Arcturus e a sua longitude seria de ~192º, i.e. 12 graus de Libra (signo que ocupa o intervalo 180º-210º de longitude zodiacal).

D. Afonso V
D. Afonso V representado num manuscrito de Georg von Ehingen

No Theatrum Cometicum (Tomo II, p.302) Lubieniecki cita Rockenbachius (Abrahami Rockembackii Exempla Cometarum), que mencionou a expedição africana do rei Afonso (V) e como as duas importantes cidades de Tânger e Arzila foram devastadas e ocupadas: "Alphonsus Rex Portugalliae cum exercitu in Africam proficiscitur, duasque munissimas civitates, Tingin & Argillam devastat & occupat.". Na realidade, somente Arzila foi conquistada pela força.  Como consequência estratégica, Tânger foi abandonada pelos seus defensores e deixada à mercê das forças do "Africano".

Cometa de 1471-2 (Crónica de Nuremberga)
O cometa de 1471-2: "O Grande Cometa que apareceu em Mcccclxxij (1472)", Liber cronicarum cum figuris et ymaginibus ab inicio mu[n]di vsq[ue] nu[n]c temporis, 1497 (incunábulo em Latim da chamada "Crónica de Nuremberga" (
Weltchronik), de Hartmann Schedel). A crónica é uma "história mundial" ilustrada, na qual os conteúdos são divididos em sete "idades".

Outro relato do mesmo cometa tem o seu assento no Convento de Jesus, em Aveiro. Segundo a chamada Crónica da Fundação e Memorial da Infanta Santa Joana, geralmente atribuída (com respaldo em apenas duas notas marginais, uma das quais tardia) à religiosa Margarida Pinheiro ("Marguarida pinheyra"):

"Ho ãno do Senhor de mil . iiij c . lxxij [1477]. No mes de Marco . Comecou de aparecer e se demostrar no Ceeo sobre este moesteiro . hũu muỹ evidẽte e manyfesto synall . Ho qual era que Como de todo se ponynha ho soll . aparecia hũa grãde Cometa aa maneyra de muỹ grande strella . E aỹda que ho aar steuesse toruado e ho Ceeo scuro cheo de nuuẽes . e sẽ parecer outra algũa strella nẽ lũa esta ẽperóó sẽpre des que aparecia acabada e cõpleta [uma das horas litúrgicas] ataa aluorada da manhãa que algũas vezes era bem clara . sẽpre staua fixa sem se mouer do lugar ẽ que aparecia . O qual era sobre ho dormitorio . ou mais parecija star no lugar honde stam edificadas as Casas da Senhora Jfante . ẽ spicial . sobre a Casa que agora he Chamada Casa do lauor . E a outra noyte staua a dita Cometa ou strella mũi grãde e clara . sobre a casa onde agora sta e serue a sancristia . E da dita Cometa e strella sahija hũu muy grande e claro Rayo largo todo . saluo no Cabo era hũu pouco mais streyto . O qual Rayo sahya do meyo que parecija strella . e passaua toda a largura do ceeo da Crasta [claustro] . e assy staua sẽ se mouer . nẽ minguar nẽ crecer . mas muito fixo e claro . Hũa noyte staua o que parecija strella sobre a casa que ora he  sancristija E ho Rayo que della sahija . Cercaua de longo todo ho ceeo da crasta atee chegar sobre ho dormitorio E lugar onde stã as casas da dita Senhora Jffante . E a outra nocte sahija e staua fixa sobre as ditas Casas e ho Rayo cercaua e chegaua ataa onde sta a casa que ora he sancristija . E assi andaua a Reuezes hũu e outro hora de hũu Cabo ora do outro . sẽ nũca hũa soo nocte falecer de aparecer ora de hũa maneyra e doutra e sẽpre aaquellas certas oras depois da cõpleta aparecẽdo e ally fixa stãdo atee aluorada e manhãa . na qual subitamẽte desaparecija assy Como aa nocte subito aparecija . Grãde spãto fazija a todos os que vijã este tam marauilhoso grãde e desacustumado synall . e de diuerssos diuerssas sentẽcas e openioẽs se diziã . porque a cousa e synal miraculoso e nũca outro tal ẽ nossos tenpos aparecido de todos era muito notado e visto des as oras ẽ que Comecaua de aparecer . e cãdo desaparecija . e a mudanca que fazija hũa nocte ẽ hũu Cabo do moesteiro E a outra no outro . Grãde themor e spãto avijã a deuota  madre E todas as Religiosas ẽ veerẽ tam grãde marauilha sobre sy . nõ entẽdendo ho tam claro synal feyto manifestamẽte e syngullar per soo deus . Mas cando o dito synall desta muỹ clara cometa ou strella cõ seu Resplandecẽte Rayo cessou e leyxou de aparecer . nũca mais tornãdo nẽ sẽedo visto . Entõ manifestamẽte ẽtenderõ e conhecerõ a causa e Rezã do tal e tã euidente synal a qual se dira ẽ seu lugar ."

[Transcreve-se (sem os 'caldeirões' tipográficos) da criteriosa
edição (paradiplomática, supomos) do Memorial por Jessica Firmino e Cristina Sobral (CLUL: Corpus de Textos Antigos). Disponível em linha (aced. Agosto 2025). Refira-se uma edição de Domingos Maurício Gomes dos Santos (S.J.): "Crónica da Fundação", in: O Mosteiro de Jesus de Aveiro, Vol II/2. Lisboa: Companhia de Diamantes de Angola, 1967. O códice (Biblioteca do Museu de Aveiro, MS. 1 [33/CD]) já havia sido criticamente revisto e transcrito por António G. da Rocha Madahil com edição do Professor Francisco Ferreira Neves (Aveiro, 1939). Muito antes, com o ressurgimento do interesse na peculiar Infanta, surgiu um Epitome da Vida de Stª Joanna... publicado em 1755 em Lisboa (Officina de Manoel Soares), resultando da tradução da Breve Narratione Della Vita della Beata Giovanna... Raccolta da un religioso..., publicada em Roma, Nella Stamp. della R.C.A, em 1603. Todas as hagiografias recorreram, directa ou indirectamente, à mesma fonte aveirense.]


O Padre António de Vasconcelos (Anacephalæoses, id est, summa capita actorum regum Lusitaniae..., 1621, Tomo I, cap XVII) acrescenta que seria um cometa esplendoroso, redondo, grande, daqueles a que se chamam caudatos:

"(...) in Martio mensis ingentis splendoris Cometa cerni coeptus est, ex iis, quos Philosophi caudatos appellant, Rotundus ipse, magnus, mire incidus..."

Convento de Jesus Aveiro
O Convento de Jesus, muito mais tarde, segundo uma photographia. (Revista O Occidente, 5º Anno-Volume V - Nº 138 (21 de Outubro de 1882). Entretanto, este espaço alojou uma instituição religiosa de ensino: o Colegio de Santa Joanna Princeza. Extinto esse colégio, tornou-se Museu Regional em 1911.


Em 1767, na Historia de S. Domingos de Frei Luís Cácegas (
Cacegas), organizada e expandida por Frei Luís de Sousa (Tomo II, Livro Quinto, p.349), rapidamente se assume que o fenómeno não teria sido interpretado como cometa inspirador de medo mas sim como "outra cousa":

"Neste tempo, conta a Historia antiga, que temos desta Senhora escrita de maõ, e guardada como thesouro no Cartorio do Mosteiro, que apparecia sobre elle hum estranho sinal do Ceo. Era huma exalaçaõ, que representando ser estrella, que lançava de sy hum claro, e resplandecente rayo, grande em largura, e taõ estendido, que aos olhos de quem estava na Crasta [claustro] tomava todo o ceo della. Na primeira vista ameaçava ser Cometa, e como tal fazia medo; mas considerado bem o apparecimento, e mudanças de cada dia, mostrava ser outra cousa: porque apparecia todos os dias acabada Completa sobre o Mosteiro, e permanecia toda a noite até polla manham, sem fazer mais diferença , que inclinarse humas noites contra a caís, que agora he sacristia, e outras sobre o sitio, em que despois se edificou aposento pera a Princesa: e tinha outra  novidade espantosa, que ainda que o Ceo estivesse toldado de nuvens, ou nevoas , e escuro, e sem estrellas ou chovendo, sempre se deixava ver da mesma maneira. E tinhase começado a notar desde entrada de Março deste, e durava por fim de Julho, que foy quando: elRey chegou a Aveiro."



Joana de Avis
O conhecido retrato de Joana de Avis (Santa Joana Princesa) em trajos de corte. Pintura a óleo sobre madeira, por vezes atribuida a Nuno Gonçalves mas, na realidade, de autor desconhecido (acervo do Museu de Aveiro). Pintura terá sido objecto restauro, nomeadamente nos anos 30 do séc. passado. O resultado gerou breve polémica na imprensa local da época. Em todo o caso, segundo Rocha Madahil, já numa época anterior "indeterminada" teria sido objecto de uma (citamos) "repintura" (A. G. da Rocha Madahil, Iconografia da Infanta Santa Joana, Arquivo Distrital do Distrito de Aveiro, 1952. vol. XVIII, pp.186-276)


A Infanta Joana de Avis (1452–1490), depois conhecida como "Santa Joana Princesa", era filha do rei D. Afonso V e de sua primeira esposa, Isabel de Coimbra. Foi supostamente jurada Princesa Herdeira da Coroa, título que manteve até ao nascimento do irmão, futuro rei João II. Foi (oficialmente) regente aquando da ausência do seu pai e do seu irmão, quando estes se deslocaram em campanha ao norte de África, em 1471. Em Setembro, do mesmo ano, após o regresso, o rei anuiu ao desejo de Dª Joana ingressar num convento. Depois de passagem pelo Convento de Odivelas, acabou por se decidir pelo então modesto Mosteiro (Dominicano) de Jesus, na então vila de Aveiro. Entrou neste convento a 4 de Agosto de 1472. É reconhecida como
Beata pela Igreja Romana.

É praticamente irrelevante no piedoso contexto da prosa, mas torna-se interessante verificar que, no âmbito da teoria astrológica coetânea, os astros emitiriam “raios”, traduzindo desse modo uma analogia óptica (i.e. com o mecanismo da visão) segundo a qual “ver” significava “projectar raios sobre”, emissão e recepção de influentia (S. Jim Tester, A History of Western Astrology, Boydell Press, 1999 [1987], p. 140).

No relato deste Memorial, ênfase é colocada na estirpe miraculosa do "synal". Comprova-se, para além do que pudemos ler acima (e.g., a posição inamovível, "ally fixa", da "strella" sobre o cenóbio e os futuros aposentos da Infanta), pelo que adiante se diz: "Como esta Senhora e princesa nossa Senhora Jffante chegou e ẽtrou nesta villa d’aveyro . Logo naquelle dia aa nocte nõ foy visto nẽ apareceo mais ho synal e strella no Ceeo como cometa . nẽ ha claridade e Rayo que della sahija muỹ claro do qual Ja ẽ Cyma foy dito que des ho Comeco do Mes de Marco Comecou de sayr e aparecer sobre este moesteiro . des ho sol posto atee tornar ha nascer e Rõper a aluorada . Ho que manyfestamẽte demostrou e deu a entẽder seer võtade do muỹ alto deus per este tã excelẽte e claro synal fosse certo e Conhecido seer obra sua ordenada per elle . e vĩjda desta sclarecida Senhora . ante da qual per tãtos dias sẽ nũca hũa soo nocte fallecer sẽpre foy vista . E ho primeyro dia e nocte que nesta vylla ẽtrou a dita Senhora Jfante nũca Jamais aquela nẽ outra semelhãte apareceo . O que deu grãde certidam e ffe . a muỹ Clara cõsciencia e vida da dita Senhora cõ que a muitos avia de alumiar cõ seu exẽplo de vida e muitas virtudes ." (62c-d). Estamos, portanto, perante uma interpretação de um sinal divino, feito, como se diria, "sobre cursso de natureza"; também parece evocar uma outra "estrela" prestigiosa, a de Belém, o que parece quase "herético".

O grande cometa que serviu de pretexto ao relato foi descoberto em Dezembro de 1471 (Gary W. Kronk, Cometography: A Catalog of Comets, vol. I, Cambridge University Press, 1999, p. 285) mas geralmente observado em 1472, contudo antes do mês mencionado no relato aveirense (principalmente em Janeiro, segundo o acervo de relatos, de diversas proveniências, de que hoje dispomos). Alcançou o periélio (ponto da órbita mais próximo do Sol) logo no primeiro dia de Março, sendo obviamente inobservável nas imediações dessa data. Não há, aparentemente, em quaisquer fontes, relatos posteriores ao seu periélio (Ronald Stoyan, Atlas of Great Comets, Cambridge University Press, 2015, p.50).

N.B. Foi o último cometa observado pelo italiano Paolo dal Pozzo Toscanelli, que acerca deste deixou um breve manuscrito (cf. G. Celoria, “Sulla Cometa dell'anno 1472”, Astronomische Nachrichten, No. 2668).



Um cometa avistado em 1491 “pressagiou” (em retrospectiva, e provavelmente no quadro do incentivo que as interpretações “sebásticas” trouxeram à literatura dos cometas), o lamentável acidente equestre que vitimou, em Alfange (Santarém), o Príncipe D. Afonso, filho e herdeiro de D. João II e de D. Leonor:

"Alphonsus Rex (sic) Portugalliae de equo cadens ambo mortui sunt." (Rockenbachius, cit. por Lubieniecki: Theatrum cometicum…, Tomo II. p. 311).

Garcia de Resende (Chronica que trata da Vida e Grandíssimas virtudes e bondades, magnânimo esforço, excellentes costumes & manhas, e claros feitos, do chiristianíssimo D. João o segundo d'este nome..., Cap. CXXII) descreve o acidente sem qualquer ligação a presságios. Assim: "...na força do correr o cavallo do Principe cahio, e o levou debaixo de si, onde logo em proviso ficou como morto, sem fala, e sem sentidos.". Continua adiante: "E com isto se levantou entre todos um muito grande e muito triste e desaventurado pranto, dando todos em si muitas bofetadas, depenando muitas e mui honradas barbas e cabelos, e as mulheres desfazendo com suas unhas e mãos a formosura de seus rostos, que lhe corriam em sangue. Cousa tão espantosa e triste, que se não vio nem cuidou.". E resume: "Morreo em idade de dezaseis annos e vinte dias, parecendo no corpo, na barba, no saber, siso, e socego homem de vinte e cinco annos. Foi casado sete mezes e vinte e dois dias. E sendo criado com tanto amor e prazer, tanto estado e grandeza, tanta gloria mundana, que todos desejavam de o trazer sobre suas cabeças, o viram em um instante debaixo dos pés de uma besta" (Chronica d'El-Rei D. João II, Cap. CXXXII; Bibliotheca de Classicos Portugueses, XXXII, Lisboa, Escriptorio, 1902; transcreveram-se excertos do vol. II, pp. 116-9).

Segundo o cronista, aconteceu "…terça feira doze dias de Julho do dito anno de mil e quatrocentos e noventa e um", data (no Calendário Juliano) da qual confirmamos a feria (dia da semana), correctamente exarada.

Uma referência tardia refere de passagem: "…sendo o [cometa] que se vio no anno de 1491 annunciador da lastimosa morte do Príncipe D. Affonso, filho delRey D.Joao II, precipitado de hum cavallo na Villa de Santarem." (Diogo Barbosa de Machado, Memorias para a História Del Rey D. Sebastiaõ..., Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real (1751), Tomo IV, Parte IV. Livro 1. Cap. XX, pp. 179-80). Na recolecção de Pingré (T. I, p. 478): «Vers le commencement de cette année, on vit une grande Comète, avec une queue blanchâtre & très-longue». Tratou-se do objecto C/1490 Y1, descoberto em Dezembro e avistado até Fevereiro do ano seguinte (Kronk, p. 290). Será meticulosamente observado em meados de Janeiro por Bernhard Walther em Nuremberga, estando então na direcção de Cetus, a Baleia. Por esta altura, os Turcos ocuparam parte da Dalmácia e Esclavónia. No ano seguinte, dá-se conquista de Granada aos Mouros e Colombo partirá para a sua primeira viagem.


Lemos agora a notícia de um cometa de 1500, considerado augúrio sombrio do naufrágio em que pereceu o navegador Bartolomeu Dias quando fazia, na armada de Cabral, a travessia entre o Brasil e o Cabo da Boa Esperança. Associado a esse infortúnio por João de Barros (Decada I, Liv. V, cap. II), a procela foi descrita por Manuel de Faria y Sousa
(1590-1649) na Asia Portuguesa (crónica escrita em Castelhano), Tomo I, 1666 (ed. póstuma), que menciona o "triste anuncio":

Faria y Sousa AP T1, p.45
Excerto da descrição de Faria y Sousa, in Asia Portuguesa, Tomo I, p.45

Alexandre Guy Pingré, no séc. XVIII, elenca este cometa mas omite os detalhes dramáticos:

"Des Voyageurs qui faisoient voile du Brésil au cap de Bonne-espérance, la virent le 12 Mai (& non pas en Janvier comme le dit Hevelius): elle paroissoit  du côté de l'Arabie; ses rayons étoient trés-longs; elle fut ainsi continuellement observée, jour & nuit, durant huit ou dix jours [afirma aqui citar Cadamosto, cap. LXVII]". Adiante refere como o cometa foi em França chamado "Seigneur Astone" (a partir da convencional categorização morfológica do cometas, que veremos adiante) mas não menciona qualquer naufrágio. (
Cométographie ou Traité Historique et Théorique des Comètes, Tomo I, 1783, p.479)

A notícia "completa" é mais tarde anotada por Alexander von Humboldt (que se respaldou em João de Barros) no seu Examen Critique de l'Histoire de la Geographie du Nouveau Continent (Tomo I, Librairie de Gide, 1836, p.296) e, a partir desta referência, por François Arago (Astronomie Populaire, vol.II, 1855, p.332).

Cometa 1500
Referência ao cometa de 1500 na Astronomie Populaire de Arago, da deuxième édition das Oeuvres Complètes, ed. J.-A. Barral. ("Dominus Astone" era um dos nomes pelo qual se conhecia uma das tipologias em que se dividiram os cometas, ver e.g., Fr. Antonio Teixeira, Epitome das Notícias Astrologicas para a Medicina, Lisboa, 1670, p.113)



Dois cometas balizaram a vida da insigne Dª Catarina de Áustria (1507–1578): nasceu (dezoito dias após o precoce falecimento do seu pai, Fernando de Habsburgo) depois do avistamento do cometa de 1506; faleceu em 1578 após outro grande “presságio”, o de 1577. Quanto ao avistamento de 1506, Pingré (p.481) refere: "On vit une Comète au mois d'Août, du côté du nord, ou entre ie nord & l'orient, ou enfim entre l'occident & le nord". O cometa foi observado durante o Verão, em Julho e Agosto. Trata-se do objecto C/1506 O1 (Kronk, p. 295). Apresentava uma cauda longa e conspícua e estendia-se próximo do pólo árctico da esfera celeste. Como escreveu o teólogo e predicador Marcos Salmerón, acerca da morte de Filipe de Habsburgo (rei consorte de Castela): "En medio desta grandeza [havia elencado a elevada estirpe e demais qualidades] murió el rey don Felipe, el año de mil quinientos y seis a veinte y siete de Setiembre en Burgos, de edadde de veinte y ocho años. Avia precedido en el mês de Agosto por espacio de ocho dias un cometa que reboluia con su llama entre Poniente, y Mediodia, que anunció amenaza a la cabeza deste rey, y alteraciones com su muerte en los Reinos de Castilla." (Recuerdos históricos y políticos, Bernardo Nogues, Valencia, 1646; “Recuerdo XXXV”, p. 250). Entretanto, Dª Catarina, filha do mencionado Filipe com Joana de Castela, irmã do Imperador Carlos V e esposa de D. João III, será, já viúva, tutora do neto D. Sebastião, bem como regente do reino lusitano durante a menoridade do futuro rei. Terá, segundo ulteriores especulações, reconhecido o augúrio do novo e grande cometa que surgiu décadas depois, em 1577 (v. infra) e procurado diligentemente, sem sucesso, dissuadir Sebastião de "passar a Berberia". Fê-lo até à sua morte, dramaticamente descrita no Livro Quarto, cap. XX, do (tardio) Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória (1737) do Padre Jozé Pereira Bayão, que voltaremos a encontrar.


Depois, na Miscelânea de Garcia de Resende (originalmente publicada em 1554), no nº 289, podemos ler uma alusão ao cometa "Halley" (
1P/Halley) na sua aparição de 1531 (1P/1531 P1; obviamente antes de lhe ser atribuída essa designação):

Resende - Miscelânea nº 289
Miscellanea e variedade de historias, costumes, casos e cousas que em seu tempo acconteceram, com prefácio e notas de Mendes dos Remédios, ("Subsídios para o estudo da Literatura Portuguesa - XIX"), Coimbra, França Amado - Editor, 1917, p.122. Apostila está incorrecta, o cometa foi observado em 1531 (vide Seargent, David, The Greatest Comets in History: Broom Stars and Celestial Scimitars, Springer, 2009, p.51; Stoyan, Ronald, [Dunlop, Storm (trans.)], Atlas of Great Comets, Cambridge University Press, 2015 (Oculum-verlag, 2013), p.51). Cometa foi visto entre Agosto e Setembro. Nos dois anos seguintes também apareceram dois cometas brilhantes, sendo o de 1532 (C/1532 R1) mais brilhante do que o próprio "Halley". Ambos se puderam observar durante mais tempo.

No estudo deste cometa detacaram-se Petrus Apianus e Girolamo Fracastoro. O primeiro (cujo nome de baptismo era Peter Bennewitz ou Bienewit) observou-o minuciosamente em Agosto desse ano e constatou (pela primeira vez) que a sua cauda apontava sempre na direcção oposta à do Sol, o que se verificará ser característica comum a todos os cometas.

Astronomicum Caesareum p89v.
Orientação da cauda do cometa de 1531. Ilustração de Petrus Apianus, Astronomicum Caesareum, Ingolstadt, 1540, 89v.

O cometa de 1456 (1P/1456 K1 (Halley)) era, afinal, este mesmo "Halley", num retorno que na época era insuspeitado. A sua periodicidade será mais tarde sugerida justamente por Edmond Halley (1656-1742) que percebeu a similitude das órbitas dos brilhantes cometas de 1531, 1607 e 1682. O seu retorno em 1758–59 foi o primeiro a ser previsto. Um marco científico histórico. Daí o seu nome em homenagem ao polímata Inglês.


Entretanto, um cometa foi observado em 1538 (C/1538 A1), na direcção do poente e no signo Pisces (Peixes).
Petrus Apianus referiu que a sua cauda se estendia por 30º. Será considerado, pelos astrólogos, prenunciador do decesso (em Toledo, 1 de Maio de 1539) de Isabel de Portugal, filha de D. Manuel e esposa do Imperador Carlos V. Segundo António Brehm, foi mais tarde entre nós associado ao advento da Reforma, bem como à génese da Companhia de Jesus, sancionada por Paulo III em 1540 (Sebastião e o cometa espantoso: O cometa de 1577, os avisos do céu e as crónicas sebastianistas, in Letras com vida, #9 (2018), 111-139. FLUP, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeia, p.16, n.20). No notável tratado* de Stanislaw Lubieniecki (1623-1675), uma antologia que quis fazer a história de todos os cometas ("Historia omnium Cometarum"), este fenómeno ("Cometa mense Januarii post occasum Solis in signo Piscium...") é interpretado por diversas autoridades aí citadas (Rockenbachius, Melanchthon, Riccioli, et al.) como prenúncio de múltiplos acontecimentos, desde o mencionado falecimento ao reacender da actividade ígnea no monte Vesúvio, tumultos em Florença, campanhas dos exércitos espanhóis (Habsburgo) na Alemanha ou a uma aliança inconseguida contra os Turcos (p.342).

* Theatrum Cometicum, nomeadamente a pars posterior: Historia cometarum, a diluvio usque ad præsentem annum vulgaris epochæ à Christo nato 1665. decurrentem, unà cum indiculo lætorum & tristium eventuum, cometarum apparationem secutorum, in qua simul synopsis quaedam universalis historiæ proponitur P. 2, Amstelodami [Amsterdão], apud Danielem Baccamude, typographum. Pro Francisco Cupero (1666)

Cometa 1539, Buntingus
Heinrich Bünting, na sua "Cronologia Universal", não refere o "pressagiador" fenómeno de 1538 mas indica o aparecimento de um cometa em Maio de 1539, na mesma linha em que cita o óbito de Isabel de Portugal, cônjuge do Imperador (Chronologia catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora editarum, ultima & absolutissima demonstrata. Omnium gentium et temporum, tam sacris quam alias probatis scriptis. Calculo quoque astronomico prutenico vt laboriosissimo ita certissimo. Ecclipsium, stellarum, & calendariorum: Ebræorum, Græcorum, Ægytiorum & latinorum: vsque ad ipsum mundi initium. Historia item..., Salomon Richtzenhan, Magdebvrgi, 1608, fol.488). A sua notícia é mais completa e assertiva mas anota à margem uma fonte no lib. XII do De Statu Religionis et Reipublicae Carolo V. Caesare commentarii..., de Johannes Sleidanus (Philippson ou Philippi, nascido em Schleiden, 1506-1556), v. excerto seguinte. Pingré (Cométographie, p.500) afirma que este cometa foi observado entre os dias 6 e 17 desse mês, em Leo, acreditando-se, na época em que foi observado, que se havia "formado" em Taurus. Menciona as observações de Petrus Apianus e Gemma Frisius.

Sleidanus, referência
A referência de Sleidanus: o cometa (1539) e a morte da esposa (uxor) de Carlos V. De Statu Religionis et Reipublicae Carolo V. Caesare commentarii..., per Petrvm Fabricium, impensis Hieronymi Feyrabend, Francofurti. Anno M.D.LXVIII, lib. XII, p.253). A primeira edição da obra viu a luz em Estrasburgo em 1555


Outro cometa foi avistado em 1556. O missionário dominicano Fr. Gaspar da Cruz, no Tractado em que se cõtam por este[n]so as cousas da China..., Evora: em casa de Andre de Burgos..., 1570, faz um elenco dos "castigos de Deos" que aquelas "gentes cegas cõ a ignoraãcia da verdade" receberam no ano de cinquenta e seis (Cap. XXIX). Diversificados, das inundações e terramotos aos fortíssimos ventos ali chamados “tufões”. Entre os sinais de desgraça, não podia faltar um cometa:

"Hu rayo apareceo em hua estrella da ba[n]da do norte q[ue] apõtava p[er]a ha mesma ba[n]da do norte, ha q[ua]l foy visto em todas as partes da india e em portugal. E apareceo quasi por espaço de. xv. dias, q[ue] tãbem foy vista na China."

Ou seja, o cometa foi, afinal, visto em muitas regiões. Trata-se do objecto C/1556 D1 (Kronk, p.309). Segundo Cornelius Gemma (De Nature Divinis Characterismis [1575]), "apparuit, anno Salutis 1556, a principio Martii (ut plures asserunt), usque ad 23 Aprilis". Contemplando todos os registos disponíveis, o intervalo alargado pode ser estabelecido entre Fevereiro e Maio (Kronk, ibid.). J. R. Hind (On the Expected Return of the Great Comet of 1264 and 1556, London: 1848, p. 38) refere que diversos historiadores asseveraram que o Imperador Carlos V se alarmou com a presença deste cometa, interpretando-o como um sinal da morte que se aproximava. Expressou-o, supostamente, na seguinte linha: "His ergo indiciis me mea fata vacant". Com aqueles indícios, o destino parecia-lhe claro. Falecerá dois anos depois.


Seguidamente, o famigerado cometa de 1577 (C/1577 V1) que está, na nossa memória, inevitavelmente vinculado à derrota de D. Sebastião (1554-1578) na Batalha de Alcácer Quibir (variantes: Alcácer-Quivir, Alcazarquivir, Alcassar, etc; Ksar el-Kebir, em Marrocos), a 4 de Agosto
de 1578, provocando forte comoção no reino e "uma autêntica admiração internacional" (Vasco J. R. da Silva, Op. cit., p.235). Um poeta nascido no século, Vasco Mouzinho de Quevedo, traduziu em versos inspirados o trauma da perda do Rei, como que preconizando a profícua persistência, sob diversas guisas, do tema sebástico:

"Sebastião cuja morte inda hoje é viva,
Renovando-se sempre de ano em ano."


Brehm reconstrói de modo eloquente o fenómeno pressagiador (Sebastião e o cometa espantoso..., pp.112-3):

"...no início de Novembro de 1577, surgiu no céu um cometa tão extraordinário como nunca se vira, nem sequer havia memória de coisa parecida. Não era sequer comparável àquele de 20 de fevereiro do ano distante de 1492, que vaticinou a morte do Príncipe D. Afonso, filho de D. João II. Nem se comparava com aquele outro que tinha passado a 26 de agosto de 1531
[aparição do que virá a ser conhecido como o "Cometa de Halley"] e que trouxera tão horríveis terramotos ao Reino, ou com o de janeiro de 1538, que levou a Imperatriz D. Isabel, filha do augustíssimo D. Manuel. Não, este era mais magnificente e haveria de se demorar nos céus da Europa quase dois meses."

Cometa de 1577 - A. Celichius
Prognosticação relacionando o grande cometa de 1577 com dois eclipses lunares, com mortandade e com destruição perpetrada pelos Turcos (gravura de um panfleto de Andreas Celichius, Magdeburgo, 1578)


Segundo Ronald Stoyan, a primeira observação aconteceu no Peru (algumas décadas antes conquintado por Pizarro), no dia 1 de Novembro. Também foi observado no Japão no dia 8. Na Europa, foi observado por Bartholomaus Scultetus em Gorlitz no dia 10 (Op. cit., 2015, p.59). A referência de François Arago (Astronomie Populaire, vol.II, p.334) foi sucinta: "Comète observée par Tycho (nº 32 du catalogue)".


O fenómeno revelou-se importantíssimo para a evolução da Astronomia e da nova consciência científica em geral. Nesta "época-charneira" publicaram-se imensos tratados, manifestando orientações e sensibilidades diversas. O estudo mais completo acerca dos registos deste fenómeno ainda é provavelmente o de C. Doris Hellman (A Bibliography of Tracts and Treatises on the Comet of 1577, Isis, v.2 (1), 1934, pp.41-68; expandida em 1944: Appendix extraído da reimpressão de 1971 (AMS Press, Columbia University Studies in the Social Sciences, 510),
pp.318-430; .PDF, ~17MB). Todavia, com ênfase astronómica e sem referências lusas.

O alemão Bartholomaeus Scultetus descreveu o cometa bem cedo, a 10 de Novembro. Segundo Tycho Brahe "...era esbranquiçado, possuía um brilho semelhante ao das estrelas fixas mas mais escuro como o da estrela de Saturno em aparência, que realmente nessa altura não estava muito longe dele. A sua cauda era ampla e longa, curvada sobre si mesma quase no meio, de uma cor avermelhada escura como uma chama que penetrava através de fumo.". A 12 de Dezembro Michael Maestlin (em Tubinga) avaliou a extensão da cauda em 30º, estendendo-se na direcção do Capricórnio. (Kronk, Op. cit., 1999, p.318). Calvisius (Opus Chronologicum..., Editio Quarta, Francofurti...,Anthonius Hummius, MDCL, p.943) escreveu: "Cometa ingens cum longissima & latissima cauda visus mense Novembris...." ("enorme cometa com longuíssima e ampla cauda visto no mês de Novembro...").

Foi através da sua investigação, epitomizada pelas cuidadosas e sistemáticas observações de Tycho, que alguns astrónomos de vanguarda (o próprio, Maestlin, Roeslin, Guilherme [Wilhelm] IV [o Landgrave de Hessen-Kassel] e Cornelius Gemma (filho de Gemma Frisius) abandonaram definitivamente as teorias de base aristotélica nas quais os cometas eram sublunares, provando que estavam muito mais distantes (contudo, Hagecius, Scultetus, Nolthius ou Busch insistiram em colocar erradamente este cometa no "estrato" sublunar). Segundo Pingré (Op. cit. Tomo I, p.512) "Quelques Physiciens pensoîent comme Tycho; le plus grand nombre demeuroit attache aux anciens préjugés. A peine la Comète de 1577 commença-t-elle  à paroître, que tous furent attentifs à l'arrêt que ce phénomène porteroit pour ou contre Arîstote, & qu'ils s'empressèrent même de le dicter. Cornélius Gemma, Michel Moestlin, Thaddée Hagecius, le Landgrave de Hesse, Simon Grynée, en un mot tous ceux qui se piquoient alors d'avoir quelque connoissance du ciel, obsèrvèrent, mouvemens de cette Comète, & firent part au public de leurs découvertes réelles ou prétendues."

Hegetius - cometa de 1577
Percurso do cometa de 1577 (Thaddeus Hagecius, Descriptio Cometae, Praga, 1578)

No De Mundi Aetheri Recentioribus Phaenomenis Liber Secundus, Praga, 1603, livro extremamente técnico e detalhado, Tycho Brahe, verificando a diminuta paralaxe* (cuja teoria havia sido avançada por Johannes Muller de Königsberg, dito Regiomontanus), demonstrou, no Capvt Sextum, a vasta distância a que o cometa se encontrava, ou seja, muito para além da Lua, entre os planetas: "inter Coelestes Planetarum circuitus..." (Conclusio, p.458). Salientou ainda que o cometa parecia permanecer na mesma posição quando observado de Uraniborg (Uranienborg, o seu observatório na ilha de Hven) e da cidade de Praga, pontos de observação muito distantes entre si. Não poderia ser fenómeno sublunar. Era o contrário do que os peripatéticos defendiam. De resto, como J. R. Christianson judiciosamente refere, o dinamarquês sempre foi céptico quanto à distinção das duas naturezas aristotélicas (a etérea, incorruptível, e a sublunar, da geração e da corrupção), estando mais próximo da visão de Paracelsus, de um Universo vivo e dinâmico (Tycho Brahe's German Treatise on the Comet of 1577: A Study in Science and Politics, Isis, vol. 70, No. 1 (Mar., 1979), 110-140), p.121). Mas as conclusões quanto à distância e, consequentemente, natureza supralunar e astronómica dos cometas não foram imediatamente acolhidas. Como J. L. E. Dreyer explicou: "It was not until Hevelius had again shown from accurate observations that comets are much farther off than the moon that the opponents to their character of heavenly bodies were finally silenced some sixty years after Tycho's death, and not till 1681 that the parabolic form of their orbits with the sun at the focus was discovered by DorfeI." (History of the Planetary Systems from Thales to Kepler, 1906, pp.415-6). Riccioli reportou observações deste cometa no Almagestum Novum, Tomo I, Pars Posterior, lib.VIII, pp.12-13.

*
Diferença na posição aparente de um objecto quando observado através de duas diferentes linhas de visada, em relação a um objecto mais distante ou plano de fundo.

Lubieniecki - mapa cometa 1577
O percurso do Grande Cometa de 1577, com indicação do percurso, morfologia da cauda das datas de observações feitas por astrónomos eminentes, como Michael Maestlin, Guilherme, Landgrave (i.e. Conde, Al. "Graf") de Hesse ou Tycho Brahe (Stanislaw Lubieniecki, Historia Cometarum..., Figura Cometam CCCXCII) [clicar na imagem para ficheiro com maior definição]

Percurso C/1577 V
Simulação do percurso do objecto C/1577 V, com datas, a partir de 10 de Novembro de 1577 (a Oeste, em Sagittarius) e finais do ano, já em Pegasus. Como documentado, Saturno esteve relativamente próximo do cometa nos primeiros dias do percurso. Clicar para ver mapa completo (GUIDE 9.1). Como George F. Chambers explicou, o movimento dos cometas constituía um embaraço para os melhores astrónomos da época: Tycho acreditou que se movimentavam segundo órbitas circulares; Johannes Kepler sugeriu que seria em linhas rectas. (Chambers, The Story Of The Comets: Simply Told for General Readers, Oxford, Clarendon Press, 1910, p.48).


Em paralelo com a rigorosa abordagem astrométrica, decorrente de meticulosas observações e cálculos, plasmada no mencionado tratado. Tycho Brahe
vai apresentar um prognóstico (prática comum e exigida pelo mecenato da época). A Astrologia estava então perfeitamente integrada no "mapa do conhecimento" e o astrónomo era um homem do seu tempo. Todavia, essa interpretação não surge no De Mundi Aetheri Recentioribus Phaenomenis..., que é exclusivamente técnico e "científico" (como hoje diríamos). Como Christianson refere (Tycho Brahe's German Treatise on the Comet of 1577, Op. cit., p.127), aparece numa breve exposição manuscrita de 1578 (publ. in: J. L. E. Dreyer, J. Raeder & E. Nystrom, Tychonis Brahe Dani Opera Omnia, vol. IV (1922), pp. 381-396) em vernacular, neste caso em Alemão, idioma amiudadamente utilizado por Tycho noutros textos destinados à Corte: "This manuscript is the only known contemporary account of that comet from Tycho's hand. The language is German, which Tycho also used in other manuscripts written expressly for the crown.". Na segunda parte deste manuscrito, que não era dirigido ao vulgo nem à comunidade astronómica, inclui-se a análise judiciária.
 
"Like Dybvad and others, he predicted warfare, pestilence, and extremes of heat and cold; he also laid a particular emphasis upon changes in religion. His words were moderate, but their implications were startling. To a king raised on tales of the bloodshed and rebellion of the Reformation era, Tycho spoke of a forthcoming "great alteration and turmoil in the spiritual matters of religion, which will be something more than has hitherto been experienced." At the same time, he emphatically denied that the comet of 1577 or any other celestial sign presaged the apocalypse. Tycho thus threw down a direct challenge to the Dybvads and Bertelsens among Danish astronomers. In another brief, furious passage, he chastized "pseudoprophets ... who have mounted too high in their arrogance, and have not wandered in divine wisdom," and he concluded that they "will be punished." (Christianson, p.130).

De facto, um dos rivais de Tycho, Jørgen Dybvad, num panfleto editado por Laurentz Benedicht em 1578 em Copenhaga, havia descrito todo um rol de antecipações apocalípticas, espelhando, por exemplo, o terror da ameaça de Turcos, Tártaros e afins em diversas regiões da Cristandade. Para Tycho Brahe, o cometa não era "apocalíptico" (afirma que o Fim do Mundo não pode ser predito por acontecimentos naturais, só é conhecido por Deus e não por qualquer criatura) mas prometia guerras, pestes e variações extremas de temperatura, bem como convulsões religiosas (saliente-se que se vivia época de lutas religiosas entre papistas e reformistas). Como Ronald Stoyan refere (Atlas of Great Comets, Cambridge University Press, 2015 (Oculum-Verlag, 2013), p.62), Tycho previu tribulações em particular na Espanha (i.e. na península, as nossas "Hespanhas"), cf. Christianson, p.138: o cometa aparecia nessa direcção, era rubicundo e estava na oitava casa ("a da morte"). [As Casas astrológicas são divisões ou sectores estáticos e específicos de um determinado "horizonte" (i.e. local), tendo em conta, nos sistemas ditos angulares, a posição dos chamados cardines: o ascendente e descendente; o meio-céu e o fundo-céu; detalhes na pág. dedicada ao Astrolábio]. De resto, associou as dinâmicas religiosas, não necessariamente funestas, a uma ampla colecção de portentos, da "nova estrela" de 1572 à grande conjunção planetária no início de Aries, incluíndo também o cometa, contudo sem exclusividade. Outros vaticínios puramente astrológicos foram publicados, por exemplo, pelo célebre astrólogo Francesco Giuntini (Junctinus), por Francesco Liberati e outros autores menos conhecidos ou anónimos.

Lubieniecki (Op. cit., p.
373) transcreveu uma breve notícia das peripécias da expedição africana de D. Sebastião (cita Eckstormius*, compilador de uma listagem de cometas em 1621, que aqui se respaldou na "Buntingi Chronologia", ou seja, na cronologia de Heinrico Buntingo, i.e. Heinrich Bünting):

"...quo anno Christi 1578 die 4 Augusti, Sebastianus Rex Lusitaniae & Mahometes Mauritaniae Rex vitam cum victoria amisferunt: Abdelmelecus aut em victor in fervore pugnae apoplexia mortuuos, victoriam & regnum Hameto frati peperit & reliquit."
("No ano de Cristo, 1578, a 4 de Agosto, Sebastião, rei da Lusitânia, e o rei maometano da Mauritânia [lit. "terra dos Mouros"], perderam a vida na contenda: Abdelmelecus [o "Mulei Maluco" ou "Maluco" dos nossos cronistas], o vencedor, morrendo de apoplexia no calor da batalha, deixou a vitória e o reino ao seu irmão Hameto [Mulei Hamet]). Em Marrocos, a batalha ficou conhecida como "a dos três Reis", pois todos os chefes nela pereceram. D. Sebastião apoiava Mulei Mohammed, ou Abu Abdallah Mohammed II, o "Xarife" da crónica de Fr. Bernardo da Cruz, sobrinho
que pretendia recuperar o trono ao já então doente "Mulei Maluco", líder marroquino apoiado pelos Turcos (cuja ameaça terá sido o nexo estratégico da intervenção, como explicado pelo próprio D. Sebastião em carta enviada a D. João de Mendonça em 1576).

* Heinrich Eckstorm (1557-1622), que estudou em Wittenberg, Jena e Leipzig e foi reitor da Escola Luterana de Walkenried, publicou uma Historiae Eclipsium, Cometarum et Pareliorum, com secções distintas dedicadas aos eclipses, cometas e halos solares ("Parelia"): Historiae Eclipsium, Cometarum et Pareliorum, mediocri copia ex optimae notae tam antiquis quam recentibus Scriptoribus collectae, Helmstedt, heredum Iacobi Lucy, 1621, pp. 202-285. O seu catálogo de cometas começa com um fenómeno supostamente observado em Pisces no tempo de Noé e termina em 1618. (vide Adam Mosley, Past Portents Predict: Cometary Historiae and Catalogues, in: Tessicini, D. and Boner, P. (eds.), "Celestial Novelties on the  Eve of the Scientific Revolution 1540-1630", ("Biblioteca di Galilaeana III", Museo Galileo/Istituto e Museo di Storia della Scienza), Leo S. Olschki Editore, 2013)

Buntingi Chronologia
A notícia do cometa entre as demais na Chronologia de Heinrico Buntingo. Inclui anos da Era Cristã e, à esquerda, coluna com os anos da Criação do Mundo ("Anni Mundi"). Aqui, o "horribilis cometa" é descrito como tendo surgido sob Aquila (constelação da Águia) no asterismo Antinous [hoje constelação obsoleta] a 10 de Novembro. Longuíssima cauda estendia-se do poente para a direcção do orto (nascente). Cometa progrediu segundo a ordem dos signos até ao pescoço de Pegasus, onde se virá a extinguir. Afirma-se que foi "sem dúvida" (sine dubio) um prenúncio da guerra Mauritana (praenuncius belli Mauritani). Um pouco adiante, já no ano seguinte, lemos uma breve notícia da batalha do dia 4 de Agosto, referindo os protagonistas (e.g., Sebastianus Lusitaniae rex) e o desfecho, nomeadamente que os líderes foram mortos em batalha (...in praelio sunt occisi) e que, na vitória, o reino dos Mouros ficou para Hametus, irmão do falecido Abdelmelech. (Chronologia catholica, omnium hactenus ab initio mundi, ad nostra vsque tempora..,, Op. cit., fól. 495)


No seu tratado,
Lubieniecki (p.374) também cita Riccioli: "Keplerus. p 129. de Cometis ait, ab hoc Cometa stimulatum Regem Sebastianum, ut in Africam trajiceret." (Kepler, na p.129 do seu De Cometis afirma que o Rei Sebastião foi estimulado por este cometa a atravessar para África). De facto, Kepler refere (na pág. indicada) o cometa e a obstinação do rei em fazer guerra aos Mouros: "Adseribatur Cometa anni 1577 & obstinatio Regis Portugalliae in proposito belli Mauris inferendi." (De cometis libelli tres, 1619). E o viajante francês Vincent Leblanc, que na altura estava mesmo em Marrocos, anotou: "Le 4. d Aoust venu, c’estoit au temps que la grande Comette se voyoit menacer le Portugal & Maroc." (Les Voyages Fameux du Sieur Vincent Le Blanc Marseillois..., A Paris: Chez Geruais Clousier..., 1649 [1648], Seconde Partie, Cap XXII, p. 167)

Mais tarde, o Padre Cassani, no seu
Tratado de la Naturaleza, Origen, y causas de los Cometas,(Madrid, M. Fernández, 1737, pp.135-6), referirá alternativamente (também citando Riccioli: Chronologiae...) uma batalha na qual "Mustafá, Emperador de los Turcos, fuè destruìdo haviendo perdido en batalla setenta mil hombres."


Mas encontramos, entre nós, bem cedo, uma perspectiva não-supersticiosa e afastada do "lugar-comum" em Francisco Sanches: O Cometa do Ano de 1577
, reprodução em fac-símile da edição de 1578, introdução e notas de Artur Moreira de Sá, Lisboa, Instituto para a Alta Cultura, 1950), v. infra.


Cometa 1577 sobre Nuremberga
Georg Mack "o Velho": o Cometa de 1577 sobre Nuremberga; grav. colorida; (Zentralbibliothek, Zürich)

Um relato italiano refere-se que, nestas circunstâncias e devido ao cometa, o ar ficaria impregnado por “vapores terrestres” quentes e secos, de uma “natureza densa e venenosa”:
"La commeta barbata apparita alli 7 di novembre circa il tramontar del sole sotto il segno di Sagittario, che segno che influisce il caldo e il secco, gli effetti di cui si vedranno in questo medesimo anno, i quali si come ordinariamente sogliono essere cattivi, cosi hora forse non saranno buoni. Perche' non denotano altro i fuochi accesi nel aere che chiamiamo commete, se non che l'aria sia carica di vapori terrestri caldi e secchi, crassi e di velenosa natura." (Barocci Alfonso, General discorso sopra l'anno 1578 e sopra le significazioni dell'Eclisse e della Commeta, Perugia, 1578)

Foi ainda prolixamente documentado noutros tratados de Paulus Fabricius, Georg Busch, Nicolaus Bazelius, Thaddaeus Hagecius, Theodor Graminaeus ou Cornelius Gemma. Este último publicou De Prodigiosa Specie. Naturaq. Cometae, qui nobis effulsit altior Lunae sedibus, insolita prorsus figura, ac magnitudine, anno 1577. plus septimanis 10. Apodeixis tum Physica tum Mathematica. Antverpiae 1578 (i.e. "...sobre a prodigiosa natureza do cometa que brilhou sobre nós acima dos lugares/paradeiros lunares, de forma e tamanho totalmente invulgares, no ano de 1577..."). Maestlin publicou um tratado sobre o cometa na mesma linha científica e astrométrica, utilizando de modo inovador sanguínea (sanguine pastae) para realçar o percurso por si mapeado. Nunca, como em relação a esta aparição, se tinham impresso tantas publicações e panfletos, sendo também o primeiro cometa a ser estudado numa perspectiva científica: The Great Comet of 1577 caused the earliest peak of comet hysteria in Europe with about 200 broadsheets and texts, most of which were devoted to the theme of the negative consequences of its apparition. The comet was, however, the first in history to be carefully followed scientifically. (Stoyan, Op. cit., p.60)

Tratado de Maestlin       Tratado de Roeslin
O importante e meticuloso tratado de Michael Maestlin (1550-1631), nascido em Göppingen, defensor da teoria de Copérnico e mentor de Johannes Kepler; à direita, o de Helisaeus Roeslin, publicado em Estrasburgo (Ant. Argentoratum). Este médico, astrónomo e astrólogo também verificou que o cometa era fenómeno supralunar. Adoptou uma perspectiva Geo-heliocêntrica do Universo

Num registo diferente temos, por exemplo, as publicações de Marzari ou Fiornovelli. O opúsculo Discorso Intorno Alla Cometa Apparsa il Mese di Novembro l'Anno 1577... (Veneza, 1577), de Giacomo Marzari (Marzari Vicentino) é uma pequena notícia com enfoque numa profilaxia de inspiração "galénica". C. D. Hellman (The Comet of 1577: It's Place in the History of Astronomy, 1941, ch. VII) enquadra-o na categoria dos autores com cultura geral demonstrando um interesse geral na natureza, juntamente com Giovanni Maria Fiornovelli, Thomas Twyne e Himbert de Billy. Marzari desconfiava dos astrólogos pois as qualidades naturais não podem ser matematicamente medidas. E não reconhecia a tipologia simplista (baseada em características acidentais) atribuída a Aristóteles. O autor valoriza sobremaneira as exalações, que são de dois tipos:  as da matéria seca e as da matéria húmida, bem como a densidade.
Assevera que os "maleficientes vapores" podem provocar, dependendo de algumas variáveis (aparência e localização do cometa, região específica e época do ano) doenças diversas, como antes (referindo-se decerto à breve passagem dos franceses de Carlos VIII pelo reino de Nápoles em 1495) se havia disseminado "il male francese" (o "mal francês", morbo-gálico, i.e. a sífilis), como ficou conhecida pelos napolitanos, por altura da passagem de um cometa anterior. Aconselha doravante, entre outras boas práticas: "Si usi discretamente il coito...". Os efeitos do cometa de 1577, dependendo da secura e de uma determinada densidade, prometiam "...causare gran quantità de scabbia, ò diciamo rogna, & e forse alcun travaglio d'emeroidi." (sarna ou ronha e talvez problemas de hemorróidas). Sugere leituras acercas de fenómenos similares do passado em autoridades como Estácio, Cassiodoro, Xenofonte ou Heródoto. Entretanto, Giovanni Maria Fiornovelli é um pouco mais "convencional" e, num "discours" publicado em Lyon, classifica o cometa como "Pertica", descrito como tendo um grande raio ("vn gros rayon") e uma cabeça como uma estrela, relacionando-o com o vento "Africo" ou "Garbin". Situava-se no signo do Capricórnio, conjunto com Saturno. Vaticinium: doenças e desgraças no ocidente, revoltas na Pérsia, perigos para reis e príncipes, seca e carência.

Factores com significação astrológica (v. Stoyan, Op. cit., p.16): magnitudo (quanto maior, maiores os efeitos); color: (prometia os efeitos associados ao planeta correspondente a essa cor); splendor (brilho era proporcional ao poder dos seus efeitos); forma (morfologia, segundo a tipologia de Plínio); diuturnitas (a duração da visibilidade prenunciava a duração dos seus efeitos); locus (o signo e grau no qual surgia permitia uma análise astrológica "clássica" dos seus efeitos, segundo as habituais características, relação com os elementos, aspectos, dignidades e planetas de "alta influição", etc.); motus
(direcção e velocidade); habitus ad solem ("atitude", i.e. posição em relação ao Sol, oriental ou ocidental, indicava se os efeitos se fariam sentir rapidamente ou se demorariam); situs orbi (a projecção do seu percurso na Terra indicava direcções e regiões geográficas afectadas).

Tratado de Marzari        Tratado de Fiornovelli    
Dois tratados com premissas tradicionais, por Giacomo Marzaro e de Giovanni Maria Fiornovelli
 
O cometa também foi observado em terras Otomanas, e.g., por Takiyuddin Efendi, que fundou um magnífico, bem equipado mas efémero observatório justamente em 1577 em Istambul, com o beneplácito do sultão Murad III. A versão mais corrente explica o desmantelamento do observatório como um arremesso da ortodoxia religiosa contra a tentativa de descodificar os "sinais dos céus" (considerada prática divinatória), após uma epidemia ter devastado terras turcas.

Cometa de 1577 sobre Istambul 
O cometa de 1577 sobre Istambul em 12 de Novembro de 1577, aqui sobre Aya Sofya. O seu deslocamento para Leste foi considerado popularmente um presságio de vitória Otomana sobre os persas Safávidas (Mustafa Ali, Nusretname. MS Hazine 1365, 5b.; vide Cornell H. Fleischer, Bureaucrat and Intellectual in the Ottoman Empire: The Historian Mustafa Ali (1541-1600), Princeton University Press, 1986, fonte das ilustrações na pág. ix)


Os registos portugueses coetâneos referem o cometa exclusivamente na sua vertente judiciária (astrológica, i.e. do âmbito da judicatura). Em Setecentos, escrevem-se prolixas dissertações sobre o “tema” sebástico (e.g., por Manoel dos Santos, J. Pereira Bayão, Barbosa Machado). Mais perto dos acontecimentos, menciona-se habitualmente: a Chronica d'el-Rei D. Sebastião de Frei Bernardo da Cruz (do séc. XVI mas somente impressa em 1837), a de Jerónimo Conestagio [Girolamo De Franchi Conestaggio] (publicada em Italiano em 1585, que refere o fenómeno cometário com brevidade), uma suposta crónica do cisterciense Frei Bernardo de Brito (1568-1617), hoje “perdida” mas (segundo algumas especulações) utilizada no séc. XVIII pelo Padre J. Pereira Bayão [Em rigor, ressalvamos, parece existir tão somente uma preocupação em coligir materiais por Frei Bernardo de Brito (cronista-mor entre 1614 e 1617) e por João Baptista Lavanha (cronista-mor entre 1618 e 1624), o que parece sugerido por diversos manuscritos existentes, cf. artigo de Lombardo e Moreira mencionado infra] o Memorial (Memorias dos sucessos mais notáveis que aconteceram em Portugal...; TT, Manuscritos da Livraria, n.º 2631) do biograficamente desconhecido Pero Roiz Soares (trata-se de texto político anticastelhano, o que pode explicar o enigma do seu autor) e a obra de Leitão de Andrada. No século XVIII, o tema vai ser ‘oficialmente’ retomado na Chronica do muito alto e muito esclarecido principe D. Sebastião (1730) por D. Manoel de Menezes, cronista-mor e pelos já mencionados compiladores. Mas ainda permanece imenso material manuscrito inédito espalhado por múltiplos acervos.


O "Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey Dom Sebastião" de João de Castro foi (a par dos panfletos não assinados do Frei José Teixeira), em boa medida, responsável pela persistência da especulação da sobrevivência do rei após a batalha. O monarca teria deambulado até chegar a Veneza onde foi preso com a conivência dos Castelhanos (o relato que em outras crónicas refere o "prisioneiro de Veneza", v. Faria y Sousa, Europa Portuguesa, T.III, 2ª ed., P. Craesbeek, 1680). Uma das "teorias da conspiração" que envolve esta figura ímpar e uma evidente impostura (este "Sebastião" era afinal um tal Marco Túlio Catizone, calabrês). Outros auto-proclamados "sebastiões" foram o de Penamacor, o da Ericeira e um pasteleiro de Madrigal (o Padre Pereira Baião refere-os no seu Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, de 1737; o mesmo faz o autor do mencionado Memorial, que abrange o período 1565-1628).


N.B.: Para um ponto de situação do problemático corpus sebástico e das fragilidades em presença (na historiografia, atribuições de autoria, qualidade das edições disponíveis e escassez de edições críticas baseadas nos manuscritos, (in)existência de fontes coevas, etc.), vide Elena Lombardo e Filipe Alves Moreira: Edição de crónicas e relatos sobre D. Sebastião: balanço e perspetivas, in: "Acta Iassyensia Comparationis", 2019 (Special Issue, pp.47-60), Ed. Universităţii »Alexandru Ioan Cuza« din Iaşi.


Das descrições disponíveis, transcrevemos na íntegra o cap. LXXV da crónica atribuída a Fr. Bernardo da Cruz, que refere o cometa e outros "sinais":
 
"Que engenho taõ errado em suas opinioens, e taõ endurecido em seus erros, póde haver, que accuse a divina justiça na severidade de seus castigos; pois, convidando de continuo os homens com ocasioens de virtudes, mostrando-lhes os caminhos acertados, quando por ingratidaõ ou pertinacia se elles fazem vasos de ira, entaõ tocado de sua divina clemencia, procura apartar-nos do mal que seguimos, com sinais que nos avísem de seu castigo: mas posto que Deus tinha determinado castigar o povo portuguez por seus pecados, muitas antes os quiz denunciar com prodigios e sinais, bastantes pera nossa emenda; porque no anno de 1577, aos nove de Dezembro, apareceo do Ponente hum cometa, taõ grande e espantoso, que bem mostrava em sua significaçaõ os males que prognosticava, e estendendo hum grande rabo ao meio-dia [Sul], estava demonstrando a região de Africa, aonde promettia fazer seus effeitos; e quando foi de mais dura (que apareceo espaço de dous mezes) tanto mais continuos e maiores ameaçava que seriaõ seus effeitos. Tambem no mesmo anno, junto a Penamacor, foraõ vistos de muita gente, no ar, grandes exercitos de figuras, que naõ eraõ bem formadas, com similhanças humanas, e na ordem pareciaõ esquadroens que hião marchando. O dia que elrei dom Sebastiam foi benzer a bandeira á Sé de Lisboa, antes de partir para Africa, se vio publicamente, ao tempo que o arcebispo foi meter a bandeira na hastea, depois de a ter benzido, apôz de maneira, que ficou a imagem de Cristo com a cabeça pera baixo, a qual metida na maõ do alferes mõr, embicou duas vezes com ella, e o tiverõ naõ cahisse no chaõ. No dia da batalha, arvorando-a o alferes mór, nunca a pôde estender, nem desenrolar, ainda que muitos homens com força o pertendessem, nem dom Fernando Mascarenhas, que nisso pôs as forças, o pôde fazer: donde parece estar Deos offendido de maneira, que se naõ quiz mostrar ao povo, já bem merecedor de seu justo castigo. Quando elrei partio de Lisboa e foi ancorar a Lagos, quando ao surgir mandou alevantar a ancora, lhes apareceo hum homem morto no esporão da galé, que era indicio de temor. Outro cuja significaçaõ não se engeitou, foi, que hindo pelo mar Domingos Madeira, musico del-rei, cantando-lhes e tangendo em huma viola, começou de cantar hum romance: Ayer fuiste rey d'Espanâ: hoy no tienes un castillo: tanto foi isto tomado em máo agouro, que logo Manoel Coresma lhe disse que deixasse aquella cantiga triste, e cantasse outra mais alegre. Tambem se vio o dia que elrei partio com seu campo de Arzila pera Larache, ao tempo que os reposteiros estavaõ desarmando a tenda real pera a carregarem, viéraõ tres corvos a pousarem-se em cima della. No mesmo dia se affirmáraõ muitos fidalgos, que viraõ no ar pelejar tres aguias, com mostras de grande odio e vingança. Muitos mouros, moradores em Alcacere, affirmáraõ muitas vezes, hum mez antes da batalha, haverem visto no campo, onde se ella deo, huma grande briga entre corvos e grous, e ferirem-se coom cruel inimizade. No dia da batalha se vio o sol claramente taõ vermelho, que parecia sangue, com aspecto temeroso, mostrando presagio da crueldade, ou compaixaõ (se deste vocabulo se póde usar) do estrago de mortes e efusaõ de sangue, que aquelle dia se fazia em taõ dura e cruel batalha; no qual dia, affirmaõ muitos homens de Tangere chover algumas gotas de sangue na cidade. Assim mesmo se affirma, no mesmo dia, se ouvira em Tangere grande estrepito de armas, com tiros e golpes taõ fortes, que se sentiaõ claramente de maneira que muitos cuidaraõ, no mar perto de Tangere haver algum recontro de galés, e affirmavaõ e temiaõ Pero da Silva, que de Arzila vinha por mar servir de capitaõ de Tangere, e acompanhar sua irmã dona Leonor da Silva, mulher de D. Duarte, capitaô da mesma cidade, haver sido salteado de algumas galés naquella costa, e na defensaõ, que fazia aquelle estrepito de armas, que taõ claramente se ouvia"

(Chronica de ElRei D. Sebastião por Fr. Bernardo da Cruz, publicada por A. Herculano e o Dr. A. C. Payva, Lisboa, Galhardo e Irmãos, 1837, pp.306-9; transcrito ipsis verbis [apostila refere Brito] no cap. XXVII do Portugal Cuidadoso e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastiaõ...
pelo Padre Pereira Baião, 1737)


Andrada, Alcácer Quibir, depois da batalha
A "estampa dos campos desfeitos" (no desfecho da batalha de Alcácer Quibir), da Miscellanea (Dialogo. VII) de Miguel Leitão de Andrada. A obra inclui previamente outra ilustração (a estampa do campo) com as formações iniciais preparadas para o confronto (Miscellanea do sitio de N. Sª. da Luz do Pedrogão Grande: apparecimto. de sua sta. imagem, fundação do seu Convto. e da See de Lxa... com mtas. curiozidades e poezias diversas, por Mighel Leitão dªAndra... - Em Lxa. : por Matheus Pinheiro, 1629) [BNP: RES. 92 V]

Para Roiz Soares, o cometa foi "Roim sinal pera ida delRey a africa (...).".

Briet, Annales mundi
Início da notícia (bastante completa mas sem referir "presságios") nos Annales mundi... (edição de 1696) do jesuíta Philippe Briet: "Este ano é memorável pela queda e morte do Rei Sebastião da Lusitânia..." (Annales mundi, sive Chronicon universale secundum optimas chronologorum epochas ab orbe condito ad annum Christi, millesimum sexcentesimum sexagesimum perductum, Augustæ Vindel.& Dilingæ: sumptibus Joannis Caspari Bencard, bibliopolæ, Anno M.DC.XCVI)

No seu capítulo acerca do domínio astrológico dos signos sobre as diversas regiões do mundo, Manoel de Figueiredo (Chronographia: Reportorio dos tempos
, no qual se contem VI partes, scilicet dos tempos..., "Empresso em Lisboa por Jorge Rodriguez a custa de Pero Ramires. Anno de 1603", fól. 68) demonstrava com exemplos deste cometa e de outro, de 1582:
 
"Que isto seja assim asas [assaz] o temos expirimentado por nossos peccados, como vimos claramente no cometa que se engendrou no anno de 1577 em novembro o qual apareceo no digno de Sagitario, o qual cometa fez o damno que sabemos à custa de tantas vidas no reino de Portugal no anno de 1578. & resultãdo dahi o que temos visto em toda espanha. E no ãno de 1581. outro cometa que apareceo em Pices [sic] que causou a peste neste Reyno de Portugal, & no ano de 1582 em toda á Andalusia..."

O tema instalou-se, como sabemos, na memória colectiva. No século XVIII vai ser retomado, por exemplo, na Chronica do muito alto e muito esclarecido principe D. Sebastião (1730), revista no Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião... (1737) pelo penacovense Padre Pereira Baião (1690-1743). Transcrevemos, do último título, o essencial das considerações envolvendo o cometa (
pp.478-80):
 
"Neste tempo apparecía no Ceo hum sinal muito espantoso sobre a Cidade de Lisboa; que era hum Cometa muito comprido de cor de sangue a fogueado com manchas de azul escuro, e a cauda estendida para a parte de Africa, em fórma de açoute, ou molho de varas; e foi visto a primeira vez em Quinta Feira 7. do mesmo mez de Novembro, porém naõ se fez tanto reparo nelle como no Sabbado 9. em que appareceo de todo formado, e muito temeroso; e continuou atè 21. de Dezembro, e dahi se foy desfazendo até 12. de Janeiro, em que desappareceo de todo, mostrando-se todos os dias logo à noite, sempre no mesmo ser, e lugar, e perseverando até às onze horas della, e entaõ desapparecia , e causava tanto terror, e espanto, que toda a gente andava atemorizada; e naõ menos as pessoas doutas, que as simpleces, porque todos assentàraõ, que aquelle espantofo sinal naõ era favorável á jornada, que ElRey intentava fazer a Africa, afirmando que naõ fe achava nas Historias do Mundo que apparecesse outro tal Commeta se naõ quando Deos quiz destruir a Cidade de Jerusalem; e fizeraõ-se logo muitos juizos sobre elle, e todos concordavaõ, em que aquelle sinal denotava a perdição delRey em Africa. O qual o vio no mesmo Sabbado em Villa-Franca, indo de Lisboa para Salva-Terra; estando á janella da caza, onde dormio ,  emquanto se preparava a cea, com D. Affonso de Castel-Branco, Deaõ, que depois foy da sua Capella; e olhando acaso para a parte da ditta Cidade, o vio, e se admirou. Depois praticando-se à mesa sobre esta novidade, disséraõ alguns lisongeiros por dar gosto a ElRey. Cometa em tal occasiaô , que poderá signlficar se naõ, que fua Alteza accommeta aos Mouros. De cuja errada interpretação ElRey se agradou tanto, por se ajudar aos seus pensamentos, que dali por diante repetia muitas vezes: Diz o Cometa, que accommeta. Porém naõ era esta a inteligência de muitos dos presentes, e absentes ; antes todos entendiaõ que o Cometa anunciava successo tragico. A'lem disto de Roma mandou o Papa Gregório XIII. a ElRey hum Pronostico, feito pelo doutissimo Mestre Hercules de Revore, Boloniense, o mais insigne homem daquelle tempo na Arte, e Sciencia da Astrologia, no qual claramente lhe pronosticava a sua perdiçaõ, e a sua morte, e captiveiro de toda a Fidalguia, e mais gente, que levava comsigo; e que os effeitos daquelle Cometa haviaõ de durar mais de dezasseis annos; e todos haviaõ de ser malignos, e prejudiciaes, naõ só para Portugal, mas também para toda a Christandade. Também pronosticava a morte de huma Rainha , e tudo assim succedeo, que prouvera a Deos naõ sahira taõ certo, nem aquelle Astrologo fallàra tanta verdade. A morte da Rainha logo se verà [no cap. XX relata a morte, no início de 1578, da Rainha Dona Catarina,
viúva de D. João III e avó de D. Sebastião], e a perdiçaõ delRey adiante. Naõ o entendiaõ assim alguns Palacianos, ou se o entendiaõ naõ o manifestavaõ, por naõ desgostar a sua Alteza, nem perder a sua graça; porque lhe diziaõ, que o nome de Cometa naõ fomente lhe facilitava o commetimento; mas que aponta, e inclinação de seu rayo mostrava ser Africa o lugar, em que o Ceo lhe prometia a gloria de hum vitorioso triunfo, dando com ella matéria á fama para divulgar seu nome, e o credito da naçaõ Portugueza pelas mais remotas partes do mundo, que a isto attribuhiaõ a forma de trombeta, aquelles, a quem tal parecia o rayo; e os que o tinhaõ por mais accommodado á feiçaõ de açoute, diziaò, que ElRey o seria para os inimigos da Fè Catholica, que individamente occupavaõ os Reynos Africanos, que jà foraõ de Christãos, onde ella floreceo muito antes delles; affirmando que quando significasse morte de Rey, e mudança de Impérios seria a do Maluco, injufto possuidor do Senhorio alheo, com melhoramento de sua Alteza, que subiria por meyo do seu valor ao Império, e absoluto Senhorio de Berberia, tantas vezes commetido, e tantas mais desejado dos Reys, seus antecessores. Com estas, e semelhantes interpretaçoens compostas mais ao gosto, e contentamento delRey, que segundo a verdade do que se entendia, procuravaõ, ou demuir os receyos, ou invadir a infelicidade do prognostico; e de tal maneira atrahiaõ o animo delRey (de seu natural intrépido, e desprezador de perigos) a desestimar o aviso, que vindo algum tempo depois relação de varias partes do Reyno como foraõ vistos no ar Esquadroens de gente armada brigando, e peixes, e outras cousas monstruosas, e extraordinárias, culpando de mal conciderados, e demasiadamente crédulos os que referiaõ, e davaõ credito a semelhantes illusoens da vista, e do entendimento, dizia ElRey ferem dignos de castigo os que dellas, e das interpretaçoens do Cometa tiravaõ matéria para desanimar , e acobardar os coraçoes da gente do Reyno."

(Jozé Pereira Bayão, Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida, e Perda do Senhor Rey D. Sebastião, o Desejado de Saudosa Memória, Lisboa Occidental, na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, M.DCC.XXXVII)

O prognóstico do “Mestre Hercules de Revore” (ou “Hercules Bellemene [?] de Revore”, na novecentista biografia de Camões escrita pelo Visconde de Juromenha: Obras de Luiz de Camões: precedidas de um ensaio biográfico…, Lisboa: Imprensa Nacional, vol. I, 1860, p. 123), teria supostamente sido enviado pelo próprio Sumo Pontífice a D. Sebastião (v. Simões, Carlota: Alguns cometas dos séculos XVI e XVII (Boletim da S.P.M., XX, Fev. 2018). Ercole (ou Ercoli) Della Rovere, astrólogo bolonhês da 2ª metade do séc. XVI (que habitualmente assinava «Hercules de Ruvere mathem. Bonon.»), autor de lunários e prognósticos, publicou de facto o folheto astrológico Vaticinio, et general discorso di m. Hercule della Rouere astrologo bolognese. Sopra quel che minaccia la reuolutione dell’anno 1578 insieme con la cometa apparsa la domenica notte, che fu alli 10 di nouembre del presente anno 1577 in gradi 28 del Capricorno…, (Appresso Giorgio Marescotti, Firenze, 1577). Estes prognósticos eram comuns (até demasiado comuns, como se experimentou aquando da expectativa do “Dilúvio Segundo” que devia ter acontecido em 1524, cf. Astrologi hallucinati…, ed. por Paola Zambelli [1986]). O Vaticinio de Della Rovere tratava da “reuolutione dell’anno” para 1578, i.e. da figura astrológica para o novo ano, aqui gizada (pela sua ‘oportunidade’) em função da data em que o cometa havia sido, supunha, primeiramente avistado em Itália (10 de Novembro de 1577), como se infere do título expandido. Mas terá mesmo sido enviado ao rei por tão prestigioso canal diplomático? E para quê? Mesmo sem cometa ou constelações “infelices”, o projecto já seria estrategicamente desastroso: não seria necessário consultar "Roveres", "Giuntinis" ou "Gauricos". Todavia, atendendo ao zeitgeist da época, não seria completamente implausível. Seria improvável, atendendo à rígida formalidade do discurso e das comunicações da Cúria Romana, ao recurso somente discreto e tácito que fazia da Astrologia e à “realpolitik” amparada nos “Áustrias” e no poder de Castela. Também não se comprova à luz da documentação diplomática disponível: em 31 de Janeiro de 1578, Gregório XIII lançou o documento confirmatório, a Bula de Cruzada “Christianus filius noster Sebastianus” (cf. Pe. Avelino de Jesus da Costa, “Cruzada, Bula da”. Dicionário de História de Portugal, direcção de Joel Serrão, vol. I, 1971, pp. 755-757). É verdade que anos antes, num breve de 28 de Setembro de 1574, o Papa demonstrara a sua preocupação pelos perigos que o rei, sem esposa nem filhos, se preparava para enfrentar. Mas noutro, de 24 de Agosto de 1576, concordava com a opinião de Sebastião acerca da ameaça do avanço turco e enaltecia o seu espírito de missão contra o inimigo da fé, instigando-o a continuar. Em 23 de Julho de 1577, novo breve referia a «gloriosum bellum», concedendo “emphyteusis”, o usufruto de bens eclesiásticos solicitados pelo rei para financiar a campanha, porém autorizado apenas em três dioceses lusas (cf. Corpo Diplomatico Portuguez contendo os Actos e Relações políticas e diplomáticas de Portugal…, Tomo X, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891). De resto, a criteriosa Historia Sebastica de Manoel dos Santos não refere semelhante missiva. Tampouco a precoce Jornada de Africa (1607) do portuense Jerónimo (Hieronymo) de Mendonça. Nem a ulterior e minuciosamente documentada Memoria historica e critica acerca de Luiz de Camões e das suas obras (1820) de D. Francisco Alexandre Lobo, bispo de Viseu. A notícia do aparentemente indocumentado “envio” recua, pelo menos, ao Memorial de Pero Roiz Soares, texto político anti-castelhano e favorável a D. António (o Prior do Crato) que, embora criticando duramente D. Sebastião (e.g., «Como el Rey gostasse tanto destas ordenanças [da guerra] que taõ caro custaraõ a purtugal»), acabará por participar na génese do sebastianismo do início de Seiscentos. Repleto de deliciosos episódios (como as “pancadas” proféticas ouvidas em Santa Cruz no túmulo de um Afonso Henriques decerto escandalizado com a ocupação estrangeira), aqui se descreve
(no Cap. 38) o «espantoso» cometa [que se afirma ter surgido a 10 de Novembro] e se menciona o envio do esclarecedor prognóstico (cf. Memorial de Pero Roiz Soares: Leitura e revisao de M. Lopes de Almeida, Coimbra: por ordem da Universidade, 1953, pp. 90 e 91). Mas no “labirinto” que é a Sebástica (nomeadamente a manuscrita e inédita), é impossível garantir que a notícia nasceu aí. Podemos especular que, instrumentalizando o mencionado Vaticinio, possa ter surgido este “relato” que amplificou ainda mais o dramatismo reforçando que a catástrofe era afinal “evitável” e, de passagem, salvaguardando o papel de Roma, O “envio” parece-nos apócrifo. Pode até ter acontecido mas carece de confirmação suplementar.


A superstição e o fascínio pelos mirabilia fez com que surgissem relatos de supostos prodígios e sinais reveladores da desgraça africana, em alguns casos antes da empresa (como "prequelas") e noutros depois do seu desfecho, ainda ao reino não tinham chegado notícias. Profecias como a "arribação" de peixes-espada (um dos quais grafava nas escamas o ano fatídico: 1578) ou a chuva de sangue vista pelas freiras num mosteiro na Guarda, visões (como a espada de fogo sobre o mosteiro de Belém vista por Simão Gomes, homem "tido por santo"; também a de um Pedro de Basto que viu um homem vestido de armas brancas, viseira levantada e que mostrava "no semblante agonias de morte"), vozes lamentosas, ouvidas em Celorico, Aguiar da Beira e noutros sítios, a "sombra chorosa" seguida (ainda antes da partida) pelo Coronel Vasco da Sylveira (que interpelada por este lhe confessou: "Choro-me amim, e choro-te ati, choro a desiruiçaõ dos que sempre amey."), fantasmas como o de D. Manoel de Menezes, Bispo de Coimbra, que, ensanguentado, apareceu ao Cardeal Infante D. Henrique enquanto este rezava, a visão do converso Frei Cosme Damiaõ, que "viu" os mártires S. Vicente e S. Sebastião enxaguarem as feridas dos malogrados cristãos que iam "chegando" ao seu mosteiro. A visão de Dona Benta de Aguiar, em Alcobaça, enquanto orava, quando uma voz que lhe disse "Beati mortui, qui in Domino moriuntur" (Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor) e "Judicia Domini abyssus multa" (São muitos os juízos do Senhor...). Ainda o êxtase de Dona Elena da Sylva, "serva de Deos" no Mosteiro de Lorvão. O desfecho foi também declarado por "duas mulheres endemoninhadas", aquando da prática de ritual de exorcismo em Riba de Coa, perto de Castelo Rodrigo. Ademais, a imagem da Nossa Senhora da Lapa suou pelo seu rosto grossas gotas "quazi sanguinhas". Também aconteceu o mesmo na imagem esculpida sobre a sepultura da Rainha Santa Isabel no Mosteiro de Santa Clara em Coimbra. Tudo isto e mais se resume no "Portugal Cuidadoso, e Lastimado com a Vida...".

Como
Lubieniecki confirma: "Anno 1578. die 13. Januarii, horribilis iste Cometa in collo Pegasi extinctus est." (a 13 de Janeiro de 1578, este horrível cometa extinguiu-se no pescoço do Pêgaso [constelação Pegasus]); no peito, Pectori Pegasi, após o dia 26 de Janeiro, segundo Tycho.
 

Nas décadas seguintes, destacam-se as convencionais considerações sobre os cometas (mencionando fenómenos entretanto observados), de Manoel de Figueiredo, discípulo de Pedro Nunes e cosmógrafo-mor, e André do Avelar, publicadas no início do séc. XVII. Figueiredo (na sua Chronographia: Reportorio dos tempos..., Cap. XI) refere os sinais do aparecimento destes portentos, com exemplos:

"Primeiramente as chamas que aparecem no ceo, quando parece encenderce todo, como aconteceo no anno de 1580. hum sabado a 10. de Septebro, & tambe no anno de 1582. hua terça feira a 6 dias de Março [datas e dias da semana correctos no calendário Juliano] as 7. horas da noite, os quais incendios foram messageiros de dous cometas que se veraõ pouco depois, i hum que aconteceo no principio de Outubro de 1580. que durou mais de douz mezes. Outro aconteceo aos dezanove de mayo que durou pouco mais de quinze dias na era de 1582 annos. Os mais dos cometas se engendram para aquella parte do norte onde caye a via latea, porquanto he mais efectiua para alleuantar vapores, & o grande numero de estrellas que nella estão ajudão aos planetas, & seus aspeitos ["aspectos" astrológicos, e.g., oposição, trino, quadratura] alleuantarem as exalaçoes de que se geraõ."
 
Num testemunho do já mencionado Pêro Roiz Soares: "22 de Abril do anno de 1628 que foi bespora de Pascoa da resureição de Nosso Senhor Jesu Christo [confirma-se que Páscoa foi, de facto, a 23 de Abril], se armou por baxo da Estrella do Norte [Polar, na Ursa Menor, constelação então chamada "Buzina"] hum raio ao modo dos fugareos da maneira pouco mais ou menos como fica atras, do qual raio sahia hum montante [tipo de arma de lâmina]" e "se tornava a recolher, no mesmo raio, fazendo isto por muitas vezes tendo sempre o dito montante a ponta para a cidade de Lixboa e para ella faziam aquelas saidas e arremeteduras como ameasando." (Memorial, Leitura e revisão de M. Lopes de Almeida (col. "Acta Universitatis Conimbrigensis"), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953, p.505). Descrição análoga à das cimitarras que, na Cristandade ameaçada pelos Otomanos, se integravam na imagética dos cometas e se burilavam em expressivas gravuras. Segundo
Gary W. Kronk, para além de um relato nipónico (no texto Shiryo Sohran), somente se encontra uma referência de Giuseppe Ripamonti que no "De peste quae fuit anno MDCXXX" (1641, p.273) afirmou que se havia avistado um cometa em 1628, sem acrescentar detalhes (Op. cit., vol. I, p.344).

Bocarro Francês, frontispício   Bocarro, cometa de 26 de Novembro de 1618
  Parte do frontispício e um excerto do Tratado dos cometas que appareceram em Novembro passado de 1618 Composto pello Licenceado Manoel Bocarro Frances, Medico, & Astrologo...; BA 50-X-47; 20 fl.: il.; 4º] de Manuel Bocarro ("Bocarro Francês", i.e. Jacob Rosales quando reabraçou o Judaísmo no exílio), editado em Lisboa por Pedro Craesbeeck, em 1619. Com o enfoque renascentista nas filosofias neoplatonica e estóica, a cosmovisão de base aristotélica é colocada em causa por alguns pensadores. Bocarro é um destes, defendendo a natureza celeste (e não sublunar) dos cometas. À direita, parte da descrição do cometa de 26 de Novembro de 1618. Repare-se como, na referência ao percurso, distingue entre signos (Tropicais, medidos a partir do Ponto Vernal) e "imagens" (as figuras siderais, e.g., Bootes, Hercules, coroa de Ariadna, i.e. de Ariadne, Corona Borealis). Também classifica o cometa na tipologia utilizada na época,


Cometa de 1664 - desenho aguarelado
O Grande Cometa de 1664: Cometa q[ue] apareçeo no Horiz[on]te de L[i]x[bo]a em 11 de Dezembro de [1]664 e que durou todo o mez de Janeirode [1]665. mundando a Postura da barba p[ar]a o Horiente. (desenho aguarelado a cinzento, a página inteira, posterior a 1665; BNP F.97). Nesta ilustração, estava na região da "Taça de Apolo" (Crater), Corvus e Hydra

O cometa de 1664 (C/1664 W1) foi conspícuo. Atingiu o seu maior brilho no final do ano na constelação da Virgem e permaneceu visível até Março do ano seguinte, em Capricórnio. Foi estudado por astrónomos como G. D. Cassini, G. Borelli, R. Hooke, J. Hevelius ou C. Huygens. Em Portugal, o registo interpretativo foi quase sempre popular e astrológico, e.g., no Discurso astrologico. Sobre effeitos do cometa que appareceo no anno 1664..., manuscrito por Ascanio Luis Teixeira de Azevedo (BNP COD 3582) ou no Prognostico & Lunario do anno de 1666; calculado, ao Meridiano da Cidade de Lisboa, composto pelo medico Manoel Gomes Lourosa (BNP RES 5923 P.), ( Estrelas de Papel: Livros de Astronomia dos Séculos XIV a XVIII, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2009, pp.178-9)

Segundo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a.160, n.403, 1999), o Padre António Vieira aceitava a ideia teológica do "sinal divino" mas também procurava uma explicação de natureza física: "Encontramos uma série de referências epistolares sobre o cometa Hevelius de 1664 [os cometas decobertos por Hevelius foram, em rigor, os de 1652, 1661, 1672 e 1677, mas fez imprimir uma importante Cometographia*], que Vieira observou em Coimbra em dezembro desse ano, procurando compará-lo ao cometa de 1616 que tanto o impressionou na juventude. A mais valiosa informação sobre a aparição desse cometa encontra-se em carta de 23 de fevereiro de 1665 na qual relata que o astro teria sido observado, pela primeira vez, em 12 de novembro no Maranhão. Tal afirmativa altera completamente a história até hoje conhecida, que dá sua descoberta como tendo ocorrido na Espanha em 17 de novembro. Em outra carta Vieira escreveu sobre “um religioso nosso, alemão, bom matemático”, que vivia no Brasil. Trata-se, refere Mourão, sem dúvida, do padre jesuíta Valentin Estancel [Stanzel], 1621-1705, que descreveu esse cometa no Legatus uranicus [ex orbe novo in veterum, h. e. Observationes Americanæ cometarum factæ, concriptæ et in Europam missæ] (Praga, 1683).

* Cometographia totam naturam cometarum (...) cometae anno 1652, 1661, 1664 & 1665 ab ipso auctore..., Gedani (Danzig, hoje Gdansk), 1668

Na verdade, o Padre António Vieira estava exclusivamente interessado na sua visão profética da História, que incluía elucubrações cronológicas a partir das datas (e demais detalhes) dos avistamentos de cometas e a óbvia exegese de textos bíblicos e teológicos, doravante "esclarecidos" pela alegoria das trovas de Gonçalo Annes Bandarra (o Sapateiro de Trancoso) que há um século tinham sido lavradas na vila Beirã. Para Vieira, o profeta é aquele que interpreta o Desígnio Divino, algo que o vulgo entenderia apenas como fenómeno natural (como explica no Livro Anteprimeyro da sua História do Futuro. Assim desenvolve a sua argumentação sebástica do Quinto Império, a crença messiânica-milenarista por si reformulada no seguimento do mito das Três Idades do joaquimismo (de Joaquim de Flora, ou Fiore, séc. XII). E
m Flora, as "Idades" eram as do Pai, do Filho e, por fim, o advento do Império do Divino Espírito Santo). Contudo, a abordagem de Vieira não é estritamente "sebastianista". pois o Encoberto é destarte reconhecido em D. João IV, recentemente falecido, com a candura de quem acredita em ressuscitações miraculosas (assunto que o autor afirmou ter ele mesmo estudado*). A perspectiva teleológica (pois o Tempo e a História são, para Vieira, dotados de telos, fim, direcção), retoma e interpreta a profecia bíblica dos sucessivos impérios descritos por Daniel (2: 37-44), enquadrando a "decisiva " missão universalista de Portugal. Todavia, a situação agudizou-se com a censura das proposições da sua carta Quinto Império do Mundo, cuja destinatária era a rainha D.ª Luísa de Gusmão (viúva de D. João IV). A inquisição reconheceu traços judaizantes e perturbou-se com a literalidade da interpretação do destino do reino. Recluso nos cárceres do Santo Ofício em Coimbra, foi acusado de "proposições heréticas, temerárias, mal soantes e escandalosas". O processo (versão final), actualmente na Torre do Tombo (Inquisição de Lisboa, Processo 01664, Rolo 1417 a 1427c), decorreu entre 1663 e 1667.

* Como Alfredo Bosi esclarece (v. referência infra), Vieira, na sua defesa, declara ter feito uma "diligencia" (i.e. pesquisa), a qual: "sem ser tão esquisita como eu quisera, nem estar acabada, já tinha descoberto, nesses 120 últimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitam 95, que muito seria que fossem 96?"
 
CXLIV
Vejo quarenta e um ano
Pelo correr do cometa,
Pelo ferir do planeta
Que demonstra ser grão dano.
_
(Quadra do "Terceiro Sonho" das trovas do Bandarra, transcrita por Vieira numa das suas defesas por escrito; "Profecias" do Bandarra, (apres. António Carlos Carvalho), 4ª edição, Vega, 1989)
 
A relevância pressagiadora dos cometas surge explicitamente na sua defesa:
 
"No ano de [1]618 apareceu em todo o mundo o último e famosíssimo cometa que viu a nossa idade, e a figura era de uma perfeitíssima palma, e a cor acesa, a grandeza como a sexta parte de todo o Hemisfério; o sítio no Oriente, o curso sempre diante do Sol, a duração por coisa de duas horas. Eu o vi na Bahia, e vossa senhoria o devia ver. De então para cá não houve outro cometa, ao menos notável. Fala dele Causino [Nicolas Caussin, jesuíta francês] no seu livro De regno et domo em três partes, atribuindo-lhe os efeitos, principalmente em Espanha [i.e., na península]." (Antônio Vieira, De Profecia e Inquisição (Coleção Brasil 500 Anos), 2ª edição; Brasília, Senado Federal, 2001; uma edição de referência é
ainda a de Hernâni Cidade: A Defesa do Pe. António Vieira perante a Inquisição (introd. e notas; 2 vols.; 1957), que todavia somente se baseou num dos manuscritos existentes (o da TT), existindo outro na Biblioteca Nacional (v. Ana Paula Banza, A Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício do Padre António Vieira: Uma Obra à Espera de uma Edição Crítica, in "Actas do 15º Encontro da Associação Portuguesa de Linguística", 1999, vol.2).

No magnífico
"Vieira e o Reino deste Mundo", prefácio de Alfredo Bosi ao De Profecia e Inquisição, Op. cit., xii, o Padre respondia aos seus inquisidores "...esgrimindo a sua retórica temerária que se engenha em tornar crível o impossível, provável o apenas possível e absolutamente certo o apenas provável. Mas no fundo dessa arte ingenuamente sutil pulsava um desejo que é belo e nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justiça que se realizaria cá na Terra, neste nosso mundo, e não tão-somente no outro."

Quando noutra instância, discutindo "se o mundo era mais digno de riso, ou de lágrimas", Vieira defendeu eloquentemente a suposta perspectiva de Heráclito e mencionou o sórdido rosário de tribulações deste mundo, sem deixar de fora os cometas:

"Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada Sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios;" (Lágrimas de Heraclito, discurso proferido em Roma em 1674 em Italiano; trad. pela primeira vez em Português em 1710).


Cometa de 1664, ilustr. de Hevelius
Alterações diárias do Grande Cometa de 1664, segundo Johannes Hevelius


O outro grande cometa desse século foi o de 1680 (C/1680 V1 Kirch), observado num caminho entre a obsoleta constelação Antinous (na área da actual Scutum) e Pegasus. É o "cometa de Kirch", o primeiro a ser descoberto telescopicamente, quando era apenas diminuta mancha difusa, ainda sem "cauda" e invisível a olho nu. Foi da ponderação do seu percurso que uma órbita parabólica foi proposta e calculada.

Alguns astrónomos consideraram, como era habitual nestes casos, tratar-se de dois cometas: um antes e outro depois do periélio. Isaac Newton, no começo das suas investigações, insistia na linearidade das órbitas (embora reconhecesse que os cometas eram objectos iluminados pelo Sol, o que se comprovava pela magnitude do seu brilho em função da distância ao astro luminoso) mas John Flamsteed e Georg Samuel Dörffel discordavam com razão. Entretanto,
Dörffel (Astronomische Beobachtung des Großen Cometen) e Daniel Bernoulli (matemático suiço) gizaram independentemente os parâmetros da órbita parabólica do cometa. E o próprio Newton (nos célebres Principia, em 1687) incluirá o o esquema e a demonstração da deste cometa, usando essa secção cónica (Stoyan, Op. cit., p.80)


Cometa de 1680, R. van Veen
O cometa em 22 de Dezembro, detalhe de aguarela de Rochus van Veen
 
Alexandre Guy Pingré descreve a descoberta deste objecto no segundo tomo (1784) da sua Cométographie (p.25): "Godefroi [Gottfried] Kirch voulant observer la Lune & Mars, le 14 Novembre 1680, découvrit le premier la grande & célèbre Comète de cette année". Refere, seguidamente, as observações de Hevelius (nas manhãs de 2, 3 e 4 de Dezembro, Flamsteed (que terá observado a sua cauda ao entardecer do dia 20 desse mês), duas observações de Newton e diversas de Cassini, entre outras. Menciona as órbitas calculadas entretanto, desde então, por Halley, Euler, Newton e pelo próprio Pingré. [Mais tarde, já
no séc. XIX, também J. F. Encke e J.P. Wolfers a calcularam]. Robert Hooke também observou cuidadosamente este cometa e anotou uma erupção luminosa no final de Dezembro ("...in the manner of a sudden spouting of water out of an engine."), provável descrição precoce de uma emanação de material do núcleo de um cometa (Kronk, Op. cit., p.371). Casimiro Diaz observou-o das Filipinas. No início do novo ano (1681), tornou-se um objecto pífio, no dia 5 de Janeiro era menor do que uma estrela de 3ª magnitude, segundo Flamsteed. Mas continuou a ser acompanhado telescopicamente até Março, tendo sido Newton o último a assinalar uma posição no dia 19 desse mês.
 
Nunca, como neste cometa, se havia verificado tão evidente clivagem entre os "especialistas" e as pessoas comuns, entre o academismo estacionário e o pioneirismo, entre a abordagem objectiva, matemática e tecnológica e a mais desbragada superstição (era época de enorme progresso, em alguns contextos privilegiados, também tempos de epidemia e guerra, com os Turcos a chegarem às portas de Viena; a cometomância continuava em terreno propício).
 
Ovos e cometas
O "Ovo" (ou os ovos) romanos do cometa de 1680 (em Italiano, publ. na gazeta Mercure Galant, Paris: Guillaume de Luyne; [fonte: Harvard University, Houghton Library, hyde_pfr_275_1_9_1681_fevr_plate_btwn_pp126_127]). O ridículo (ou o oportunismo editorial) alcançou o seu ápice quando se propalou a novidade do "Ovo do Cometa", "posto" em Roma por uma galinha que antes nunca desovou, mas que o fez agora com um ruído estridente. A sua casca imprimia o "retrato" do cometa. Acreditou-se que este prodígio aparecera no assento do próprio Sumo Pontífice, tornando-se assim tema de especulação religiosa. Fenómeno terá envolvido pareceres da própria Academia de Ciências de Paris. As poedeiras passaram a ocupar o seu lugar no comércio dos ponderosos assuntos cometários, Houve notícia de outros ovos (um destes com uma serpente e outro com o que supomos ser "informação posicional", clicar na ilustração para ampliar). Em 1681, Bernard Le Bouyer de Fontenelle escreveu uma peça sobre o tema (La Comète), onde se humoriza com estes achados e personagens principais garantem que vão deixar de comer omeletes! A partir destes, foram aparecendo ovos a esmo, em sucessivas aparições de cometas, como o que surgiu dois anos depois (acompanhando o "Halley" de 1682), em Marburgo (vide Stoyan, p.13)

Ovo de Roma, detalhe gravura Medeweis      Ovo de 1986, NHM London
"Gallinam Romae hoc Ovum...", o ovo original, detalhe de gravura de F. Medeweis (...observ. a Friderico Madeweis, Berolini [Berlim] Elevatio poli 52 gr. 50'); à direita: aquando do retorno do cometa Halley em 1986, uma bem humorada campanha publicitária elegeu em concurso o "ovo do cometa" que está agora pomposamente exposto no Museu de História Natural de Londres. Jurados do UK's Ministry of Agriculture, Fisheries and Food. Este magnífico exemplar parece ter uma cauda e foi submetido a concurso por Linda Franklin (de Studley)

 

Em Portugal, a tradição manteve-se. A mundividência de base aristotélica compilada
(entre 1592 e 1606) no prestigioso Cursus Aristotelicus Conimbricensis (com oito títulos: Physica, Meteorum, Parva Naturalia, Ethica, De Coelo, De Generatione et corruptione, De Anima e Dialectica) ainda impregnava as elites. Como L. M. Carolino refere, em termos de prognósticos, assistimos, como anteriormente nesse século, a "paradoxais" e curiosas leituras benevolentes, com antecedentes nas interpretações "messiânicas" (de restauração da soberania [antes de 1640] e de "triunfos universais" da monarquia portuguesa), particularmente envolvendo as figuras de D. João IV e D. Afonso VI (Op. cit., 2003, 196 et seq.).

Na linha tradicional, o beneditino Jeronymo de Santiago (Tratado do cometa que appareceo em Dezembro passado de 1680, Coimbra, Manoel Diaz Impressor da Universidade, 1681) escreveu, depois do habitual desfile de potenciais vicissitudes, uma nota optimista: "Somente Marte nestas tres figuras [astrológicas, anteriormente descritas] se mostrou mais fortalecido no seu estado, pello que parece, que serão mais notaveis as suas influencias, e que estas serão faustissimas pera Portugal porque àlem das rezoes, que tenho mostrado, as pessoas que principalmente hão de sentir os effeito deste Phenomenon, são (conforme ao que dizem os Astrologos) aquellas, sobre que tem dominio os Planetas seus progenitores, e não tem duvida, que Saturno primeiro senhor delle [do cometa] domina nos Turcos, e Mouros".
(p.18)

Todavia,
no "choque" com a realidade política, também este cometa abandonará o inusitado perfil "ditoso" e será depois commumente interpretado como estando associado à morte de D. Afonso VI (que já em 1680 estava encarcerado em Sintra, falecendo aos quarenta anos em 1683).

Na cometografia seiscentista portuguesa, Carolino realça judiciosamente ainda as seguintes fontes manuscritas: Padre Francisco da Costa, Tratado Astrologico dos Cometas (Codex 2063 Egerton, fls. 2-17v., British Library); Luís de Gonzaga, Compendio dos Juizos Cometários (Ms. 46-VIII-22, fls. 109-131v., Biblioteca da Ajuda), entre outras notícias, observações e uma tradução do mesmo autor; António do Espírito Santo, [Tratado de] Cometas, (Ms. 2830, fls. 340-348v, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra); João de Araújo Sardinha, Curiozidades Mathematicas Coppilladas por... No anno de 1615, (Ms. 1029, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra).


As explicações destes fenómenos

Como referido, os kométés, "estrelas com cabeleira") eram tradicionalmente associados a calamidades. No âmbito da Filosofia Natural, o enquadramento era aristotélico
(Meteorologica, 342 b 25–345 a 10; pp. 38-57 na ed. Loeb, H. D. P. Lee [trans.]): eram fenómenos sublunares, exalações resplandescentes da atmosfera superior, objetos ígneos formados na região do fogo. É certo que Séneca (Naturales quaestiones, VII) negava ou pelo menos duvidava na natureza atmosférica dos cometas. Mas a explicação de base aristotélica prevaleceu. Também as zonas esbranquiçadas da Via Láctea eram "exalações combustas" atraídas pela zona de maior concentração estelar do orbe celeste.

Era habitual associar cometas ao decesso de reis e príncipes, como dogmatizado por S. João Damasceno (Ékdosis akribès tēs Orthodóxou Písteōs; Lat. De Fide orthodoxa):

"It often happens, also, that comets arise. These are signs of the death of kings , and they are not any of the stars that were made in the beginning, but are formed at the same time by divine command and again dissolved." (Exposition of the Orthodox Faith, book 2, ch. 7, p. 24 [in: Philip Schaff and Henry Wace (eds.), A Select library of Nicene and post-Nicene fathers of the Christian church. Second series, vol. IX, New York: Charles Scribner's Sons, 1908]). Os cometas seriam, portanto, estrelas "novas", sinais que o Divino congregava e ulteriormente dissolvia.

Uma das obras pioneiras a apresentar um ataque filosófico à interpretação dos cometas como símbolos de adivinhação foi o Carmen de Cometa Anni MDLXXVII (1578) [Poema do cometa do
ano 1577], do (já mencionado) médico e humanista português Francisco Sanches (cristão-novo nascido em Tuy em 1550, baptizado em Braga e que fez o seu percurso profissional principalmente em França e Itália). O autor vai mostrar que é nula a importância dos prognósticos. Traduzido para vulgar, afirma:
 
"Mesmo que aos negros astros providos de longas cabeleiras se siguam guerras, a desordenada violência de águas profundas, a peste iníqua, a fome iníquia, a morte dum grande rei, não é forçoso que essas coisas tenham sido preanunciadas por astros comatos: quis a Natureza que eles acontecessem fatalmente, e todas aconteceriam mesmo sem que apareça o luminoso cometa." (Francisco Sanches, O Cometa do Ano de 1577, reprodução em fac-símile da edição de 1578, introdução e notas de Artur Moreira de Sá, Lisboa, Instituto para a Alta Cultura, 1950, p.133)

Manifesta-se contra o fatalismo da prognosticação afirmando que "ninguém pode prognosticar o que depende do nosso arbítrio". O prognóstico pode, no máximo, ser uma premonição.

Tycho Brahe verificou que estes corpos não apresentavam paralaxe, logo não podiam ser sublunares, como explicava Aristóteles através das "exalações"
(no sistema cosmológico aristotélico os céus não estavam sujeitos a mudança, nem à geração nem à corrupção; os cometas, como osmeteoros, nunca poderiam ser fenómenos celestes). Por isso, esta conclusão esteve no epicentro da discussão dos principais modelos planetários em presença na Renascença (o Geocêntrico e o Heliocêntrico). Todavia, Manoel de Figueiredo, na senda de inúmeros autores, reverbera a explicação do magister primus (ou de base aristotélica): "exalações nessa região aerea, engendrando, e formando delles diversas formas como sam nuvens, chuvas, neves, pedras, relâmpagos, trovões, rayos, pedras de corisco, e arcos, dragões, lãças, cavalos, esquadrões de soldados e outras muytas formas que na região do ar aparecem no numero das quais entrão os cometas." (Chronographia: Reportorio dos tempos..., Op. cit., 1603, fol. 164). Esclarece ainda que ao cometa "chamou-ce assim porque quando aparece sempre tras hua coma, ou cabelleira consigo" (ibid., fol. 164v.). Quanto ao movimento, não é regular. Sendo levados pelo "primeiro mobil do Oriente em Occidente [movimento diurno], nem também guardão este movimento porque se move para a parte que o planeta que os ascedeo [i.e. "segue" o planeta que está na origem da "exalação", uma das teorias seguidas] os leva ora para o meio-dia, ora para Oriente" (f.165v.)

Descreveu (cap. XI) os nove tipos convencionais, com a forte conotação astrológica e pressagiadora tradicional:

"O primeiro he o que se fas na exaltaçam da lua chamarãolhe argentatum, he hum cometa de cor de prata puro, & resplandecente da natureza da lua, & tambem se cauza em seu aspeito. O segundo chamarão ascona he um cometa pequeno bem caudato, ou em portuhues bem rabado tirante azulado da natureza de Mercurio significa este cometa muitas enfermidades agudas, trouões, relampagos, & ventos tempestuosos, & desordenados. O terceiro chamarão milles he grande, & fermoso quasi como a lua he da natureza de Venus, muytas vezes corre todo o zodiaco denota esterilidade por causa das sequas que significa. O quarto chamarão Rosa, o qual he hum cometa grande de cor douro ao modo de rosto humano, sem rabo, o qual he da natureza do sol sempre significa quando aparece morte de poderozos. O quinto chamarãm Matutino, ou Aurora he hum cometa vermelho da natureza de Marte, significa grandes secas, calmas, fomes, & incendios. O sexto chamarão columna, ou tenaculum, he hum cometa muy grande comprido, & largo da natureza de Iupiter significa aflição. O septimo chamarão Nigra, he cometa verdenegro da natureza de Saturno, significa mortes, & pestes. O oictauo chamarão pertica, he hum cometa alguntanto comprido não largo, seu principio he como hua estrella, & apos ella hua cabelleira grossa, & redonda, significa falta dagoas, & esterilidade, he da natureza da cabeça do dragão [nodo lunar ascendente]. O nono chamarão veru he hum cometa comprido & delgado ao modo de hum espeto grande, cujo principio reprezenta a argola, anda junto ao sol he orribel & espantozo, he da natureza da cauda, ou rabo do dragão [nodo lunar descendente], corrõpe os frutos da terra, & dana as samenteiras."
 
A tipologia recua a Plínio, "o Velho" (Naturalis Historia, lib. II) e ao Centilóquio (que se atribuía a Ptolomeu) e tanto o seu número como os nomes apresentam variantes. Procurava-se interpretar o seu significado oculto no quadro dessa tipologia (forma, tamanho, cor) e do lugar onde eram avistados na abóbada celeste.

Explica que "a materia de todos estes cometas he hum vapor terreo mesturado com agoa para que possa resplanceder..." e isto acontece porque "tem mestura de terra consigo que he o sal". Quanto à duração do fenómeno, refere que "depois de ser formado o cometa nesta região suprema do ar, dura em quanto o aspeito ["aspecto" (astrológico)] dos planetas que o causarão dura, & dizem os philosophos que em quanto dura estam vapores da terra sustentandoo. E hace daduertir q não somente sobem vapores dagoa, & da terra, a esta região aerea, mas tambem de todas as criaturas estão estos ceos, & estrellas aleuantando vapores, & e estilandoas..."

Fr. António do Espírito Santo (Cometas, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 2830, fls. 340r-348v) elencava os seguintes "tipos": "Véru", "Tenáculo" ou "Caudato", "Pértico", "Roza", "Ascóni", "Miles", "Aurora", "Argento", "Niger" e "Cerácias" (vide Luís Miguel Carolino e Carlos Ziller Camenietzki, Tokens of the future: comets, astrology and politics, in Cronos, vol.9:  33-58, Universitat de València, Diciembre 2006). Mais tarde, no autor anónimo da "Chronologia dos Cometas, que appareceram desde o Anno 480 do Nascimento de N. S. J. Christo até ao tempo presente... (Lisboa, Officina de António Vicente da Silva, 1759) a tipologia é reduzida a somente três tipos: 
- cometas com cauda mais ou menos comprida, os caudatos;
- cometas com cauda curta e larga, os crinitos;
- cometas com uma espécie de "circilio" em roda, os comados.
Acrescenta que a cauda de um cometa "...he hum vapor subtil, que com o calor do Sol sahe do cometa para a parte contraria do mesmo Sol."


Mallet - tipologia cometas
Tipos de cometas (Allain Manesson Mallet, Description de l'univers, contenant les différents systèmes du monde, les cartes générales..., Paris, 1683; Tome 1, Fig. LVIII)


Significação

Quanto à significação dos cometas Manoel de Figueiredo (Op. cit., cap. XII) concluía: "...se lermos todos os livros q os Astrologos escreueram nelles acharemos cometas, & eclipses nunca significaré prosperidades, bonãças, pas, farturas, saude, mas antes o contrario. He isto tanto assi, q bem o exprimentamos em nossas cabeças ha tantos annos, & este he o amor que noffo senhor nos tem, que quando nos quer castigar pos o seu aviso em cousas taõ naturais como sam eclipses, & cometas, pera que nos emmendemos, & fujamos de sua justiça para sua misericordia.". No capítulo seguinte explica, segundo "Albvmasar Astrologo", os efeitos dos cometas em um dos doze signos, dependendo em qual se situa, direcção em que se avista, etc. Segue-se um "sórdido rosário" de calamidades, como se esperaria.

Carolino resume: "Os cometas encontravam-se, portanto, na génese de efeitos nefastos na Terra na justa medida da sua obnóxia composição. Pairando no ar um número significativo de exalações quentes, secas e betuminosas, ocorreria certamente um cometa e, provavelmente, também outros fenómenos naturais correlativos, como os terramotos. Neste sentido, em rigor, os cometas eram pensados, no plano teórico, mais como sinais de futuros eventos terrestres do que propriamente como causa destes, pois como lembrara o padre Francisco da Costa (1567-1604) [in Tratado Astrologico dos Cometas], no contexto da lógica aristotélica, os cometas não eram nem causa eficiente, nem formal, nem, também, material e final de tais acontecimentos." (Ciência, Astrologia e Sociedade..., Op. cit., p.182). Todavia, como o autor complementa, desde cedo foram associados a efeitos mais específicos de cariz astrológico. Ptolomeu fez concorrer para a sua origem a participação dos eclipses do Sol e da Lua. Abu Ma'shar [o Albumasar latino] as conjunções, principalmente as dos três planetas superiores (ibid.). Outros atribuiram aos planetas um do papel, estimulando o elevamento e condensação das "exalações".

Entretanto, uma nova mundividência vai gradualmente alterando a percepção destes fenómenos, todavia muito lentamente em Portugal. O autor da Chronologia dos Cometas... (1759), foi peremptório: "cometas não são annuncio, nem causa, de desgraças, ou felicidades. Prova-se isto pela Experiência, e pela Razão" (p.28). Para o povo não alfabetizado, pouco terá mudado. Mas também se verifica uma atitude conservadora por parte das elites, que se estende à interpretação da natureza dos cometas. O resumo de um pertinente artigo de Palmira F. da Costa e Hélio Pinto é esclarecedor:

"A interpretação dos cometas como sinais de adivinhação sofreu um declínio significativo durante o século XVII. No século posterior, e especialmente nos denominados centros europeus do conhecimento, esse tipo de interpretação foi banida da literatura científica e raramente aparecia em panfletos destinados a uma audiência de cariz popular. Em oposição, a literatura sobre cometas que recorria a uma origem sobrenatural e interpretação divina era ainda relevante em Portugal no século XVIII. Durante esse período, foram publicadas obras a favor dessa interpretação e outras com o propósito de as refutar. as disputas atingiram o auge em meados do século XVIII." (Disputas sobre a origem e o significado dos cometas: o que revelam do Iluminismo português, in ArtCultura, Uberlândia, v.19, n.35, p.131-139, jul.-dez. 2017)

António Pimenta (1620-1700), matemático e doutorado em Teologia e Direito Canónico é manifestamente contra a cometologia judiciária (cometomância). Escreveu a obra Sciographia da nova prostimasia celeste, & portentoso cometa do anno de 1664, Lisboa, Domingues Carneiro (Publ.), 1665. Em relação ao cometa de 1577, que refere com brevidade, não deixa de mencionar ironicamente que se este anunciou tanto mal a D. Sebastião e ao Reino, muito de bom significou para Filipe II. Ou seja, estes juízos eram sempre relativos.
 
No âmbito do novo espírito científico (de Halley, Huygens, Cassini, Descartes ou Newton) e da Física exposta nos Principia Mathematica (Newton, 1687), Francisco Ahlers, que conhece e menciona o trabalho de Cassini ou Dorfel [i.e. Georg Samuel Dörffel] e afirma que "Newton, e outros, demonstrarão esta lei da sua revolução [i.e. das órbitas]", conclui que estes corpos não se "dissolvem quando desaparecem, mas se desvião para tão remota distancia, que não pode haver telescópio capaz de os descubrir" (Instrucção sobre os corpos celestes, principalmente sobre os cometas, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1758, p.56). Quanto às superstições associadas, afirma que a experiência "naõ repugna menos esta vulgar credulidade, pois muitos cometas forão vistos na Europa, sem que comsigo trouxessem consequências calamitosas, e estas muitas vezes sobrevierão sem serem precedidas de cometas." (ibid. p.67)

Bento Morganti, por exemplo, no seu Breve Discurso sobre os Cometas (1757) expendia a opinião de Descartes (afirmando que era seguida pela maior parte dos seus contemporâneos), "que entende, e ao parecer fundado em boa razão, que os Cometas saó Estrellas verdadeiras como as outras, as quaes se movem por hum grandissimo circulo, em que entaõ se fazem visiveis quando chegaõ á parte inferior delle." (Breve Discurso sobre os Cometas..., Officina de Francisco Borges de Sousa, 1757. p.13). Todavia, o opúsculo começa com uma introdução que deixa implícita uma relação entre estes fenómenos e os terramotos:

"Por occasiaõ de ler huma nova Relação de hum Cometa, que se diz apparecera em Africa entre Mazagaõ, e Tangere, depois do Terremoto do primeiro de Novembro do anno passado de 1755., (ainda que na realidade naõ foy outra cousa mais, que hum dos Phenómenos ordinarios, que quasi fempre se seguem aos Terremotos..."
. Sugere uma quase causalidade, ou pelo menos probabilidade destes fenómenos acontecerem após os terramotos, referindo-se especificamente à enorme catástrofe de 1755.

Terramoto 1755
Terramoto de Lisboa. Die Verwüstung von Lissabon der haupstadt in Portugal geschehenden 1. Nov. 1755 ("A devastação de Lisboa, capital de Portugal..."). Autor desconhecido. Museu de Lisboa / Palácio Pimenta.

Segundo Rómulo de Carvalho, "embora os autores portugueses setecentistas que escreveram sobre o terramoto de 1755 tivessem procurado interpretá-o como um fenómeno natural, nenhum deles deixou de o encarar também como um castigo de Deus. Souberam esses autores distinguir as duas posições, a científica e a religiosa, de modo que uma não invalidasse a outra. As exalações sulfúreas e nitros, o fogo subterrÂneo, as cavernas de matérias combustíveis, etc., tudo isso eram causas naturais, mas simplesmente «causas segundas», conforme lhe chamavam. Para além delas havia uma «causa primeira», que era Deus, de cuja vontade dependeria desencadear as causas segundas." ("As interpretações dadas, na época, às causas do terramoto de 1 de Novembro de 1755" in: Rómulo de Carvalho, Actividades Científicas em Portugal
no Século XVIII; Évora, Universidade de Évora, 1996 (1978), p.97). (No fundo, trata-se de um racional semelhante ao adoptado para a influência astrológica desde Tomás de Aquino.). Em termos astrológicos, persistia a velha explicação da influência lunar nas águas subterrâneas e, no caso dos cometas, mormente os gerados sob a influência ou domínio de Saturno, cometa "algum tanto escuro, chumbado ou verdenegro." (André do Avelar, Reportorio dos Tempos..., Lisboa, por Manoel de Lyra, 1590, fol.133). Os terramotos eram interpretados como consequências mas também eram prenúncios.
 
Morganti também explica algumas ideias sobre a matéria de que os cometas são formados
(ibid. pp.11-12):

"...variarão muito os Authores: porque tem sido muito diversos os sentimentos. Apollonio Mida [Apolónio de Mindos (Μύνδος), séc. IV a.C., cit. por Séneca] foy o primeiro, que disse que os Cometas eraõ Astros irregulares. Monsieur Cassini, e os Astronomos Inglezes julgáraõ o contrario. Monsieur de la Hire he de muito diveria opiniaõ; porque suppõem, com Keplero, que saõ fogos, que subitamente se accendem , e que pouco a pouco fe dissipaõ. Alguns, com Thico-Brae, julgaraõ por muito provavel que os Cometas fe formassem da matéria da Via Lactea, e que por isso eraõ de materia celelte, por ler aquella parte do Ceo como hum Seminario de Estrellas , fundando-se em que os Cometas ordinariamente appareccem junto a esta : mas passando dos modernos para os antigos, ainda que he difficultoso fazer memoria de todos; Pithagoras entendeo que os Cometas eraõ Estrellas, que voltavaõ depois de certo curso  estabelecido pelas occultas Leys da natureza. Demócrito, e Anaxágoras disséraõ que era a união de duas, ou mais Estrellas. Estrabaõ quiz que fosse a luz de huma Estrella comprimida por alguma nuvem densa. Heraclido Pontico disse que era huma nuvem densa posta no alto illuminada por numa luz, que lhe fica superior. Xenophonte foy de parecer que era hum composto, e hum movimento de nuvens de fogo. Aristoteles, que he huma exhalaçaõ terrestre inflammada, ou acceza na parte superior do ar."
 
Adiante, menciona a circularidade do movimento fundada na "derrota [rota, trajecto] dos Cometas", conclusão a que, refere, se chegou a partir de uma "pequena lista" do "Doutor Halley". Explica como "com a mediaçaõ de certo numero de annos , se mostra claramente o seu movimento circular, e periodico" (p.15). O opúsculo termina com alguma ambiguidade acerca da realidade da influência dos cometas: concorda com a opinião "que se comprova muito a sua indifferença" mas acrescenta que "sem embargo do que dizem todos estes Authores insignes", podem todavia estes astros "...influir com a luz viva dos vapores, e exhalaçóes de suás atmosferas", que trazendo "...huã nova influencia, possa alterar o estado presente das cousas, e prognosticar algum sucesso, o qual pode ser bom ou máo, segundo a natureza do Cometa, e seus vapores;" (p.21)
 
Mais assertivo, Theodoro de Almeida (Recreasão Filosofica ou Dialogo sobre Filosofia Natural para instrucção de pessoas curiozas, que não frequentárão as aulas), pondera que os cometas sejam "astros creados no principio do mundo juntamente com os planetas", ou seja, perpétuos (Tomo VI, p.176 na 5ª impressão, 1795; editio princeps em 1762). Portanto não são vapores da Terra (Aristóteles), nem produções da região etérea (Kepler), nem vapores dos outros planetas (Hevelius, o astrólogo Argolo) ou mesmo nuvens altas iluminadas pelo Sol. Este autor
observou a passagem de 1759 do cometa (cuja periodicidade foi prevista e será doravante nomeado "Halley") no Colégio das Necessidades. Os livros Conjecturas de vários filósofos ácerca dos cometas expostas e impugnadas (1757), de Miguel Tibério Pedegache, e Instrucção sobre os corpos celestes, principalmente sobre os cometas (1758), de Francisco Henrique Ahlers enquadram-se nesta perspectiva pedagógica, actualizada e iluminada de popularização da Filosofia Natural.


Gradualmente, os fenómenos cometários tornar-se-ão, mesmo no nosso contexto tão propenso ao academismo, cada vez mais do âmbito exclusivo da “Nova” Astronomia. Definitivamente no séc. XIX. Os “ressurgimentos” da antiga relevância dos cometas resumir-se-ão, para além das “paródias” humorísticas, às blagues e sensacionalismos dos periódicos ou então à publicidade e à propaganda. Quando muito, a um assomo popular do medo ancestral. No primeiro caso, podemos exemplificar com a "febre do cometa" aquando da antecipação do retorno do cometa Halley (e do avistamento de outro objecto absolutamente espantoso no seu brilho: C/1910 A1), em 1910. Algum “terror induzido”, doravante com uma pátina científica. [Um dos títulos publicado na época, entre nós, foi o de A. Ramos da Costa: O Cometa de Halley e a Sua Influencia Provavel na Terra, Lisboa: Livraria Ferreira, Editora, 1910.] No segundo, o oportuno aproveitamento publicitário, em França, com o «vin de la comète», que começou aquando de auspiciosas vindimas coincidindo com o “Grande Cometa” de 1811 (descoberto pelo astrónomo Honoré Flaugergues em Março desse ano). O tema cometário foi plagiado em futuras colheitas auspiciosas. Simultaneamente, foi tentada a associação à figura de Napoleão, reeditando hábeis estratégias que conhecemos desde Júlio César e do imperator Augusto. O cometa também encontrou caminho na literatura e nas artes plásticas através de Leo Tolstoy, Victor Hugo, William Blake, John Linell, etc. Em relação à genuina comoção popular, Vasco Jorge Rosa da Silva (“Breve estudo sobre os cometas em Portugal”, Op. cit., p. 249) descreve um exemplo português, de 1910, no qual se terá organizado uma procissão religiosa à Serra do Cavalinho [provavelmente o “Alto do Cavalinho”, próximo do Fundão], onde se pediu protecção face ao cometa e se assistiu a grande fervor religioso.

Entretanto, paulatinamente, esses antigos “arautos” tornaram-se, enquanto tal, irrelevantes.



Champanhe Delamotte    Bouchon-Vouvray
O tema do "vin de la comète" apareceu em 1811 e tornou-se um motivo persistente em rótulos, rolhas, etc. O Château Lafite desse ano foi considerado um dos melhores vinhos de sempre. Acima, rótulo de champagne da casa Delamotte e rolha de uma garrafa de Vouvray (fonte: histoiresdetiquettes)


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