Almanaques em Português

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Frontispício de edição do século XVIII do célebre Lunario y Prognostico Perpetuo...

 

 

 

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FOLHINHA PERPETUA E GERAL, para todos os annos até ao Fim do Mundo, Coimbra. 1837

 

 

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O tradicional "Juízo do Ano" numa edição recente do Borda d'Água (Ed. Minerva)

 

 

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O Seringador, que assumiu uma postura anti-jesuítica (representando as fases da lua com caricaturas de padres da Companhia) é ainda hoje editado pela Lello Editores. Apresenta o "T", sinal que o distinguia "visualmente" da concorrência.

 

 

 

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Outro curioso Borda d'Água, de Coimbra, que orgulhosamente informa que outrora "Era composto e impresso na Imprensa da Universidade" (clicar na imagem)

 

 

 

 

Fazendo aqui uma breve resenha confinada ao contexto luso, com a disseminação da imprensa assistiremos à popularidade dos "repertórios" e "almanaques" (teoricamente) a partir do Almanach perpetuum de Zacuto (o sábio salmantino), escrito em 1473-8 e impresso tipograficamente em latim em 1496. Trata-se, obviamente, de um trabalho de índole científica e técnica e não de um "almanaque", como o definiremos de seguida. Segundo Luís de Albuquerque, foi utilizado na elaboração das tábuas solares náuticas dos Descobrimentos (Para a História da Ciência em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1973).

Outra referência será o Repertório dos Tempos, vertido para português e editado em 1518 por Valentim Fernandes, que assistirá a diversas reedições (Henrique Leitão, Notas sobre a situação portuguesa ("O livro científico antigo, séculos XV e XVI"), in O livro científico dos séculos XV e XVI: ciências físico-matemáticas na Biblioteca Nacional, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2004: 36). Refere, na página seguinte, as obras de cronologia, "artes do cômputo" e textos similares desse acervo.

Mas este célebre "Repertório", atualizando os números do calendário que o tempo desatualizou, mantém as mesmas gravuras, comentários e ditames até ao limiar da obsolescência, insensível às novas geografias que se abriam e à evolução do saber científico. Esta característica ensombrará o percurso do almanaque, mais tarde considerado reflexo de arcaísmos e superstições.

Desenha-se o tempo qualificado e repartido. O "Lunário Perpétuo" (Jerónimo Cortez), o "Thesouro de Prudentes" (Gaspar Cardozo de Sequeira) e os abreviados almanaques periódicos sequentes, apensam à estrutura do calendário de matriz religiosa uma multiplicidade de temáticas. Da agricultura propícia ao prognóstico do tempo pelos "sinais" (vento, nuvens, trovões, halos, cometas, etc.), das marés à fisiognomia, da determinação das horas pelo Sol e pelas constelações às características e prognosticação segundo os planetas e os signos zodiacais, também rudimentos de iatromathematica (que se guiava pelas fases da Lua para o diagnóstico e antecipação dos sucessos das doenças). Sem esquecer os sinais de carestia ou abundância. Em alguns aspetos honram uma longa tradição, desde Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo (século VIII a.C.).

O enquadramento astrológico está sempre presente nos "prognósticos", particularmente a ancestral e prevalente interpretação da influência da Lua nos mais diversos sucessos, eleições e momentos propícios, enquanto "canalizadora" das "influências" no corruptível mundo sublunar (vide o "Epítome das Notícias Astrológicas para a Medicina", do Fr. António Teixeira (officina de Ioam da Costa, 1670). Coligidos da erudição resumida no 'Curso Conimbricense', estes saberes deslizarão para uma tradução popular, simplificadora, personificando e perpetuando doutrinas amiudadamente anacrónicas, por repetição acrítica. O próprio carácter repetitivo sugere que este "formato" pretende acudir a uma rotina (Radich, Maria Carlos, Almanaque tempos e saberes, Coimbra, Centelha [s.d.]: 14). O recorrente "Juízo do Ano" parece traduzir ansiedades e temores, assumindo mais tarde o conhecido tom estereotipado e cauteloso, assumindo sempre a prevalência da Causa Primeira sobre as secundas, que na verdade são o motor dos "prognósticos" (uma discussão sobre o livre alvedrio que, filosoficamente, já encontramos contemplada na Summa Theologica).

Os almanaques, interpretando popularmente o devir dos ciclos e uma miscelânea de temas, reverberaram conselhos e indicações com a autoridade de duvidosos "Avicenas", Paládios", "Plínios" ou outros "gravissimos philosophos". Foram, na sua incrível adaptabilidade, vocacionados também para a audição coletiva, enfrentando épocas de prevalecente analfabetismo. Começavam por vezes os seus primores informativos pela expressão: "como vão ouvir...", ou similares (Radich: 24). O próprio texto será muito simples e convencional, baseado em símbolos e indicações repetitivas, levando uma autora como Geneviève Bollème a rever o próprio conceito de "leitura" no contexto do almanaque popular dos séculos XVII e XVIII (Les Almanaches Populaires aux XVII et XVIII Siècles, Essai d'Histoire Sociale, Paris/La Haye, Mouton & Co., 1969). Segundo Chartier, "pela recorrência de formas muito codificadas, torna-se uma leitura que é mais reconhecimento do que verdadeira descoberta." (Chartier, Roger, A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, Brasília, UnB, 1999 (1986): 20-21).

Versátil ("agenda", "efemérides", "sarrabal", "folhinha", "tesouro", etc.), popular e periódico, constituirá um fenómeno editorial e social (estendendo-se da ruralidade a um público urbano a partir da segunda metade do século XVIII e "explodindo" em diversidade e dimensão no século XIX), especializando-se e enquadrando uma miscelânea eclética, "arrumando saberes e indicações úteis" e "acompanhando o alargamento do universo da alfabetização" (Galvão, Rosa Maria (coord.), Os sucessores de Zacuto: o almanaque na Biblioteca Nacional do século XV ao XXI, Lisboa, Biblioteca Nacional, 2002: 11 et seq.).

Apetecível economicamente, assistiu a querelas legais visando as licenças de impressão, como a que envolveu o padre Tinoco da Silva, o livreiro Pedro Vilela e descendentes, e ainda os padres da congregação do Oratório até finais do século XVIII (Pinto-Correia, João David e Manuel Viegas Guerreiro, "Almanaques ou a sabedoria e as tarefas do Tempo" Revista do ICALP, vol. 6, Agosto/Dezembro, 1986, pp. 43-52).

Concitou o pasmo dos nossos literatos novecentistas, que os vêem como as únicas letras a merecerem a atenção do povo. Eça de Queirós manifesta a sua arguta ironia através de fábula descritiva da sua "antediluviana origem", com "ponderosa" verve, no prefácio ao Almanaque Encyclopédico de 1896 (Lisboa, Livraria Antonio Maria Pereira, 1896: 32,34):

"Então, naquele caminho perdido da Mesopotâmia, sob a imensa tristeza do céu justiceiro, os dois Sábios, filhos de Seth, determinaram arquivar, escrevendo sobre matéria imperecível, a Ciência que possuíam, que era a Ciência total daquela primeira Humanidade. Durante três dias e três noites […] os Sábios, sem repouso, ansiosamente, espreitando as nuvens, gravavam sobre o granito e sobre o tijolo, duplamente, o Livro de Todo-o Saber. […] Que direi? O Livro de Todo-o Saber, gravado para a Humanidade vindoura, sobre o tijolo e o granito, nas vésperas do Dilúvio, por dois sábios filhos de Seth, era na realidade e simplesmente um Almanaque."

Mas depois concede (p.60): "Só o Almanaque verdadeiramente nos penetra na realidade da nossa Existência, porque a circunscreve, a limita, a divide em talhões regulares, curtos, compreensíveis, fáceis de desejar e depois fáceis de recordar porque têm nome, e quase têm forma (...)".

Em suma, "uma manta de retalhos, um tipo de publicação elástica, poliforme, prestável" (Radich, p.31), sempre segundo uma "grelha do tempo", o calendário, denominador comum desta diversidade. Mistura de sagrado e profano, "ancianidade e circunstância", mas acima de tudo "um ponto de contacto da cultura popular com o texto escrito" (Op cit., 66).

Para Câmara Cascudo (1898-1986), historiador, jornalista, antropólogo e folclorista brasileiro, o Lunário Perpétuo...

"Foi durante dois séculos o livro mais lido nos sertões do Nordeste, informador de ciências complicadas de astrologia, dando informações sôbre horóscopos, rudimentos de física, remédios estupefaciantes e velhíssimos. Não existia autoridade maior para os olhos dos fazendeiros e os prognósticos meteorológicos, mesmo sem maiores exames pela diferença dos hemisférios, eram acatados como sentença. [...] Registra um pouco de tudo, incluindo astrologia, receitas médicas, calendários, vidas de santos, biografia de papas, conhecimentos agrícolas, ensinos gerais, processo para construir um relógio de sol, conhecer a hora pela posição das estrelas, conselhos de veterinária..." (Cascudo, Luís da Câmara, Dicionário de Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1962 (1954), p.434).

"Oráculo" que nos sertões nordestinos habilita "profetas das chuvas", curandeiros, "benzinheiras" e sábios autodidatas, guiados pela auctoritas dos provectos mestres citados (enquadramento e referências em Medeiros, Aline da Silva, Notas sobre a produção, a circulação e a leitura do Lunário Perpétuo de Jerônimo Cortez entre Portugal e o Brasil, Revista Portuguesa de História, nº46, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015: 180 et seq.).

 

É certamente o "o Livro de Todo-o Saber" da lenda que Eça nos contou, prenhe de significação, não a agenda despojada que doravante nos conduz.

"Se do que hei prognosticado / Nem tudo assim succeder / Será como Deus quizer / Que assi foi o anno passado"

(do remate do habitual "juízo" anual, 1810 e anos sequentes, Lunário Lusitano ou novo Guia de lavradores, hortelãos, jardineiros...)

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Nas listagens de referência dos santos, "bem-aventurados" e outros notáveis, as abreviaturas mais comuns (categorias) que podemos encontrar são: ab, ab.ª (abade, abadessa), ap. (apóstolo), arc. (arcebispo), arced. (arcediago ou arquidiácono), bto., b.ª (beato, beata), bp. (bispo, lat. "episcopus"), comp. (companheiro), card. (cardeal), can. (canonizado), canon. regul. (cónego regular), conf. (confessor), diac. (diácono), D. da I. (doutor da Igreja), er. (eremita), fund. (fundador), honor. (honorato, venerado em...), m. (morto; mártir), mart. (mártir), miss. (missionário), mon. (monge), p. (padre), patr. (patriarca), pp. (papa), presb. (presbítero), prof. (profeta), r (reverendo; relíquias), s.,ss (santo,santos), sec. (século), trans. (transladação),  ven. (venerável), vigil. (vigília), v. ou virg. (virgem), V.M. (Virgem Maria).